2007

A construção do medo no cinema

por João Luiz Vieira

Resumo

Desde o princípio, uma relação de assimetria escópica: Deus lá em cima olhando e, preferencialmente, cuidando de nossos passos — o medo fundado nessa possibilidade concreta do descobrimento de algum pecado ou erro, acompanhando a humanidade desde o gênesis. Hoje em dia é fácil nos observar, pois sempre deixamos traços — seja num simples telefonema, no uso de um cartão de crédito qualquer, navegando na internet ou simplesmente caminhando pela rua. As tecnologias de vigilância cada vez mais avançadas e sofisticadas vão literalmente tomando conta de nossos ambientes, desde uma prosaica câmera fotográfica ainda em meados do século 19 aos mais modernos sistemas de alta tecnologia voltados para o reconhecimento biométrico de rostos, impressões digitais, pupilas.

O tema é quente e de alta voltagem política. Controle, segurança, cerceamento de liberdades civis, que causam apreensão e medo (para quem é vigiado, e prazer para quem observa) diante da perspectiva da observação oculta: nesse quadro ostensivamente distópico, o cinema tem participação destacada. É através do olhar, em especial, que se instalam as mais variadas retóricas de vigilância — da fascinação com um olhar quase ingênuo do cinema dos primeiros tempos aos registros telecinematográficos em tempo real, o cinema construiu, ao longo do século passado, um eficaz processo de naturalização e alfabetização da vigilância e, consequentemente, do medo.

De acordo com uma teoria contemporânea do cinema, de viés psicanalítico, o cinema atualiza uma formação combinada de três séries de olhares: o olhar da câmera, o olhar da personagem no cinema narrativo de ficção e o olhar do espectador. Do lado de cá da tela, onde habitamos o espaço offscreen da escuridão da sala de cinema em seu modelo de fruição institucionalizado na primeira metade do século 20 (a sala escura, os espectadores situados entre o projetor e a tela), muitas vezes o nosso olhar se faz coincidir com o das personagens da ficção e transita entre elas e situações que nos colocam no centro mesmo do processo narrativo, criando uma sensação de onipotência que nos agrada. Estamos soltos no ar, nosso corpo se move de um ponto a outro, junto a um personagem ou, com frequência, dentro de um personagem, compartilhando suas dúvidas, afetos, emoções e medos. Ativando processos de identificação entre olhar e câmera, entre personagem e espectador, o cinema narrativo, ainda nos seus primeiros 15 anos de experimentação, logo identificou a potência controladora do medo através de uma hábil e ardilosa articulação de olhares. Unidos pelo melodrama, quase um século separa algumas dessas primeiras incursões no medo, e no prazer de olhar, de experiências tecnologicamente mais desenvolvidas. Entre o início do século 20 e o século 21 verificamos a permanência de determinadas formas através das quais o cinema construiu o medo e os pontos-de-vista. Nos primórdios do cinema, três adaptações de um mesmo texto de origem teatral — a peça de André de Lord, Au téléphone, escrita em 1901 — transformam tecnologicamente nossas noções de espaço e tempo e colocam o espectador “de cabelo em pé”. São elas: The physician of the castle, filme francês da Pathé Frères (1907) e duas produções da pioneira companhia Biograph, ambas dirigidas por ninguém menos que David Wark Griffith, The lonely villa (1909) e A woman scorned (1911). Bem mais próximos de nós, em 2002, quase o mesmo medo se repete em O quarto do pânico (Panic room), dirigido por David Fincher. Cabe aqui uma indagação: por que ainda pagamos ingresso para sentir medo?


Tratarei o público com choques benéficos. A civilização transformou-se em algo tão protetor que já não somos capazes de nos arrepiar de forma instintiva. A única forma, maneira, o único jeito de sair desse amortecimento — apatia — e restaurar o nosso equilíbrio moral é lançando mão de meios artificiais para trazer de volta o choque. E a melhor forma de se conseguir isso, me parece, é através do cinema.

Alfred Hitchcock

Tentando compreender a popularidade perene dos filmes que lidam com o medo ou responder à questão do porquê de nosso interesse na experiência cinematográfica do medo, parto do princípio de que o medo é uma forma de estímulo positivo no sentido de nos colocar sempre em estado de alerta, em geral associado à sobrevivência diante da possibilidade concreta da morte. O corpo, em sua finitude natural ou diante de agressões que ameaçam sua integridade física, atrai todo o nosso interesse nos processos de antropomorfização negociados pela identificação entre uma plateia e a ficção audiovisual encenada. E o filme de terror, nesse quadro, precede outros gêneros.

Em primeiro lugar, o gênero traduz algo que é indizível, representa e constrói o medo ao lidar com espaços mais complexos do ser humano, como a insanidade, a loucura, a alienação, os desvios sexuais, as obsessões, a violência. E, no geral, o faz de forma visualmente fascinante e atraente, confundindo bastante as fronteiras entre a repulsa e o prazer. No momento particular em que vivemos hoje — e não só no mundo em geral, mas nas metrópoles brasileiras — diante dos níveis insuportáveis de insegurança e crescente índice de criminalidade sob todas as formas, o cinema acaba oferecendo uma forma “segura” de se lidar com o medo. Sabemos, de início, que estamos vendo um filme, e, na experiência institucional da sala de cinema, lá ainda se oferece um espaço “seguro” de fruição, a não ser que algum livre atirador decida mirar sua arma e atirar na plateia, como no drive-in do filme Na mira da morte (Targets, 1968), de Peter Bogdanovich, ou há poucos anos, num cinema da cidade de São Paulo que exibia Clube da luta (Fight Club, 2000), de David Fincher. As forças narrativas que, no cinema, tradicionalmente, ameaçam o bem-estar, o cotidiano, a lógica do sentido e a justiça, estão bem mais fortes e atuantes “do lado de fora” da sala de cinema. Daí que se os filmes de terror, quando realizados com competência, seduzem o espectador para além do medo, ou seja, se o espectador aceita o pacto proposto pelo gênero — aceita o medo, permite que o medo aflore — e, ao mesmo tempo, mantém um senso de distanciamento estético, o filme de terror conseguirá transportá-lo a mundos inimagináveis em outros gêneros.

De maneira geral, talvez seja possível pensar em dois processos diferentes em que, de um lado e em seus melhores momentos, haveria uma sensibilização que ajudaria o espectador a conviver com a violência no mundo real. No polo oposto, há a saturação que gera apatia, alienação e conformismo em relação à violência dentro e fora das telas. Penso que, sem afirmar dicotomias fáceis, o cinema do medo possa ser mais bem compreendido não só enquanto uma fábula social transparente, mas também como uma investigação sobre a natureza de nossa própria maneira convencional de olhar, ou seja, uma investigação que possa nos levar a ver e a entender o que está por baixo das superfícies de nós mesmos e de nosso mundo, de forma a se chegar a um estado diferente de consciência e ação.

De acordo com Jean Delumeau, no sentido estrito do termo, o medo (individual) é uma dessas emoções-choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa sobrevivência física. Colocado em estado de alerta, o hipotálamo reage por uma mobilização global do organismo, que desencadeia diversos tipos de comportamentos somáticos e provoca, sobretudo, modificações endócrinas. Como toda emoção, o medo pode provocar efeitos contraditórios, de acordo com a singularidade de cada um e também segundo diferentes circunstâncias, ou até reações alternadas em uma mesma pessoa, tais como a aceleração ou retardamento dos movimentos do coração, uma respiração demasiadamente rápida ou lenta, uma contração ou uma dilatação dos vasos sanguíneos, entre outros sintomas. Ao mesmo tempo manifestação externa e experiência interior, a emoção de medo libera, portanto, uma energia desusada e a difunde por todo o organismo.[1] Dessa explicação dos efeitos sensoriais do medo individual, podemos pensar, naturalmente na situação espectatorial de recepção coletiva institucionalizada pela sala de cinema, com os espectadores envoltos pela escuridão, em situação de imobilidade e em certo grau de passividade diante da luminosidade da tela e de suas sombras em movimento.[2]

Um recuo no tempo se faz necessário, em especial para caracterizar a predisposição do cinema para o desenvolvimento de estratégias retóricas que construíram o medo moderno, em conjunto com outros aparatos da chamada modernidade. Como o cinema não surgiu nem se desenvolveu num vácuo sociocultural e tecnológico, qualquer reflexão, hoje, do impacto da modernidade no cinema e vice-versa passa por uma revisão de determinados pressupostos conforme apresentados de forma sistemática no conjunto de ensaios traduzidos para o português e apresentados na antologia O cinema e a invenção da vida moderna.[3] Nesse volume, diversos textos tratam do conceito de modernidade como expressão de mudanças e de grandes transformações acontecidas a partir da segunda metade do século XIX, não apenas nas esferas culturais, econômicas e sociais, mas também como consequência, na chamada experiência subjetiva. O termo encobre um conceito ligado a invenções e descobertas emblemáticas do período, tais como o trem, o telefone, o telégrafo, o automóvel, a fotografia, o raio-x, o cinema — os dois últimos, não coincidentemente, surgiram oficialmente no mesmo ano, 1895.[4] De todos, talvez nenhum outro simbolize melhor e ao mesmo tempo transcenda esse período inicial e emergente da modernidade do que o cinema.

