2005

A ficção da realidade brasileira

por Heloisa Buarque de HollandaMarcos Augusto Gonçalves

Resumo

Apesar do AI-5, a chegada da década de 1970 gerou, no âmbito das manifestações culturais, muitos prognósticos interessantes. Nisso, a literatura talvez tenha sido a mais subestimada, pois o que houve, para além dos esperados nacionalismo e experimentalismo, foi um número surpreendente de novos autores que, por baixo ou por cima da terra, comandaram correntes e contracorrentes.

Em primeiro lugar, há que se considerar o Brasil como um país capitalista complexo, integrado ao mercado mundial, pois isso virá a influenciar as criações artísticas e intelectuais, o que se fará sentir sobretudo no cinema e na música. Aquele precisará lutar para ganhar mercado junto às produções estrangeiras. Esta priorizará conteúdos de caráter político. São estratégias simbólicas.

E a literatura? Como se teria comportado em meio à repressão, coerção e casual aliança com o Estado? Teria ela, porque “menos relevante” diante das artes modernas, conseguido escapar do cerco?

Logo em 1971, dois autores já clássicos, Antônio Callado e Érico Veríssimo, parecem acenar positivamente com os romances “Bar D. Juan”, que narra histórias em torno das diversas tendências da esquerda da época, e “Incidente em Antares”, que contempla antecedentes e consequências da então nova ordem autoritária por que passa o país.

Além do romance político, emerge no Brasil de então o memorialismo. Haveria nisso alguma relação com o Estado repressor?

Fato é que há uma leva considerável – notável até – de livros do gênero na década. No mais, prepondera a narrativa em primeira pessoa e o que se poderia chamar de escrita da paixão ou o que, aos olhos de Antonio Candido, é uma “espécie de teimosia do mundo referencial” e, nela, “a permanência desse desejo de ver a literatura representando o mundo em que se vive”. Notadamente: “O nariz do morto” (de Antonio Carlos Villaça), “Baú de ossos”, “Balão cativo” (ambos de Pedro Nava) e “Solo de clarinete” (do já mencionado Érico Veríssimo). Com “O afogado” e “Açougue das almas” (Abel Silva), surge, enfim, a literatura de sintoma, ou seja, a narrativa biográfica que permite entrever sua matéria-prima, que são diários e anotações, nos quais normalmente se registram dúvidas, perplexidades, asfixias de um tempo de espera.

Mas há mais.

Enquanto na televisão a nostalgia dava o tom, em meio à explosão da literatura pasteurizada para a classe média, dos “pocket books” do gênero bangue-bangue, espionagem e romance adocicado – boa parte traduzida –, crescem as vendas dos livros de “não-escritores”, ou seja, de sucessos alavancados pelo estrelato, de que se destacam Ibrahim Sued, Marisa Raja Gabaglia, Denner e Chico Anysio, ironizados por Waly Salomão em “Me segura qu’eu vou dar um troço”. Trata-se de um “livro moderno, ou seja, feito obedecendo a uma demanda de consumo de personalidades, a narração das experiências pessoais – duma singularidade sintomática, não ensimesmada – que se inclui como aproveitamento do mercado de ‘Minha vida daria um romance’ ou ‘Diário de Anne Frank’, ou ‘Meu tipo inesquecível’, ou ainda como meu capítulo de contribuição voluntária para o volume ‘Who is who in Brazil’. Uma imagem à venda: comprem o macarrão do Salomão, a salada do Salomão’”. Nesse sentido, não menos importante foram Torquato Neto, Rogério Duarte, Jorge Mautner, José Agrippino…

Tão experimentais quanto foram “Urubu-rei” e “Os morcegos estão comendo os mamões maduros”, de Gramiro de Mattos.

A crítica literária também se mostra bem ativa então, sobretudo a escola paulista, que, depois de Antonio Candido, é bem representada por Davi Arrigucci Jr., Roberto Schwarz, João Luiz Lafetá, Walnice Nogueira Galvão, Antônio Carlos de Brito e Carlos Voigt. O Rio é, por sua vez, representado por Silvano Santiago, Luís Costa Lima, Affonso Romano de Sant’Anna e Gilberto Mendonça Telles. Do Pará, Benedito Nunes impunha-se por meio de artigos, ensaios e livros brilhantes.

Como o Estado já não pode mais apresentar à sociedade brasileira apenas sua dimensão coercitiva, há, durante a abertura “lenta, gradual e segura”, algum incentivo cultural. E é, supreendentemente, a literatura que se destaca nesse momento. Em meio à promoção de diversos concursos literários, da integração das editoras no meio empresarial e da proliferação de revistas literárias sofisticadas como “Escrita”, “Ficção”, “José” e “Anima”, surge a geração pós-75. Não sem gerar debates acirrados.

Esteve no centro de alguns deles Jorge Amado. A partir dele, por exemplo, começou-se a pensar sobre o escritor aderido ou não ao Estado, o parâmetro de produção cultural e o que deveria ser a “linguagem popular”.

Representante não só do âmago do homem baiano como do brasileiro, Jorge Amado foi inegavelmente um dos narradores mais competentes e seguros da sua geração. Um grande escritor profissional, que, além do mais, desafia a impostação elitista da literatura nacional. Assim também foi Nelson Rodrigues que, a partir do regionalismo suburbano carioca, atinge público indiscriminado. Amplamente adaptados para o cinema, ambos começam a relacionar-se de maneira nova com o mercado editorial. Passa, então, o escritor a empenhar-se na sua profissionalização, por meio inclusive das atividades sindicais e da questão dos direitos autorais.

Jorge Amado não é, contudo, uma unanimidade. Há mesmo críticos que associam sua obra a moldes que se verificam nos “best-sellers” e a traços populistas.

Com isso, torna-se fundamental para a literatura descobrir se é realmente preciso romper com tais características. Como se deve dar a relação do escritor com o povo? – eis o imperativo por trás dos debates brevemente apresentados.

Nesse sentido, o caso João Antonio é especial, pois ele não só tematiza o povo como critica as “posições beletristas”. Por isso escreve sobre a “luta com a vida brasileira” ou a “literatura que se rala nos fatos”. Isso com o objetivo de melhorar a sociedade. “Ou a briga é essa, ou não há briga”.

É tal postura que gera a figura do escritor marginal. Ele que conhece a dificuldade econômica, está à parte dos “circuitos de decisão” e, por isso, exerce sua própria inadequação. A identidade com o povo é, portanto, inegável.

No caso em questão, João Antônio alcança excelente nível literário e é muito vendido. O que em sua obra talvez seja questionável é a tentativa de alcançar uma objetividade inexistente em arte. Ela a que se propôs também José Louzeiro, sob a forma do “romance-reportagem”.

Num momento em que o jornal encontrava-se especialmente cerceado em sua função de informar, noticiar e, sobretudo, comentar, cresce o desejo do testemunho, do documento, do relato, a que dá vazão, mais uma vez, a literatura. Eis, pois, o paradoxo: entre a pseudo-objetividade jornalística e a intervenção subjetiva que dotaria de valor literário o que se escreve, como escrever?

Ora, se o romance requer algum “calor humano”, o relato, tal como anunciado, por mais que se agarre à “verdade dos fatos”, não consegue se furtar ao “pathos” inerente a seu objeto. Assim, o que haveria – e houve – foi um jornalismo “sensibilizado” e, o que é mais importante, desvinculado do jornal enquanto negócio, opressivo e compromissado. A questão passa, então, do povo à verdade. Esta que atravessa a própria circunstância da notícia tendo em vista questões maiores e mais graves (e mais censuradas). A técnica jornalística é ideal. A distorção é causada pela ótica burguesa da realidade social e econômica do país.

É nisso que acredita Louzeiro, pelo menos. É assim que trata de Lúcio Flávio, Aracelli ou dos amores da pantera. O gênero ainda faria sucesso e encontraria seguidores, tais como Percival de Souza, Hamilton Almeida Filho, Fernando Morais, Inácio de Loyolla, Carlos Heitor Cony e, mais uma vez, Antonio Callado.

Composto de contos que se entrelaçam e desdobram, em meio a montagens de citações, notícias jornalísticas, discursos políticos, manifestos, textos-recortes, o romance “A festa”, de Ivan Ângelo, problematiza o gênero. Interessante notar sua proximidade com o formato cinematográfico. É por tudo isso que “A festa”, ao evidenciar a notícia como uma faceta do real, desautoriza o que se entende por objetividade, de modo a espelhar “de dentro” os impasses da experiência histórica próxima.

Multifacetados também são os romances “Armadilha para Lamartine”, de Carlos Sussekind, e “Quatro olhos”, de Renato Pompeu. Neles, há, pelo menos, dois conteúdos: a loucura como forma de transgressão das ordens institucional e social ou como liberadora de um discurso fragmentário que, de certa forma, verifica e critica o modelo racional do pensamento ocidental burguês. Note-se que datam de então os últimos trabalhos de Torquato Netto reunidos no livro “Os últimos dias de Paupéria”.

“Armadilha…” integra dois diários: o de Espártaco M, pai de uma família de classe média intelectualizada, e o de seu filho, Lamartine, que passa uma temporada num hospital psiquiátrico. O contexto, que é o do jogo de poderes intrafamiliar, amplia-se com os sábios e irônicos comentários de Espártaco M sobre diversos temas, que vão da beleza de determinada atriz norte-americana até a política do país, passando pela instituição matrimonial. Assim, a narrativa equilibra-se entre o já ambíguo pertencimento da família à determinada norma e a recusa dela por parte de Lamartine. Trata-se também de um livro de vazios e descontinuidades, de modo a facultar ao leitor parte do sentido dado a ele.

Como em “Armadilha…”, há em “Quatro olhos” um hospital psiquiátrico e dois registros de escrita, já que ele mescla tanto a história da loucura de um narrador que tenta reescrever um livro perdido quanto a história deste. Daí a seguinte passagem: “Não sei se falo da vida ou de coisas que já escrevi ou mesmo se relato a memória ou estou inventando no momento”.

A geração pós-75 é causa e consequência da proliferação de editoras que se vem observando desde então até o momento, o que implica renovação, sobretudo quando se rompe com a prevalência do Rio de Janeiro, de São Paulo e Minas Gerais, estado de onde escrevem ainda Roberto Drummond e Wander Piroli. De outras regiões do país, merecem menção Moacyr Scliar, Tânia Faillace, Benedicto Monteiro, Juarez Barroso e Gilmar Carvalho.


