1994

A dúvida depois de Cézanne

por Paulo Sérgio Duarte

Resumo

Cézanne é considerado o tronco do qual nascem as grandes correntes da pintura no século XX. Mas essa unanimidade atual é tardia. Contemporâneos como Manet não aprovavam sua “pintura suja”. Com um temperamento difícil, ciclotímico, duvidando do valor de seu próprio trabalho, Cézanne se distanciou de Paris (autoexilando-se na sua Provença natal), dos companheiros impressionistas (que se limitavam aos efeitos de variação de luz) e do progresso industrial da época (mudanças que reprovava com veemência). Segundo o filósofo Merleau-Ponty, para ele “uma única emoção é possível, o sentimento de estranheza; e um único lirismo, o da existência incessantemente recomeçada”. É que a pintura de Cézanne rompe com o universo da perspectiva renascentista e da representação ainda então vigentes. Mesmo o abandono do ateliê pelo ar-livre, dos impressionistas, não satisfaz sua busca de uma nova postura cognitiva diante do que é pintado. Nas suas naturezas-mortas e nas diversas vistas do Monte Santa Vitória, ele ataca de frente o problema da distância, dos volumes, da profundidade. A ação pictórica se reduz a uma bidimensionalidade que anuncia o cubismo, e suas distorções (como em O grande pinheiro, do Museu de Arte de São Paulo) preparam o expressionismo. O que lhe interessa é criar uma nova “natureza” e abrir aos nossos olhos o modo de produção pictórico. O espaço é o resultado de uma dúvida cujo método não produz sistema, mas que emancipa a pintura e abre caminhos que serão explorados depois.


À memória de Cacaso, no aniversário dos seus cinquenta anos

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A obra de Cézanne, para Argan, é aquela “que conclui a parábola do impressionismo e forma o tronco do qual nascem as grandes correntes da primeira metade do século XX”.[1] Greenberg considera que “tendo explorado à exaustão alguns poucos de seus insights, Cézanne pode oferecer aos cubistas todos os recursos para uma nova descoberta; eles precisaram despender pouco de seus próprios esforços tanto em descoberta como em redescoberta”.[2] Gombrich afirma: “Cézanne não tinha em mira criar uma ilusão. O que ele queria era transmitir a sensação de solidez e profundidade, e concluiu que podia fazê-lo sem recorrer ao desenho tradicional. Mal se apercebeu de que esse exemplo de indiferença pelo ‘desenho correto’ iniciaria um movimento irreprimível e arrasador em arte”.[3] Essa unanimidade atual sobre o lugar da obra de Cézanne na história da arte não pode nos fazer esquecer que durante sua vida foram pouquíssimos aqueles que reconheceram seu talento. Pissarro foi um desses, e a principal das exceções. Dessa dificuldade deriva um amontoado de anedotas biográficas dando conta de seu temperamento difícil, de seu comportamento arisco, para não dizer agressivo. Já, durante as estadias da. juventude em Paris, foi vítima o grande mestre e incentivador dos impressionistas, Manet e sua aparência elegante e bem cuidada.[4] Este, mesmo admirando algumas de suas naturezas-mortas, não aprovava sua “pintura suja”. Não conseguindo um bom relacionamento pessoal com Manet, Cézanne o manterá como um de seus ideais de artista, ainda que fazendo restrições à sua paleta.

Mesmo aquele que o havia estimulado a abandonar sua Aix-en-Provence, e seguir para a capital, em 1861, aos 22 anos de idade, seu amigo de infância, Emile Zola, que enaltece seu gênio, é reticente quanto às suas virtudes. Pior, mais tarde, Cézanne se reconheceria na personagem central do romance A obra, o pintor Claude Lantier que, apesar do esforço e tenacidade, não alcança nenhum resultado positivo em seu trabalho, é um confuso, enfim, um maluco fracassado que termina por se enforcar no seu próprio ateliê.[5] Resulta, dessa impiedosa associação, o rompimento da velha amizade na elegância e nostalgia de sua última carta ao amigo escritor:

Gardanne, 4 de abril de 1886.

Meu caro Émile,

Acabo de receber A obra que você me enviou. Agradeço o autor dos Rougon-Macquart este bom testemunho de lembrança, e lhe peço a permissão de lhe apertar a mão sonhando com os velhos anos.

Todo seu sob o impulso dos tempos passados.

Paul Cézanne[6]

Filho de um fabricante de chapéus que se tornara banqueiro, Cézan-ne não depende da venda de sua pintura para se sustentar. Mostra pouco, até sua primeira grande exposição, com cerca de 150 telas, na galeria de Vollard, em novembro-dezembro de 1895, em Paris.[7] Nos seus últimos anos de vida e até sua morte, em 1906, seu trabalho alcança alguma repercussão. Assim mesmo, um círculo restrito de críticos e artistas, dentro e fora da França, tinha ideia da monumental contribuição à arte que constituía este paciente trabalho de investigação e produção de conhecimento através da pintura.[8]

Resta dessa vida anódina o gosto pela solidão propiciado pelo auto-exílio na sua Provença natal e uma angústia ciclotímica que o persegue todo o tempo. Esta ansiedade o faz se considerar desde um fracassado até o único pintor de sua geração que tinha alguma coisa a dizer. Na carta a Monet, de Aix, em 6 de julho de 1895, deprimido escreve:

Tive que abandonar temporariamente o estudo que tinha começado na casa de Geffroy,[9] que se pôs tão livre à minha disposição, e estou um pouco confuso pelo pequeno resultado que obtive, sobretudo depois de tantas sessões, de entusiasmos e desencorajamentos sucessivos. Vejo-me de volta ao Midi, de onde, talvez, eu nunca devesse ter me afastado para me lançar na busca quimérica da arte.

Em 9 de janeiro de 1903, dez dias antes de completar 64 anos, ainda escreve para seu marchand Ambroise Vollard: “Realizei alguns progressos. Por que tão tarde e tão sofridamente?”.[10] Às vezes, juízos contrários compensam a depressão como numa carta a um jovem artista, amigo de Joachim Gasquet: “Desprezo todos os pintores vivos, salvo Monet e Renoir, e quero obter sucesso através do trabalho”.[11] A mais representativa dessas menos frequentes manifestações de exagerada auto-estima encontra-se numa carta de 1906, de Pissarro a seu filho Lucien, relatando uma conversa que Francico Oller tivera com Cézanne: “Pissarro é uma velha besta, Monet um finório, não têm nada dentro de si… só eu tenho temperamento, só eu sei fazer um vermelho!![12]

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Num dos mais belos estudos de um filósofo sobre um artista, Merleau-Ponty na Dúvida de Cézanne, melhor que ninguém, extraiu as consequências dessa trajetória, deslocando seu interesse dos aspectos idiossincráticos da psicologia e do anedotário biográfico para a exigência construtiva do ser, onde vida e obra são vistas como necessidades recíprocas, onde uma não se faria sem a outra. Neste sentido, as vacilações do artista são as trilhas incertas traçadas no caminhar que recusa as estradas cujo destino já se conhece a priori. “O pintor retoma e converte justamente em objeto visível o que sem ele permaneceria encerrado na vida separada de cada consciência: a vibração das aparências que é o berço das coisas. Para este pintor uma única emoção é possível: o sentimento de estranheza; um único lirismo: o da existência incessantemente recomeçada.”[13] Estamos no centro de uma fenomenologia que se libertou das paredes da linguagem e de seus jogos especulares, por vezes tão poéticos quanto narcisistas, uma fenomenologia que se aventura no mundo percebido, abrindo mão da morada segura e bem construída para fazer contar, na fundação da verdade, o universo sensível e, com isto, acrescentar à própria linguagem que jamais será a mesma após essa experiência.[14]