Com respeito à chamada experiência subjetiva, é central para nossos argumentos a importância da noção de circulação, conforme desenvolvida e aplicada, por exemplo, ao sistema urbano de bulevares, ao sistema fabril da linha de montagem aperfeiçoada ao longo da segunda Revolução Industrial, ou, ainda, às inovações introduzidas pelos sistemas de transporte rápido — valendo a pena relembrar aqui a existência de calçadas rolantes já nas célebres exposições internacionais de Chicago (1893) e Paris (1900). Por meio daqueles novos sistemas de circulação mais eficazes e rápidos, encenava-se um drama da modernidade: o colapso das noções prévias de espaço e tempo através da velocidade, com consequências imediatas na extensão dos poderes e da produtividade do corpo humano. Novas fronteiras foram colocadas a esse corpo, ampliando os limites de necessidade, perigo e medo, e criando, consequentemente, novos regimes de disciplina e controle corporais. Nesse cenário, o cinema sintetizava, simultaneamente, tecnologia e indústria, ao mesmo tempo que construía também novas formas de experiência visual como expressão de vivências tipicamente modernas, marcadas por estímulos e sensações físico-psicológicas de sucessão rápida, da alternância frenética espaço—tempo.[5]

Nosso ponto de reflexão, portanto, parte da premissa de que o cinema se tornou a expressão maior da mistura dos atributos da chamada modernidade. A cultura moderna foi, digamos assim, “cinematográfica” diante das exigências da modernidade, ou seja, o cinema formou, a um só tempo, um feixe de novas formas de tecnologia, espetáculo, distração e passatempo, representação, consumismo, mobilidade e entretenimento, além de materializar, em película, o lado cada vez mais efêmero da experiência moderna. Sua emergência era inevitável, já que a própria cultura da modernidade tornava algo como o cinema inexorável, uma vez que certas características do cinema nasciam de traços que definiam a vida moderna em geral. O cinema possibilitou a convergência de estratégias de representação, técnicas e ideias já presentes em outras esferas da cultura. No que se refere diretamente ao corpo, às sensações corporais, o cinema desenvolveu novas respostas a novos estímulos, à atenção e à distração exigidos pelas novas formas de vida moderna. O dado em questão aqui é que a percepção na vida moderna se tornou uma atividade móvel e o corpo moderno do indivíduo sujeito à experimentação e a novos discursos.

Uma segunda questão, que também orienta boa parte dos textos da citada antologia, refere-se ao aspecto transitório do cotidiano, o fato de que a modernidade residia na imersão do cotidiano, que, por sua vez e natureza, era efêmero. Como resposta a esse problema, surgem novas formas e tentativas de apreensão (e congelamento) dessa transitoriedade, como a fotografia, o cinema e mesmo a pintura em sua vertente impressionista. Vale a pena lembrar aqui, para citar apenas alguns mestres do efêmero, a relação intrínseca entre a fotografia e a pintura de um Dégas ou o quadro de Monet Canoa sobre o Epte (1887), do acervo do Masp, com parte da canoa ostensivamente para fora do quadro, num movimento virtual que só existe no espaço off de uma composição que enfatiza mais as qualidades centrípetas da imagem, muito próprias da fotografia e, mais tarde, consagradas pelo cinema. Tais tentativas surgem com o objetivo de congelar essas distrações e sensações evanescentes de prazer cinematográfico, através da identificação de momentos isolados da experiência “presente”. Há uma certa tensão contínua entre foco/distração, atenção dirigida/distração, estático/movimento, transitório/fixo, movimento/congelamento. O cinema cristaliza o efêmero, o transitório na sua essência, o movimento por meio da sucessão de fotos, fotogramas fixos, que já aparecem nas primeiras experiências de Eadweard Muybridge e Etienne-Jules Marey, com a decomposição do movimento. E também em Jean Epstein, quando elogia a transformação da descontinuidade original dos fotogramas isolados na continuidade temporal sintética da projeção, um instante evanescente de prazer cinematográfico.[6] Tais artistas cristalizavam a transitoriedade não como um conceito abstrato, mas como problemática ativa de sensação corporal, cognição e percepção, como um dado “presente”. Nesses discursos havia uma verdadeira negociação entre o transitório e o estático percebida como um traço característico da modernidade na passagem do século XIX para o XX.

Grosso modo, segundo Charney e Schwartz, podemos mapear um terreno comum de problemas e fenômenos definidos como “modernos” ao identificar seis elementos centrais à história cultural da modernidade e à relação da modernidade com o cinema, a saber: o surgimento de uma cultura urbana metropolitana trazendo novas formas de entretenimento e atividades de lazer; a centralidade correspondente do corpo como lugar de visão, atenção e estímulo; o reconhecimento da existência potencial de um público de massa, de uma multidão que subordinava a resposta individual ao coletivo — público esse que vinha sendo criado a partir do sucesso de novas formas de espetáculo e entretenimento, tais como os museus de cera, os parques de diversões, as feiras internacionais e os mais diversos tipos de mafuás e congêneres; o impulso para definir, fixar e representar momentos isolados diante das distrações e sensações da modernidade; o crescente apagamento da linha divisória entre a realidade e sua representação; o despertar obsessivo do desejo consumista e a cultura comercial que alimentavam e impulsionavam essas novas formas de diversão.

A modernidade não poderia ser concebida fora do contexto da cidade, que, simultaneamente, possibilitava um espaço para a articulação de corpos e bens de consumo, para a troca de olhares e o exercício do consumismo. A vida moderna parecia urbana por definição, espelhando as transformações econômicas e sociais, que reconfiguraram as cidades com a explosão do capitalismo industrial da segunda metade do século XIX. É nessa linha que são buscadas semelhanças entre o Rio de Janeiro e Paris, modelo supremo de urbanização a ser copiado. “O Rio civiliza-se!”, bradava-se aos quatro cantos a partir das reformas do início do século levadas a cabo por Pereira Passos em busca de uma haussmanização do Rio de Janeiro, processo que surge simultâneo à emergência e à proliferação das salas de cinema na antiga capital federal.[7] Uma vez aberta a avenida Central (1905), menos de quatro anos depois já se testemunhava ali a presença de diversos cinemas que deslocaram o eixo da exibição dos arredores da praça Tiradentes para a então chamada avenida Central (hoje Rio Branco) num processo que culminou, em meados da década de 1920, com a construção de um complexo de entretenimento nos terrenos antes ocupados pelo Convento da Ajuda. Reurbanização e entretenimento vinculam-se, assim, diretamente a uma ideia de modernidade, quando se ergue o primeiro arranha-céu da cidade, não por acaso abrigando justamente um cinema, o Capitólio, inaugurado em 1925, primeiro de uma série de cinco palácios cinematográficos que nomeariam, para sempre, aquela região central da cidade de Cinelândia.[8]

Junto com os cinemas, foram implantados novos sistemas de esgoto, criados outros bulevares e mercados públicos, além de muitos prédios e hotéis com galerias, disponibilizando diversas áreas do centro da cidade para o exercício da visão e cujo exemplo máximo seria a Galeria Cruzeiro, também situada na avenida Central. Para os seus habitantes, o Rio transformava-se, a partir de uma matriz como Paris, em algo a ser consumido casualmente também como imagem. E, tal qual a matriz, é nesse ambiente que se destaca a figura do flâneur, espécie de passante, pedestre, passeador, instituindo a flânerie como um novo código de comportamento.[9]

É na virada daquele século que se amplia a noção de que a modernidade trouxe um aumento considerável de perigos e estímulos nervosos para o corpo. Nesses novos ambientes, o corpo tornava-se um campo cada vez mais importante no quadro da modernidade, seja como observador-espectador (voyeur, em vários casos), como veículo de atenção, ícone de circulação ou como campo privilegiado para o exercício do desejo consumista. Essa experiência sensorial é corporificada, como também já apontado por outros autores, por essa figura emblemática do flâneur, bastando pouca imaginação para reconstituirmos, a partir de fotografias de época (e também de registros fílmicos de arquivo), parte do clima da extinta Galeria Cruzeiro, ou, ainda hoje, a experiência singular que ainda nos reserva a centenária Confeitaria Colombo com a profusão dos reflexos de seus altos espelhos de cristal belga. Por fotos ou fragmentos de filmes documentais da Belle époque carioca que chegaram até nós, lá estão os bondes, em meio aos primeiros automóveis, o trem, o telégrafo e o telefone, criando um novo sujeito de olhos e outros sentidos bem antenados com todas essas possibilidades de visão e movimento. É essa atividade do flâneur, a um só tempo corpórea, visual e dotada de mobilidade, que, de maneira definitiva, determina o ambiente para a experiência do cinema e de outras formas de percepção espectatorial que dominaram o entretenimento nesse período. Tipificada pela flânerie, a atenção moderna foi construída não apenas como sendo visual e dotada de mobilidade, mas também transitória, efêmera. A atenção moderna era essencialmente uma visão em movimento. As formas da percepção e da experiência modernas convergiam simultaneamente para essa conjunção de movimento e visão. Daí, pelo menos na língua inglesa, a simetria que nomeia o cinema como moving pictures.

