2009

A amizade imperfeita

por Marcelo Coelho

Resumo

“Porque era ele, porque era eu”: foi assim que Michel de Montaigne, numa frase célebre, explicou as razões de sua amizade com Étienne de La Boétie. A “explicação” de uma amizade, no fundo, envolve a recusa de qualquer explicação. Estaríamos no campo da pura “afinidade eletiva”, ou melhor, da paixão, do amor, se quiséssemos entender a amizade exclusivamente nesses termos. Mas, ao mesmo tempo em que se situa, desse ângulo, na esfera do íntimo, do privado, do arbitrário e do pessoal, a amizade é impensável sem a esfera do público, do dialógico, do ético e do político. Não se podem exigir grandes raciocínios éticos de um amante apaixonado; o amor não tem necessariamente nada a ver com a virtude. Ética e virtude constituem, entretanto, desde os tempos clássicos, um pressuposto da amizade. Pelo menos, a amizade pressupõe, para conservar-se, uma concordância mínima quanto ao grau de compromisso ético exigido mutuamente pelos participantes da relação.

Há portanto, na amizade, como que um ponto de contato entre a ordem do público e a do privado; entre o arbítrio subjetivo e a lei comum; e, sem dúvida, entre o prazer na semelhança e o enriquecimento pela diferença. Seria, talvez, o espaço por excelência da liberdade, em que o ser totalmente o que se é implica aceitar totalmente, também, o que o outro tem de diferente; há como que a confiança em que nem as diferenças, nem as semelhanças, anulam a própria individualidade; a diferença enriquece e perdoa, e a semelhança é antes um campo fértil do que a esterilidade de uma terra arrasada.

É de se perguntar se, nos dias atuais, o recolhimento do indivíduo à esfera privada, a decadência tanto do lazer público quanto do trabalho em comum, não estariam destruindo esse delicado balanço entre subjetividade e “polis”, entre arbítrio e lei, que estão na base do conceito clássico de amizade. No mundo das relações mediadas pela internet, sem dúvida vigora uma extrema liberdade, uma extrema facilidade nos relacionamentos interpessoais. Ao mesmo tempo, feitos e desfeitos ao sabor de interesses acidentais, destituídos dos silêncios em comum, expostos à loteria de concordâncias pragmáticas e imediatistas (a comunidade dos fãs de Maria Callas, o grupo dos ciclistas notívagos da Zona Sul), os relacionamentos via internet tendem a se tornar antes de tudo links interpessoais, e não necessariamente ocasiões de amizade. A destruição dos ambientes de trabalho e de estudo tradicionais — onde cumplicidade e confiança podiam se estabelecer a partir de contatos que, por algum motivo, superam o cálculo dos interesses pessoais comuns — tende também a diminuir o campo de aparecimento das amizades duradouras e reais. Seria excessivamente pessimista imaginar o “fim” de uma forma de relacionamento tão ampla, e tão autenticamente humana, quanto a amizade.. Em que medida o declínio do “espaço público”, ou sua reconfiguração em novas bases tecnológicas, acarreta o declínio da amizade, e de seu significado como ideal de liberdade e de comunicação?


Convidado a falar sobre a amizade na série de palestras que deu origem a este volume, deparei-me com uma dificuldade inicial. Haveria, inicialmente, de relacionar o tema com aquele, mais amplo, das virtudes e dos vícios, que inspirava o ciclo em seu conjunto. Este, por sua vez, inscrevia-se num projeto de maior fôlego, dedicado a examinar “cultura e  pensamento em tempos de incerteza”. Incerteza sobretudo social e política, a julgar pelos ciclos anteriores que Adauto Novaes organizara sob tal denominação.[1]

Abriam-se, portanto, várias possibilidades de enfoque para o tema proposto. Cabia investigar o lugar da amizade dentro dos quadros mais abstratos do vício e da virtude em geral; desenvolver, em seguida, a análise de seus reflexos no plano da política. E, por fim, apresentar algumas sugestões quanto ao papel da amizade num mundo marcado pela acelerada transformação tecnológica, o deste começo de século XXI.

Seriam necessários, desse modo, quase que três textos distintos.., ou até mesmo quatro, porque, no interior dessas preocupações temáticas, havia a minha intenção de discutir o ensaio “Da amizade”, escrito por Michel de Montaigne no século XVI, e o Discurso da servidão voluntária, de seu grande amigo Étienne de La Boétie, cuja morte prematura é lamentada de forma emocionante no ensaio montaigmano.

Montaigne dizia, a respeito de seus ensaios, que eram uma espécie de mistura desconjuntada, um trabalho de marchetaria mal colada. Não será alheia ao seu espírito a tentativa de reunir, num único texto, os três ou quatro tópicos a que me referi.

Ao contrário de outros ensaios deste volume, que abordam, por exemplo, a tolerância, a justiça ou a temperança, não estamos tratando, ao falar da amizade, de uma virtude propriamente dita. Trata-se de um modo de relacionamento humano que, para se manter, precisa naturalmente de virtudes — um mínimo de constância, cortesia e fidelidade, para citar algumas —, mas que se entende e aprecia mesmo sem considerá-lo uma virtude autônoma, diversa daquelas das quais depende para existir.