As pesquisas de Cézanne na perspectiva descobrem por sua fidelidade aos fenômenos o que a psicologia recente deveria formular […] É verdade que, transportando para a tela estas deformações, congelo-as, interrompo o movimento espontâneo pelo qual acumulam-se umas sobre as outras na percepção e tendem para a perspectiva geométrica. É o que acontece também em relação às cores.[15]

Para Merleau-Ponty, essa investigação é necessária pelo seu moto próprio, a busca da origem das coisas no mundo, do momento imediato que antecede seu surgimento que se confundiria com a própria origem da verdade:

O artista segundo Balzac ou Cézanne não se contenta em ser um animal cultivado, assume a cultura desde o começo e a funda de novo, fala como o primeiro homem falou e pinta como se nunca se houvesse pintado. A expressão não pode ser então a tradução de um pensamento já claro, pois que os pensamentos claros são os que já foram ditos em nós ou pelos outros. […] O sentido do que vai dizer o artista não está em.nenhum lugar, nem nas coisas que ainda não são sentido, nem nele mesmo, em sua vida informulada. Invoca a passagem da razão já feita, em que se fecham os “homens cultivados”, a uma razão que abrangeria suas próprias origens.[16]

Para fazer aparecer a arte no universo da cultura, o estranhamento é necessário:

Vivemos em meio aos objetos construídos pelos homens, entre utensílios, casas, ruas, cidades e na maior parte do tempo só os vemos através das ações humanas de que podem ser os pontos de aplicações. Habituamo-nos a pensar que tudo isto existe necessariamente e é inabalável. A pintura de Cézanne suspende estes hábitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual se instala o homem. Eis por que suas personagens são estranhas e como que vistas por um ser de outra espécie.[17]

Mas se o artista, para tornar visível o que olhamos e não vemos, necessita dessa estranheza, dessa distância diante do mundo, aparentemente familiar, no qual estamos mergulhados, não estaria produzindo uma dívida que se estende além daquela que o filósofo nos expõe? Essa metafísica da origem, tão inteligentemente apoiada na fenomenologia da percepção, expondo e exigindo a própria incerteza como momento necessário da verdade, não esconde parte do alcance gnosiológico dessa mesma arte que estaria quase que exclusivamente reiterando o instante inaugural do ser que percebe no mundo percebido? Não se trataria de uma dúvida que ultrapassa essa experiência e vai habitar e estruturar a própria obra como momento produtivo de seu conhecimento através de um feixe de distanciamentos? Não seria a dúvida a própria forma necessária à sua obra, não apenas como manifestação da experiência sensorial, mas como reposição ou, se quisermos, retorno da dúvida cética necessária ao conhecimento diante do triunfo racionalista? Dúvida necessária à ruptura com um universo que traz ainda o peso da tradição renascentista e de seu acasalamento entre a arte e a ciência positiva, ao próprio impulso que conduz a este lugar de Cézanne, distanciado de tudo e de todos para o surgimento do novo.

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Se as opiniões disparatadas e contraditórias espelham a psicologia de Cézanne, retratam, também, e isto nos interessa mais, os seus distanciamentos, a começar por uma permanente diferença do impressionismo, e principalmente dos impressionistas, que às vezes julga com excessiva severidade. A forma emotiva de seu julgamento põe seus interesses pela arte bem acima dos afetos pessoais e não perdoa nem mesmo aquele que mais o ajudou e incentivou, Pissarro. Esta passagem extraída do capítulo “O que ele me disse”, do “Cézanne” de Joachim Gasquet é sintomática dessa atitude: “Renoir é um hábil. Pissarro um camponês. Renoir foi pintor de porcelana, preste atenção… Ficou alguma coisa de madrepérola em seu imenso talento. Assim mesmo, que coisas ele fez. Não gosto de suas paisagens. Ele vê acolchoado. Sisley?… Sim. Mas Monet é um olho, o olho mais prodigioso desde que existem pintores”.[18]

Cézanne vive uma época de muitos conflitos e grandes comemorações aos quais é completamente avesso. Luta-se dentro e fora das fronteiras, nos combates a leste, quando a França derrotada na guerra franco-prussiana (1870-1) perde a Lorena e parte da Alsácia, culminando com a queda do Segundo Império, e ainda deve enfrentar o levante popular que resulta no governo revolucionário da Comuna. Festeja-se também na França da segunda metade do século XIX. Antes de tudo, as conquistas coloniais, depois, o progresso. O século dos enciclopedistas — herdeiros do humanismo da Renascença — havia ficado para trás com a Revolução. Agora era a época dos especialistas. Com a Revolução Industrial, as profissões multiplicavam-se e o progresso da ciência e da técnica dividia e subdividia campos do saber até bem pouco unificados. Os melhores espíritos da época aderem ao progresso. Um filósofo como Marx, insuspeito quanto a qualquer resignação diante do mundo em construção pelos sucessos burgueses, via este mesmo progresso das forças produtivas como conduzindo o desenvolvimento capitalista a um impasse e como um dos fatores que colaboravam para a transformação numa sociedade mais igualitária. Os artistas se servem de maneiras diferentes destas conquistas. Os impressionistas se utilizam das novas teorias das cores, elaboradas, seja pela pesquisa acadêmica de um Helmholtz, seja pelas necessidades de sua aplicação na indústria, como as de Rood ou Chevreul. A pressão do novo cenário é tal que chega ao paroxismo de um Seurat e seus seguidores neo-impres-sionistas proporem a subordinação do ato pictórico a métodos objetivos de construção, análise e síntese cromáticas.[19]

Essa agitação se encontra no mundo, nas ruas, nas grandes exposições internacionais da indústria e do comércio, às quais os artistas são chamados a participar com salas especiais. Na grande exposição comemorativa do centenário da Revolução, a torre Eiffel marca de forma emblemática e definitiva a paisagem urbana parisiense reformada por Haussmann com o elogio do progresso. O grande monumento ao novo não é projetado por um arquiteto — estavam todos seduzidos pelos efeitos decorativos do ecletismo acadêmico —, é obra de engenheiro. Esta agitação no mundo e no espírito não atrai Cézanne. Ele não vê com simpatia as mudanças e as reprova com veemência, a exemplo do trecho de uma de suas cartas de 1902: “Eu me lembro perfeitamente do Establon e das margens, antes tão pitorescas, do Estaque. Infelizmente, o que se chama o progresso não passa da invasão dos bípedes, que não se detêm até que não tenham transformado tudo em odiosos cais com bicos de gás e — o que é pior ainda — com iluminação elétrica. Em que tempo vivemos!”.[20] 0 século dos engenheiros decididamente não lhe agrada, sobretudo quando perturba um de seus “motivos” preferidos, como relata Joachim Gasquet numa de suas conversas: “Este velho caminho é uma via romana. Essas estradas dos romanos estão sempre admiravelmente situadas. Siga uma delas. Eles tinham um senso da paisagem; de todos os seus pontos ela cria um quadro. Nossos engenheiros pouco se incomodam com a paisagem”.[21]

Já estamos diante de três distâncias que Cézanne toma em relação ao meio em que é obrigado a viver. A distância de Paris, centro da maior produção cultural do Ocidente no século XIX, traduzida na escolha pela Provença. A distância dos companheiros impressionistas demonstrada, ainda que contraditoriamente, em diversas das suas opiniões, mas acima de tudo pela sua própria pintura. Finalmente, a distância do progresso tal como ele se expressa no processo de urbanização da sociedade industrial. E, no entanto, esses ingredientes, prontos para traçarem a existência de um artista reacionário, constituem o material psicológico do responsável pelos fundamentos da mais profunda transformação da arte no Ocidente desde a Renascença.