Para Ana Cristina C., com o maior carinho

Para uma década inaugurada 13 meses depois do AI-5, a sondagem dos prognósticos e profecias em relação às perspectivas do campo da produção cultural é fascinante. Intelectuais, ciganas, jornalistas, futurólogos, cientistas e astrólogos se empenham nas mais insuspeitas e, ao mesmo tempo, sintomáticas previsões.

Em fevereiro de 1970, na revista Visão, o jornalista Paulo Francis arriscava, para a década que se abria, alguns palpites. O artigo, chamado “Um balaio de nacionalismo e experimentalismo”, fazia

referência às duas tendências básicas e antagônicas das artes brasileiras nos anos 60 e mencionava uma terceira, em cujo balaio caberiam ambas, e que tenderia a predominar nos próximos anos. Seria superado portanto, segundo Paulo Francis, o “extraordinário reacionarismo” das correntes nacionalistas e o “estéril alheamento face à sensibilidade nacional” das experiências vanguardistas.

Esse novo balaio, na certa mais lógico e mais realista, seria ainda sensível às contingências de modernização e universalização exigidas num país onde “o transistor acabou com o folclore”.

Assim, a música popular, o cinema e o teatro — áreas privilegiadas dessa renovação e as que apresentam “real relevância social” — deveriam permanecer na vanguarda das artes brasileiras, atualizando definitivamente nos anos 70 as transformações que começaram a empreender nos últimos anos da década de 60.

Não parecerá, portanto, surpreendente verificar que, em suas previsões, Paulo Francis tenha reservado para a literatura um lugar um tanto apagado. Diante da extrema vitalidade e do alcance social do cinema, da música e do teatro, a literatura parece irremediavelmente defasada, empoeirada, velha, incapaz de problematizar as contradições presentes, de renovar-se e estabelecer-se num circuito mais amplo. Diz Paulo Francis:

Carlos Drummond de Andrade e João Cabral, por exemplo, são grandes poetas, mas cobrem um terreno já repisado ad nauseam desde a revolução simbolista e o que se chama um tanto vagamente de modernismo. No romance, o realismo permanece dominante. Os melhores prosadores (inclusive contistas), Dalton Trevisan ou Clarice Lispector — para ficarmos em duas variantes —, não atingiram o nível revolucionário de James Joyce, em 1910. (…) É perfeitamente possível produzir um bom conto realista, quando se dispõe do vigor inventivo de Dalton ou Clarice, mas eles não servem de guia à imaginação dos anos 70, do complexo industrial-tecnológico que molda a sociedade do futuro.

Mesmo a obra de Guimarães Rosa não chegaria a constituir um referencial prospectivo, sendo mesmo “… velha quando a despimos dos magníficos ornamentos verbais, descrevendo aquela vida limitada por uma natureza implacável que reduz o homem a uma medida linear, a uma modesta composição de emoções básicas, sem muita relevância para o complexo ser humano da civilização industrial que já desponta nas metrópoles brasileiras”.

Descartando, apesar de “seu extraordinário trabalho de sapa do academicismo” (sic), a permanência da vanguarda concretista, resta para Francis um único sinal de vitalidade na literatura, o romance Quarup de Antonio Callado, que tentaria, “num clima alucinatório mas sem perda da substância social”, superar as dificuldades do realismo em apreender as contradições das sociedades capitalistas contemporâneas, apontando “um rumo atraente aos escritores de 70”.

Muito pouco, como se vê, haveria de se esperar da literatura para esses anos 70. Prognóstico desmentido pela evidência que nos trouxe surpresa na área. Surge um número surpreendente de novos autores, ressurgem outros tantos, caracteriza-se o boom da ficção, concretizam-se alternativas por baixo e por cima da terra, correntes e contracorrentes. Assiste-se às tendências do nacionalismo e do populismo ressurgindo com forte apelo, e o mercado editorial ensaia sua maturidade comercial. Sobretudo, a literatura, mais do que na década anterior, atrai as atenções e inscreve-se significativamente na atualidade do debate cultural.

E é bom lembrar que o próprio Paulo Francis estreia como romancista, exatamente nesta década, com dois best-sellers: Cabeça de papel (1977) e Cabeça de negro (1978).

As questões que a modernização coloca para a produção cultural, certamente, estão na base do cálculo-prognóstico de balaio proposto por Paulo Francis. Mas de que depende esse balaio? Que processos agenciam essa superfície múltipla, contraditória, caótica que parece expressar a nova realidade cultural brasileira?

De fato, ao expressar uma nova composição de forças internas e um novo tipo de articulação do capitalismo brasileiro com o mercado mundial, o regime pós-64 irá trazer para o processo cultural uma série de implicações. A busca da integração com a produção industrial moderna, a transferência de capitais externos, a importação de novas técnicas e esquemas de organização produtiva vão exigir um reaparelhamento da produção cultural. Novas exigências de mercado, novas exigências técnicas. Por outro lado e por circunstâncias particulares, a forma de dominação política que acompanha essas transformações no Brasil favorece as interferências do Estado no processo cultural. Interferências nada desprezíveis que poderão ser notadas nos caminhos contraditórios do agenciamento da cultura e no rigoroso controle político da veiculação de mensagens. O que certamente passa a exigir da intelectualidade uma série de redefinições, recolocando em novas bases o debate acerca de suas funções e de seu lugar social, a composição de novas alianças, o estabelecimento de novas táticas.

Essa trama complexa de fatores sociais, políticos e econômicos terá, certamente, uma razoável influência nas prioridades estabelecidas pelos artistas e intelectuais com relação aos canais privilegiados para sua atuação e mesmo na opção por determinados esquemas formais e de linguagem.

Assim, a produção de filmes empenhados na conquista de mercado — ainda que se pague o ônus de simplificações políticas e formais — pode ser “tática” frente à necessidade primeira de combate às multinacionais da área; a divulgação de conteúdos “políticos” na música, ou na poesia, pode ser prioritária em relação às preocupações de linguagem, ou ainda a hierarquização de temas a serem tratados pela ficção ou mesmo pelo jornalismo levam em conta determinações “táticas”.

E há quem fale num já famoso “vazio cultural”. Há pouco, “corrigindo” Paulo Francis, descrevemos uma movimentação, na área literária, sem dúvida animadora.

Como teria se comportado a literatura nesse quadro perigoso de repressão, coerção e sedutoras alianças com o Estado?

Ou será que exatamente por ser de “menor relevância social” em relação às artes “modernas” e industriais tenha conseguido, de alguma maneira, escapar do cerco?

Se a proliferação de novos autores e o sensível aumento do movimento editorial não é por si só prova da vitalidade da literatura nesses anos 70, com o que concordamos de certa forma, tentaremos daqui por diante investigar como e quando ela expressa, nas opções de linguagem, produção e mercado, sintomas significativos de um debate vivo dentro do campo cultural.

Opção, evidentemente, que não deixa de ser “tática”.

VAZIO CULTURAL: AME-O OU DEIXE-O

A década de 70 tem início numa conjuntura de franco fechamento político. As tentativas de resistência à consolidação do regime de 64, que arregimentam setores radicalizados da classe média, especialmente a massa estudantil, são desarticuladas pelo Estado, que, com a edição do AI-5, em dezembro de 1968, não deixa dúvidas sobre sua disposição de assegurar a “paz social”. A intervenção nos movimentos contestatórios, a extinção das representações estudantis, os decretos 477 e 228, as demissões e aposentadorias na universidade, a censura prévia na imprensa, livros e espetáculos enfeixam a implantação do autoritarismo político preparando o país para ingressar numa nova era, sob o signo do binômio segurança/desenvolvimento. Aproveitando-se de uma conjuntura internacional favorável e assegurando o aprofundamento dos laços de dependência com o capital internacional, o Estado irá promover o clima eufórico e ufanista do “milagre brasileiro”.

A modernização, levada a toque de caixa, parece envolver o país numa “atmosfera competente”. A tecnoburocracia desenvolve-se, sofisticando seus métodos e seu discurso, agora povoado de siglas, fórmulas, índices e expressões retiradas do eficiente vocabulário técnico-administrativo norte-americano. As comunicações são modernizadas e a indústria cultural se desenvolve no sentido do mercado da classe média. Proliferam as enciclopédias em fascículos, tipo Abril e congêneres, as coleções as mais variadas, do mundo animal à filosofia grega, da Bíblia às revistas especializadas. A música popular assiste à emergência de marchinhas exortativas e o sambão joia faz fundo musical para as novas churrascarias. As artes plásticas tornam-se um rentável negócio, concorrendo com a bolsa de valores, no teatro as grandes produções empresariais dominam a cena aberta, e o cinema começa a colocar-se a necessidade de assumir, definitivamente, sua maturidade industrial.

Mas é a TV que nesse momento irá melhor expressar o clima do “milagre”. Trabalhando com a técnica mais recente, a TV constrói a imagem de um país moderno, um Brasil Grande, de obras monumentais, signos de uma potência emergente. A atualização de padrões culturais internacionalizados dita novos hábitos de consumo e comportamento para a burguesia e a classe média.

Por sua vez, a intelectualidade vive, nesse início de década, uma situação difícil e nova. Se o governo Costa e Silva dirigiu a ação de caráter repressivo às organizações populares e seus militantes, após as manifestações de 1968 essa ação atinge também setores da classe média. O contato com a polícia, a possibilidade da prisão, os maus tratos e a tortura, socialmente mais próximos das classes populares, passam a rondar o cotidiano e o imaginário dos filhos radicalizados das elites, estudantes, intelectuais e produtores de cultura.

A nova situação será experimentada sob formas diversas, tendendo a uma certa desarticulação no campo intelectual e das esquerdas, onde passa a ter lugar uma série de redefinições num clima mais ou menos geral de perplexidade. Se, por um lado, a situação política do país é desanimadora, por outro, o próprio discurso e a prática das oposições parecem vazios e desarticulados.

A insatisfação com as alternativas oferecidas pelo sistema e os desdobramentos de um processo de revisão de alguns pressupostos da militância política vão ser expressos em formas fragmentadas e minoritárias de radicalização da pequena-burguesia — o desbunde e a luta armada. Essas alternativas, sem dúvida diversas, não deixam, contudo, de apresentar elementos comuns e bastante significativos de um momento de desagregação, de falta de perspectivas, e de uma ansiosa busca de saídas. O privilégio da ação e os sentimentos colocados à frente das preocupações racionalizantes, a relativa descrença frente ao discurso intelectual e teórico, a valorização do corpo como lugar político são características gerais e comuns dessas experiências.

Na literatura, os novos autores parecem experimentar um certo tempo de espera, como que um recuo assustado, que, de resto, dura pouco. Mais tarde, em meados da década, o movimento editorial vai ser agitado pelo aparecimento de um número surpreendente de autores estreantes e pela presença efetiva no mercado de outros tantos já editados.