Sem dúvida, existe o chamado “dom” da amizade: algo que nem todos podem orgulhar-se de possuir. Há quem se dedique aos amigos, cultive-os, sempre se mantenha perto deles; e há quem, por desleixo crônico ou confiança adquirida, não veja nisso uma prioridade vital, um foco de atividade realmente importante. Mas esse “dom da amizade” não é, necessariamente, uma coisa que se possa impor, ou que se possa procurar de modo independente, como seria o caso de uma virtude. Um indivíduo que exagera nos prazeres à mesa pode prometer a si mesmo um pouco mais de temperança no futuro; o fanático pode ser confrontado com os benefícios da tolerância; mas dificilmente recairia sobre alguém a consciência de que precisa procurar “ser mais amigo” do que já se considera. Posso prontificar-me a ser mais altruísta, menos narcisista, mais dedicado, mais afetuoso, mais paciente, mais constante, mais organizado nos meus relacionamentos: inúmeras virtudes que beneficiam a amizade se invocam nessas frases, mas não fazem da amizade, nela mesma, uma virtude. Para o campo das virtudes, talvez devêssemos reservar um neologismo, a “amistosidade”; mas seria difícil dizer o que teria de específico quando comparado à afabilidade, à constância ou à compaixão. No máximo, caberia dizer que a amizade, o cultivo da amizade, o exemplo da amizade, há de nos predispor a uma série de virtudes. Mas o casamento, por exemplo, também é capaz disso: e o casamento não é automaticamente visto como uma virtude, embora tenda a exigi-la em boa quantidade.

Ainda assim, uma ligação muito forte entre amizade e virtude é constante no pensamento clássico, na obra de autores como Aristóteles e Cícero, que iriam influenciar fortemente o pensamento de Montaigne sobre o tema. Vale fazer aqui, portanto, uma descrição sumária desse ideal “clássico”, greco-romano, de amizade.

Aristóteles, na Ética a Nicômaco, considera a amizade “uma virtude”, mas logo em seguida acrescenta, num recuo significativo: “ou implica virtude”.[2]

É que o pensamento aristotélico distingue vários níveis de amizade. Esta pode ser orientada apenas pela busca do agradável: a companhia de um amigo espirituoso, por exemplo. Ou pela busca do útil: mantenho com uma pessoa interesses comuns. Tanto ele quanto eu gostamos, por exemplo, de colecionar selos, e ficamos amigos enquanto durar esse interesse.

Mas na verdadeira amizade, diz Aristóteles, não procuro o útil nem o agradável, e sim o amigo, ele próprio. “A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins na virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro [por que] são bons, e são bons em si mesmos” [3] e não pelas qualidades de humor, por exemplo, que possuírem, ou pelo fato de terem os mesmos interesses do que nós. Nessa amizade ideal, somos amigos de nossos amigos, e não das coisas, ou dos prazeres, que sua companhia nos traz.

O argumento nos toca, até hoje, pela elevação de seus pressupostos; é certo que o prazer e a utilidade de um relacionamento podem ser passageiros, enquanto a verdadeira amizade deve ser duradoura, sendo mesmo um sentimento capaz de permanecer até depois da morte do amigo. Todos temos a experiência de diálogos que se prolongam imaginariamente com um amigo já perdido; morte física ou separação circunstancial, a amizade se faz tanto de presença quanto de ausência, e, deste ângulo, o dito clássico “ó amigos, não há amigos” teria uma leitura menos pessimista e desencantada do que a costumeira.[4]

Não estarei provavelmente sozinho, entretanto, se disser que desconfio bastante dessa idealização da amizade, vista como autêntica apenas na medida em que se dê entre pessoas boas e virtuosas. Talvez mais próxima da experiência moderna seja a sensação de que um dos grandes motores, uma das grandes razões da amizade, está na imperfeição de cada um de nós: na imperfeição nossa e na imperfeição do amigo. A própria amizade não é, a meu ver, um tipo de relacionamento perfeitamente estável, cristalizado, sem manchas, sem desconfianças, sem turbulências… que são outras formas, aliás, da mesma separação, que é um de seus pressupostos, apesar de tudo.

Separação de corpos, em primeiro lugar. Tendemos a considerar que uma amizade acrescentada de intercurso sexual deixaria de ser amizade, para tornar-se amor. Novamente, contudo, este é um aspecto em que um vocabulário clássico e idealizado tende a ser repetido sem que corresponda, provavelmente, às formas modernas de relacionamento entre as pessoas.

Cícero, por exemplo, definia o amor como “o desejo de obter a amizade de alguém que nos atrai por sua beleza”.[5] Nessa definição, parece implícita a disposição de colocar a amizade como algo superior ao amor, uma vez que este seria, afinal, uma amizade ainda impregnada de sensualidade, de atração pelo que é mutável e passageiro na pessoa humana. A amizade seria um amor espiritualizado, e portanto mais virtuoso, mais verdadeiro, na medida em que se liberta daquilo que o amor tem de terreno, de físico, de provisório. Aqui, também, a ligação entre amizade e virtude tem um significado preciso, que é o de apontar para um tipo de relacionamento idealizado, acima não apenas do prazer e da utilidade, mas também do desejo sexual, ou da simples admiração pela beleza física.

Em seu ensaio “Da amizade”, Montaigne retoma muitas dessas ideias clássicas sobre a pureza de uma amizade ideal. Lembrando sua relação com La Boétie, Montaigne contrasta-a com as amizades cotidianas, comuns a todos nós.

O que costumamos chamar de amigos e amizades são apenas contactos e convivências entabulados devido a alguma circunstância ou conveniência por meio da qual nossas almas se mantêm juntas. Na amizade de que falo [aquela com La Boétie], elas se mesclam e confundem uma na outra, numa fusão tão total que apagam e não mais encontram a costura que as uniu.[6]

Novamente, temos aqui, de um lado, a ideia de uma amizade constituída por prazer, por interesse, por utilidade, que une duas pessoas por determinado tempo, mas que pode ser desfeita se o prazer, o interesse ou a utilidade deixarem de existir. E, de outro, uma amizade que é tão completa, tão superior aos interesses passageiros, que funde as duas almas, não sendo mais possível encontrar “a costura que as uniu”.