Essas distâncias, umas físicas, outras metafóricas, todas implicando afastamentos, devemos considerá-las nas suas raízes para termos acesso ao conhecimento produzido por Cézanne. A distância será aquele fio vermelho de que nos fala Goethe nas Afinidades eletivas, com o qual a Marinha inglesa trançava suas cordas, atravessando-as de tal forma que era impossível roubá-las sem deixar de carregar consigo o vestígio de sua origem, porque retirando o fio vermelho desmanchava-se a corda. É da noção de distância e de sua transformação na arte do Ocidente que devemos partir.

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A representação espacial é valorizada dentro de duas grandes tradições pictóricas, na-chinesa e no Ocidente a partir da Renascença. O que diferencia basicamente uma da outra? A primeira preocupa-se quase que exclusivamente com a paisagem, mas, acima de tudo, o olho viaja sobre a paisagem representando-a de múltiplos pontos. Mesmo quando seu objeto exige a representação de linhas paralelas, como na representação de um prédio ou de interiores, o olho do pintor chinês se desloca de espaço em espaço num mesmo quadro. A perspectiva artificialis renascentista fixa um único olho num ponto. A perspectiva, define Leonardo, “nada mais é do que olhar um lugar por detrás de uma vidraça, bem transparente, em cuja superfície os objetos que se encontram do outro lado devem ser desenhados. Eles podem ser traçados em pirâmides até o ponto do olho e estas são interceptadas pelo plano do vidro”. Sabemos que estes princípios encontravam seu fundamento na óptica geométrica, que por sua vez se baseava na lei física de propagação linear dos raios de luz. Mas, observe-se, acima de tudo, como Da Vinci trata com absoluta naturalidade o que, de fato, era o artifício mais arbitrário, apreciar uma cena de um único ponto fixo e com um único olho, condições necessárias, igualmente, ao futuro observador da obra para que a verossimilhança da perspectiva venha a ser reconstituída. No Quatrocentos, a ciência clássica que viria a nascer dos trabalhos de um Copérnico, Kepler e Borelli, de um Galileu, Descartes e Newton, encontra-se em gestação muito mais nos ateliês de artistas que nos laboratórios de alquimistas, consultórios médicos ou lojas de boticários. Os fenômenos da natureza, a astronomia, a meteorologia, a geologia, a botânica, a anatomia animal e humana, a geometria, tudo deveria ser estudado a serviço da arte de melhor representar o mundo natural e humano. Esta a grande novidade da Renascença. O astucioso artifício para representar, numa superfície de duas dimensões, as três dimensões do espaço, cria uma armadura extremamente rígida para o olhar ocidental, e logo se percebe que os fenômenos das cores encontravam-se relegados a plano secundário, subordinados, nessa disciplina teórica, à ordem do desenho.[22] Vemos, portanto, que esta reprodução fiel da realidade elegia no mundo natural, através de um hábil e dogmático constructo — um corpo de regras cientificamente controladas pelas leis da perspectiva geométrica —, aspectos do mundo percebido entre outros. É o pensamento analítico da ciência positiva construindo uma teoria da arte, ainda que com isso suprimisse o caráter orgânico e integrado da experiência sensorial, excluísse a própria percepção. A representação das distâncias entre os objetos e o olho do artista, ou melhor, um único olho do artista, domina a reprodução da realidade espacial. Já, naquele momento, a representação dos fenômenos atmosféricos perturbava a ordem cristalina das regras arbitrariamente estabelecidas, e impunha uma reflexão sobre a cor que necessariamente subsumia e eclipsava as regras do bom desenho. As distâncias e formas permanentemente variáveis das nuvens, sua própria matéria gasosa, as variações das cores de objetos mais distantes numa paisagem, geraram uma disciplina paralela, batizada por Leonardo de perspectiva aérea, uma série de princípios e normas que permitisse reproduzir pictoricamente a profundidade e imitasse o efeito da atmosfera a diferentes distâncias através de uma escala variada de cores. Mas apesar do papel que desempenhou na pintura flamenga ou nas paisagens de um Rubens, somente na obra de Turner será levada ao centro da reflexão pictórica e, mais tarde, ver-se-á aprofundada por Monet e os impressionistas. A perspectiva aérea é acessória e participa à margem na elaboração do pensamento pictórico do Ocidente, a partir da Renascença até, pelo menos, Turner. O que é formidável é observar a resistência desse conjunto de regras que contraria os sentidos e como, apesar das variações e mudanças, chega praticamente intacto ao século XIX, até os impressionistas e Cézanne. Sem a sua origem no novo e ascendente mundo da ciência e da técnica, não teríamos como explicar o prestígio de tantas normas arbitrárias. O Iluminis-mo consolida esta nova ordem:

Nos confrontos da ciência, que se torna atividade-piloto, a arte tem três possibilidades: 1) diferenciar-se seguindo e levando às últimas consequências as próprias técnicas tradicionais; 2) adequar-se, adotando métodos de pesquisa de tipo científico; 3) basear-se ela mesma, como ciência autônoma, isto é, ciência do belo, estética (um conceito e um termo que começam a existir justamente no século XVIII).[23]

Mas a distância entre o olho e o objeto tratada de modo perspectivado sobrevive aos influxos dos desafios fantásticos do maneirismo, à imaginação emotiva do barroco, é regra adotada claramente no neoclacissismo, ainda que este não se deixe dominar exclusivamente por valores externos e se reporte a um ideal especificamente estético. Mesmo a alma romântica de um Goya ou de um Delacroix, ao se desviar da norma, não chega a nenhuma transgressão mais grave. O objeto é transmitido ao olhar a partir de uma distância fixa que se tenta reproduzir na superfície da tela.

O primeiro abalo a este tratamento geométrico da distância é realizado pelo impressionismo ao deslocar o interesse do “tema” para as sensações visuais causadas pelo objeto, pelos efeitos que as variações de luz criavam, pelo caráter fugidio dessas sensações. A saída do ateliê para o ar livre, o abandono do chiaroscuro, a exclusão de suas paletas do negro e dos tons terra, cores ausentes do espectro solar, a ausência do desenho e do contorno, bem como as pinceladas curtas e imprecisas, são exigências técnicas necessárias à nova postura cognitiva da pintura, que não chega a ser uma nova episteme. A distância não está destruída no impressionismo, ao contrário, se faz onipresente, é o próprio objeto da pintura impressionista, onde o “tema”, catedral, paisagem, natureza-morta, retratos, cenas de rua, tudo é mero pretexto para se pintar o vazio entre o olho e o motivo, a distância. E como são vários, este vazio nos demonstra o impressionismo com a sua meticulosa doutrina das sensações visuais. Esta poética encontra ainda, já dissemos, balizamento nas mais recentes teorias físicas das cores e concorre, pela primeira vez no Ocidente, desde a Renascença, para o predomínio dos princípios da perspectiva aérea sobre a geométrica. Mas esse deslocamento, transformando a sensação visual em objeto da pintura com a consequente eleição do espaço entre o olho e o “tema” como centro da nova atividade pictórica, deixa Cézanne, o “pintor de coisas”, desconfiado e distante.