Por enquanto o quadro geral é constituído basicamente pela permanência de escritores já atuantes em anos anteriores.

Dalton Trevisan volta com Cemitério de elefantes (1964/70/72), Morte na praça (1964/70/72), Vampiro de Curitiba (1965/70), Desastres do amor (1968/70), A guerra conjugal (1969/70/73), e lança, em 1972, Rei da Terra. José J. Veiga reaparece com A hora dos ruminantes (1966/69/71/72), Os cavalinhos de Platiplanto (1959/70/72), A máquina extraviada (1968/74) e com o novo Sombras de reis barbudos (1972). Ainda dos autores que, como Dalton e J.J. Veiga, surgem nos anos 50 temos Autran Dourado com A barca dos homens (1961/71), Uma vida em segredo (1964/70/73), Ópera dos mortos (1967/71) e, lançados em 1970 e 72, O risco do bordado e Solidão, solitude. Da mesma “geração”, Osmã Lins surge com Avalovara (1973), Murilo Rubião com A casa do girassol vermelho e O pirotécnico Zacarias (1974) e Adonias Filho com Memórias de Lázaro (1952/61/70/74), Corpo vivo (1962/66/70/72/73/74), O forte (1965/69/73), Léguas da promissão (1968/70/72) e o novo Luanda beira Bahia (1971/74). Dos que estreiam nos anos 60, Samuel Rawet reaparece com Os sete sonhos (1967/71), Terreno de uma polegada quadrada (1969) e Viagem de Ashverus (1970), Luiz Vilela com Tarde da noite (1970), Nélida Piñon com Fundador (1969), A casa da paixão (1972/73), Sala de armas (1973) e Tebas do meu coração (1974), João Ubaldo Ribeiro com Sargento Getúlio (1971), Ligia Fagundes Telles com Antes do baile verde (1970) e As meninas (1973), Rubem Fonseca com Lúcia McCartney (1969), O Caso Morel (1973) e O homem de fevereiro a março (1973).

Para além da presença sempre estimulante de Clarice Lispector e da força total com que ataca Jorge Amado, um traço parece dominar o panorama literário do momento: o desenvolvimento e até mesmo a inflação do conto.

Se o conto nos havia dado as formas já exemplares de Dalton, J.J. Veiga e Rubem Fonseca — que prosseguem pela década com Rei da Terra, O pássaro de cinco asas, A faca no coração e Trombeta do anjo vingador (Dalton), Os pecados da tribo (J.J. Veiga) e Feliz Ano Novo e O cobrador (Rubem) — e os bons trabalhos de Samuel Rawet e Luiz Vilela, vai explodir mais tarde como sendo a “nova ficção” brasileira por excelência.

Essa explosão, contudo, não vem sem perigos. O saldo médio da enorme quantidade de concursos literários, revistas e publicações não chega a ser muito animador.

Se novos bons contistas foram revelados, outros caíram na armadilha da forma curta e “fácil” do conto, trazendo para a literatura algumas escoriações e ferimentos graves. Perigos de qualquer explosão.

TESTEMUNHO OCULAR DA HISTÓRIA

São dois escritores veteranos que vão lograr maior repercussão expressando as dificuldades desse novo momento. Antonio Callado e Erico Veríssimo ratificam suas preocupações com o relato ficcional voltado para a história e publicam, após Quarup e Sr. embaixador, romances marcantes da década de 60, Incidente em Antares e Bar D. Juan,ambos em 1971. A literatura assume, já nesse início de década, através de dois escritores “clássicos” do romance político recente, um papel que, se não chega a constituir uma novidade, vai estar reforçado e revalorizado pelas circunstâncias políticas e culturais do país: contar a história, testemunhar, colar-se ao real imediato.

Em Bar D. Juan, Antonio Callado volta-se para a cena política tematizando a desagregação da pequena burguesia radicalizada, a esquerda festiva, a opção pela guerrilha. Ao contrário do genial Quarup, que narra o trajeto de desalienação intelectual, onde a consciência trágica do Padre Nando assegura à narrativa uma forte coerência interna – mesmo dentro da própria experiência da contradição -, Bar D. Juan é um romance frágil. Frágil como o próprio projeto das guerrilhas que descreve. Aqui não há mais lugar para a figura unificadora do herói, mas para o painel menos orgânico de uma geração solapada e dividida entre problemas existenciais e o impulso de não abandonar o projeto da participação política. Projeto apaixonado, mas fracassado, dos heróis que frequentavam o quartel-general do Bar D. Juan. Chama a atenção no romance a construção menos coesa da narrativa, focalizando partes de projetos e de sentimentos, opção formal que se vai consolidar e amadurecer definitivamente em Reflexos do baile, agora configurando a construção em mosaico.

É importante observar aqui a sensibilidade de Callado para esse momento, onde é um fato a dificuldade de avaliação dos movimentos da história recente. Callado, mais uma vez, comparece pontualmente, como nosso grande romancista político, mesmo em se tratando de retratar uma geração e uma experiência que lhes são, no caso, exteriores. Por isso mesmo, o resultado de Bar D. Juan é curioso, inclusive como sintoma da avaliação das táticas da luta armada que setores da esquerda faziam nesse instante.

Por sua vez, Érico Veríssimo faz em Incidente em Antares uma vasta incursão pela história brasileira, dos antecedentes às consequências da nova ordem autoritária. Antares, cidade imaginária, palco de lutas entre famílias tradicionais, serve de álibi para o amplo painel que o romancista realiza do processo de industrialização e enfraquecimento das oligarquias rurais e das contradições da modernização na sociedade brasileira.

Condenados, por uma greve, a não serem enterrados, cadáveres (um músico avoado, uma prostituta, um bêbado, um sapateiro anarquista, um estudante assassinado e uma senhora da família dos Campolargos) erguem-se em praça pública e promovem uma série de denúncias, deixando às claras a hipocrisia que rege as relações políticas e pessoais dos responsáveis pelo poder e de figuras respeitáveis da localidade.

O incidente, profundamente marcante na vida de Antares, será com o decorrer dos tempos alvo de uma “operação-borracha” por parte dos poderosos, que desejam apagar da memória do município a desagradável e questionadora ocorrência.

Mais do que um romance de temática “oportuna”, Incidente em Antares traz em sua própria estrutura alguns traços típicos da ficção brasileira no decorrer da década. Inicialmente, a preocupação da história, o desejo de contar essa história, narrá-la em contraposição à verdade oficial, escamoteadora como a “operação-borracha” dos figurões de Antares.

É um romance, portanto, que se quer realista, verossímil, mas que ao mesmo tempo deseja aludir a algo fora dele, no caso, a realidade social do país. Esse impulso, prezando a verossimilhança realista, a observação, o documento, estará convivendo, contudo, com uma certa tendência à alusão e à transcendência, própria da alegoria.

Tanto o trabalho de Callado como o Incidente em Antares, que chamamos de “testemunho ocular da história”, apresentam esse duplo movimento, o compromisso com o realismo e o desejo de transcendência, de não naufragar na singularidade.

Essa questão, que é a questão mesma da dificuldade objetiva do realismo, e das formas de alusividade fragmentárias da alegoria, vai se desenvolver em níveis diferentes no correr da década. A respeito, recomenda-nos, com ênfase, o trabalho de Davi Arrigucci Jr. “Jornal, Realismo, Alegoria: o romance brasileiro recente”, em Achados e perdidos (S. Paulo, Ed. Polis, 1979).

É interessante notar que o desejo de alusividade vai estar ocorrendo em circunstâncias particularmente difíceis para a divulgação de mensagens políticas. Mesmo a literatura, que ocupa um lugar até certo ponto privilegiado diante da censura oficial, na razão direta de seu alcance social e das próprias características de seu consumo, individualizado e “caseiro”, não poderá deixar de experimentar as consequências das limitações que estão colocadas para a circulação de conteúdos políticos expressos de forma mais direta.

Essas limitações trazem, como um de seus efeitos, todo um taticismo que recodifica as linguagens, tornando-as um tanto esquivas, cheias de rodeios, deslocando as questões centrais para lugares periféricos, insinuando e aludindo. Trata-se de um procedimento mais ou menos generalizado que assume formas específicas no texto jornalístico, nas letras das canções, no filme, etc. e que chega em certos casos à própria comunicação cotidiana.

Uma questão um tanto complexa. Se as circunstâncias favorecem o desenvolvimento de traços alusivos e alegóricos, não há dúvida de que o problema dessa forma de representação não pode ser vinculado exclusivamente ao recurso de se burlar a censura com uma sucessão esperta de metáforas e alusões.

A “leitura das entrelinhas” fica na ponta da língua e pode ser feita de formas mais ou menos complexas. Pode ir da alusividade esquemática da Fazenda Modelo de Chico Buarque à releitura política do trabalho da ambiguidade em J.J. Veiga, ou à valorização oportuna dos traços realistas da violência em Rubem Fonseca.

Além do romance político, outra forma ligada ao relato testemunhal que se insinua definitivamente na ficção 70 é a memória. O narrador, em assumida primeira pessoa, volta-se para a reconstrução da sua história particular. Essa forma, a mais arcaica – e por que não atávica – da literatura perde e/ou ganha prestígio em determinados momentos históricos.

Seria precipitado atribuir de forma direta o sucesso do relato memorialista ao momento político coercitivo brasileiro. Entretanto, é inegável a constatação da emergência, nesta década, da primeira pessoa privilegiada, e até mesmo – principalmente na poesia – a emergência do que se poderia chamar de a escrita da paixão. A experiência vivida começa a ser valorizada em relação à racionalidade do romance de tese, e a penetração e o interesse suscitados por essas formas em segmentos de público bastante heterogêneos não podem ser minimizados.

Em 1975, no Ciclo de Debates Casa Grande, referindo-se à “invasão de nossa literatura pelo gênero da memória”, Antônio Cândido chama atenção para a presença de “uma espécie de teimosia do mundo referencial”. E nela, “a permanência desse desejo de ver a literatura representando o mundo em que vivemos”.

1970: Pontualmente inaugurando a década, Antonio Carlos Villaça nos surpreende com a publicação de O nariz do morto, autobiografia que mescla lucidez, ironia e a minúcia da reconstituição no labiríntico universo da memória. Dois anos mais tarde, surge Baú de ossos e logo em seguida Balão cativo, de Pedro Nava, contador nato, que traça palmo a palmo sua infância mineira: são observações, casos, circunstâncias, num modo poético e, sobretudo, extremamente pessoalizado. E sua leitura interessa a gregos e troianos. Com Solo de clarinete, Erico Vehssimo afirma empenhar-se agora – logo depois do sucesso de Incidente em Antares – na realização de “um documento humano, mais do que um documento histórico”. E confessa o desejo de confundir-se com o “menino que já foi”.