Depois desse trecho, segue-se uma passagem muito famosa e emocionante de Montaigne. O ensaio, nessas suas primeiras páginas, revestia-se de um tom em certa medida convencional, porque se dedica a distinguir a amizade da relação entre pais e filhos, da relação entre irmãos, da relação entre marido e mulher, num intuito de definição que, embora como sempre entremeado de anedotas e citações, tende ao abstrato, ao impessoal. Surge então uma exclamação emocionada, calorosa e íntima: “Se me pressionarem para dizer por que o amava, sinto que isso só pode ser expresso respondendo: Porque era ele; porque era eu”.[7]

Na verdade, a primeira edição dos Ensaios trazia uma formulação bem menos eloquente. Montaigne dizia apenas: “Se me pressionarem para dizer porque o amava, sinto que isso não pode ser expresso”: Foi só mais tarde, depois da morte de Montaigne, que foi encontrado um exemplar dessa primeira edição — o chamado “exemplar de Bordeaux”, com muitas anotações e acréscimos manuscritos, que passaram a ser incorporados às novas edições. Nesse exemplar., conservado até hoje, podem ser verificados os adendos de Montaigne.[8]

Inicialmente, Montaigne escreveu apenas: “Isso só pode ser expresso respondendo: porque era ele”. E depois, com outra tinta, num acréscimo posterior, finaliza: «porque era eu”.

Eis provavelmente um caso em que a forma literária, o modo pessoal do estilo de um autor, diríamos quase a pulsação viva de sua escrita, transformam profundamente o conteúdo tradicional das ideias que estava a apresentar.

A rigor, a ideia inerente ao “porque era ele, porque era eu” corresponde ao conceito clássico da amizade, que Montaigne desenvolvia na linha de Aristóteles e de Cícero. Baseia-se, com efeito, na convicção de que se é amigo de alguém não por amar as coisas que o amigo traz consigo, mas sim pelo que o amigo é. No amigo, não se busca o prazer nem a utilidade, mas sim o amigo em si. Montaigne estava plenamente de acordo com essa concepção clássica; mas quando a exprime, numa frase exclamativa, impregnada de amor e desespero — porque La Boétie já estava morto —, a ideia irrompe nessa frase escrita à mão, em dois impulsos: “porque era ele // porque era eu”.  E é como se todo aquele edifício de mármore estável e clássico, o de uma amizade fundada na virtude de homens de bem, fruto da constância, da razão, da temperança, da honestidade, desse lugar a outra coisa, algo de mais inexplicável, mais fundo, mais íntimo, mais intransferível, semelhante a uma paixão. No esquema aristotélico, tudo se passa como se todo homem virtuoso houvesse de ser amigo de outro homem virtuoso; a afinidade entre homens de bem se dá pelo fato de que ambos se sentem bem fazendo o bem um ao outro, numa espécie de equilíbrio perfeito, e, diga-se de passagem, bastante aborrecido.

Mas nós — pelo menos nós, que somos modernos — vemos na frase de Montaigne uma efusão de subjetividade incomparável: outra pessoa não seria, talvez, amiga de La Boétie; talvez não encontrasse nenhum significado em seu convívio. O que os uniu, La Boétie e Montaigne, é algo que pertence aos dois, e a mais ninguém; não se deve à virtude universal que ambos compartilham, mas à alma de cada um deles, tal como é — e Montaigne, como se sabe, é o primeiro a se descrever tal como de fato é, sem se apresentar como especialmente virtuoso ou perfeito ao seu leitor.

Talvez até por essa contaminação do contexto — os “Ensaios” são um exercício de subjetividade, mais do que de filosofia — é que lemos essas considerações sobre a amizade como um depoimento subjetivo, e não como a imitação ou o comentário da filosofia já feita, por Aristóteles e Cícero, a respeito da amizade.

Ocorre que as coisas não são tão simples assim, e seria muito arriscado dizer simplesmente que, a partir de Montaigne, passamos a ter uma visão mais “subjetiva”, mas “impulsiva” da amizade, como uma espécie de afinidade pessoal íntima, em oposição ao modelo clássico de cooperação exemplar entre pessoas virtuosas.

Um exemplo nos permitirá ressaltar com mais clareza a distância entre esse ideal clássico, virtuoso, cívico, da amizade, e sua concepção moderna, subjetiva, íntima, privada. No auge da Revolução Francesa, um de seus representantes mais radicais, Saint-Just, escreveu um esboço do que ele considerava a constituição ideal republicana. Embora se tenha o costume de ver na Revolução Francesa um movimento eminentemente burguês, em última análise cioso apenas dos interesses particulares dos cidadãos, uma de suas contradições mais flagrantes é que a teoria por trás de suas correntes mais radicais era eminentemente “clássica”, interessada em cultivar não os interesses particulares, a vida privada dos cidadãos, mas suas virtudes públicas. Saint-Just dedica um capítulo inteiro de seus Fragmentos sobre as instituições republicanas ao tema da amizade, e de sua organização pelo Estado. Vale a pena citá-lo.

Todo homem, na idade de 21 anos, deverá declarar no Templo quais são seus

amigos. Essa declaração deve ser renovada anualmente, no mês de Ventôse.

Se um homem deixa um amigo, é obrigado a declarar seus motivos diante do

povo nos templos, a chamado de um cidadão ou da pessoa mais velha ali presente; se recusar, será banido.

Os amigos não podem firmar por escrito os seus compromissos; não podem

querelar judicialmente entre si.

Os amigos serão colocados lado a lado na linha de combate.

Os que se mantiverem unidos durante toda a vida serão sepultados no mesmo túmulo.

O amigo ficará de luto pela morte do outro.

O povo elegerá os tutores das crianças entre os amigos de seu pai.

Se um homem cometer um crime, seus amigos serão banidos.

O amigo cavará a tumba e preparará o enterro de seu amigo; jogará ao lado dos filhos deste, as flores sobre a sepultura.

Aquele que disser não acreditar na amizade, ou que não tem amigos, será banido.