Um dos meios mais fortes e precursores dessa relação é a experiência físico-sensorial introduzida pelo trem, já a partir de meados do século XIX, com a eliminação das barreiras tradicionais de espaço e distância, forjando uma intimidade corporal com o tempo, o espaço e o movimento. A existência da grande cultura cafeeira, a construção de usinas de energia elétrica e as novas experiências trazidas pela expansão das redes ferroviárias no Brasil, já a partir do final do século XIX, trouxeram uma nova consciência do tempo e do espaço, por exemplo, os horários dos fluxos ferroviários presentes nos grandes relógios colocados nas estações e nos quadros de horários e percursos, que informavam os passageiros sobre a circulação dos trens.[10] É a viagem de trem que antecipa, de forma mais explícita do que qualquer outra tecnologia, esse lado importante da futura experiência do cinema, fixando um sujeito de perfil mais ou menos passivo, sentado numa poltrona, imóvel, com sua atenção deslocada para um visual em constante mudança, emoldurado pelo quadro fixo da janela do trem. Para além de semelhanças mais óbvias, como a dos mecanismos circulares que propulsionam tanto as rodas de um trem quanto as roldanas de câmeras e projetores cinematográficos, a identidade enorme entre trem e o cinema (não só) dos primeiros tempos torna-se explícita na profusão dos filmes de viagem, no prazer das trucagens que alteravam, num piscar de olhos, a identidade estável de objetos e pessoas. O cinema narrativizou essa paixão de forma definitiva através, por exemplo, do sucesso dos filmes de perseguições e corridas de carros.

Rapidamente o cinema se transformou no lugar ideal para se realizar viagens virtuais através de inúmeros programas que mostravam vistas estrangeiras, locais distantes e exóticos, viagens fantasmáticas comprovadas pelo sucesso obtido toda vez que se colocava a câmera na frente de um veículo em movimento, como na fantástica experiência subterrânea proporcionada pelo filme Interior N.Y. Subway, 14th Street to 42nd Street (Biograph Company, 1905, fotografado por G. W. Bitzer), que faz o espectador avançar nos trilhos de um vagão do metrô nova-iorquino, como se estivesse sentado à frente do próprio vagão, sem nada para bloquear a visão. Tais experiências sensoriais de movimento foram repetidas ao longo da história do cinema, em geral relacionadas a algum importante desenvolvimento tecnológico.[11] Cabe aqui lembrar que tal ideia surgiu num parque de diversões em Kansas City, onde o espectador pagante sentava num vagão voltado para a frente para assistir à projeção de imagens de um trem em movimento, como num literal ponto de vista. O sucesso foi enorme e o público repetia diversas vezes tal experiência de deslocamento virtual do corpo. Esse tipo de espetáculo, sem dúvida alguma, é precursor dos diversos ride movies hoje disseminados em parques temáticos ao redor do mundo, além de locais de grande afluência turística, como o edifício Empire State, em Nova York.[12]

No mesmo ano das primeiras projeções com ingresso pago, efetuadas em Paris pelos irmãos Lumière, foi aberto em Nova York o parque de diversões mais famoso dos Estados Unidos, situado em Coney Island, Brooklyn, protótipo dos atuais parques temáticos encontrados, por exemplo, na Flórida e, como estes, especializado em vistas exóticas, espetáculos de desastres, passeios mecânicos do tipo montanha-russa, numa concentração impressionante de sensações visuais e sinestésicas que celebravam a intensidade moderna do estimulo fabricado. A ascensão do cinema acontece nesse período de superestimulação dos sentidos, gravitando em torno de uma estética do choque, definida pelo historiador e teórico do cinema Tom Gunning como um “cinema de atrações”.[13] Nesse quadro, tanto os melodramas de suspense, como veremos a seguir, como os seriados de ação elaboraram um amplo repertório de perigos físicos e cenas de sensações fortes — explosões, batidas e acidentes, correrias, torturas, lutas elaboradas, perseguições, fugas, “corrida-contra-o-tempo” com a chegada de socorro na hora H, entre outras formas de espetacularização de tudo o que pudesse provocar as mais diversas sensações… Para a avant-garde europeia — em especial para o futurismo e o surrealismo — ligada a diversas formas de intensidade afetiva, esse cinema era mais que bem-vindo, e não foram poucos os elogios e as adesões a esses materiais que emblematizavam a descontinuidade e a velocidade modernas. O reconhecimento do cinema como marca de modernidade se dava de forma dupla: através dos próprios temas e assuntos tratados (em que Jean Epstein, por exemplo, dizia serem os crimes e as despedidas fenômenos da poesia de uma nova era…), mas, principalmente, através do poder do meio de materializar a um só tempo velocidade, simultaneidade, um superexcesso visual e o choque visceral, ganhando esta última qualidade uma elaboração formal e teórica bastante sofisticada em meados dos anos de 1920 no contexto revolucionário soviético de cineastas como Serguei Eisenstein e Dziga Vertov.
Em outra chave, teóricos e pensadores como Siegfried Kracauer e Walter Benjamin buscaram, na intensidade nova dessas sensações fragmentadas, um paralelo com a textura da experiência urbana e tecnológica. Kracauer via nisso tudo o reflexo da anarquia descontrolada do nosso mundo, ao passo que Benjamin buscava um paralelo com o nosso aparato perceptivo. A rapidez temporal e rítmica introduzida pelo cinema, com sua fragmentação de alto impacto, era paralela aos choques e intensidades sensoriais da vida moderna. A percepção sob a forma de choques passa a ser um princípio formal e, nessa formulação, sensacionalismo vira sinônimo de modernidade. Mecanismos psicológicos hiperestimulados pela vida moderna definem uma estética do entretenimento popular. Há uma constante necessidade de mais e mais estímulos e apenas diversões com estímulos variados e intensos poderiam se igualar às energias neurológicas de sensações antenadas à vida moderna.

ENTRE (QUASE) DOIS SÉCULOS: NOVAS TECNOLOGIAS
PARA OS MESMOS (MELO)DRAMAS

Baseadas livremente na peça Au téléphone, escrita em 1902 por um expoente da escola de teatro de suspense do Grand Guignol, o autor francês André de Lorde, três adaptações para o cinema muito próximas no tempo testemunham o sucesso e o aperfeiçoamento de estratégias retóricas que mobilizam a plateia para o sensacionalismo do suspense, construído através da própria técnica cinematográfica. No caso, a hábil manipulação da montagem paralela, alternada. De Lorde (França, 1871-1933?) escreveu mais de uma centena de peças, quase que exclusivamente dedicadas à exploração do medo e do terror. Au téléphone é das mais famosas, encenada diversas vezes na Europa (não só na França) e também nos Estados Unidos.

Escrita em um ato, conta as desventuras de um homem de negócios, André Marex, 45 anos, casado e com um filho, passando férias num castelo alugado nos arredores de Paris. Por razões profissionais ele é obrigado a voltar temporariamente à capital, deixando a sós sua família e uma empregada. Aproveitando-se da situação, ladrões invadem a casa, a esposa lança mão do providencial telefone para pedir socorro e o marido é obrigado, de longe, a acompanhar o sofrimento dela, à medida que os ladrões vão, aos poucos, passando de um cômodo a outro para, finalmente, num trágico desfecho, matarem a mulher e a criança indefesas. Na peça, toda a ação final é descrita pelo telefonema da mulher ao seu marido e o suspense constrói-se de frases curtas e cortadas, além, naturalmente, da competência de um bom ator em passar toda a tensão ao espectador que imagina, pelas palavras que ouve, o terror que está acontecendo num outro local distante dali, invisível no palco… Com certeza, a notoriedade que essa trama teatral alcançou na França e também em outros países, portanto, de conhecimento de um público grande, foi o fator principal que motivou produtores a adaptar esse texto para o cinema, em diversos momentos.

Três adaptações conhecidas da peça de De Lorde nos primórdios do cinema são, respectivamente, The Physician of the Castle (1907, produção da Pathé Frères, firma que detinha total hegemonia no mercado americano durante esse período); The Lonely Villa (1909, produção dos estúdios American Biograph, dirigida por David Wark Griffith; e A Woman Scorned (1911, também da American Biograph, também dirigida por Griffith). Apesar de terem sido realizadas com um intervalo pequeno, de aproximadamente dois anos entre uma versão e outra, há notáveis mudanças e avanços na experimentação narrativa; no desenvolvimento de determinados elementos da linguagem cinematográfica, que, de resto, eram também experimentados na produção cinematográfica nesse período — especialmente na França e na Inglaterra; e no aperfeiçoamento e controle de uma linguagem calcada exatamente numa habilíssima manipulação temporal destinada a provocar pânico nos espectadores, mérito das experimentações com a montagem efetuadas por Griffith.