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Apesar da convivência com os impressionistas desde os seus anos de juventude, Cézanne se deixa ocupar por uma fatura e temas românticos onde houve quem quisesse enxergar uma antecipação do expressionismo.[24] Depois, como verificaremos através das suas naturezas-mortas, ataca de frente o problema da distância. Continua afastado dos procedimentos dos impressionistas, mantém o contorno dos objetos, as cores são densas, saturadas, “robustas”. Nas paisagens, em comparação com seus contemporâneos parisienses, que pesquisavam os efeitos da luz, há uma quase rude simplificação.[25] Mesmo bem antes do complexo trabalho dos últimos anos, Cézanne rompe de modo radical com a tradição da perspectiva. O próprio motivo está disposto de modo transgressivo. Como estamos distantes de um Chardin, mas também de um Renoir, ao observarmos a Natureza-morta com cesta de maçãs (1890-4), a propósito da qual Schapiro dirá: “É difícil imaginar uma circunstância na vida cotidiana em que estes objetos pudessem se encontrar juntos justamente deste modo”.[26]

Figura 1 - Natureza morta com cestas de maças (1890-4). Instituto de Arte de Chicago
Figura 1 – Natureza morta com cestas de maças (1890-4). Instituto de Arte de Chicago

A cesta está calçada por um livro de modo que, inclinada, ofereça um melhor ponto de vista. A toalha, amarfanhada, na sua desarrumação acrescenta riqueza plástica através de suas dobras e acentuando no branco as oposições cromáticas entre as frutas e a superfície da mesa. Quanto à luz, retomando uma lição de Manet abandonada pelos impressionistas, emana do quadro, das coisas, dos próprios objetos, da força de suas cores, segundo exigências da estrutura interna da própria pintura, o que pode ser observado pela disposição arbitrária das sombras e até mesmo pela sua ausência em alguns volumes representados num tão pequeno espaço. O tampo, a superfície da mesa, é descontínuo, aproveitando-se de ter sido interceptado pela toalha; à esquerda é uma massa de tons terra informe delimitado, em cima, pelo livro que calça a cesta e, embaixo, por uma reta, enquanto à direita da toalha, já iluminado arbitrariamente por outra fonte, tem marcados seus ângulos embaixo. Tampouco encontramos qualquer esforço de fidelidade em reproduzir uma continuidade entre a linha superior à esquerda e à direita da superfície da mesa. Toda esta desordem é extremamente equilibrada no todo. Estamos diante de uma grande novidade desde a invenção da perspectiva artificialis da Renascença. Não apenas a luz, mas todo o sistema de composição, as cores, a disposição dos objetos, tudo, obedece a exigências internas da estrutura pictórica. O real da pintura deve habitar a própria pintura, e é a esta realidade que ela deve verossimilhança, não à cena externa, anterior à percepção e, sobretudo, anterior ao trabalho do pintor. A Natureza-morta com maçãs e laranjas (1895-1900) é ainda mais radical, há uma luxúria nas cores, sem nenhuma perda de seu caráter forte e denso acentuado pelos contornos bem delimitados.

Figura 2 - Natureza morta com maças e laranjas (1895-1900). Paris, Louvre
Figura 2 – Natureza morta com maças e laranjas (1895-1900). Paris, Louvre

A profundidade é apenas sugerida, porque tudo é atraído em direção a um primeiro plano, a própria superfície do quadro, em direção ao olhar. Não é mais uma fictícia força de gravidade que simula um repouso nos objetos de Cézanne, estes devem ser atraídos pela força que os produz, a visão.[27] Do mesmo modo que um cachimbo pintado não é um cachimbo, como quis Magritte, já as maçãs de Cézanne, mesmo virando literalmente a mesa em sua representação, não caíam do quadro: maçãs pintadas não rolam no chão. Nessa natureza-morta, mesmo com a profundidade sugerida, e esta era a preocupação maior de Cézanne na elaboração do espaço, não há mais distância além daquela exigida pela totalidade pictórica e que não pode mais ser reportada a nenhuma regra de reprodução da distância real entre os objetos e um único olho do pintor, como exigia a perspectiva. Cada quadro, nas naturezas-mortas, evoca a ideia do cosmos da Grécia arcaica, onde o topos não é um lugar no espaço porque este nem sequer ainda fora pensado, mas determinado pela natureza dos objetos que o ocupa. Um bule ou uma maçã pintados, trocados, jamais ocuparão o mesmo lugar sobre a mesa, por causa da diferença de suas formas e cores. A trama de relações entre esses diversos topos e sua dinâmica constitui a boa ordem do cosmos. Em princípio, toda obra de arte individualmente preserva este quê de isolamento, esse micromundo, mas nunca antes essa possibilidade de autonomia fora levada a tais consequências. Essa distância constitutiva de um espaço que jamais existiu nunca poderia ser observada antes da obra, ela é seu resultado, construída, só existe a posteriori. É mais do que a demonstração empírica de teorias da percepção que só seriam formuladas pela psicologia anos depois e confirmadas pela experiência. É a redução radical do palco da ação pictórica à bidimensionalidade do quadro, ainda que conservando a proble-matização da profundidade, é o alicerce seguro sobre o qual poderão se erguer, mais tarde, tanto a revolução cubista, quanto a pintura crítica dos expressionistas e os projetos construtivistas.

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Apesar da existência desta obra e de tudo o que ela continua a nos mostrar, ainda insiste-se em tomar as teorias espontâneas do artista como base para a reflexão sobre seu pensamento e trabalho, atribuindo a estas um estatuto exagerado. Na verdade, o que ele diz ou escreve está muito distante do que ele pinta, e o que ele faz, o que qualquer artista pinta, é seu pensamento visual objetivado no quadro. “Alguma imitação é necessária, e mesmo uma pequena trapaça para o olho. Não há mal nisso se a arte está ali.” [28] Como pode-se dar crédito às suas declarações sobre a imitação, se esta é apenas “alguma”? Ainda mais quando sabemos que a representação mimética era a base do ensino acadêmico, o “início” do trabalho do artista ao qual deveria ser acrescentado o “estilo”. É ao mesmo Émile Bernard que Cézanne declara, num trecho conhecido e amplamente interpretado de suas conversas, seu desprezo por este tipo de formação e confessa quais .as “figuras” que tomava como modelo:

O estudo da arte é muito longo e muito mal conduzido. Hoje, o pintor deve descobrir tudo sozinho, pois só existem escolas muito ruins, onde ele se torna falso, onde ele não aprende nada. Seria necessário, de início, estudar as figuras geométricas: o cone, o cubo, o cilindro, a esfera. Quando se soubesse realizar essas coisas nas suas formas e nos seus planos, saber-se-ia pintar.[29]

Além de tomarmos conhecimento do que Cézanne pensa do ensino acadêmico, somos introduzidos à polêmica sobre as figuras geométricas tomadas como modelo. Sabemos que isto não constituía novidade, que o ensino acadêmico utilizava-se desses procedimentos. Mas, tratando-se desse nosso artista, é bom lembrar Venturi: “Esta frase […] deve ser tomada como exprimindo uma aspiração ideal em direção a uma organização das formas transcendendo a natureza, e nada mais”.[30] O que vai nos interessar aqui é, sobretudo, a ideia de “perspectiva” segundo Cézanne. No seu artigo em L’Occident,[31] Émile Bernard transcreve as famosas vinte opiniões sobre a arte de Cézanne. A décima “opinião”, que exclui o cubo, tem o seguinte texto: “Tudo na natureza se modela segundo a esfera, o cone e o cilindro. É preciso aprender a pintar sobre essas figuras simples, em seguida pode-se fazer o quiser.[32] Existe, ainda, um terceiro texto sobre o mesmo assunto, este do próprio punho de Cézanne, uma carta a Bernard de 15 de abril de 1904:

[…] trate a natureza pelo cilindro, a esfera, o cone, o todo posto em perspectiva, de modo que cada lado de um objeto, de um plano, se dirija para um ponto central. As linhas paralelas ao horizonte dão a extensão, seja uma seção da natureza ou, se você gostar mais, do Espetáculo que o Pater Omnipotens Aeterne Deus expõe diante de nossos olhos. As linhas perpendiculares a este horizonte dão a profundidade. Ora a natureza, para nós, homens, está mais em profundidade que em superfície, daí a necessidade de introduzir em nossas vibrações de luz representadas pelos vermelhos e pelos amarelos, uma soma suficiente de azulados, para fazer sentir o ar.[33]

É importante lembrarmos o comentário de Doran a propósito desse trecho, porque ilustra muito bem como se interpreta um texto de artista à revelia de sua obra:

Toda esta passagem, desde “trate a natureza” até “dão a profundidade” provocou inumeráveis comentários […] Agora, é geralmente admitido que ele remete, na sua primeira frase, à norma do ponto de fuga nos procedimentos acadêmicos da perspectiva e às regras do ensino acadêmico para a apreensão dos volumes através do estudo de sólidos simples […] A reflexão sobre a perspectiva prossegue entretanto, pois pode-se pensar que as segunda e terceira frases remetem à trama do tabuleiro de dama (perspectiva) formada pelas linhas horizontais e ortogonais que se encontra frequentemente nos esquemas dos manuais de perspectiva. Não existe objeção real a interpretar as “linhas perpendiculares” como ortogonais, pois no espaço “absoluto”, as ortogonais são perpendiculares à linha do horizonte: mas o professor Reff propôs uma outra significação, muito engenhosa.[34] Entretanto, e todos os que escrevem sobre o assunto se encontram, hoje, de acordo, o ponto mais importante da passagem é o acento posto sobre os volumes dos sólidos, e sobre o interesse de Cézanne pela profundidade.[35]

Observemos inúmeros trabalhos de Cézanne, a exemplo da bastante conhecida Natureza-morta com cupido de gesso (1895) da qual Doran seguramente é íntimo, pois pertence à instituição onde ele trabalhava quando escrevia esta nota e britanicamente ironizava a “engenhosa” interpretação de Reff.

Figura 3 - Natureza-morta com cupido de gesso (1895). Londres, Courtauld Institute Galleries
Figura 3 – Natureza-morta com cupido de gesso (1895). Londres, Courtauld Institute Galleries

Como conciliar a interpretação de Doran sobre as afirmações de Cézanne — de que este estaria efetivamente fazendo recomendações que acompanham a orientação da perspectiva segundo as regras acadêmicas — com aquela natureza-morta do Courtauld Institute, onde a perspectiva encontra-se de tal modo desconstruída que não seria exagero afirmar estarmos diante de um cubismo latente? Já que se toma a palavra de Cézanne como referência, nesse caso, é melhor tomá-la ao pé da letra e realizar um esforço de elaboração como o faz Reff,[36] fundamentando-o em procedimentos pictóricos do artista. Para isso, basta a contradição evidente entre a afirmação “o todo posto em perspectiva, de modo que cada lado de um objeto, de um plano, se dirija para um ponto central” — que apela para os procedimentos convencionais da perspectiva — e o desdobramento do mesmo texto: “As linhas paralelas ao horizonte dão a extensão, seja uma seção da natureza ou, se você gostar mais, do Espetáculo que o Pater Omnipotens Aeterne Deus expõe diante de nossos olhos. As linhas perpendiculares a este horizonte dão a profundidade”.[37] E, também, o que temos diante dos olhos, pintado pelo artista à mesma época.

Num dos seus Monte Santa Vitória (c.1904-6) a natureza, reinventada como antítese da imitação, atinge um conhecimento pictórico “absolutamente moderno”, como gostaria Rimbaud. Gowing nos explica a organização desses seus últimos trabalhos:

Para Cézanne a realidade intrínseca da pintura era não só o sentido da cor inato e confirmado pela natureza, residia na lógica, na organização e na classificação às quais o sentido da cor estava submetido. A sexta “opinião”[38] a respeito da interpretação nas manchas de cor torna claro que a organização consistia na ordem em que as manchas “seguem uma à outra”, conforme à “lei da harmonia”. De fato, em cada sequência de cores que interpreta a redondez de um volume nos últimos trabalhos, as manchas quase invariavelmente seguem uma à outra na ordem do espectro e consistem em matizes espaçados bastante frequentemente ao longo desta. Pode ser que a “lei da harmonia”, como Cézanne finalmente a considerou, fosse simplesmente a sequência do espectro, e o posicionamento aproximadamente equidistante das notas numa dada clave formasse sua escala. Ele falava disto como se fosse uma sintaxe visual inata.[39]

Figura 4 - Monte Santa Vitória (c. 1904-6). Filadélfia, col. sra. Carrol S. Tyson
Figura 4 – Monte Santa Vitória (c. 1904-6). Filadélfia, col. sra. Carrol S. Tyson

Interessa reter a existência de uma ordem que estrutura, uma lógica, uma sintaxe visual”, que não pode ser fundada somente nos aspectos puramente sensoriais, nas sensações, mas que exige o investimento de uma arquitetura capaz de, rompendo com a tradição da perspectiva, não ceder exclusivamente à redução do fenômeno à experiência perceptiva. Essa dialética entre Ideia e fenômeno visual em Cézanne é constituída pelos feixes de distanciamentos que se objetivam, através do trabalho, na tela; o resto são momentos do processo, muitos redutíveis a epifenômenos da produção artística. No Monte Santa Vitória estamos diante de dois grandes espetáculos absolutamente novos que têm o poder de parecer familiares, próximos, quando na verdade estão sendo conduzidos pelo trabalho, pela prática pictórica, árdua e sistematicamente organizada, da inexistência na origem para a plenitude da presença. O primeiro espetáculo é a nova “natureza” liberada por Cézanne como imagem generosa e complexa, à altura do seu modelo, mas, claramente, outra. O segundo é abrir aos nossos olhos o modo de produção pictórico, evidenciar os procedimentos e a trama que organiza e estrutura o todo, tornar evidente sua linguagem no gesto da pincelada, na escolha do léxico cromático e formal, e exibir as três diferentes regiões sintáticas que se harmonizam, para oferecer o ato de realização da obra como espetáculo permanente. Mais do que seu modelo externo — a montanha — quem se transforma em motivo é o próprio processo de trabalho pictórico. Livre dos macetes da mimesis acadêmica ou de preocupações metalinguísticas, a nova “natureza” se apresenta enquanto linguagem visualmente articulada em primeiro grau.

É, no entanto, este artista — que desafia as normas da representação, que rebate em nossa direção as superfícies das mesas, que comprime as distâncias nas paisagens, que fragmenta a representação, reduzindo-a a estrutura plana — que é capaz de animar O grande pinheiro (1892-6) do Museu de Arte de São Paulo.

Figura 5 - O grande pinheiro (1892-6). São Paulo, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand.
Figura 5 – O grande pinheiro (1892-6). São Paulo, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand.