Um homem culpado de ingratidão será banido.[9]

Eis o projeto de um jacobino radical, num momento da Revolução bem mais totalitário do que simplesmente individualista ou privatista. E é um exemplo da amizade “cívica” levado ao cúmulo, em oposição ao nosso moderno entendimento da amizade como uma relação particular e subjetiva.

Haveria, contudo, dificuldades em situar, dentro da oposição algo esquemática que traçamos entre a amizade clássica e a moderna, o lugar ocupado pelo ensaio de Montaigne sobre La Boétie.

Apontemos, primeiramente, as dificuldades que vêm do lado de Montaig­ne, para em seguida abordar as que surgem do lado de La Boétie.

O ensaio de Montaigne surpreende bastante o seu leitor que acaba de comover-se com o célebre “porque era ele, e porque era eu”. Seria de esperar que o texto se estendesse sobre o lado privado, particular, do relacionamento entre eles. Ou que fizesse, pelo menos, uma descrição de como era La Boétie. Em seus Ensaios, Montaigne se dedica longamente a contar como ele próprio, Montaigne, é: gosta de tempo chuvoso, tem péssima memória, sofreu uma queda de cavalo, teve um pai excelente, tem um olfato muito sensível, sofre dos rins… Nada sabemos, na verdade, e Montaigne nada nos diz, sobre La Boétie. Nada mais imediato, nos dias de hoje, do que uma reflexão fúnebre dedicar-se a evocar as características pessoais de quem morreu; não faltará quem lembre episódios curiosos a respeito do falecido, ditos ou gestos que o caracterizassem, suas preferências, suas atitudes… Tudo o que Montaigne diz a respeito de si mesmo é negado ao leitor a respeito de La Boétie. Apesar de todo o poder de “subjetivização” que nesse ensaio Montaigne confere à amizade, seu amigo fixa-se no texto apenas como uma efígie romana, um tipo exemplar da virtude aristotélica, uma pessoa sábia, perfeita, mas sem nenhum traço vivo e peculiar.

Nossa tendência, entretanto, é ler Montaigne de maneira algo anacrônica. Parece tão moderno e atual em incontáveis páginas suas que o encanto delas emanado nos leva a ler, por vezes, não exatamente o que ali foi escrito, mas aquilo que estamos nós mesmos pensando. O conhecido “narcisismo” de Montaigne tende a contaminar os seus leitores… O modo como descreve seu primeiro encontro com La Boétie, por exemplo, reveste-se de tal intensidade, que para nós parece um caso de paixão à primeira vista:

Procurávamo-nos antes de nos termos conhecido, e por informações que ouvíamos um sobre o outro, e que faziam em nossa afeição mais efeito do que a razão atribui a informações, creio que por alguma ordem do céu: abraçávamo-nos por nossos nomes. E em nosso primeiro encontro, que aconteceu por acaso em uma grande festa pública e em numerosa companhia, vimo-nos tão atados, tão conhecidos, tão comprometidos entre nós que desde então nada nos foi tão próximo como um do outro… Não foi uma consideração especial, nem duas, nem três, nem quatro, nem mil: foi não sei que quintessência de toda essa mistura, que, tendo se apossado de toda a minha vontade, levou-a a mergulhar e perder-se na sua; que, tendo se apossado de toda a sua vontade, levou-a a mergulhar e perder-se na minha, com a mesma gana, com a mesma convergência. Digo perder verdadeiramente, sem nos conservar nada que nos fosse exclusivamente particular nem que fosse dele ou meu.[10]

Para o leitor contemporâneo, o que se descreve aqui é uma paixão, um enamoramento romântico — e sempre haverá alguém querendo saber se não havia um desejo homossexual entre os dois, coisa que interessa muito pouco, porque é afinal incerto a que padrões de sexualidade masculina (os do século XVI? Ou os do século XXI?) estamos nos referindo quando nos entregamos a especulações desse tipo. E, na verdade, ainda que essa amizade instantânea, esse coup de foudre entre Montaigne e La Boétie tenha efetivamente ocorrido, toda a descrição desse encontro está ainda a serviço de um ideal muito clássico de amizade: ou seja, a ideia de que entre almas absolutamente desinteressadas e virtuosas, numa amizade perfeita, dá-se um relacionamento intemporal, livre das considerações de conveniência, de interesse, de ocasião. Não se trata de algo que nasce, evolui e morre: essa identificação absoluta de vontades, essa perda completa do que é particular a cada um, esse desprezo a tudo o que “fosse dele” ou “fosse meu”, corresponde ao ideal clássico de uma amizade identificada na devoção e no desapego totais. A virtude se espelha na virtude: eis algo que, a rigor, parece ir no sentido inverso de uma ideia de amizade fundamentada, justamente, na particularidade pessoal de cada sujeito. O “porque era ele, porque era eu” transfigura-se em outra imagem, que poderíamos traduzir numa fórmula simétrica: “nem ele é ele, nem eu sou eu”.

Entretanto, depois de muitas considerações baseadas em exemplos clássicos de dedicação aos amigos, onde prima a ausência completa de egoísmo, Montaigne tem uma segunda “explosão subjetiva”, um segundo momento em que sua escrita se torna realmente emocionada e pessoal:

se eu comparar todo o restante de minha vida, embora com a graça de Deus a tenha passado agradavelmente, confortavelmente e — exceto pela perda de um tal amigo — isenta de aflição grave, plena de tranquilidade de espírito, contentando-me com minhas vantagens naturais e originais, sem procurar outras; se comparo toda ela, afirmo, com os quatro anos em que me foi dado desfrutar da doce companhia e conviência desse indivíduo, ela é apenas fumaça, é apenas uma noite escura e tediosa. Desde o dia em que o perdi (…) não faço mais do que me arrastar languescente; e os próprios prazeres que se me oferecem, em vez de consolar-me, redobram a tristeza de sua perda. Participávamos a meias de tudo; parece-me que lhe estou roubando sua parte (…) Já estava tão afeito e habituado a ser um de dois em tudo que me parece não ser mais do que meio.[11]