Como a Pathé era a principal produtora e distribuidora mundial de filmes nesse período, inclusive nos Estados Unidos, a primeira versão da peça produzida na França serviria de matriz para os dois filmes dirigidos por Griffith, ainda que essas duas adaptações norte-americanas não se limitassem apenas a reeditar a produção da Pathé. Num período de intensa experimentação formal tanto no cinema europeu quanto no resto do mundo, podemos observar mudanças importantes que ocorreram entre os filmes americanos e a produção francesa, e entre os próprios filmes de Griffith. O fato ajuda-nos a compreender a primazia de determinados procedimentos narrativos que consolidaram a popularidade do cinema ainda em seu período de formação.

Na época da realização dessas três versões, era usual a concepção cinematográfica nos moldes do que se costuma chamar de “teatro filmado”. Esse tipo de construção baseava-se na incorporação de convenções próprias do teatro, tais como a adoção de um ponto de vista fixo em relação ao objeto visado, situando a câmera na clássica posição dos espectadores (frontais, a certa distância, vendo o corpo inteiro dos atores emoldurados pelo palco do teatro). A entrada e a saída dos personagens eram feitas geralmente pelas laterais, de maneira análoga à ocorrida no palco, enquanto a construção do cenário delimitava claramente o espaço onde a ação se desenvolvia, de modo a minimizar a importância da moldura visada pela câmera. Além do fato de que, nessa fase inicial, o cinema era também exibido fisicamente em teatros. A denominação “teatro filmado” pode parecer um tanto pejorativa, mas ela é bastante indicativa de um momento em que o cinema buscava uma linguagem própria para se legitimar como nova forma de entretenimento e, com isso, também conquistar novos e mais refinados espectadores, além do público mais popular que, em larga escala, já sustentava o cinema, ao menos nos Estados Unidos.[14] Podemos afirmar, como veremos a seguir, que os três filmes se situam nesse momento de tensão e fronteira entre um “teatro filmado” e a consciência das possibilidades narrativas do advento de uma linguagem própria do cinema “de ação”.

O filme da Pathé é, entre os três, o que certamente mais se assemelha ao teatro filmado. Cada um dos elementos caracterizadores desse tipo de construção pode ser observado nesse filme. Há, é verdade, o uso de locações externas, como o exterior da casa, uma nobre mansão com jardins, entrada para carro, portões de ferro. Mas, uma vez passada a ação para os interiores, os cômodos cenográficos com duas, ou três “paredes” reproduzem espaços equivalentes aos do teatro, que a câmera enquadra numa escala muito próxima à do palco em relação a uma suposta plateia sentada no meio e à frente de um palco convencional. Mas também há diferenças, prenunciando a ruptura com o modelo do teatro filmado. Existem basicamente dois espaços que são alternadamente visados pela câmera: o cômodo onde se encontram a mãe e o filho e o cômodo onde estão os ladrões. Cada um desses espaços seria fechado em si, não fosse pela presença de um elemento-chave — a porta que os separa. Ela é a fonte de tensão de todo o filme. Isso fornece ao espaço-fora-do-quadro (espaço extra campo, offscreen space) uma concretude impressionante, pois existe uma dependência entre as ações que se sucedem em ambos os cômodos, sendo que as portas, em geral, localizam-se exatamente no limite do quadro, entre o que está totalmente visível ao espectador e tudo aquilo que se “intui” mas não se vê efetivamente. No momento de maior tensão, há também a justaposição entre marido e mulher ao telefone, quase que num close-up, em espaços distantes, unidos pelo corte da montagem. Curiosamente o cinema também atualizava apenas num corte a nova possibilidade de simultaneidade temporal entre dois espaços distantes introduzida pelo próprio telefone, então um meio de comunicação que começava a se popularizar. Mas o filme francês ainda repete uma estrutura que será abandonada aos poucos e que remonta à linearidade do relato cronológico, em que a substituição de uma ação por outra só acontecia quando a cena esgotava o que tinha para ser narrado, numa espécie de tableau que lembrava as narrativas precursoras do espetáculo de lanterna mágica. Assim, tanto a ida do médico ao local onde supostamente haveria um doente ao qual ele precisava assistir — pretexto para retirá-lo de casa e, com isso, deixar a família entregue ao destino dos malfeitores — quanto, principalmente, o seu retorno imediato para socorrer sua esposa e filho, os dois percursos são mostrados linearmente, sem nenhuma alteração entre diferentes espaços. O médico sai de carro pelo portão de sua casa, o carro some na curva de uma estrada e ele chega ao local onde havia sido chamado. Na volta apressada, após ser inteirado pela esposa, ao telefone, da ameaça que estava para acontecer, o mesmo percurso é percorrido ao inverso e, em momento algum, durante o retorno, somos apresentados ao que se passa na mansão.

A importância crescente do espaço extracampo também é verificável nas duas adaptações realizadas por Griffith, em que se sente, com muito mais presença, força e autoridade, a mão de um narrador. Nelas, Griffith experimenta a técnica da montagem paralela com muito mais eficácia ao entrecortar planos de duração cada vez mais curta na alternância entre cenas do pânico na casa do médico com o socorro que sempre custava a chegar.[15] Tal técnica advém da necessidade de mostrar a evolução simultânea de ações que se passam em dois ou mais espaços distintos. Geralmente intercalam-se planos de um e de outro espaço, culminando, impreterivelmente, na convergência entre ações e espaços. Apesar da falta de linearidade na apresentação das imagens, a unidade do conjunto é preservada, como explica Ismail Xavier:

As imagens estão definitivamente separadas e, na passagem, temos o salto; mas a combinação é feita de tal modo que os fatos representados parecem evoluir por si mesmos, consistentemente. Isto constitui uma garantia para que o conjunto seja percebido como um universo contínuo em movimento, em relação ao qual nos são fornecidos alguns momentos decisivos. Determinadas relações lógicas, presas ao desenvolvimento dos fatos, e uma continuidade de interesse no nível psicológico conferem coesão ao conjunto, estabelecendo a unidade desejada.[16]

Em sua primeira adaptação para a peça de André de Lorde, Griffith utiliza a montagem paralela para mostrar, de um lado, mãe e filhas atemorizadas pelos bandidos em casa e, de outro, o marido e sua corrida rumo ao resgate. Verifica-se, ainda, pela própria intercalação de planos dos diferentes espaços, um ritmo de montagem bem mais afiado do que no filme anterior da Pathé. Agora, no retorno para socorrer sua família, confrontamos simultaneamente o que se passa dentro da casa — os ladrões arrombando portas e entrando aos poucos em cômodos diferentes à medida que as vítimas vão ficando acuadas — e longe da residência, no exterior, com o médico desesperado após saber o que estava acontecendo através de um telefonema de rotina que ele, casualmente, resolveu fazer para casa. Diversos elementos narrativos também apresentam mudanças entre a versão francesa e a primeira adaptação americana. Griffith consegue prolongar de maneira habilidosa a resolução da trama em si, retardando, dentro do necessário, o desfecho do suspense construído pela manipulação temporal possibilitada pela montagem. Em seu filme, os bandidos chegam a invadir a sala onde estão mãe e filhas, que, apressadamente, se trancam em outro cômodo, aumentando a tensão da narrativa.

Em todas as três adaptações cinematográficas, a presença das personagens principais altera a cada versão, assim como pequenos detalhes dramáticos. Mudança significativa é a transformação do homem de negócios em médico, mantida nas três adaptações da peça. A família também muda com relação aos filhos. No filme francês, o médico é avisado de uma suposta emergência por meio de um telegrama despachado pelos próprios ladrões. Assim que sai de casa e deixa a esposa e um filho pequeno junto com uma empregada, os ladrões entram e tentam roubar a casa. A mulher, em desespero, refugia-se de cômodo em cômodo tentando evitar a entrada dos ladrões ao dificultar a passagem com móveis que vão sendo empilhados atrás das portas — recurso utilizado em todas as adaptações. Numa das salas, ela localiza o paradeiro do marido através do telegrama deixado em cima de uma mesa, o que lhe permite o contato telefônico para pedir socorro. Ajudado pela polícia, o marido retorna rapidamente para casa e salva a situação.