Há por todo lado como que uma necessidade de contar – e ao mesmo tempo de ouvir – que se desenvolve em formas cada vez mais próximas do testemunho: seja o memorialismo, seja o registro alegórico, ou quase, da história imediata.

Uma última lembrança, ainda dentro do assunto: em alguns casos, desenvolveu-se na produção estreante outra forma testemunhal de descrição: é o que se poderia chamar de literatura de sintoma. Em O afogado (1971), seguido por Açougue das almas (1973/76/79), Abel Silva dá um flagrante num certo tipo de sentimento característico da intelectualidade e dos artistas desse momento. O afogado revela-se sobretudo biográfico, deixando contudo entrever sua matéria-prima de diário e anotações na qual registra a dúvida, a perplexidade, a asfixia de um tempo de espera. Sobre Açougue das almas, nos diz Antonio Houaiss: “Há aqui uma ânsia, triste talvez ou mais precisamente atristada”, e deixa a pergunta no ar: “A quem filiá-lo?”

RIO DE JANEIR0,1972: ME SEGURA QU’EU VOU DAR UM TROÇO

Na vitrola, a voz de Gal Costa sugeria: “Oh, sim, eu estou tão cansado / Mas não pra dizer que eu não acredito mais em você / Com minhas calças vermelhas, meu casaco de general / cheio de anéis, vou descendo todas as ruas/ E vou tomar aquele velho navio…”

Na estante, de uma parte, o esforço de reconstituição pela via do romance histórico, alegórico, a reconstrução do memorialismo; de outro, o boom da literatura pasteurizada de classe média. Enquanto na moda, nos filmes e na TV a nostalgia dava o tom, a indústria cultural ensaiava um salto na trilha do mercado que capitalizava o clima em que se banhava o Brasil Grande. Desde pocket books do tipo bangue-bangue, espionagem, romance adocicado e tradução dos hits americanos até as belas publicações de mestres da música e da pintura. Na literatura, os editores investem, com sucesso, naquilo que se poderia chamar de literatura de “não escritores”. Ou seja, a literatura que vai a reboque de um star system criado principalmente pela TV e pela grande imprensa. Crescem em vendagem Ibrahim Sued, Marisa Raja Gabaglia, Denner e Chico Anysio: o luxo do vazio.

No meio do luxo, Waly Salomão, parceiro de Caetano, Gil e Macalé, define, na época do lançamento de seu Me segura qu’eu vou dar um troço, o autor brasileiro como “um fim de comédia”. Ironicamente sintonizado com o clima eufórico dos modernos slogans oficiais, interrompe o Me segura, como convém, para “um minuto de comercial”.

Me segura qu’eu vou dar um troço é um livro moderno; ou seja, feito obedecendo a uma demanda de consumo de personalidades, a narração das experiências pessoais — experiências duma singularidade sintomática, não ensimesmada — se inclui como aproveitamento do mercado de Minha vida daria um romance ou Diário de Anne Frank ou Meu tipo inesquecível ou ainda como meu capítulo de contribuição voluntária para o volume Who is who in Brazil. Uma imagem à venda: comprem o macarrão do Salomão, salada do Salomão.

Diz Waly, comentando seu lançamento:

Esse livro pouco significa para mim se não representar uma energia propulsora, se não apontar para a superação da asfixia do quadro circense em que nós estamos balançando na própria corda bamba.

E na orelha do volume: “Viva a Banda Viva do Brasil / Alimento para as novas gerações / Por ocasião das retrospectivas da Semana da Arte Moderna de 22 / Um livro Prospectivo / Incremento para as novas gerações.”

Um livro de montagem, um quebra-cabeça de flagrantes, uma tentativa de abrir frestas para o bárbaro e nosso, para os textos policiais, criminais, oficiais, para a escuta de orelha. É nesse inventário, tática “Pound Tsé Tung”, que Waly trata as questões da dependência reflexa, do populismo, do provincianismo, e da atualidade de um redimensionamento em termos da militância cultural e/ou política.

É um texto que se faz de e a partir de uma aguda percepção para a sensibilidade e agressividade do fragmento. A estética do fragmento aqui é, sem dúvida, uma alternativa para a construção alegórico-simbólica do romance político, e revela antes de tudo uma desconfiança radical quanto às possibilidades de descrição do real, relativizando ainda, e principalmente, o próprio discurso literário.

Num texto mais recente nos diz Waly:

... de modo que o que me fascinou na ideia de escrever falar recontar para esses estranhos olhos ouvidos alheios foi a tentação de desenvolver uma conversa fiada bambambam caixa de fósforo desenrolar uma BALELA nome próprio da fábula literária foi o gosto de armar uma armadilha sonora de abrir um lance pai filho espírito santo de fiar uma persona uma máscara provisória que não chega a colar na cara porque nada como um dia depois do outro e Alegoria Alegoria ALEGORIA ALEGORIA é uma coisa efêmera logo logo se esquece…

Waly, na literatura, junto com Torquato, Rogério Duarte, Jorge Mautner, Agripino (e vários outros artistas em áreas diferentes, como Ivan Cardoso, Hélio Oiticica etc. etc.) se identificam nesse momento com um tipo de intervenção anárquica dentro das aspirações culturais do Brasil Médici/Passarinho.

Um projeto cultural de desmontagem, mais “empenhado na campanha do que no resultado”, e que reflete a temperatura geral da juventude atuante cujo projeto global de revolução é agora sensibilizado pela atenção à noção de “revolução individual”. Waly “batalha” nos circuitos do sistema com um impulso libertário em muito próximo às experiências radicalizantes de contracultura no Brasil. A práxis de intervenção cultural pós-tropicalista, de certa maneira, absorvia as táticas que estavam sendo testadas na opção da outra face dessa juventude: aquela que aderiu à guerrilha urbana.

A publicação de Me segura é a grande novidade na produção jovem desse momento, desmentindo o que o consenso afirma como a apatia geral da juventude, a desarticulação de seu discurso etc. etc. ou, no falar dos censores, a alienação da geração AI-5.

Voltando às novidades surgidas por volta de 1972, temos o trabalho de Gramiro de Mattos com Urubu-Rei (1972) e Os morcegos estão comendo os mamões maduros (1973), saudados enfaticamente pela crítica. Os textos de Ramirão-ão-ão vão interessar principalmente pela volta da experimentação técnica com a linguagem, pela transgressão dos léxicos e dos códigos, em direção ao que seria uma multilinguagem do futuro cósmico, nessa acoplagem de tupinglês, portunhol, tupi-latim, sertanês baianês etc. etc., do qual daremos um pequeno exemplo:

“Ix/mi bonimaxõ bagualão aan xoto botça is’ tupana itsamai kosmic’s diamamon chim chifrablue kamic’ kiaki auana angaingaba ixótraba jo minõe nopuama õe mixôiai mikonominã cofo botça iônôa codex of course del ecomonhamgaba…”

É bem verdade que em certos momentos o leitor consegue se orientar um pouco melhor do que no exemplo acima. Mas, apesar do interesse e da curiosidade que a elaboração propriamente textual que o trabalho de Gramiro nos oferece, ele não avança com a mesma força de intervenção do trabalho de Waly. Nesse sentido a experiência de José Agripino de Paulo com Panamerica nos parece mais bem-sucedida.

CRÍTICA TAMBÉM É POLÍTICA

Por altos e baixos andou a literatura no começo da década. Uma surpresa, porém, nos ofereceu a crítica literária, que nesse momento experimenta um salto qualitativo e se estabelece definitivamente num nível de reflexão crítica mais apurada e que passa a exigir o aperfeiçoamento de seus instrumentos teóricos e conceituais.

A escola de São Paulo, que já nos tinha dado um teórico do porte de Antônio Cândido, agora se desdobra nos excelentes trabalhos de Davi Arrigucci Jr., Roberto Schwarz, João Luiz Lafetá, Walnice Nogueira Galvão, Antônio Carlos de Brito, Carlos Voigt e tantos outros. Benedito Nunes em Belém do Pará, e no Rio, são publicados os trabalhos sempre importantes de Guilherme Merquior, a crítica acesa de Silviano Santiago e os trabalhos desenvolvidos na PUC-RJ por Luís Costa Lima, Affonso Romano de Sant’Anna, Gilberto Mendonça Telles etc.

Discutida, polemizada, rejeitada ou aplaudida, o fato é que o texto crítico e analítico sobre a literatura se impõe definitivamente.

Desse quadro, dois pontos chamam a atenção: o momento especialmente difícil experimentado pela universidade brasileira a partir de 1968, e um debate, que cresceu por volta de 1973, sobre a proliferação e, principalmente, o uso indiscriminado e muitas vezes esquemático das tendências estruturalistas, palavra de ordem nas faculdades de Letras cariocas.

A universidade, no correr dos 70, conheceu de perto o significado da desintegração e do vazio. Experimentando os efeitos da “limpeza” promovida pelo regime em 1968/69, torna-se um território apático e atônito, praticamente interditado à discussão da realidade do país.

A intervenção do regime na universidade se faz sentir — além dos casos concretos de demissões em massa, “aposentadorias” e “exportação” de alguns dos nossos melhores intelectuais — num clima de medo e desconfiança que atinge as próprias salas de aula e a práxis universitária no dia-a-dia dos professores e alunos.

Os já lendários “listões”, a proibição da adoção de certos autores, tidos como indesejáveis, a constante ameaça da legislação repressiva e a própria infiltração policial tornam extremamente penosas as condições para o trabalho intelectual, especialmente nas áreas das ciências sociais e do homem.

Vive-se num clima geral de “competência” e “qualificação”, com a extrema valorização das áreas técnicas, capazes de atender às exigências de formação de quadros para as novas empresas privadas ou estatais. À sofisticação técnica corresponde uma grande dificuldade para as abordagens críticas que tentem problematizar aspectos da realidade que o Estado prefere manter inquestionados.

Abre-se um campo fértil para as abordagens tecnicistas, com boa cotação para o behaviorismo, a economia neoclássica, o funcionalismo norte-americano etc. etc. O próprio marxismo em pauta — o “althusserianismo” — é tomado sintomaticamente num sentido muitas vezes acadêmico e mesmo técnico, mais preocupado com sua epistemologia do que capacitado a fornecer novas interpretações da realidade brasileira.