Ao sugerir-nos na natureza atormentada a impossibilidade de retratá-la sem cometer o arbítrio das distorções, Cézanne exige a desobediência às regras da proporção. Mesmo onde existem distâncias e evoca-se a ventania, nenhuma atmosfera separa o olho do pintor de seu objeto, cujas cores chegam, sem interferências, aos nossos olhos, contrariando a experiência sensorial. Se a natureza era seu ideal e o ceticismo lhe ensina, pelo trabalho, o quanto é ilusório e inútil o esforço de capturá-la, ele a reinventa como novo espaço na pintura.[40]

7

O espaço cezanniano é resultado do exercício da dúvida dentro da clássica estratégia cética aplicada e reduzida, poderíamos mesmo dizer, rebaixada, a momento da prática pictórica.[41] A natureza, que Cézanne constantemente reclama como seu único modelo, a quem deve fidelidade absoluta, ele bem sabe que jamais será passível de redução às pinceladas, cores e formas. A confissão deste ideal já traz embutida a impossibilidade de sua realização através de sua atividade de pintor, como demonstra sua completa desatenção às regras da mimesis acadêmica e o afastamento dos impressionistas e de sua ciência da percepção cromática. A suspensão das certezas é recomendável, sobretudo daquelas veiculadas pelo mundo legado através do triunfo da ciência e da técnica, se materializando na laicização da vida, na dinâmica coletiva da sociedade urbana, que traz, na pintura, os procedimentos do impressionismo como sua manifestação artística mais avançada. É o exercício desta dúvida, não na forma de seus textos ou de suas palavras, mas na forma de seu pensamento projetado visualmente na sua obra pictórica e seus resultados artísticos que causam estranheza e incompreensão a seus contemporâneos. Estes, solidários às conquistas do progresso, os melhores, ou fixados pelo sucesso fácil de uma arte acadêmica, os piores, que o julgam pelo que ele diz, por suas intenções confessas, pelo seu comportamento, e não pelo que ele faz. Desde Descartes — aquele que levou mais longe os argumentos céticos para destruir o ceticismo — toda suspensão da certeza é provisória, momento do processo do método para produção de mais certeza, é dúvida metódica. O sujeito da razão cartesiana não mais convive com o vazio da ignorância, confundindo-o como instância obscurantista a serviço de forças retrógradas. O processo cético de Cézanne, antes de reduzido a momento da obra, para formular a impossibilidade de um conhecimento, no caso, a representação fidedigna da natureza através da pintura, seja pelos recursos da perspectiva geométrica, seja da perspectiva aérea numa investigação das sensações visuais, não se comporta como um niilista. Esgota os recursos da pesquisa histórica tratando com respeito os mestres do Louvre; em cada paisagem, como um pintor renascentista, procura conhecer até a morfologia do terreno, sua geologia. Essa tentativa de reencontrar um todo coerentemente articulado no respeito a um Poussin, por exemplo, é constantemente negada pelo confronto com o universo fragmentado da modernidade e pela própria estrutura do impressionismo que, apesar de coesa, se sustenta no universo efêmero das sensações. A suspensão das certezas, que decorre desta atitude rigorosa e sistemática, confissão de sua ignorância mesmo depois do esforço positivo, dá margem à hipótese de estarmos diante de uma ontologia fundada numa metafísica da origem. Mas este nada produzido pelo cético e que é o seu ponto de partida, é, simultaneamente, o ponto de chegada de todo o trabalho, momento necessário à emancipação da pintura, para que a autonomia da arte formulada em tese, desde o século XVIII, possa efetivamente ser alcançada. Para que a distância existente no trabalho de arte e somente depois do trabalho não pertença a nenhum outro espaço real senão àquele do próprio quadro. Esta distância pertence a uma geometria que não mais se encontra na natureza, tampouco nos valores matemáticos euclidianos, pertence pura e exclusivamente à pintura. Se, do ponto de vista sensorial, vai futuramente encontrar fundamento em Bergson, na teoria da Gestalt ou na fenomenologia da percepção, seguramente não estamos diante de um tratado de processos sensoriais. A pintura ao descobrir seu próprio espaço é objeto de um investimento cognitivo que acrescenta à esfera da arte as condições de avançar na realização de sua autonomia. Mas o que temos que reter é o fato de essa realização, que joga a favor do mundo disperso e dividido com o qual se confronta, acontecer através de um método que não produz um sistema. O momento cético, na sua tradição de recusa de dogmas, impede o trabalho de gerar regras e critérios generalizáveis. Se Cézanne inventou um método construído com rigor sistemático ao longo de décadas, seguramente não criou um sistema. Este viria a surgir a partir da estilização de suas descobertas. Existe “a dúvida de Cézanne”, aquela do indivíduo perturbado pelas suas angústias e que o move para o trabalho no seu dia-a-dia, e passa a existir a dúvida depois de Cézanne, a dúvida cética restaurada e embutida como momento da forma de suas naturezas-mortas, das suas paisagens, das figuras humanas de sua última fase, para que não sobreviva na pintura nenhum saber acessório e externo à própria pintura. Dúvida que se instala na ruptura, inaugurando o continente da arte do século XX.