A primeira adaptação de Griffith, The Lonely Villa, introduz diversas mudanças. Em vez de um menino, o casal agora possui três filhas e um casal de empregados (o empregado é o então ainda ator Mack Sennett) que, logo no início da narrativa, se despede da família no que parece ser um dia de folga dos empregados. Do lado de fora da casa, escondidos nos arbustos do jardim, três ladrões tramam a saída do médico e, em vez de um telegrama, um bilhete é entregue por um dos ladrões diretamente ao médico. Este, antes de partir, confere a janela de uma sala para se certificar de que estava fechada e segura e instrui sua esposa sobre sua segurança, apontando, igualmente, para a necessidade eventual do uso de um revólver em caso de perigo. O ladrão, ao ouvir tal recomendação, sorrateiramente retira as balas da arma, criando uma potencial situação posterior de suspense, testemunhada pelos espectadores. Assim que o médico sai de casa, num carro com motorista, os ladrões se aproximam, sobem pelas escadas da frente e fazem algum barulho apenas percebido pela filha menor. Acompanhada pela filha mais velha (a atriz Mary Pickford em uma de suas primeiras aparições no cinema), a senhora vai até a porta da frente e, pelo buraco da fechadura, se dá conta da ameaça prestes a acontecer.[17] A partir daí a situação se repete, com mãe e filhas passando de sala em sala, fechando rapidamente as portas, empilhando móveis e retardando a aproximação e o contato com os bandidos. Numa parada no meio do caminho, quando o carro em que se encontrava já demonstra sinais de que está com problemas mecânicos, o médico resolve telefonar para casa para se certificar de que tudo está sob controle. Informado da tragédia prestes a acontecer, ele mantém com a esposa um diálogo tenso, aumentado pelo conhecimento de que a arma que deveria ser utilizada por ela como forma de, ao menos, assustar os ladrões, já está desprovida de munição. Nesse momento, acontece uma mudança importante, matriz de incontáveis narrativas de suspense, mesmo ainda hoje, em tempos de telefonia móvel: os ladrões, percebendo a ligação telefônica em curso, cortam a linha do lado de fora da casa, para desespero do médico, da esposa e do espectador — este, privilegiado mas impotente testemunha de tudo o que ocorre em todos os espaços narrativos…Outro conflito que também já havia sido anunciado também entra em cena — além da arma e do telefone, o carro também resolveu quebrar, justamente na hora em que ele seria mais útil. Com essa situação armada, o médico, desesperado, se vê impossibilitado de socorrer a família. Tal nível de ansiedade é amplificado pela duração cada vez mais curta dos planos que tensionam a narrativa intercalando mãe e filhas desesperadas, pondo móveis contra a porta, abraçadas umas às outras, enquanto, longe dali, o pai encontra-se impossibilitado de prestar socorro. Mas o destino o coloca próximo de um acampamento cigano nas redondezas, e o médico consegue uma providencial carroça movida a um bom e velho cavalo. Com a ajuda de policiais, ele volta rapidamente, a tempo ainda de lutar e prender os malfeitores já violentamente de posse das mulheres.[18] O sucesso dessa versão foi tanto que dobrou a venda de cópias do filme aos exibidores de NovaYork, segundo os registros do livro de caixa da American Biograph, depositados no Departamento de Cinema do Museu de Arte Moderna de NovaYork (MoMA). E seu impacto sensacionalista também provocou a censura ao filme durante sua exibição em Chicago.

Pouco mais de dois anos depois, em razão do enorme sucesso da primeira versão, Griffith retorna à mesma história, acrescentando ainda mais material narrativo não só em termos de ação, como também numa tentativa bem-sucedida de nuançar a trama principal, psicologizando parte de sua história. Os tempos começavam a mudar, e, nessa fase formadora de uma pré-indústria cinematográfica, a concorrência obrigava as companhias produtoras de filmes a se sofisticar mais, em busca de espectadores um pouco mais letrados do que a grande maioria do público de massa que sustentava o cinema dos primeiros anos. Nessa segunda adaptação, esses sinais são mais evidentes na explicação de parte da trama, cujo título, A Woman Scorned — que poderia ser traduzido por Uma mulher desprezada — refere-se a uma personagem secundária, mas de importância fundamental nos meandros narrativos. O ambiente agora é mais detalhado e a câmera posiciona-se visivelmente bem mais próxima dos atores do que nos filmes anteriores. Num ambiente sórdido de um quarto, numa viela qualquer de uma grande cidade, uma quadrilha vive de pequenos furtos e um chefão, assistido por um comparsa, recebe no final do dia os ganhos trazidos por duas mulheres, sendo que uma delas parece atraída pelo boss, provocando visíveis sinais de ciúme na namorada do chefão, que tudo observa. Como ele parece não lhe dar importância, ela demonstra irritação, prometendo vingança. Numa avenida da cidade, o bem-sucedido médico tenta depositar seu dinheiro num banco, mas não consegue, pois perdera a hora e, por isso, terá que levar para casa toda a quantia e fazer o depósito só no dia seguinte. Tal situação é testemunhada pelos ladrões que o seguem até sua casa, situada em local ermo, distante da cidade. Lá ele é recebido com carinho e afagos por sua jovem esposa e sua filhinha. Precavido, o médico guarda o dinheiro na gaveta de uma mesa, ação observada por um dos ladrões, que espia toda a cena através de uma janela, num claro ponto de vista. Daí em diante a mesma situação dos dois filmes anteriores se repete com variantes. O jantar do casal é interrompido pelo telefonema de um dos bandidos, que solicita a presença rápida do médico. Um letreiro intercala a, ação com a legenda que diz venha logo, ele está muito doente. Trata-se, naturalmente, da velha cilada inventada pelos ladrões para fazer com que o médico se afaste de casa. Ao se preparar para sair, prevendo algum infortúnio, ele, por um instante, resolve levar o dinheiro consigo, mas sua esposa, igualmente cautelosa, encontra um local mais seguro e esconde o dinheiro num vaso, dentro de uma cristaleira. Chegando ao endereço indicado — o mesmo quarto sinistro mostrado antes —, lá estão os malfeitores à espera do médico, simulando a situação do “doente”. Quando o doutor chega, naturalmente sem se dar conta da armadilha, recebe uma paulada na cabeça, perde os sentidos e é amordaçado e amarrado numa cama. Nesse meio tempo, a rotina da casa prossegue com a mãe, no andar superior, colocando a filha para dormir. Curioso observar aqui, num trabalho cuidadoso de montagem, a associação que Griffith propõe ao justapor, num corte simples, dois planos de ações semelhantes mas invertidas: em um os bandidos amordaçam o médico; no outro a mãe desamarra os sapatos da filha, criando uma espécie de rima visual, que articula a associação amarra-desamarra. Os ladrões se aproximam da casa e, provavelmente antecipando o uso do telefone (e, assim como o público, já trazendo um conhecimento dos filmes anteriores), resolvem, antes de qualquer iniciativa, cortar a linha telefônica e, assim, também o mal pela raiz. No andar de baixo, cuidando dos afazeres da casa, a mãe ouve um barulho — precisamente no espaço fora-de-quadro — já que o enquadramento do plano a coloca literalmente encostada na margem esquerda do plano e ela tenta ouvir melhor o barulho, num bom exemplo de inscrição de som no filme silencioso e também da consciência cada vez maior do espaço-fora-de-quadro, ou seja, do ambiente escuro da própria sala de projeção. Ela consegue ver os bandidos e, dando-se conta do perigo iminente, vai até a cristaleira e retira o dinheiro do vaso. Agora são os bandidos que ouvem o ruído dela na sala contígua. Mesmo com uma cadeira encostada à porta para dificultar a passagem deles (e retardar o desfecho, aumentando o suspense), rapidamente os dois meliantes já estão no encalço dela que, com igual rapidez, consegue se esconder num baú de roupa suja, providencialmente instalado ao lado da escada que dá para o pavimento superior. Numa distração dos bandidos, ela, em seguida, foge para o andar superior da casa, entra no quarto da filha para lhe proteger, as duas completamente indefesas e entregues à própria sorte. Há momentos em que a narrativa apresenta a simultaneidade de três espaços diferentes, tanto na casa invadida quanto no esconderijo dos ladrões onde a desprezada namorada do chefão decide matar o namorado. Por sorte, ela descobre a tempo que quem está na cama amordaçado não é o boss e sim o médico imobilizado. Daí em diante, repete-se o esquema dos filmes anteriores, com o médico em busca de socorro, policiais em disparada num automóvel que lhe dão carona, os ladrões tentando arrombar a porta do quarto do segundo andar e, finalmente, o clímax redentor, com a família mais uma vez reunida num abraço feliz — em total inversão do texto fonte teatral que termina em desgraça.[19] O ritmo da montagem nessa terceira versão é vertiginoso, com uma quantidade de planos bem maior do que a versão de 1909, também de Griffith. E a léguas de distância da primeira versão francesa, realizada apenas quatro anos antes. Mas, nesse momento da história do cinema, em que tudo era possível e a experimentação era intensa, seis meses poderiam significar uma eternidade em termos de conquistas técnicas e narrativas. A duração cada vez menor dos planos, editados de forma a paradoxalmente estender a história e prolongar o desfecho, terminava por construir uma nova consciência do tempo, este sim o verdadeiro tema desses filmes — um novo tempo, mais rápido, nervoso, simétrico ao da nova vida moderna das máquinas, do trem, do telefone, do automóvel, que, na corrida final do socorro, passa com tal velocidade que provoca uma intensidade de percepção e avança em direção ao espaço-fora-de-quadro, ao espectador, criando uma nova dinâmica visual. Respondendo a conquistas técnicas, como o aperfeiçoamento dos métodos de montagem, criam-se novas relações que ampliam a cadeia de linearidade entre causa e efeito, seja na motivação psicológica da vingança da namorada do chefão, o ciúme, seja na maior proximidade entre espectador e personagens, como o clima de intimidade que vai se estabelecendo aos poucos entre mãe e filha no quarto, com brincadeiras, carinho, esconde-esconde e medo, quando a menina, nos momentos de maior tensão, tem direito a close-ups que revelam seu olhar e expressão de intenso pavor.
Quase cem anos depois, em O quarto do pânico (Panic Room, 2002), de David Fincher, a mesma história se repete num contexto igualmente repleto de novas tecnologias e muito mais medo. Jodie Foster é Meg, uma mulher independente que procura uma casa em Manhattan para morar com sua filha adolescente, Sarah (Kristen Stewart), após recente separação. A casa escolhida esconde, por azar, algo bastante valioso, além de um quarto do pânico, novidade tecnológica da contemporaneidade, desenhada de forma a garantir proteção integral a quem se dispuser a pagar caro pela segurança prometida por este novo e crescente mercado. Mãe e filha já se referem, com naturalidade, ao tal quarto, num momento em que o medo se encontra disseminado e instituído como mercadoria, carros blindados — o quarto do pânico materializando a ideia de confinamento e prisão, dentro de sua própria casa.
Nesse filme não temos a presença do marido prestativo que salva a família. Ele até tem uma participação importante no fim da trama, mas desde o início nos é apresentado como um rico insensível que abandonou a esposa para ficar com uma modelo. Os tempos são outros, mãe e filha têm de se virar sozinhas.
A casa escolhida por Meg é uma mansão de quatro andares, e seu diferencial em relação a casas comuns é o chamado “quarto do pânico”, abrigo moderno contra ladrões, sequestradores e afins. Meg, de início, não se interessa pelo quarto e chega até a se incomodar com sua presença. Ela ainda tem pouca noção do que lhe reserva a narrativa e nem sequer pressente os maus momentos que estão por vir. Com toda uma tradição secular de narrativas cinematográficas calcadas no medo, os aspectos psicológicos individualizados das personagens compõem o jogo moderno. Os malfeitores são muito diferentes entre si. Junior (Jared Leto), mentor da operação, tem sua identidade revelada como um neto do antigo morador da casa e, por isso mesmo, sabia da existência de um cofre com valores por lá guardado. É ele quem consegue convencer. Burnham (Forest Whitaker) a ajudá-lo no crime. Burnham é um ex-empregado conhecedor de cada detalhe da construção do tal quarto e, no conjunto dos ladrões, é quem também chega a despertar alguma compaixão do espectador. Ele é apresentado como um ladrão “bom”, que não quer machucar ninguém, ajuda Sarah com sua diabetes, tenta acalmar Meg, e só está nessa operação porter seus motivos — aparentemente justificados como nobres. Já um terceiro ladrão catalisa a antipatia do espectador: Raoul (Dwight Yoakarn) é sanguinário e truculento — o mais ameaçador dos ladrões, até mesmo porque elimina Junior rapidamente e transforma-se no grande vilão da narrativa. Assim que percebem a entrada dos ladrões na casa, mãe e filha correm para o quarto do pânico, concentrando a ação nesses dois espaços, interior e exterior. Como nos filmes antigos aqui apresentados, a tecnologia ainda oferece perigos e ansiedade e, em tempos também de telefonia móvel, elas procuram ajuda no ultrapassado telefone fixo que ainda se mostra essencial nas horas de maior aperto. O quarto do pânico é dotado de uma linha de telefonia fixa, independente. Mas, claro que Meg se esquecera de ligar anteriormente essa linha que poderia ter-lhe ajudado. E constatamos que o telefone continua sendo peça-chave na construção do suspense e na manipulação da plateia, forte instrumento narrativo gerador de ansiedade e desespero toda vez que não funciona.