Na crítica literária, tendo como “centro” a Faculdade de Letras da PUC-RJ, assiste-se a emergência do estruturalismo. Lukács e Goldman dão lugar a Lévi-Strauss, ao formalismo russo e às novas correntes do estruturalismo europeu.

Não se trata de estabelecer uma vinculação mecânica entre a repressão às abordagens da tradição marxista e o surgimento dessas novas tendências na crítica. Ainda que, certamente, não sejam fenômenos isolados, essas relações são complexas e considerá-las numa hierarquia de causa e efeito seria por demais simplificado.

O estruturalismo é praticado nesse momento de formas diversas e, se em alguns casos dá lugar a um estéril e superficial jogo de esquemas e setinhas, em outros, vai estar, sem dúvida, contribuindo, para um avanço qualitativo da crítica.

É importante observar que a polêmica relativa ao estruturalismo é um fenômeno prioritariamente carioca, uma vez que a produção teórica de São Paulo — especialmente aquela ligada à orientação do professor Antônio Cândido — desenvolve um trabalho no sentido de uma crítica de fundo sociológico e marxista, dando continuidade e profundidade aos estudos realizados na década de 60. Não houve, portanto, nesta produção uma guinada tão sensível quanto a que vimos observando no Rio de Janeiro. A grande novidade que nos oferece a crítica paulista — mais ligada ao debate direto relativo às questões nacionais — vai ser a contribuição importantíssima no sentido de absorver no campo da crítica literária as questões das relações de dependência e do desenvolvimento que vinham sendo problematizadas pelo grupo de cientistas sociais ligados ao Cebrap.

Voltando à polêmica em torno do estruturalismo, ela se desenvolve inicialmente no ambiente universitário, alcançando um espaço mais amplo com a publicação dos trabalhos Estruturalismo e teoria da literatura (Luís Costa Lima), O estruturalismo e a miséria da razão (Carlos Nelson Coutinho), O estruturalismo dos pobres e outras questões (José Guilherme Merquior) e com o seu registro na “imprensa alternativa”.

Em abril de 1973, comentando no Jornal Opinião (22) o livro de Carlos Nelson, Antonio Carlos de Brito refere-se ao estruturalismo como “o método do momento” e tenta explicar sua ascensão: “Sintomaticamente a mare estruturalista subia num momento em que os problemas e o método histórico saíam de cena ou ocupavam lugar cada vez mais secundário nas análises. Culminando um processo que se consolidou sobretudo a partir de 1968, o estruturalismo, em suas várias versões, domina hoje os setores mais ‘esclarecidos’ da universidade brasileira.” Segundo Cacaso, essa adesão resumiria a “violência do impasse ao mesmo tempo existencial e intelectual de nossa vida presente”.

Na mesma página, Luís Costa Lima, comentando Formalismo e futurismo (Krystyna Pomorscha), defende-se das críticas ao suposto elitismo dos estruturalistas: “Dizer que literatura não é a garota propaganda da realidade e que a palavra não é a pílula portátil com que carregamos as coisas parece uma terrível profanação.”

Respondendo a outro artigo de Luís, Quem tem medo da teoria? (Opinião, 159), Carlos Nelson Coutinho — em Há alguma teoria com medo da prática? (Ibidem, 160) — refere-se ao estruturalismo: “Tal corrente, precisamente por basear-se num discutível conceito de “ciência” e “teoria”, que tem como meta a formalização radical e a completa negação dos elementos ideológicos contidos nas objetivações estéticas, passou a defender — em concordância com o “espírito da época” — uma crítica literária “neutra”.

Intervindo no debate, José Guilherme Merquior, furioso com a “gincana” dos “oficiantes do culto estruturalista”, situa “métodos simplistas” e a “superstição mais do que ingênua da ‘cientificidade” nas condições concretas do nosso ambiente universitário: “Se o estruturalismo é, em si mesmo, uma inutilidade, muito útil se torna estudar as condições de florescimento do estruturalismo dos pobres, o que é a melhor maneira de desmistificá-lo.”

A polêmica prossegue com os artigos de Cacaso — Bota na conta do Galileu (Opinião, 160), a tréplica de Luís Costa Lima — Bloco do eu sozinho (Ibidem, 164) e várias outras intervenções não só na imprensa mas em debates, mesas redondas etc.

A presença desse debate entre tendências da crítica literária, longe de guardar características de mera discussão acadêmica, investe-se de um evidente sentido político, e expressa, mesmo, um instante de luta ideológica no campo intelectual. Numa situação de isolamento e de dificuldade de circulação do discurso político mais direto, a intelectualidade liberal parece encontrar, no campo do debate cultural, um lugar possível para a problematização de questões políticas.

Essas discussões, muitas vezes, voltam-se sobre a própria intelectualidade e seus instrumentos de análise. A crítica como produção entra em pauta. Discute-se, defende-se, agride-se, cria-se uma política. Uma política que, ainda que confinada ao âmbito institucional e acadêmico, abriu brechas para a discussão mais geral da universidade brasileira tecnocrática e acrílica: a falta de alternativas, a desarticulação com a realidade nacional, o medo, a reformulação da universidade.

MILAGRE PROVISÓRIO

O ano de 1974 parece anunciar um quadro marcado pelo crescente agravamento da crise do milagre econômico, a relativa perda de coesão entre as forças que sustentam o regime, o crescimento da insatisfação popular e a paulatina retomada do debate político. A quebra do consenso no bloco do poder e as questões colocadas pelos movimentos sociais incipientes levam o Estado a trabalhar uma série de remanejamentos que se anunciam na política do general Geisel, sob a forma de uma “distensão lenta, gradual e segura”.

Reconhecendo ‘a crise e a necessidade de geri-la sem correr riscos de radicalização e descontroles, o Estado mantém-se na iniciativa política, realizando um jogo de ziguezague, em que as medidas de tendência liberalizante vêm acompanhadas, via de regra, de atos claramente autoritários, o que, segundo os porta-vozes oficiais, não significariam “retrocessos na política de distensão”. De fato, a distensão deve ser entendida como uma política de gestão da crise, de preparação de readequações do Estado e da sociedade civil, capaz de fornecer às elites uma maior margem de participação nos processos decisórios e, ao mesmo tempo, de criar condições seguras para que a insatisfação política, que se amplia socialmente, possa se expressar nos limites institucionais.

No campo cultural, esse processo conta com uma forte presença do Estado, que se expressa contraditoriamente numa política que oscila entre a censura, repressiva, e o incentivo, produtivo. A originalidade da intervenção estatal na cultura nos parece ser dada nesse momento por essa dimensão produtiva, pela adoção de uma lógica positiva no tratamento da questão cultural: o Estado deixa tão-somente de reprimir e passa a fornecer programas para a intelectualidade, incentivos à produção, agências voltadas para a cultura.

O regime tenta tomar a iniciativa num terreno que, se sempre lhe pareceu ardiloso, passa a trabalhar aquilo que sempre lhe foi difícil e que esteve nas mãos, ainda que um tanto vigiadas, da intelectualidade — a política cultural.

A POLÍTICA CULTURAL: UMA QUESTÃO DE SEGURANÇA NACIONAL

A Política Nacional de Cultura, assinada pelo ministro Ney Braga e pelo presidente Geisel, sistematiza as prioridades e concepções que regem a ação do Estado na área cultural.

A não intervenção, o estímulo e o apoio a iniciativas individuais ou de grupos são os pressupostos declarados da PNC, que tem como maior objetivo:

“Preservar a identidade e a originalidade fundadas nos genuínos valores histórico-sociais e espirituais de onde decorre a feição peculiar do homem brasileiro: democrata por formação e espírito cristão, amante da liberdade e da autonomia.”

A preocupação com a ideologia e a cultura parece fundamental num momento em que o Estado não pode mais se apresentar à sociedade apenas ou prioritariamente em sua dimensão negativa de coerção:

“O atual estágio do desenvolvimento brasileiro não pode dispensar a fixação de objetivos culturais bem delineados. O desenvolvimento não é um fato de natureza puramente econômica. Ao contrário, possui uma dimensão cultural que, não respeitada, compromete o conjunto. (…) Uma pequena elite intelectual, política e econômica pode conduzir, durante algum tempo, o processo do desenvolvimento. Mas será impossível a permanência prolongada de tal situação. É preciso que todos se beneficiem dos resultados alcançados. E para esse efeito é necessário que todos, igualmente, participem da cultura nacional.”

A PNC tem um olhar espichado no futuro, pressente a necessidade de lançar bases culturais para conciliar e aplacar contradições, preocupa-se com a identidade cultural brasileira como elemento de solidariedade entre as classes, prepara-se para a possibilidade de uma transição:

“Uma política de cultura situa-se pois na dimensão ao mesmo tempo ideal e real que existe entre dois momentos históricos, um presente, outro futuro, de qualquer forma extensão do passado, e tem consciência de contribuir para a criação do que há de vir. (…) O alcance de tal política visa preencher os anseios e necessidades culturais de uma sociedade democrática.”

São cinco os objetivos básicos da política a ser implantada: o conhecimento do que constitui o âmago do homem brasileiro, a preservação da memória nacional, o incentivo à criatividade: “dar ao homem brasileiro a plena utilização de seu potencial, visando capacitar recursos humanos para a área da cultura”, a difusão e a integração, “sem as quais corre-se o indiscutível risco para a preservação da personalidade brasileira e, portanto, para a segurança nacional”.

Assentada nesses objetivos, a PNC “entrelaça-se, como área de recobrimento, com as políticas de segurança e de desenvolvimento; significa, substancialmente, a presença do Estado como elemento de apoio e estímulo à integração do desenvolvimento cultural dentro do processo global de desenvolvimento brasileiro.”

Como se vê, o Estado, nesse momento, parece se apropriar de questões que marcaram profundamente as concepções e o ideário de amplos setores da intelectualidade e dos produtores de cultura nos anos 60. Mas se, então, as questões do nacional e do popular inscreviam-se efetivamente na luta política, descortinando a possibilidade de estabelecer uma certa organicidade com os movimentos sociais, agora — quando a intelectualidade não consegue repensar essas questões em relação às novas condições da sociedade — torna-se possível ao Estado apropriar-se de algumas dessas categorias, recolocando-as sob seu controle e definição.

Debilitados politicamente, na medida em que não se apoiam num movimento de vontade popular, tornam-se questões “vazias” ou, mais que isso, preenchidas de seu significado puramente liberal-burguês e “humanista”, atendendo prioritariamente ao reaparelhamento do Estado.