Notas

  1. Giulio Carlo Argan; L’arte moderna — 1770-1970, Florença, Sansoni, 2 ed., 1971, p. 134. Existe tradução em português publicada pela Companhia das Letras, São Paulo.
  2. Clement Greenberg, Cézanne, em Art and culture — Critical essays, Boston, Beacon Press, 1984, p. 57. O texto sobre Cézanne foi originalmente publicado em 1951.
  3. E. H. Gombrich, A história da arte, trad. Álvaro Cabral da 13 edição publicada em 1978, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 433.
  4. John Rewald, The history of impressionism, 4 ed. rev., Nova York, Morna, 1973, p. 200: “Enquanto Manet, Degas e Bazille representavam o mesmo tipo de burgueses ricos e cultos, a maioria de seus companheiros vinha de camadas sociais mais baixas. Cézanne, apesar da fortuna acumulada por seu pai — um ex-fabricante de chapéus — e a despeito de seus estudos de direito, gostava de exibir maneiras rudes ou exagerar seu sotaque sulista em desafio ao estilo polido dos demais. Era como se não lhe bastasse mostrar seu desacato à arte oficial somente em seus trabalhos, como se seu ser inteiro tivesse que expressar o desafio, para sublinhar sua revolta. Voluntariamente negligenciava sua aparência e parecia sentir prazer em chocar. Monet, mais tarde, se lembraria, por exemplo, como Cézanne apertou as mãos de seus amigos mas tirou seu chapéu diante de Manet e disse: ‘Não lhe estendo a mão, senhor Manet, porque não as lavo há oito dias’ “(M. Elder, A Giverny chez Claude Monet, Paris, 1924, p. 48, cit. por Rewald) (Existe tradução em português editada pela Martins Fontes, São Paulo.)
  5. Emile Zola, L’oeuvre, pref. Yves Berger, comentários e notas Thérèse loos, Paris, Librairie Générale Française, Le Livre de Poche, 1985, p. 422:Claude s’était pendu à la grande échelle, en face de son oeuvre manquée. Ii avait simplement pris une des cordes qui tenaient le châssis au mur, et il était monté sur la plate-forme en attacher le bout à la traverse de chêne, clouée par lui un jour, afin de consolider les montants. Puis, de là-haut, ii avait sauté dans le vide. En chemise, les pieds nus, attroce avec sa langue noire et ses yeux sanglants sortis des orbites, il pendait là, grandi affreusement dans sa raideur immobile, la face tournée vers le tableau, tout près de la Femme au sexe fleuri d’une rose mystique, comme s’il lui eut soufflé son âme à son dernier râle, et qu’il l’eat regardée encore, de ses prunelles fixes“. Não custa lembrar que a narrativa naturalista de Zola, seguramente tributária de urna estética pré-cezanniana, era contemporânea das experiências poéticas de Mallarmé, cujos trabalhos seriam traduzidos para o inglês, sintomaticamente, por Roger Fry, em 1936. Ver abaixo, n. 8.
  6. Paul Cézanne, Correspondance, recolhida, anotada e prefaciada por John Rewald, nova ed. rev, e ampl., Paris, Bernard Grasset, 1978, p. 225. Existe tradução em português publicada pela Martins Fontes, São Paulo. Sobre o impacto do romance de Zola em Cézan-ne, melhor é o relato de uma conversa com Émile Bernard: “Era uma inteligência bastante medíocre e um amigo detestável; só via a si mesmo; foi assim que A obra, onde ele pretendeu me pintar, não passa de uma assustadora deformação, uma mentira dedicada à sua própria glória”. Cf. P. Michael Doran (org.) , Conversations avec Cézanne, Paris, Macula, 1978, ID. 56. De qualquer modo, Zola, sua precoce popularidade e consequente prestígio, bem como sua adesão na maturidade à arte convencional e conformista dos acadêmicos, foram efetivamente responsáveis por agravar a visão errônea de seus contemporâneos sobre a obra de Cézanne. Cf. Lionello Venturi, Cézanne, Genebra, Skira, 1978, pp. 25-8.
  7. Esta primeira grande exposição é devida à pressão dos conselhos de Pissarro a Vollard. Antes, em 1863, Cézanne havia participado do Salão dos Recusados; em 1874, participa da primeira exposição dos impressionistas, com três telas; em 1877, na terceira exposição dos impressionistas, com treze telas e três aquarelas; em 1882, consegue ter admitido, no Salão, um retrato. Está presente, ainda, em 1887, na exposição do Grupo dos XX, em Bruxelas, e, em 1889, na Exposição Decenal, em Paris. Durante toda a sua vida, participou de dezesseis exposições coletivas e realizou três individuais, todas estas últimas com o mar-chand Ambroise Vollard. Cf. Maurice Rayhal, Cézanne, Genebra, Skira, 1954, p. 129. Na lista apresentada na publicação do ensaio de Venturi não constam as participações no Salão dos Recusados de 1863, nem no Salão de Belas-Artes de 1882, embora essa participação seja mencionada no corpo do texto, reduzindo, assim, o número de exposições coletivas que teria participado em vida de dezesseis para catorze. Cf. Lionello Venturi, Cézanne, pp. 35 e 169. É, portanto, exagerada a afirmação de Reff que “à exposição de Vollard seguiu-se um número crescente de outras”. Cf. Theodore Reff, “Painting and theory in the Final decade”, em Cézanne — the late work, William Rubin (org.), Nova York, Moma, 1977,P.14.
  8. Na verdade, Cézanne e os impressionistas, “aos olhos do grande público, só se tornarão um ponto de referência estável do gosto pela pintura ‘moderna’ depois da guerra de 1914-8, ou mesmo depois das grandes exposições dos anos 1930-9”. Cf. Pierre Francastel, Histoire de la peinture française, vol. II — De David a Picasso, Paris, Gonthier, p. 153. A melhor avaliação de um crítico de sua geração só viria em 1927, 21 anos depois de sua morte, com a publicação do “Cézanne: a study of his development” de Roger Fry, como lembra Reff. Cf. T. Reff, “Painting and theory”, em Cézanne the late work, p. 13.
  9. Gustave Geffroy, crítico e escritor, 1855-1926, amigo de Monet que havia escrito favoravelmente um artigo sobre Cézanne, cerca de um ano antes; autor de Monet, sua vida, sua obra, publicado em 1922.
  10. Cézanne, Correspondance, pp. 246 e 292.
  11. Idem, ibidem, p. 256.
  12. Cit. por P.-Michael Doran (org.), Conversations, p. 183.
  13. Maurice Merleau-Ponty, “A dúvida de Cézanne”, trad. Nelson Alfredo Aguilar, em Merleau-Ponty, Marilena de Souza Chaui (org.), São Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 120, Col. Os Pensadores. Idem, “Le doute de Cézanne” em Sens et non-sens, Paris, Nagel, 1966, p. 30. A primeira edição de Sens et non-sens é de 1948.
  14. A propósito é interessante notar como um crítico e historiador da arte como Meyer Schapiro irá comentar outra incursão metafísica no mundo da arte, o conhecido ensaio de abertura dos Holzwege de Heidegger, a Origem da obra de arte, tomando como exemplo a seguinte passagem de seu comentário: “O mal-entendido não resulta somente dessa projeção da produção de imagens pessoais que se substitui à observação atenta da obra de arte. Supondo que Heidegger viu uma tela representando realmente, segundo os termos de sua descrição, ‘sapatos de camponeses’, nos enganaríamos estimando que o aspecto de verdade que ele descobria nesse quadro — o ser do calçado — fosse alguma coisa que se exprimiria lá de uma vez por todas, alguma coisa que só a visão da pintura poderia nos deixar perceber. Na descrição imaginativa que Heidegger faz dos sapatos de Van Gogh, não vejo nada que não pudesse ser sugerido pela visão de um verdadeiro par de sapatos de camponês. Ainda que ele atribua à arte o poder de dar à representação de um par de sapatos esse aspecto sugestivo onde seu ser se revela — de fato, a ‘essência universal das coisas’, ‘o mundo e a terra no seu jogo recíproco’ —, essa noção de um poder metafísico da arte permanece aqui puramente teórico. O exemplo que ele invoca e interpreta com tanto vigor e convicção não permite que ele o sustente solidamente”. M. Schapiro, “L’objet personnel, sujet de nature morte. À propos d’une notation de Heidegger sur Van Gogh”, em Style, artiste et société, ensaios traduzidos para o francês por Blaise Allan et alii, Paris, Gallimard, 1982, p. 354.
  15. Merleau-Ponty, A dúvida de Cézanne, trad. brasileira, p. 117; ed. original, pp. 23-4.
  16. Idem, ibidem, trad. brasileira, pp. 120-1; ed. original, p. 32.
  17. Idem, ibidem, trad. brasileira, pp. 118-9; ed. original, p. 28.
  18. Joachim Gasquet, em P.-Michael Doran (org.), Conversations, p. 121.
  19. Para uma visão mais detalhada do problema ver William Innes Homes, Seurat and the science of painting, Cambridge, Massachusetts, The MIT Press, 1964. Um bom exemplo dessa desão cega encontra-se nas explicações de Pissarro ao assustado Durant-Ruel diante da sua súbita mudança de estilo, ainda no início de 1886, quando nem mesmo La grande jatte havia sido concluída: o que ele queria era “procurar uma síntese moderna em métodos baseados na ciência, isto é, baseada na teoria das cores de Chevreul, nos experimentos de Maxwell e nas medições de O. N. Rood; para substituir a mistura de pigmentos pela mistura óptica, o que significa decompor tons nos seus próprios elementos constitutivos, porque a mistura óptica provoca luminosidades mais intensas que aquelas criadas pela mistura de pigmentos”. E o experiente e maduro impressionista — então com 56 anos — atribuía o crédito ao jovem pintor de 27 anos: “Foi o sr. Seurat, um artista de grande mérito, quem primeiro concebeu a ideia e aplicou a teoria científica depois de realizados seus estudos. Eu simplesmente o segui…”. Cf. J. Rewald, The history of impressionism, pp. 512 e 514.