Dramaticamente o aparelho precisa render um pouco mais e ele volta à cena mais uma vez, agora em sua versão celular, quando Meg, angustiada, tenta pegar o pequeno aparelho num momento de descuido dos assaltantes. Numa fuga apertada, ela tenta agarrar o celular, que insiste em lhe escapar das mãos. Quando finalmente ela consegue agarrá-lo e volta ao abrigo blindado, o celular mais uma vez também decepciona. Não seria realmente possível conseguir sinal debaixo de tanto aço. E a tecnologia, uma vez mais, prega peças nas personagens ao mesmo tempo em que distende a resolução da trama ao impedir Meg de pedir socorro. Com esforço e inteligência, ela consegue fazer uma ligação conectando alguns fios ao telefone que não funcionava e obtém a linha. Não conseguindo falar com agentes do plantão policial, ela decide, então, ligar para o seu ex-marido. Poucas palavras são ditas, até que os bandidos cortam esta linha também, e a incomunicabilidade se instala. As duas tentam gritar, e, com muita dificuldade, lançam mão do surrado recurso de piscar um S. O. S. com a ajuda de uma lanterna, mas tudo parece em vão. Com a chegada do ex-marido, a situação começa a mudar, trazendo novo fôlego a nossos ânimos já completamente desgastados com tanto sofrimento. Meg sai do quarto, os bandidos entram. A pobre Sarah sofre com seu baixo nível de glicose e beira o estado de coma. A polícia chega no momento mais impróprio. Junior já morreu, enquanto Burnham se redime dando um tiro em Raoul, que estava prestes a matar Meg. Para o espectador a única coisa que importa é o bem-estar de mãe e filha.

Algo muito interessante une O quarto do pânico aos três filmes baseados em Au téléphone. Trata-se, naturalmente, da tecnologia[20] e, especialmente, da possibilidade concreta e potencial de sua falha. A partir do filme de 1909, como já apontado, o automóvel, quando mais necessitado, deixava o herói sem saída e foi substituído pela carroça do acampamento cigano, puxada por cavalo. Na adaptação de 1911, Griffith explorou mais uma vez esse aspecto e fez com que os ladrões cortassem a linha telefônica antes mesmo de entrarem na casa, impossibilitando que a então nova tecnologia desempenhasse o papel de grande salvadora. O mote essencial da história se inverte e o telefone, que nomeava o texto original do teatro, simplesmente não funcionava. O carro, inovação simultânea naqueles primeiros tempos do cinema, também não se mostrou tão eficaz quanto prometia e enguiçava no momento mais importante. O celular também não funciona para a personagem de Jodie Foster e sua filha. O moderno quarto-fortaleza, afinal de contas, também não é tão eficiente quanto promete.

No que diz respeito à montagem, há um privilégio de planos médios até a segunda versão de Au téléphone. Os movimentos de câmera também são econômicos e praticamente não existem. A partir da terceira adaptação, entretanto, Griffith, mais experiente e seguro, aproxima-se mais da ação, busca no rosto dos personagens o conflito, explora outras possibilidades do cinema e ousa. Em O quarto do pânico, David Fincher e equipe exploram os mais modernos recursos digitais, utilizam enquadramentos ousados, como no plano em que Jodie Foster está deitada e a câmera se move em torno de seu rosto girando 180° para que apareça, ameaçadoramente, a silhueta do bandido por trás. A câmera se aproxima tanto dos objetos que às vezes nos dá a impressão de penetrá-los. A tecnologia de efeitos especiais digitais permite ao espectador passear pelo espaço inicialmente fora do quadro, através de longos movimentos de travelling que atravessam andares, paredes, tetos e, até mesmo, fechaduras. Com os acréscimos hoje também possibilitados por pesquisas na área do som, constrói-se um suporte bastante eficaz para a condução da emoção e do medo. Até mesmo lançando mão do silêncio, quando, em determinado momento, suspende-se o som para que o ruído de um abajur quebrando ganhe mais impacto narrativo.

Mesmo na primeira versão da Pathé, mais simples em termos de recursos expressivos e de montagem, já existe a tensão causada pela montagem paralela quando se intercalam imagens da dona de casa desesperada com a demora do marido que volta apressado e salta do carro em movimento para livrar a família dos malfeitores. Tudo é dinamizado, os planos vão ficando cada vez mais curtos e, com isso, o próprio tempo, ou seja, a duração temporal, acaba sendo, dessa forma, duplamente tematizada, inseparável da ação corrida-contra-o-tempo e da técnica de edição afiada que encurta e alterna espaços diferentes. Conforme os anos passam nesse primeiro cinema, a linguagem cinematográfica vai sendo mais testada, oferecendo produtos mais dinâmicos e ágeis, mais emocionantes. Em A Woman Scorned, há primeiros planos do rosto da menina, filha do casal, que cativam o espectador. A intimidade da relação entre mãe e filha é muito bem explorada nas brincadeiras entre as duas, na possibilidade de compartilharmos do cotidiano privado daquela família, participando de suas refeições e dos momentos de intimidade em que se preparam para dormir. Com a casa ameaçada pelos bandidos, aproximamo-nos das reações de pavor expressadas pela menina. A identificação é total com a família em apuros e, naturalmente, torcemos para que, no final, tudo dê certo.