A articulação desse ideário com o princípio da segurança nacional parece revelar uma adaptação “sauvage” desse liberalismo, sua condição mesma de existência nos limites do capitalismo brasileiro, periférico, dependente.

Formulando uma política pautada em esquemas ideológicos um tanto ambíguos e abrangentes, o Estado consegue estabelecer um terreno possível de alianças com os intelectuais. Mais do que possíveis, essas alianças chegam a ser tidas como politicamente desejáveis.

Por opções de caráter tático ou não, o fato é que o Estado, seja pela sua “flexibilidade” ideológica, seja pelo investimento na precariedade material que rege o trabalho cultural no Brasil, consegue tornar-se o grande mecenas da cultura brasileira nos anos 70.

A intervenção estatal nos sugere o reconhecimento de uma crescente tendência à articulação institucional da produção cultural no Brasil. Coloca-se cada vez mais para o cinema, o teatro, as artes plásticas, a literatura etc. a necessidade de uma organização “madura”, empresarial, adequada às condições de um capitalismo mais avançado, industrial, urbano, moderno, que, aos trancos e barrancos, vem constituindo-se no país. A conquista de mercado e a profissionalização apresentam-se como questões primordiais no próprio debate acerca das funções sociais e políticas da cultura na sociedade brasileira. Entre os autores, nas diversas áreas, parece vingar a consciência de que as artes não são um campo “isento”, “limpo”, uma espécie de reduto intocado pelo circuito do dinheiro. O caráter de mercadoria do produto cultural torna-se um dado cada vez mais presente, a exigir da intelectualidade a reelaboração de táticas para lidar com seu trabalho, com o mercado, com o capital.

Assumir a “maturidade”, buscar circuitos alternativos, intervir no campo institucional… Novas questões para um debate que se desenvolve chegando muitas vezes a exasperações, com acusações do tipo “aderiu”, “é consequente”, “é inconsequente”, “desbundou” etc. (reveladora desse debate a súbita popularidade que a palavra “coopção” alcançou nesses anos 70).

Mal ou bem, a tendência à consolidação da organização empresarial da cultura está mais que presente como questão colocada pelas próprias condições sociais do país. Ao lado das multinacionais, o Estado surge como a alternativa melhor aparelhada, tendo-se em mente a fragilidade do capital privado nacional que investe no campo da cultura.

As preocupações com o empresarial, com a profissionalização e com a veiculação de conteúdos políticos vão estar um tanto imbricadas nesses anos 70. A busca de mercado para uma produção nacional, diversa daquela tão-somente comercial e digestiva que se ampliou nos anos do “vazio cultural”, encontra a partir de meados da década condições um tanto favoráveis. Os espaços que são conquistados, a retomada gradual do debate político mais aberto, a própria crise que cada vez mais se faz presente despertam um grande interesse pela política, notadamente entre a juventude urbana e setores médios que constituem o público consumidor de cultura.

Surgem, portanto, condições para a consolidação de um mercado ou de uma faixa de mercado para a produção cultural nacional de dicção política.

Na música popular, no cinema e no teatro fazem grande sucesso as produções que conseguem passar pela censura (“não sei como isso passou, é ótimo” — um comentário bastante ouvido nas salas de espetáculo), aglutinando um público jovem perfeitamente sintonizado com as dificuldades dos seus, não seria exagero dizer, ídolos.

Mas, para surpresa da torcida, é a literatura que de fato explode nesse momento. Menos dependente do investimento estatal e gozando de uma relativa autonomia diante da censura (a que atraiu tão logo se mostrou presente, com o recolhimento de Zero, Feliz Ano Novo e Em câmara lenta), a literatura experimenta o chamado boom de 75, conseguindo atender, privilegiadamente, essa demanda pela política colocada no momento.

Referindo-se ao desempenho da literatura no ano de 1975, Flavio Aguiar dizia no jornal Movimento: “Ocorreu algo que há muito não se via: a literatura este ano foi assunto polêmico, tema de debates acirrados e concorridos. Ver para crer.” A avaliação é consensual. O novo escritor passa a ser considerado um bom negócio, antigos escritores são relançados com roupagens novas, há o conhecido surto de poesia. No campo institucional, a premiação e a promoção de concursos literários se investe de sentido de patrocínio e incentivo. As empresas editoras testam o alcance comercial de lançamentos bem programados do ponto de vista mercadológico. A forma curta e direta do conto se consolida. Por outro lado, conhece-se a proliferação de revistas literárias que respaldam e se alimentam da boa maré que a literatura experimenta nesse momento: surge Escrita, Ficção, Inéditos, e as sofisticadas José e Anima, esta última revelando em seus dois números os melhores momentos da editoração periódica dessa hora. A grande imprensa, ainda que mais prudentemente, começa a abrir espaço para os suplementos literários.

Interessam-nos aqui algumas questões. Inicialmente, as razões desse sucesso, os fatores que favorecem o que foi chamado de “o boom de 75″. Em segundo lugar, esses “debates acirrados”: em torno de que questões se davam? Que elementos a produção literária estava colocando para ser alimento de intensa polêmica?

O BEM AMADO

Um sintoma que merece atenção diz respeito à inserção, nesse momento, de Jorge Amado no centro do debate literário. É desse debate a problematização de questões que extrapolam o campo específico da literatura para se articular com as indagações mais gerais quanto às novas táticas de atuação “dentro” ou “fora” do Estado, a busca de parâmetros para a produção nacional, as tentativas de realização de uma linguagem “popular” etc.

Efetivamente, Jorge Amado responde às aspirações de conhecimento do “âmago do homem brasileiro” através de uma literatura que ultrapassa o caráter regional baiano e se constitui nas formas emblemáticas do homem, do sabor e do narrar brasileiros. Em suma, é possível, neste momento, se definir em suas obras o que poderia ser a desejável “literatura de integração nacional” como já haviam sido bem-vindas a política integradora da CBD, as redes nacionais de telecomunicações etc, etc.

Por outro lado, Jorge Amado como padrão literário é ainda extremamente oportuno na medida de seu inegável know-how de contador de histórias, um dos narradores mais seguros e competentes de nossa literatura. Jorge Amado é o que se poderia chamar de um grande escritor profissional. Jorge Amado, o escritor de alta qualidade, aquele que desafia a impostação elitista da literatura que se confina às gavetas, aos sebos e às tertúlias universitárias. É de Ferreira Gullar a afirmação: “Prefiro Jorge Amado a Robbe Grillet e Michel Buttor juntos.”

A seu lado, se ergue um segundo modelo: Nelson Rodrigues. Na mesma perspectiva, Nelson vai além do regionalismo suburbano carioca atingindo o que seria uma “dramaturgia brasileira” bem-feita, inteligentíssima, e, como Jorge Amado, de grande alcance de público. Não é por acaso que serão os dois grandes eleitos para as adaptações cinematográficas e televisivas de grande porte empreendidas no momento.

Se houve um tempo em que o parâmetro de qualidade para os jovens escritores havia sido Guimarães Rosa e Clarice Lispector, hoje a preferência por Jorge e Nelson denuncia, no mínimo, uma nova forma de se relacionar com o fazer literário e o mercado editorial. Agora, o escritor passa a se empenhar no sentido da demanda de mercado e de sua profissionalização. Do dom à prática, os novos escritores começam a se preocupar mais diretamente com as atividades sindicais e com a discussão em torno da questão dos direitos autorais.

Uma nova leva de escritores já mostra, ainda que de forma incipiente, um caminho no sentido de viver de suas atividades autorais. O escritor tradicional que exerce a literatura como um momento de criação desvinculado do seu desempenho profissional, que lhe garante o sustento em áreas diversas, cede terreno para aquele que, ao lado da “obra”, vende sua força de trabalho através do exercício do escrever. São também letristas, roteiristas de cinema e televisão, cronistas, resenhistas. Surge a figura do escritor profissional, incluindo aí aqueles conhecidos como “alternativos” que, se não se inserem diretamente no o mercado estabelecido, procuram novas formas de veiculação comercial para seu produto.

Em meio à nova conjuntura que sugere as questões da profissionalização do escritor, a conquista de mercado e o confronto com as diretrizes da política cultural do Estado, o modelo e debate em torno de Jorge Amado vinga definitivamente. Mas isso não vem sem conflitos.

Sobre Jorge Amado, ao lado das já tradicionais loas ao grande romancista baiano, setores da crítica se empenham numa análise mais apurada da construção de seus últimos romances, identificando uma forte proximidade com os padrões do best-seller contemporâneo, adaptados a um cenário pitoresco e tropical, com traços da ideologia populista.

Em “Amado, respeitoso, respeitável” (Ensaios de Opinião 2-1, 1975), Walnice Nogueira Galvão discute, no romance Tereza Batista cansada de guerra, essa composição. Assentado em elementos consagrados da construção literária, o best-seller faz-se ao gosto do mercado. Trata-se de uma ficção que “tem que patinhar no velho discurso realista em que a narrativa flui sem anzóis que enredem a atenção do leitor no próprio discurso ou na matéria narrada que não pode ser perigosa”. Ao contrário da melhor narrativa contemporânea, o best-seller não se problematiza como escritura, não discute seus temas, naturaliza-se como relato de “dicção fluente e enredo com armadilhas de suspenso, essa a fórmula do sucesso”.

Se no nível dos recursos formais o best-seller se limitasse a uma simplificação e vulgarização de elementos consagrados do fazer literário, no que se refere às ideias não chega tampouco a ser muito inspirado: “Ainda está para haver” — lembra Walnice — “a forma velha criando ideias novas ou ideias velhas criando formas novas”. Sua força crítica mal chega perto dos limites do sistema literário ou ideológico vigentes. Seu “conteúdo social”, obrigatório para uma boa colocação no mercado, é perfeitamente normalizado e absorvível. Dessa forma, “toda literatura best-seller é progressista, no pior sentido da palavra: sem uma pitada — mas que não exceda uma pitada — de ideais humanitários, nenhum best-seller cola mais”.

Alguns dos ingredientes indispensáveis de novos filmes, livros e gibis da indústria cultural parecem traduzir-se em Jorge Amado na “fórmula pessoal infalível que é o reforçamento da mitologia baiana: comida de dendê e cachaça, praias e coqueiros, candomblé e mulatas, pretos e saveiros, coronéis e prostitutas, sexo e violência”. E o progressismo na versão populista:

“A glorificação do ‘povo’ justificando qualquer barbaridade que sua ficção perpetre. Tudo o que é bom vem do povo e, por isso, todas as personagens são caricatas (…) Quem encarna as virtudes do povo — e, neste caso, a leitura óbvia é a resistência inquebrantável do povo brasileiro oprimido, bem por dessueto chavão menos usado — se não a prostituta Tereza?” E conclui Walnice:

“A proeza de Jorge Amado, agora, reúne, e reforça achados de seus livros anteriores. A prostituta que simpaticamente vagueia por todos eles se torna personagem principal e título, o alegre erotismo cruza a linha de perversão, a mitologia baiana é reiterada, o discurso indireto livre espertamente manipulado; Jorge Amado, enfim, pratica o kitsch de si mesmo.”