Sem dúvida, foi bem depois da morte de La Boétie que Montaigne resolveu retirar-se da vida pública e começar a redigir seus ensaios; de certo modo, ele recriou, consigo mesmo, e conosco, o diálogo que tinha perdido com La Boétie. E disso resulta, para nossa sorte, que um modelo de amizade feito de subjetividade, de particularidade pessoal, de intimidade, impregna a partir de Montaigne as nossas concepções sobre o tema, em oposição ao modelo mais perfeito e impessoal apresentado por Aristóteles e Cicero — modelo este que, na maior parte do tempo, o texto de Montaigne imitava, mas que em alguns momentos, os mais memoráveis, terminou por implodir.
Passemos agora para o outro polo da relação, o de Étienne de La Boétie, autor do Discurso da servidão voluntária ou Contra um. Montaigne pensava originalmente em publicar a obra do amigo, como peça principal do seu próprio volume de ensaios; estes serviriam apenas, diz, como ornamento a emoldurá-la. Desistiu desse projeto, porque o curto livro do amigo estava sendo reproduzido, na época, numa coletânea de textos protestantes radicais, prestando-se a uma leitura sediciosa que Montaigne não queria endossar; acrescenta que o próprio La Boétie não aprovaria essa utilização do texto:

nunca houve um cidadão melhor, nem mais afeiçoado à tranquilidade de seu país, nem mais inimigo das agitações e novidades de seu tempo. De muito melhor grado ele empregaria seu talento em extingui-las do que em fornecer-lhes com que incitá-las ainda mais. Tinha o espírito moldado pelo padrão de outros séculos que não este.[12]

Apesar das considerações de Montaigne, o Discurso da servidão voluntária continua inspirando leituras bastante anacrônicas, como se La Boétie fosse um teórico do anarquismo, avesso a toda forma de Estado constituído.

Assim, para Pierre Clastres, por exemplo, o pensamento de La Boétie nos ensinaria que “toda sociedade dividida é uma sociedade de servidão. Isso quer dizer que La Boétie não estabalece distinções no interior do conjunto constituído pelas sociedades divididas: não existe bom príncipe que possa se opor ao mau tirano”.[13]

A interpretação de Clastres choca-se com reiteradas evidências do texto de La Boétie. O Discurso contra a servidão voluntária não cessa de citar exemplos e situações de povos que souberam lutar para preservar a própria liberdade contra as usurpações de um tirano, e  conquistadores estrangeiros. O governo de Atenas, por exemplo, teve a desgraça de cair nas mãos de Pisístrato — e foi assim que os cidadãos perderam a sua liberdade[14]  —; o mesmo aconteceu com o povo de Siracusa, ao entregar o comando geral do exército a Dionísio I;[15] com toda evidência, não se tratava de comunidades “sem Estado”, de sociedades sem divisão”; eram organismos políticos livres, que num passo determinado de sua história se tornam vítimas de um tirano. Tampouco se pode dizer que a república de Veneza, para La Boétie, era uma tirania: seus habitantes compõem “um punhado de gente que vive tão livremente que o mais infeliz entre eles não almejaria ser rei, e todos, nascidos e criados dessa forma, não conhecem outra ambição senão a de vigiar ao máximo a manutenção de sua liberdade”.[16]

A Esparta de Licurgo e a república romana, que Cássio e Bruto quiseram defender contra as ambições de César, são também outros exemplos citados por La Boétie como antípodas da tirania.

Mas o que interessa notar, seguindo os argumentos de Marilena Chauí,[17] é que este clássico da teoria política é também um texto sobre a amizade. La Boétie não investiga a origem do poder político em geral, mas sim procura entender de que modo, em diversas circunstâncias históricas, cidadãos livres entregaram voluntariamente o poder político a quem dele faz uso em proveito próprio. Foi isso, por exemplo, o que os romanos, contrariando as convicções de Cássio e Bruto, fizeram com César. Voluntariamente, concederam a um “igual” poderes que se colocavam acima das leis, e mesmo o poder de vida e morte sobre eles próprios. La Boétie compara essa situação à de uma amizade traída.

Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte do curso de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde o recebemos, e muitas vezes diminuir o nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que o merece. Em consequência, se os habitantes de um país encontraram algum grande personagem que lhes tenha dado provas de grande previdência para protegê-los, grande audácia para defendê-los, grande cuidado para governá-los, se doravante cativam-se em obedecê-lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar algumas vantagens, não sei se seria sábio tirá-lo de onde fazia o bem para colocá-lo num lugar onde poderá malfazer, mas certamente não poderia deixar de haver bondade em não temer o mal de quem só se recebeu o bem.[18]

Essa confiança no benfeitor, que se origina na amizade por ele, é que pode dar ocasião para a sua transformação em tirano. Este, o mau amigo, passa a zelar não pelo bem do povo, mas pelo seu próprio interesse; e atrai a seu redor não os virtuosos, mas aqueles que veem no relacionamento interpessoal apenas o instrumento para o seu egoísmo, para a utilidade, para o prazer, para o aproveitamento. Forma-se uma corte, que é também uma quadrilha. “Entre os maus”, diz La Boétie, “quando se juntam, há uma conspiração, não uma companhia; eles não se entreamam, mas se entretemem; não são amigos, mas cúmplices.”[19]

O principal aspecto em jogo, aqui, não é o ato de rebelar-se contra um tirano, mas o de opor à tirania, preventivamente, o modelo da amizade clássica. Esta não é apenas um relacionamento pessoal, mas uma disposição de entrega absoluta e recíproca entre iguais, onde o cálculo das vantagens egoístas não tem lugar. A origem da tirania, para La Boétie, é o rebaixamento desse modelo igualitário de reciprocidade e de virtude. Como se explica que um só tirano, pergunta La Boétie, possa subjugar dezenas, centenas, milhares de pessoas? É que em torno do tirano há dois, três, quatro cortesãos, que não são seus amigos, mas estão a seu serviço em troca dos privilégios que este lhes distribui. Em torno desses três ou quatro, há outros dez ou vinte; e assim até a base da pirâmide, que se vê desse modo corrompida de alto a baixo por um sistema de valores em que a vantagem pessoal, o interesse, a pilhagem, o mando se organizam numa hierarquia sem lugar para cidadãos que se disponham à entrega desinteressada e virtuosa de si mesmo. Um povo capaz de lutar até à morte para preservar a própria liberdade se transforma num séquito de escravos, em tempos de paz, e numa horda mercenária, em tempos de guerra.