Em O quarto do pânico, a relação que o filme vai tecendo com o espectador sai fortalecida, após quase um século de exercício e experiência do cinema. Essa trama contemporânea também nos angustia todo o tempo e envolve-nos de tal forma que o espectador se entrega e sofre, tenso, esperando o final feliz que demora a chegar. E a montagem, cada vez mais acelerada, também é construída dentro desse velho princípio de paralelismo que organiza o ritmo necessário para que o espectador se interesse e continue colado ao filme, numa relação simbiótica em que o ritmo alucinante da montagem parece conduzir a energia do medo. Nesses exemplos aqui citados — em especial naqueles distantes anos de formação de uma linguagem para o cinema, o medo foi, essencialmente, um produto da montagem. Não só o paralelismo das ações, mas seu controle temporal com a aceleração provocada pela rápida sucessão de pequenos fragmentos — o ritmo da montagem dado pelos planos cada vez mais curtos e mais rápidos numa vertigem que dispara a emoção e constrói o medo como espetáculo.

Muitas décadas depois, após o advento do som, da cor e dos possantes computadores, há muitas outras possibilidades a serem exploradas na dinamização do filme. Contudo, ao olharmos para O quarto do pânico, é fácil perceber que, como boa parte da produção contemporânea centrada em efeitos especiais, nem só de tecnologia e pesquisa de ponta se faz um grande filme. E, talvez, a distância que separa aqueles três filmes do início do século passado de O quarto do pânico, seja apenas uma questão de técnica. Quando se retira o visual tecnologicamente fascinante dessa obra de 2002, não sobra muita coisa além da essência do conflito de 1907, 1909 ou 1911. Enfim, não há nada de muito inovador ou moderno no filme de Fincher, a não ser nos momentos onde a tecnologia cinematográfica se desenvolve. O melodrama, entretanto, em suas linhas gerais, permanece rigorosamente o mesmo.

Nos quatro filmes aqui analisados, são sempre as mulheres as vítimas da violência. Até mesmo quando a aparente frieza da mãe em A Woman Scorned — tão preocupada com o destino do dinheiro quanto com o de sua própria filha — potencializa a atenção da plateia com relação ao que acontecerá com a menina, sozinha no andar de cima. Em todos eles a cenografia utilizada como suspense e medo é o espaço doméstico da casa — não importando se são portas de madeira ou de aço — e repetem o modelo do melodrama do século XIX, onde as mulheres continuam sofrendo com a separação dos maridos, e suas filhas, igualmente, sofrendo emocional e fisicamente.

Este longo recuo no tempo para se chegar até 2002 e além ajuda-nos a diferenciar e ao mesmo tempo sobrepor diferentes técnicas de construção do suspense e do medo. Uma afirmação corrente no panteão do cinema autoral destacaria o trabalho de Alfred Hitchcock como um exemplo supremo e emblemático do excesso na associação entre suspense e medo. Clássicos indiscutíveis como Psicose (1960) continuam a assustar as novas gerações, mesmo aquelas acostumadas à matança em série promovidas pelo canibal doutor Hannibal Lecter, interpretado por Anthony Hopkins. O filme de Hitchcock, de 1960, é um exemplo supremo de manipulação da plateia, quando obriga os espectadores a seguir a história pela perspectiva do psicopata, já que a heroína interpretada por Janet Leigh e um detetive são mortos ainda na primeira parte do filme. Hitchcock vai contando o drama através de uma câmera ostensivamente voyeurista, aumentando a ansiedade do espectador e criando desconforto com o próprio ato de olhar, sentido essencial à natureza do cinema. Ainda assim, podemos sim distinguir entre o que chamaríamos de um suspense do medo, representado, por exemplo, pelos filmes de Griffith aqui analisados — calcados numa estrutura de montagem paralela, montagem alternada, do movimento físico da corrida contra o tempo e o suspense psicológico que, como em Hitchcock, se apóia também no olhar, e onde imperam o insólito, o inesperado, o choque dentro do cotidiano.

Todo o investimento enorme disponibilizado nessas tecnologias visuais e sonoras conforme representado pelo O quarto do pânico, entre muitos outros, tem ampliado consideravelmente o imaginário do cinema do medo e materializado, como afirmei antes, mundos concretos e psicológicos inimagináveis. No entanto o excesso de visualização e de espetáculo, a exacerbação da violén-cia gráfica e sua banalização também podem gerar o contrário, como ilustra o caso do fenômeno Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999) de Daniel Myrick e Eduardo Sánchez. Ali, na experiência da sala de cinema, o filme jogava muito bem com o “nosso” espaço, ou seja, o espaço que habitamos fisicamente enquanto estamos no cinema assistindo a um filme, que é o espaço concreto “fora da tela”, da poltrona, envolto pela escuridão da sala. Ao se recusar a mostrar o que provocava o terror, o filme aumentava a ansiedade do espectador. E, de uma forma supreendentemente experimental para um cinema de grande público, atingia seu clímax quando deixava a tela totalmente negra, sem imagem, na contracorrente do cinema contemporâneo que mostra tudo. Nesses momentos, a plateia entrava em pânico, pois se criava uma “sintonia” com esse espaço escuro da sala, trazendo uma realidade de percepção imediata.

No geral, como marca dos tempos ditos pós-modernos, o cinema contemporâneo, já há mais de três décadas, vem promovendo uma fusão de gêneros e misturando conteúdos e formas. Até mesmo combinando gêneros que eram, até há pouco, opostos, como a comédia e o horror. Pelo viés da paródia, por exemplo, Mel Brooks fez filmes interessantes como O jovem Frankenstein (1974). Nos anos de 1980, no Brasil, quem mais trabalhou essa linha, incluindo, naturalmente, a nossa “natural” pendência para o erotismo, foi o diretor Ivan Cardoso, com os surpreendentes O segredo da Múmia (1982), As sete vampiras (1986) e O escorpião escarlate (1990), filmes repletos de “defeitos especiais” no gênero “terrir”. Muito comum e mais tradicional é a associação entre terror e ficção-científica, como na série Alien. Mas também há muitos exemplos da superposição de fantasia e horror, como em Gremlins (1984), de Joe Dante. Apesar de exibir um traço mais contemporâneo, essas fusões genéricas não compõem uma história linear, tampouco coerente. Há superposições, avanços e recuos. Talvez possamos, no entanto, perceber uma mudança significativa de uma posição mais conservadora, para um certo liberalismo que volta a ser reprimido de novo. Uma passagem da tradição que considerava monstruoso tudo aquilo que se opunha a uma ordem social tradicional, que vinha de fora e ameaçava certas instituições — a autoridade patriarcal, a Igreja, o amor romântico, a família nuclear — a uma fase intermediária (nos anos de 1940 e 1950) em que as forças do mal necessitavam de controle, mas o que era reprimido nunca era negado ou excessivamente inibido. A partir do final dos anos de 1950, porém, há um medo crescente de que a própria sociedade possa ser monstruosa, de que há forças trabalhando para alienar o indivíduo de sua natureza “essencialmente” boa. Ultimamente parece que voltamos a um novo conservadorismo, a uma reação a tendências apocalípticas do final dos anos de 1960, seja na paranóia terrorista alimentada por um Independence Day (1996), de Roland Emmerich, seja na espécie de armagedom ecológico do recente O dia depois de amanhã (2004), do mesmo diretor.

Existe também um outro cinema do medo que não supervaloriza a exploração do fascínio natural do homem pelo que lhe causa medo. Além de mestres como Hitchcock, hão que se destacar outras contribuições para um moderno cinema do medo, como a do inglês Michael Powell e seu filme Tortura do silêncio (Peeping Tom, 1960), o polonês Roman Polanski, de Repulsa ao sexo (1965), o italiano Mario Bava e seus contos barrocos de bruxaria e repressão, como Black Sunday (1960), ou, ainda, o japonês Masaki Kobayashi e o belíssimo Kwaidan (1965), que retrabalha toda uma tradição de contos fantásticos centrados em figuras sobrenaturais, fundamentais na cultura do Japão. E, claro, há toda a produção do canadense David Cronenberg. Para encerrar, uma reflexão de Ismail Xavier no prefácio da segunda edição de Hitchcock! Truffaut, ao citar o livro de André Bazin, O cinema da crueldade, referindo-se a Hitchcock e Buñuel:

[…] cada um a seu modo […], confrontaram essas experiências — o sexo, a morte, a violência dirigida ao próprio olho — e mergulharam no que, para o desconforto lúcido de Bazin, é o ponto focal de atração das plateias ansiosas por incursões simuladas em zonas de risco. A experiência do medo assegurado é constitutiva e marca a afinidade eletiva do cinema clássico com o lugar do crime, com a violenta ruptura da ordem moral que os espectadores simulam temer, mas desejam, num sistema de projeções que o bom cineasta incorpora e tematiza, faz valer e submete ao debate.[21]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Jean Delumeau, História do medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), P. 23

[2] A referência aqui está diretamente associada às teorias sobre o dispositivo cinematográfico que, na década de 1970, aproximaram a psicanálise do cinema. Em especial, aos textos de Jean-Louis Baudry “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base”, em Ismail Xavier (org.), A experiência do cinema (São Paulo: Graal, 2003); e “Le dispositif: approches métapsychologiques de l’impression de réalité”, em Communications, vol. 23, 1975, pp. 56-72, e de Christian Metz, “Le film de fiction et son spectateur”, também nesse mesmo número de Communications, pp. 108-135.