Walnice não fecha com a “frente tática” que vê em Jorge Amado um caminho possível para a solução das questões que o mercado coloca para a produção literária neste momento, e aponta, com segurança, o centro do impasse que esse caminho traduz: a realização de uma literatura popular e nacional passa, necessariamente, pelo esquematismo ideológico e estético ou pela incapacidade de romper com a perspectiva populista na arte?

Essa questão é, sem dúvida, a questão do momento. A política da “distensão gradual” começa a dar seus primeiros passos e, portanto, a abrir espaços, brechas e frestas para a produção cultural.

Sob o signo de um difuso e ambíguo conceito de nacional e popular, se tornam coincidentes os objetivos da política cultural do Estado, que se abre agora para os temas da “memória”, do “povo”, da “história”, temas esses altamente desejáveis, ainda que tratados sob perspectivas antagônicas pela intelectualidade de oposição.

Se arma, de certa forma, uma espécie de jogo entre interesses diversos e nesse jogo perigoso, como em todo jogo, existem os perdedores, os ganhadores, os bleufeurs e os que perdem a vez.

Se o Estado pretende agora chegar ao povo através da mediação do intelectual, como revela o projeto PNC em suas entrelinhas, os intelectuais se confrontam com a dificuldade de sua própria relação com o povo, como “objeto” de criação e principalmente como práxis política. De qualquer forma, é esse o espaço da discussão que vai se desenvolver prioritariamente nesse estranho momento em que a literatura parece estar “dando certo”: Jorge Amado vitorioso, o povo em questão, brechas para a fala sobre a política, a literatura assimilando traços do mercado internacional como violência, sexo, a short-story. E também aquela que se faz jornalística, clara, direta, “verdadeira”, criando um espaço onde o interditado na imprensa pode ser contado no livro.

O CASO JOÃO ANTONIO

João Antonio renasce e cresce definitivamente nessa hora de maré alta da literatura.

Tido por alguns como uma “espécie de versão jornalística” de Jorge Amado, João Antonio, com a reedição de Malagueta, perus e bacanaço e os novos Leão-de-chácara, Casa de loucos, Ô Copacabana!, Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, Malhação do Judas carioca, Lambões de caçarola, merece um considerável espaço de discussão na imprensa e na universidade. Sua grande novidade: a tematização do povo e o investimento num novo recorte para a figura do escritor: profissional/batalhador, comprometido de peito aberto com a realidade brasileira.

Em 1975, com posfácio de Malhação do Judas carioca, João Antonio publica o texto “Corpo-a-corpo com a vida”, onde intervém de maneira direta no debate literário. Criticando as “posições beletristas” que não teriam mudado um milímetro sequer nos últimos 15 anos, propõe, para o escritor, um lugar junto ao povo que lhe permita expressar os temas fundamentais da vida brasileira:

“O de que carecemos, em essência, é o levantamento de realidades brasileiras, vistas de dentro para fora. Necessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever sem nos distanciarmos do povo e da terra.”

E vai João:

“O caminho é claro e, também por isso, difícil — sem grandes mistérios e escolas. Um corpo-a-corpo com a vida brasileira. Uma literatura que se rale nos fatos. Nisso sua principal missão — ser a estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo. Corpo-a-corpo. A briga é essa. Ou nenhuma.”

Mas voltemos à questão que João Antonio propõe. Como escritor de classe média, fala por um projeto cuja realização lhe é, em certo sentido, exterior. E é o desejo da superação dessa exterioridade que o mobiliza e, ao mesmo tempo, o contradiz: como falar de dentro se, de fato, se está um tanto fora?

Essa contradição não constitui um privilégio de João Antonio ou do “populismo”, mas parece ser um impasse marcante em várias áreas da produção cultural nesse momento. Na literatura, uma das formas de “resolvê-la” será através dessa identificação escritor/marginal.

No caso de João Antonio, a figura do marginal se oferece como mediação para a identidade escritor/povo. Marginais, malditos, fora da ordem: o escritor como aquele que conhece dificuldades econômicas, aquele que, por injunções políticas, está afastado dos circuitos de decisão, aquele que exerce, até certo ponto de forma individual, a sua inadequação. O marginal representa o povo. O intelectual é igual ao marginal. Decerto, a figura do marginal como traço de união entre o escritor e povo é atraente nesse momento.

E é em torno dessa colocação que esquenta a polêmica em torno de um neopopulismo emergente na literatura, tendo agora, como centro, a figura de João Antonio.

Entretanto, não nos parece — como enfatizam “as cobranças” à literatura de João Antonio — que o problema esteja somente no fato de o escritor conceber essas relações através da figura do marginal, incorrendo numa simplificação de tipo populista, o que poderia ser resolvido pela opção de distinguir a classe operária de “povo” como massa difusa.

O populismo na literatura vai se realizar prioritariamente pela opção escamoteadora da linguagem que permite a “naturalização” da complexidade da relação intelectual/povo, independente, portanto, do fato de estar distinguindo “povo”, marginal ou classe operária. A questão, na realidade, é como se opera essa tematização, até que ponto ela transforma seu objeto em objeto de consumo, ou, por outro lado, até que ponto o relato ficcional passa a ser o lugar, fetichizado, da solução de problemas políticos.

Ou como diz melhor Walter Benjamin: “Afinal o combate revolucionário não se desenvolve entre capitalismo e o espírito, mas entre o capitalismo e o proletariado.”

Na realidade, a consciência da posição do escritor no processo de produção parece ser a única alternativa viável para uma literatura que se quer revolucionária. E essa consciência exige certamente um trabalho mais consequente da linguagem e da própria noção de técnica literária.

João Antonio pretende descrever o povão, o submundo, o pivete, o jogador de sinuca, o leão-de-chácara, o malandro carioca, e o faz sob a ótica do cronista do Rio, herdeiro direto de Lima Barreto e aparentado a Jorge Amado. A ficção de João Antonio alcança sem dúvida bons momentos, é correta em outros, profissional sempre. É ainda artesão aprimorado na construção de tipos. Em Malagueta, perus e bacanaço atinge mesmo um bom nível literário. Torna-se um dos escritores mais vendidos, com excelente receptividade de público.

O que é questionável, entretanto, vai ser exatamente a maneira pela qual João Antonio tira dessa galeria de personagens um sabor renovado, pitoresco e “verdadeiro”. Nada que problematize sua prática, que “marginalize” sua ficção repleta de marginais. Ao contrário, o neonaturalismo de João Antonio, por mais bem intencionado que seja, investe no mito da narrativa que se apodera do real, que o expõe “tal qual é”, através de um olho quase de repórter em sua suposta e inocente “objetividade”. E assim cai no próprio engodo do real que pretende criticar. Ou será que as formas de conceituar e de representar o “povo” não se constituem, realmente, numa questão de segurança nacional?

O que nunca é demais lembrar é que desejo de intervir no sistema não basta para que essa intervenção se dê. Estar falando da miséria do povo pode ser apenas mais um momento do mero abastecimento do aparelho de produção desse sistema.

É, provavelmente, essa percepção (nem sempre presente nos produtores de cultura) que leva o mercado editorial a perceber a oportunidade de abrir campo para as “obras-de-esquerda”. E sem dúvida nesse momento, com esquemas de distribuição apurados, técnicas de marketing mais modernas, como melhores capistas, divulgação e até recursos como “fichas para leitura”, as editoras se capacitam no sentido de criar ou dinamizar o mercado potencial da literatura.

Aqui não vai nenhuma crítica a esse fenômeno, altamente bem-vindo e importante para a própria vitalidade da literatura. O que chama a atenção, no caso, é como a literatura “política” passa a ser um excelente negócio no raiar da “abertura”.

VERDADE, JORNALISMO E LITERATURA

Se os recursos da linguagem em João Antonio tornam-se lentes neutras, instrumentalizadas para a fotografia social, a “objetividade jornalística” surge como princípio construtivo em José Louzeiro, sob a forma não menos comprometida com o naturalismo do “romance-reportagem”.

Num momento em que o jornal parece não poder mais informar, noticiar e muito menos se pronunciar, cresce por toda parte o desejo aguçado do testemunho, do documento, da exposição da realidade brasileira, o que, de certa forma, promove uma quase insatisfação com a narrativa literária. O discurso jornalístico, como técnica de referir-se ao fato, de oferecer para o leitor a realidade imediata, os esquemas de linguagem mais próprios para se dizer as-urgentes-verdades da história recente do país parecem agora uma saída para a literatura.

Esse recurso à linguagem do jornalismo torna-se todavia um tanto problemático se não se questiona seus pressupostos, se não se vai além de uma inversão de conteúdos, veiculando agora temas de crítica política e social. “O que é essa técnica” seria, sem dúvida, no caso, uma pergunta oportuna. A imprensa, tal como a produz a classe dominante, já constituiu um discurso específico. Pode-se dizer que o discurso jornalístico assenta-se em técnicas de composição, montagem, texto e ilustração que asseguram um estatuto de verdade — objetiva e imparcial — ao fato relatado. Esse estatuto entretanto se define por um escamotear do “como se relata”, em favor da ilusão de uma exposição transparente do fato. Ou seja: o jornalismo, à medida que se torna cada vez mais moderno, mais perfeito, consegue promover a ilusão de uma acessibilidade imediata ao real. Se a função econômica do jornal é trazer ao público os fatos a que esse público não tem acesso, sua função política é configurá-los segundo determinações ideológicas e de mercado. Esse mecanismo nos lembra o do mito que não pretende ocultar, mas provocar uma distorção, evocar uma significação. Uma fala que despolitiza e naturaliza.

Por sua vez, a reportagem de autor, ou seja, a voga do romance-reportagem, parece estabelecer um compromisso entre o pressuposto da objetividade jornalística e de uma certa intervenção do subjetivo, aquilo que o elevaria ao estatuto de literatura.