Desse modo, é fundamental, para o entendimento do texto de La Boétie, levarmos em conta que seu critério para o julgamento político, para sua crítica da tirania, fundamenta-se numa concepção de amizade muito diferente, a meu ver, daquela que conhecemos modernamente. As amizades modelares da Antiguidade, como as de Harmódio e Aristogíton, Cássio e Bruto, seguem uma concepção de espelhamento virtuoso e abnegação que, naturalmente, as dirige a uma imediata tradução política, na recusa às promessas de bem-estar oferecidas por um tirano.

Salta aos olhos a nossa distância “moderna” diante de toda essa literatura: no mínimo, porque não temos uma visão tão “cívica” e “republicana” da amizade (nada nos horrorizaria tanto quanto uma legislação ao modo da proposta por Saint-Just). De modo mais extremo, tampouco são raros os que, ainda hoje, consideram mais vantajoso, na prática, o bem-estar distribuído por um tirano a seus súditos do que a preservação da liberdade “abstrata” dos cidadãos.

Seja como for, ninguém pensaria, no mundo contemporâneo, em eleger uma amizade pessoal como exemplo universal de virtude; não somos mais capazes de supor, numa ignorância dos interesses de classe envolvidos em qualquer disputa política, que Bruto e Cássio agiram apenas como cidadãos virtuosos contra as intenções tirânicas de César…

Naturalmente, mantemos a convicção básica de que em toda amizade há uma ética fundamental, que se expressa na exigência muito simples de não ser usado pelos amigos e de não usá-los como meios para um objetivo pessoal; o colega interesseiro é evidentemente muito diverso do amigo que nos pede favores, e que temos prazer em atender.

Não é menos verdade, entretanto, que, no amigo, nós não perdoamos uma série de coisas que não têm necessariamente relação com a virtude: o amigo sem senso de humor, cujas preferências culturais divergem das minhas e que repete as mesmas coisas — o amigo desinteressante, apesar de desinteressado — pode sem dúvida continuar meu amigo, mas não é alguém que eu valorize a ponto de dedicar-me a algumas horas de lazer em sua companhia.

Ao mesmo tempo, vemos como um dos maiores valores da amizade o fato de que esta nos permite contemplar a imperfeição e conviver com ela. Tanto a imperfeição do amigo, quanto a nossa própria. Não prescindimos da afinidade de qualidades — tipo de humor, tipo de interesse intelectual, por exemplo — mas também dependemos de uma compatibilidade nos defeitos. Mais do que a es­posa, a namorada, o pai ou o parente, o amigo é quem não se importa demais com nossos defeitos, e que por isso mesmo pode nos dizer a verdade (um pouco da verdade, ao menos) a nosso respeito, sem que isso nos pareça recriminação, censura, ou campanha em prol de nosso aprimoramento. Sua propensão a “relevar” nossos defeitos e erros, e assim reciprocamente, é condição básica da amizade. “Que isso fique entre nós”: eis uma grande frase entre grandes amigos, que justamente repele qualquer consideração de cunho público. Com o amigo podemos ser e dizer muita coisa que não podemos ser e dizer em público; com ele estamos livres do papel social que temos a representar. Por certo, com cada amigo em particular, não deixamos de apresentar, ou de representar, uma faceta diferente de nós mesmos. Mas nosso papel social é posto de lado: estamos desfrutando de uma intimidade. Terá seus graus, seus limites, é certo; suas reservas, suas discrições, suas mentiras também. Mas essa amizade “moderna”, que vai sendo caracterizada aqui, libera-nos, na verdade, da situação pública, e também da situação doméstica; das virtudes públicas, assim como das virtudes domésticas.

A questão que se coloca é de que modo se podem tirar repercussões e significados políticos mais amplos dessa concepção “não virtuosa” de amizade, feita mais de cumplicidade inofensiva do que de virtude republicana, mais de compreensão mútua do que de rigor moral. Talvez seja possível formular um modelo para essa amizade moderna, não tão rígido como o da amizade clássica, mas que se revista, ao mesmo tempo, de um significado político.

Para isso, valeria descrever brevemente o que acontece quando nos tornamos amigos de alguém, ressaltando o que distingue a amizade de qualquer relacionamento amoroso. É comum considerar que a amizade, afinal, quando suficientemente intensa, seria uma espécie de amor, mas destituído de interesse sexual. Insistamos, entretanto, não numa diferença de grau, mas num esquema de oposição mais profundo entre os dois conceitos.