[3] Leo Charney & Vanessa Schwartz (orgs.), O cinema e a invenção da vida moderna (São Paulo: CosacNaify, 2001).

[4] Conforme já apontamos anteriormente no ensaio “Anatomias do visível: cinema,corpo e a máquina da ficção científica”, em Adauto Novaes (org.), O homem-máquina: a ciência manipula o corpo (São Paulo: Companhia das Letras,2003).

[5] O registro mais próximo que testemunha esses novos tempos no Brasil é o documentário São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929), de Rodolfo Rex Lustig e Adalberto Kemeny, nosso único exemplo de uma espécie de gênero documental da avant-garde, as sinfonias de cidade, conforme ilustram os filmes Paris qui dort (René Clair, 1924), Berlim, sinfonia de uma metrópole (Walter Ruttmann, 1927), 0 homem da câmera (DzigaVertov, 1929) ou, ainda, Apropos de Nice (JeanVigo, 1930), entre outros.

[6] Ver os excertos dos capítulos 2 e 3 de Écrits sur le Cinema (tradução de Marcelle Python), em Ismail Xavier, A experiência do cinema, cit., p. 287.

[7] Georges Haussmann (1809-1891) foi administrador da região do Sena durante o Segundo Império e tornou-se célebre pelos trabalhos de transformação urbana que redesenharam a cidade de Paris.

[8] São eles, pela ordem: Capitólio, Glória e Império, em 1925; Odeon, em 1926; e Pathé, em 1928. Desses, o único sobrevivente é o Odeon. Para maiores detalhes, ver “Cinemas cariocas: da Ouvidor à Cinelândia”, de João Luiz Vieira e Margareth C. S. Pereira, em Filme Cultura, 47 (agosto de 1986), pp. 25-33, capítulo da pesquisa inédita Espaços do sonho: cinema e arquitetura no Rio de Janeiro, vencedora do concurso Cinetema, patrocinado pela Embrafilme em 1982.

[9] Flanar: andar ociosamente, sem rumo nem sentido certo; vaguear, perambular ociosamente. Antonio Houaiss, Dicionário Houaiss da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001), p. 1354.

[10] Alguns grandes fazendeiros de café tornaram-se importadores, exercendo diversas atividades nos setores comercial, bancário, ferroviário e industrial. O maior empregador industrial de São Paulo em 1896 era a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, cujos proprietários eram fazendeiros.

[11] Tais experiências de exibição (virtual) em ambiente “real” tornaram-se bastante populares através dos Hale’s Tours — pioneiros “filmes de viagem” que, em torno de 1905-1906, combinavam imagens e sons coordenados com movimentos simulados a fim de obter uma sensação parecida ao realismo de uma viagem de trem. O climax dessa sensação de deslocamento corporal surgiu, entretanto, em meados do século passado com o Cinerama (1952), primeira tecnologia de projeção panorâmica para obtenção de um realismo imersivo. Sentado entre a sétima e a décima quinta fileiras da plateia, posicionado centralmente diante de gigantesca tela côncava que cobria uma área de 146° na horizontal e 55° na vertical, portanto, muito próxima da visão periférica do olho humano, o espectador do Cinerama “sentia-se dentro do filme” e participava do “espetáculo que revolucionou o mundo da diversão”, conforme proclamava a publicidade da época. Além do fator visual, outros dispositivos ligados à audição também foram importantes para essa ilusão imersiva, como o som estereofônico multidirecional, também aperfeiçoado pelo Cinerama em seu primeiro filme, Isto é Cinerama, exibido e reprisado com exclusividade em São Paulo, no Cine Comodoro, entre 1959-1965. Durante esses seis anos, todos os documentários de viagens (travelogues) produzidos em Cinerama foram exibidos em São Paulo, a saber: Isto é Cinerama (1952), Cinerama Holiday (1955), As sete maravilhas do mundo (1955), Em busca do paraíso (1957), Aventura nos Mares do Sul (1958) e Velas ao vento (1958). Sobre os espetáculos do Hale’s Tours, ver Lauren Rabinovitz, “From Hale’s Tours to Star Tours: Virtual Voyages, Travel Ride Films, and the Delirium of the Hyper-Real”, em Jeffrey Ruoff (org.), Virtual Voyages: Cinema and Travel (Durham: Duke University Press, 2006), pp. 42-60.

[12] Jay Leyda & Charles Musser (orgs.), Before Hollywood: Turn-of-the-Century Film From American Archives (Nova York: The American Federation of Arts, 1986), p. 122.

[13] Tom Gunning, “Uma estética do espanto: o cinema das origens e o espetáculo incrédulo”, em Imagens, no  5 ago, -dez de 1995, pp. 52-61.

[14] Excelentes estudos sobre o impacto do cinema e suas primeiras plateias podem ser encontrados em Eileen Bowser, The Transformation of Cinema 1907-1915 (Nova York: Scribners/MoMA, 1990); e em Douglas Gomery, A History of Movie Presentation in the United States (Madison: University of Wisconsin Press, 1992), entre outros.

[15] As experiências com a montagem paralela, no entanto, não se limitariam apenas à eficácia na construção do suspense da “corrida contra o tempo”. Durante os anos em que trabalhou para a Biograph (1908-1913), Griffith lançou mão da justaposição simultânea de cenas em locais diferentes para, entre outros fins, ajudar o espectador a deduzir conclusões de natureza moral, como comparações entre os ganhos dos ricos e as perdas dos pobres em filmes como A Corner in Wheat (1909), ou The Usurer (1910). Uma outra forma de experimentação com a montagem paralela diz respeito à inserção de imagens mentais puramente afetivas ou lembranças (flashbacks), como em After Many Years (1908) ou sua versão de maior duração, Enoch Arden (1911).

[16] Ismail Xavier, O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005), P. 30.

[17] Para uma identificação maior dos elencos e equipes dos filmes realizados por Griffith entre 1908 e 1913 ver Cooper Graham et alii (orgs.), D.W Grffith and the Biograph Company (Metuchen/Londres: Scarecrow Press, 1985).

[18] Uma iconografia forte que sugere, até, violência sexual aparece no pé-de-cabra que, insistentemente, é utilizado pelo ladrões para arrombar as fechaduras e entrar nas diversas portas da casa.

[19] Os filmes aqui discutidos são bons exemplos da tradição do melodrama sensacionalista disseminada pela Pathé durante os primeiros anos de constituição de uma pré-indústria cinematográfica. Tal tradição, oriunda exatamente do Grand Guignol, foi modificada para incluir ofinalfehz, o indefectível happy end. É a própria Pathé a encarregada de tais mudanças, adequadas “à busca norte-americana por prazer, tranquilidade, conforto e bem-estar material”, segundo o gerente de uma loja de departamentos de Chicago. Ou, como diria mais tarde o todo-poderoso chefão da Paramount, Carl Laemmle, “vamos cuidar mais do lado alegre da vida. Já há o suficiente do aspecto desagradável para que exibamos ainda mais”. Tal ideologia do happy-end fazia parte de uma campanha moralista de elevação do nível do cinema, como arte de massas, fonte de regeneração para o grande público. A mudança do final trágico da peça de André de Lord, nessas três versões, pode ser explicada como uma tentativa de assimilação aos valores americanos, então cobrada á produção cinematográfica. Mais detalhes no excelente ensaio de Richard Abel, “Os perigos da Pathé ou a americanização dos primórdios do cinema americano”, em Leo Charney & Vanessa Schwartz (orgs.), O cinema e a invenção da vida moderna, cit., pp. 258-312.

[20] O celular hoje também potencializa ações perversas. Entre outras ações criminosas, marginais controlam a vida do cidadão de dentro de prisões para promover extorsões e ameaças; comunicam-se entre si dentro e nas imediações de bancos informando aos comparsas de clientes que sacam dinheiro e, assim, tornam-se presas potenciais para assaltos; agem da mesma maneira em relação a passageiros que saem de táxi com equipamentos eletrônicos nas cercanias dos aeroportos.

[21] Ismail Xavier, “Prefácio à edição brasileira”, em François Truffaut, Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva (São Paulo: Companhia das Letras, 2004).

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