  20. Cézanne, Correspondance, carta à srta. Paule Conil, 1/9/1902, p. 290.
  21. P.-Michael Doran (org.), Conversations, p. 116.
  22. Manlio Brusatin, Storia dei colori, Turim, Einaudi, 1983, pp. 47-8 (citação a partir de tradução inédita em língua portuguesa de Vera Helena Schmuziger): “Ao mesmo tempo, a cidade medieval usa e produz a cor através de uma quantidade de técnicas materiais, privilegiando — já se disse — a aparição e a representação do azul e do ouro, cores que exaltam as raízes mais nobres da luz, apesar de Bacon assumir fundalmentalmente as necessidades contaminantes da matéria como necessárias às leis da cor. Estas ideias não prevalecerão entre a intelectualidade do século XV, onde a prioridade da forma sobre a cor identificável, não na sua matéria, mas na sua revelação, fala do mecanismo que governa realmente a cor, inscrevendo-a dentro dos contornos definidos, em algo que a precede e a sustenta: a chamada antigraphice (uma arte que ‘está antes’), isto é, o desenho. Tudo isto acontece na espera de disciplina cética e independente; a perspectiva natural (óptica) ou a perspectiva artificial ou artística, que fixasse a trajetória dos raios visuais e inscrevesse, dentro deste circuito, o mundo variado, mas graciosamente secundário, das cores, no qual, uma vez suprimido o sujeito sensível e perceptivo (esta também será a opinião de Galileu), não resta nenhum princípio substancial. O fenômeno desaparece e não se pode examiná-lo independentemente da sua aparição fugida, revelando-se assim acessório e secundário. A oposição, que se tornou um fácil lugar — comum, entre o desenho e a cor, entre a escola florentina e a veneziana, é na realidade substancial; pelo menos tanto quanto, no final do século XVI, o eram as observações dos astros, feitas através da luneta, que colocavam dúvidas concretas sobre o caráter real ou puramente artificial e aparente dos fenômenos. O desenho do século XV, através da ciência geométrica da perspectiva, colocava nas artes de reprodução a conduta da sabedoria e da verdade, enquanto que o mundo das cores se compunha ainda segundo um acordo dos elementos, sedutor e aparente. Mas não eram todas as artes pertencentes ao mundo do artifício, a pintura não era a macaca (Brusatin usa em italiano scimmia, traduzindo o latim simia naturae na acepção de um Cícero, “macaco(a)”, e não na de um Plauto, Imitação”.) da natureza’ (simia naturae) e as operações plásticas não são na realidade todas elas fantásticas e sedutoras? Esta era, ainda, a dissidência subterrânea, felizmente não resolvida, junto com um primado de soberania histórica das “artes do desenho” .diante de uma produção descontínua da cor, desprovida de regras seguras e submetida ao destino incerto da vida e da fortuna do artista”.
  23. Giulio Carlo Argan, Storia dell’arte italiana, vol. 3, Florença, Sansoni, 1970, p. 375.
  24. L. Venturi, Cézanne, p. 30: “Era expressionismo antes de seu tempo, mais poderoso que o expressionismo que emergiu quarenta anos depois na Alemanha”.
  25. M. Schapiro, Paul Cézanne, 2 ed. rev., Abrams, Nova York, 1962, p. 20: “Observamos que assim como ele frequentemente seleciona temas de pouca atração, representa objetos no espaço de maneira a reduzir a puxada da perspectiva para o horizonte; o mundo distante é trazido mais perto do olho, mas as coisas mais próximas de nós na paisagem são retratadas com poucos detalhes — existe pouca diferença entre as texturas dos objetos próximos e distantes, como se todos estivessem na mesma distância. A esta atitude descompro-missada correspondem também aquelas distorções e quebras que reduzem a confiança nos eixos dominantes e causam uma expressão mais fria”. Cabe lembrar que o que Schapiro chama de “atitude descompromissada” é um ato de radicalidade tal que era visto pelos contemporâneos de Cézanne como incapacidade e incompetência. É bem mais do que simples des-compromisso com as velhas regras, é a reinvenção moderna do espaço pictórico.
  26. Idem, ibidem, p. 90.
  27. Poder-se-ia chamar isto de “estrutura”, mas desde que essa não possa ser objeto de generalização e só se manifeste em cada trabalho individualmente.
  28. Declaração a Émile Bernard, citada por Lawrence Gowing, “The logic of organized sensations” em Cézanne — the late work, W. Rubin (org.), p. 63.
  29. P.-M. Doran (org.), Conversations, p. 163. Publicado originalmente no Mercure de France, 1/7/1921, pp. 372-97, sob o título “Une conversation avec Cézanne”. A figura do cubo seria, no entanto, uma intromissão abusiva de Bernard que se contradiz em outro texto e, no entanto, esta referência será usada como exemplo até por Malevitch no seu Novos sistemas da arte, 1919. Cf, idem, ibidem, p. 215, n. 5.
  30. L. Venturi, Cézanne, p. 118.
  31. Publicado originalmente no número de julho de 1904 da revista L’Occident. Cf. P.-M. Doran (org.), Conversations, pp. 30-42.
  32. Idem, ibidem, p. 36.
  33. Cézanne, Correspondance, p. 300.
  34. T. Reff, “Painting and theory”, em Cézanne — the late work, p. 46.
  35. P.-M. Doran, Conversations, p. 188, n. 2.
  36. Comentando o mesmo trecho da carta a Émile Bernard, Reff retira conclusões diferentes de Doran que, independente do valor que atribuamos às palavras de um pintor, se encontram, sem dúvida, mais em acordo com os resultados alcançados por Cézanne em suas obras do último período. Reff assume literalmente o que é dito por Cézanne: “As linhas paralelas ao horizonte dão a extensão […] As linhas perpendiculares a este horizonte dão a profundidade” e, ao contrário de Doran, acha que é um erro reportar as paralelas à ortogonalidade da perspectiva, devendo-se considerá-las como “verticais tanto na profundidade quanto na superfície” e continua: “e essa leitura é confirmada por um comentário de Cézanne relatado pelo poeta Jean Royère: `Na Escola de Belas-Artes de fato aprendem-se as regras da perspectiva, mas nunca compreenderam que a profundidade é alcançada pela justaposição de planos verticais e horizontais, e isto é, de fato, a perspectiva’ “. T. Reff, “Painting and theory”, em Cézanne — the late work, p. 46. A “engenhosa” significação que Reff retira desse trecho nada mais é do que inteligentemente relacionar o texto literal com obras do período verificando como a profundidade era alcançada, em vez de “ver” nas paralelas perpendiculares ao horizonte a ortogonalidade da perspectiva, uma vez que estas no espaço “absoluto” seriam efetivamente perpendiculares, como fez Doran.
  37. A edição crítica das Conversas com Cézanne, organizada por Doran, é um trabalho indispensável a qualquer estudo contemporâneo sobre Cézanne, pela sua elevada qualidade e acuidade de ponto de vista manifestadas por suas notas e pelos critérios de seleção. Mas o bibliotecário do Courtauld Institute subestima as frequentes advertências de Cézanne sobre os cuidados que o pintor deve ter diante das palavras: “Ele [o artista] deve temer o espírito literato, que faz frequentemente o pintor se afastar de seu verdadeiro caminho — o estudo concreto da natureza — para se perder durante um tempo excessivo em especulações intangíveis”. Cf. Cézanne, Correspondance, pp. 301-2. Carta a Émile Bernard, 12/5/1904.
  38. A sexta “opinião” a que se refere Gowing diz: “Ler a natureza é vê-la sob o véu da interpretação através de manchas coloridas se sucedendo segundo uma lei da harmonia. Essas grandes tintas se analisam, assim, pelas modulações. Pintar é registrar suas sensações coloridas”. P.-M. Doran (org.), Conversations, p. 36.
  39. L. Gowing, “The bye of…”, em Cézanne —the late work, p. 63.
  40. Comentando a falta de inteligência de Zola para compreender a obra de Cézanne, Lionello Venturi liquida a questão: “Qualquer que tenha sido o pensamento dos poetas de todas as épocas, a luta do artista contra a natureza nunca existiu; ou melhor, existe nas visões que eles exprimem, nas suas palavras (também naquelas de Cézanne), mas não na sua arte. Arte e natureza correm como linhas paralelas e nunca podem se encontrar”. L. Venturi, Cézanne, p. 28.
  41. Cf. Gisela Striker, “Sceptical strategies” em Doubt and dogmatism, Sèhofelt et alii (org.), Oxford, Clarendon Press, 1980, pp. 54-83.

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