Imaginemos, pois, uma situação-modelo de como uma amizade pode começar. Vamos supor que alguém esteja num bar, numa sala de aula, em algum lugar público, e se veja diante de uma pessoa desconhecida. Trocam-se olhares, arriscam-se sorrisos, sinais de comunicação mútua. Se predominar, nesse momento, o interesse sexual, uma pessoa estará olhando para a outra, comunicando-se com ela, sem fazer referência a mais nada: olha-a, encara-a, sorri, e espera apenas que no olhar da outra pessoa se reflita um movimento equivalente de interesse. É possível, entretanto, uma situação inteiramente di­versa. Naquele restaurante, naquela sala de espera, naquele bar, naquela classe, há um terceiro indivíduo — um professor, um garçom, um outro freguês, um aluno. Suponha-se que esse terceiro indivíduo tenha dito alguma coisa ridícula, tenha repetido algum hábito já conhecido, tenha entrado, por assim dizer, em algum papel social claramente caricatural. Nossos dois personagens se olham novamente: trocam sinais de compreensão silenciosa, como no caso do flerte. Mas esse olhar não se esgota no interesse de um pelo outro; esse movimento, de cumplicidade, faz referência a um terceiro, a um outro, exterior às duas pessoas que se olham. Esse olhar, que pode ser correspondido ou não, difere do olhar de interesse sexual: é um olhar de amizade. Sem dúvida, pode ser apenas o primeiro passo para um romance. Mas o fundamental é que toda amizade pressupõe a existência de uma terceira pessoa, de uma esfera exterior, uma coisa “de fora”, à qual o olhar de duas pessoas se refere.

Contrariamente ao amor, onde a existência de um terceiro polo no relacionamento traz consigo a ameaça de uma traição, a amizade tem no terceiro polo a premissa da fidelidade mútua. Nesse sentido, a amizade pode ser considerada uma espécie de cumplicidade do bem. Se, numa classe, numa sala de aula, “escolho” alguém com quem trocar olhares, no momento em que o professor repete um refrão ridículo, por exemplo, é como se eu soubesse, por algum tipo de sinal — chamemo-lo afinidade —, que a pessoa a quem eu dirijo esse olhar está no mesmo estágio de percepção das coisas que eu, pode tão bem quanto eu perceber um traço ridículo que os demais talvez não percebam.

Cabe certamente, num texto como este, alguma reminiscência pessoal. Nunca me senti capaz de ter amizade com alguém sem contar com essa instância “exterior”, a respeito da qual se pode criar um espaço de cumplicidade, uma espécie de círculo mágico, do qual “os outros” estão excluídos. Para dar um exemplo, ainda da época de faculdade, havia um professor com quem eu sentia muita afinidade, e que admirava muito. Houve momentos, em sala de aula, que trocamos olhares de espanto a respeito de uma ou outra intervenção mais desastrada de um aluno. Mais tarde, tive-o como orientador no mestrado; frequentei as reuniões de um grupo de orientandos, de cujas inquietações ele compartilhava. Nunca fomos amigos. Só começamos a ter uma relação de amizade bem mais tarde, depois que esse grupo já tinha se dissolvido, e depois de eu já ter defendido minha tese; naquele momento pudemos, com liberdade, falar mal — um pouco mal — de alguns outros colegas meus. Assim como ocorre com o uso de palavrões, ou com a enunciação de algum comentário sexista é só a partir de alguma coisa “errada” feita em segredo que se pode estabelecer algum laço de confiança, algum tipo de atitude que exigirá, posteriormente, dos amigos um comportamento de discrição.

Da conspiração política contra um tirano ao mero desabafo acadêmico há sem dúvida uma distância, mas nas duas atitudes o que mais une dois amigos é menos a virtude do que o sigilo; a esfera da liberdade é também a esfera do publicamente inconfessável. Não se exigiria mais, hoje em dia, a perfeição de uma amizade incapaz de denunciar o amigo sob a pressão de uma tortura; mas não há amizade, por mais imperfeita que seja, que sobreviva ao rompimento de uma cumplicidade pouco a pouco conquistada.

Sem dúvida, tal referência secreta a um terceiro, que simplifico aqui, passa por inúmeros testes, e encontra versões muito mais complexas do que as que exemplifiquei. Pode surgir de situações de perigo comum, ou de empreitadas comuns, contra alguma coisa ou uma pessoa inimiga; pode prosperar, frutifi­car numa amizade longa, ou ir desaparecendo ao longo do tempo, em razão de inúmeros outros fatores. Tudo envolve, naturalmente, uma afinidade de inte­resses, de gostos, de modos de encarar a vida. Mas não faltam pessoas de quem poderíamos ser amigos, pelos interesses, pelos modos de vida, pelos gostos; e que, entretanto, não são nossas amigas, porque faltou esse gênero de vivência, esse tipo de ocasião em que, de algum modo, um relacionamento recíproco se fecha, ou se reserva um espaço, diante do mundo exterior, sem entretanto ignorá-lo.

Dificilmente, portanto, poderíamos modernamente concordar com a visão de uma amizade em que determinada alma é “espelho” da outra, ou, segundo certa definição clássica, em que “uma alma só ocupa dois corpos diferentes”. Se há espelho, no caso, é como se tivéssemos dois espelhos, em ângulos diferentes, que por alguma razão refletiram o mesmo objeto ao mesmo tempo; e que assim se completam, criticam-se, e concordam quanto ao essencial.

De que modo este modelo “moderno” de amizade teria uma repercussão política, uma repercussão civil, pública, se quisermos? Seria, sem dúvida, diferente daquela imaginada pelo modelo clássico da amizade virtuosa. Ocorre que essa amizade conspiratória, cúmplice, não deixa de ser uma amizade “contra alguém”. Implica não numa homogeneidade completa dos cidadãos em torno de um modelo de virtude contra o vício, mas sim na possibilidade de uma heterogeneidade inesgotável de pontos de vista. Não mais a homogeneidade de uma virtude entre cidadãos perfeitos, mas a sutil divergência entre pessoas iguais na sua própria imperfeição.

Se o modelo clássico era um exemplo de resistência republicana às investidas de um tirano, talvez o modelo moderno seja um modo de resistir humanamente a um Estado — diríamos melhor: a um sistema estatal-publicitário — já constituído na quase-plenitude de seus controles sobre cada indivíduo.

Na amizade moderna, a esfera do “privado”, no caso, deixa de ser puramente individual, para ser compartilhada — o que no quer dizer que se torne, necessariamente, coletiva. Haveria nisso, talvez, um modelo de liberdade política, que fazemos mal em minimizar.

É conhecida a frase de Goebbels, que se vangloriava de que no regime nazista a vida privada tinha desaparecido: só voltava a existir, dizia o agitador nazista, quando cada pessoa estava dormindo. O Contra um, de La Boétie — que erigia a amizade clássica, o desapego dos cidadãos como arma contra o tirano —, pode ser traduzido, em termos de amizade moderna, numa espécie de “Contra outros”, contra esses que representam a voz coletiva do todo: do Estado totalitário, há sessenta ou vinte anos, ou de um sistema, hoje em dia, que exige de cada pessoa uma falsa diferenciação individual segundo modelos previamente calculados de consumo. É também o patrão, o professor, o gerente, o chofer de ônibus autoritário, o palestrante… quem quisermos: os amigos, nessa minha definição, terão sempre algo a dizer contra ele.

Qual o futuro, e qual o presente, desse modelo de amizade moderna que se tentou desenvolver aqui? É o momento de terminar com uma dúvida, com uma questão.

A formação da amizade em torno do olhar cúmplice, que esquematizamos neste texto, tende a ser mais fácil quando existem ambientes públicos, ambientes coletivos, nos quais a imagem, a presença física de um “terceiro” está disponível para as duas pessoas que trocam olhares, que estabelecem laços tácitos de comunicação. No meu exemplo, falei de uma sala de aula, de um bar, como poderia falar de um escritório, de uma sala de conferências, de um clube, de um partido político, e mesmo de um templo religioso — embora, aqui, a presença do “terceiro” tenda a ser mais esmagadora. Vivemos numa época em que o espaço dos encontros coletivos vai deixando de ser físico e tornando-se virtual; e em que a comunicação, acima de tudo, materializa-se na troca de informações mensuráveis, e não em gestos impalpáveis de aproximação. Há a precarização dos laços de emprego, o desaparecimento de instâncias deliberativas presenciais, como assembleias ou reuniões partidárias. Não por acaso, a escola é um grande produtor de amizades: trata-se de um lugar em que, durante anos, as mesmas pessoas se veem diariamente, estão expostas a uma relação igualitária diante de um “terceiro” (o professor, a tarefa, a instituição, o outro colega), e, aos poucos, podem estabelecer uma cumplicidade que vai sendo posta à prova pelas afinidades, pela constância, pela confiança, pelo diálogo.

Numa metáfora um tanto radical, é como se, até finais do século XX, os relacionamentos humanos se formassem à semelhança de uma rede ferroviária: há trajetos fixos, rotinas fixas, pontos de cruzamento, de passagem, estações, estabelecidos com uma perspectiva de durabilidade muito grande: a vizinhança, o ambiente de trabalho, a escola, etc. Claro que tudo isso sobrevive hoje em dia, mas vai se configurando um tipo de rede de relacionamentos que se assemelha não tanto a uma rede ferroviária, mas a teias de aranha, que se fazem, desfazem e refazem com rapidez muito maior — e com muito mais fragilidade também.

Não creio que isso acabe com o modelo de amizade que descrevi, ou que a internet, o extremo grau de privatização dos interesses, de competitividade mútua, de despolitização que vivemos hoje, venha a determinar o fim de uma coisa tão humana como a amizade. Ao contrário, pode haver novas formas de contato, de reencontro, de aproximação. Mas o futuro do humano, sem dúvida, está ligado ao futuro da amizade. Que cada leitor julgue, pensando nos amigos que tem, e no amigo que é, o grau de otimismo com que pode encarar esta questão.

Notas

[1] Além do presente livro, desse projeto também resultaram: Adauto Novaes (org.), O silêncio dos intelectuais (São Paulo: Companhia das Letras, 2006); e, do mesmo organizador, O esquecimento da política (São Paulo: Agir, 2007).

[2] Citamos segundo a tradução de Vinzenzo Cocco de: Aristóteles, Ética a Nicômaco, VIII, I, 1155a, Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril, 1979).

[3] Ibid., VIII, 3, 1156b.

[4] A frase é longamente analisada por Jacques Derrida, Politiques de l’amitié (Paris: Galilée, 1994).

[5] Apud Montaigne, “Da amizade”, capítulo 28 de Os Ensaios, 1, trad. Rosemary Costhek Abílio (São Paulo: Martins Fontes, 2000), p. 280.

[6] Ibid., p. 281.

[7] Ibidem.

[8] A fotografia desse trecho do exemplar de Bordeaux está reproduzida, por exemplo, no livro de Jean Lacouture, Montaigne à Cheval (Paris: Seuil, 1996), e ainda melhor em Eduardo Lourenço & Pierre Botineau, Montaigne 1533-1592. Photographies de Jean-Luc Chapin (Bordeaux: L’Escampette, 1992).

[9] Saint-Just, Fragments sur les institutions républicaines, 6º Fragment [ressource électronique] (Québec: Bibliothèque Paul-Émile Boulet, 2003), disponível em: http://bibliotheque.uqac.ca.

[10] Montaigne, “Da amizade”, cit., pp. 281-282.

[11] Ibid., p. 288.

[12] Ibid., p. 290.

[13] Cf. E. de La Boétie, “Liberdade, mau encontro, inominável”, em Discurso da servidão voluntária, trad. de Laymert Garcia dos Santos (São Paulo: Brasiliense, 1982), p. 111.

[14] Ibid., p. 83.

[15] Ibidem.

[16] Ibid., p. 85.

[17] E. de La Boétie, “Amizade, recusa do servir”, em Discurso da servidão voluntária, cit.

[18] Ibid., p. 12.

[19] Ibid., p. 36.

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