O autor, aqui, como num jornalismo “desejável”, se faz presente enquanto o narrador que relata um fato verídico — e na maior parte das vezes “perigoso” — extrai conclusões, arrisca conceituações e, finalmente, toma partido. A situação de romance, por outro lado, favorece a presença de um certo “calor humano”, o privilegiar de algumas cenas ou mesmo sinais que se mostrem capazes de conter um teor alusivo a situações mais gerais. O repórter-escritor é aquele que, sem abrir mão da verdade dos fatos, se envolve com opathos de seu relato. Estaríamos em frente, portanto, de um jornalista “sensibilizado” e, o que é mais importante, desvinculado da estrutura opressiva e compromissada do jornal. A situação é perfeita: a notícia livre, a informação verdadeira, isenta dos engodos jornalísticos, nesses tempos onde a lei de censura da imprensa retém 90% de informações “de utilidade pública”.

Num primeiro momento, o retrato do povo, agora o retrato da verdade. E, certamente, de uma verdade que transcende à própria circunstância da notícia, que aqui se pretende alusiva de questões maiores e mais graves (e mais censuradas) da realidade social e política do país. A técnica do jornal é instrumento perfeito, o mal está na imprensa burguesa. É assim que o romance-reportagem crê na transparência de sua técnica, agora veiculando conteúdos proibidos.

A reportagem-verdade que realiza José Louzeiro acredita nisso. Tratando de Lúcio Flávio, Aracelli, dos amores da pantera e outros, tira seu efeito das mesmas premissas que organizam o discurso da imprensa institucional: a normalização da leitura, o relato verdadeiro. Assim, o romance-reportagem não consegue se estabelecer como discurso crítico ou político pela própria aderência que sugere às formas de produção das técnicas da reportagem.

É certo que, na situação um tanto difícil que se viveu nessa década, não é desprezível a “militância” de José Louzeiro, interessado na denúncia, e que conseguiu mobilizar um certo debate sobre aspectos da repressão policial, corrupção etc.

Essa certamente foi uma das formas que a literatura encontrou no sentido de “falar do momento”, de articular recursos hábeis e estabelecer um certo código com o público leitor, num certo jeito de estar falando de uma coisa e expressando outra. Assim, quando Louzeiro se refere à barbaridade da repressão policial, ela sugere a violência da coerção política, o caso Aracelli pode estar significando uma situação mais ampla. Sem a eficácia do projeto de aludir ao todo do romance político dessa hora, ou de se inscrever criticamente no circuito, o romance-reportagem mostra como na maior parte da produção literária recente tornou-se urgente o investimento na necessidade de contar e de dizer a “realidade”. Esse gênero, que no momento fazia sucesso no circuito de best-seller americano, vai proliferar e de certa forma respaldar o boom editorial.

Ainda que mantendo uma certa heterogeneidade em sua relação mais ou menos direta com o compromisso jornalístico e de mercado, surge um grande número de publicações no gênero, como A prisão de Percival de Souza, A sangue quente de Hamilton Almeida Filho, A ilha de Fernando Morais, Cuba de Fidel de Ignácio de Loyolla, O Caso Lou de C.H. Cony, Passaporte sem carimbo de Antonio Callado e tantos outros.

A literatura de olho no jornalismo, a reportagem de olho na literatura. O romance-reportagem expressa, em sua forma limite, uma tendência mais geral da ficção dos anos 70 que se empenha numa espécie de neonaturalismo muito ligado às formas de representação do jornal.

Se em João Antonio e José Louzeiro essa proximidade dá lugar a um naturalismo típico, já em outros escritores a relação com o discurso jornalístico se apresenta de forma mais complexa, até mesmo, em alguns casos, comentando e problematizando a própria estrutura desse discurso.

Um bom exemplo é o romance A festa, de Ivan Ângelo, que conta a chegada de um trem de migrantes do Nordeste em Belo Horizonte, que se abre em leque para a narração poliédrica sobre os impasses da experiência política e existencial da classe média intelectualizada no Brasil 60/70.

Um romance feito de contos que se entrelaçam e se desdobram, pela composição em montagem de citações, notícias de jornal, discursos políticos, manifestos, textos-recortes.

É interessante nesse caso a observação do uso que Ivan Ângelo faz das técnicas do jornal e do cinema.

O filme, geralmente hábil em escamotear seus efeitos de corte e descontinuidade quando investe na “naturalidade do olhar”, é aqui capitalizado em seu sentido inverso: é precisamente pela denúncia do arbitrário do corte e da pluralidade de pontos de vista que o romance estabelece uma suspensão de sentido e, portanto, um distanciamento crítico.

Não é muito diferente do cinema a superfície do jornal. A técnica de montagem e composição de notícias, fatos, legendas, fotos e chamadas que se complementam “harmonicamente”, sem comprometer a autonomia de leitura de suas partes, é também remanejada aqui por Ivan Angelo, no empenho de evidenciar suas frestas, seus vazios, sua natureza de fragmento. É assim que A festa compõe e decompõe sua narrativa. A verdade da notícia, tão cara ao jornalismo, é expressa pelo seu avesso exatamente quando surge evidenciado o procedimento de montagem. No trabalho de Ivan, a notícia informa um prisma do real, mas nem ela nem seu contexto parecem autorizados definitivamente para dizer o real.

É assim que o romance político de Ivan Ângelo espelha agora “de dentro” os impasses da experiência da história recente, oferecendo uma alternativa para a objetividade neutralizante das opções ligadas mais diretamente ao jornalismo ou às formas de representação simplesmente alusivas ao todo do momento político brasileiro.

Uma outra excelente surpresa na área das relações da literatura com as técnicas de montagem do jornal é o romance Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. Depois de alguns anos na gaveta das editoras nativas, Zero consegue ser editado na Itália pela fechadíssima editora de vanguarda Feltrinelli. Esse trabalho, aliás, nos dá um mais que oportuno exemplo de como o experimentalismo de vanguarda pode ultrapassar o mero exercício formal e apreender, com eficácia, um real múltiplo e contraditório.

Zero, a princípio, se manifesta como uma grande alegoria do estado violentado e desagregado de um país que ainda espera por sua história. Um romance pré-histórico, como o classifica Loyola. Em Zero, o recurso ao fragmento e o próprio aproveitamento do espaço gráfico do livro, aqui e ali diagramado à moda dos jornais, promove um estilhaçamento da perspectiva naturalística do jornal. É exatamente desse processo de desmontagem, de colagem absurda de ruínas de uma realidade não menos absurda, que o autor extrai sua força e sua violência. É como se o estado zero explodisse os personagens, as situações, as falas, os relatos. A força temática e a significação maior de seus personagens vêm, inclusive, da situação deformante e anônima que domina a tensa atmosfera dessa pré-história. É assim que a técnica do fragmento aqui traduz a desagregação produzida pelo clima de opressão que acompanha, em todos os momentos, a narrativa de Loyola. Narrativa que consegue a proeza tantas vezes tentada no romance político recente de representar um certo “país da América Latíndia” cujos governantes, aliás, houveram por bem proibi-la de permanecer em circulação.

A festa e Zero parecem se afigurar, na profusão de lançamentos que têm lugar a partir de 1975, como alternativas àquela literatura que identificamos como de “integração nacional” e às formas jornalísticas com traços naturalistas e/ou populistas. São trabalhos que expressam a experiência social “desintegradora”, que tratam do sentimento da inadequação, da perda, da fragmentação, expressando antes relações de crise do que de conciliação e ajustamento.

Poderíamos alinhar aqui os excelentes trabalhos de Antonio Callado (Reflexos do baile), Antonio Torres (Um cão uivando para a Lua e Essa terra), Sergio Sant’Anna (Notas de Manfredo Rangel, repórter; Confissões de Ralfo; Simulacros), Renato Pompeu (Quatro olhos) e Carlos Sussekind (Armadilha para Lamartine).

ARMADILHAS A QUATRO OLHOS

Dos citados, Quatro olhos e Armadilha para Lamartine trazem uma atração: a construção multifacetada agora tematizando uma questão cara à literatura e ao debate cultural do momento: a cultura.

Um parêntese: no sufoco da virada dos 60 para os 70, a valorização das possibilidades de percepção que a loucura e as experiências alucinógenas traz — ou a “nova sensibilidade”, como foi chamada, torna-se um elemento fundamental das opções estéticas e sobretudo existenciais da contracultura brasileira. E aqui temos, no mínimo, dois conteúdos: a loucura como forma de transgressão da ordem institucional e social, e a loucura como liberadora de um discurso fragmentário que, de certa forma, checa e critica o modelo racionalizante do pensamento ocidental burguês. São desse tempo os trabalhos de Torquato Netto reunidos no livro Os últimos dias de Paupéria, os textos que compõem a publicação Navilouca e outros trabalhos onde as novas formas de apreensão do mundo se revestem de um forte teor crítico e anárquico. Fecha parêntese.

As sugestões que o tratamento do tema da loucura traz no sentido de crítica à ordem institucional e política certamente estão presentes em Carlos Sussekind e Renato Pompeu.

Armadilha para Lamartine descreve as relações de uma família liberal, um certo tipo de família “intelectualizada e aristocratizante” da classe média, as tramas emocionais que a compõem, o jogo de poderes que ali se estabelece. Campo fértil para o desajustamento de Lamartine e para sua temporada num hospital psiquiátrico. O livro é construído pela montagem sutilíssima de dois diários: o primeiro reúne escritos de Lamartine em sua passagem pelo sanatório, e o outro, do pai, Espártaco M, com anotações de sua varandola-gabinete.

Os diários são datados (outubro de 1954-agosto de 1955), e a escolha do momento político – muito presente no livro, seja em comentários no diário de Espártaco M, seja como contexto que cria problemas para a família – acaba sendo muito feliz. Entre leituras raras, preocupações com a saúde, jantares e atribuições, Espártaco M refere-se com sábia delícia às peripécias da política institucional, às eleições, à defesa do nacionalismo, à presença do capital estrangeiro, à ameaça de golpes pairando no ar.

A seleção e organização dos dois diários, que lhes confere caráter ficcional, deixa para o leitor a necessária leitura dos espaços, das frestas, das descontinuidades e dos nexos que se estabelecem na montagem. Capturado pelas armadilhas do texto, o leitor é convidado a participar de sua produção de sentido, onde poderá flagrar, pontuando a fala dos diários, uma irônica e violenta crítica a certos valores da classe dominante e de seus setores médios, no Brasil Café/JK.

O “desgarramento” de Lamartine recusa as concepções de mundo, gostos, preferências e ateísmos do progressista e liberal Espártaco M. Desgarramento todavia ambíguo, pois se contradiz: a “filosofia” – o controle – do pai não chega a romper de todo com os pressupostos que regem a inserção de sua família no corpo social, com ela segue partilhando uma mesma disposição, não menos ambígua, nos traços de seu relacionamento – frouxo mas, enfim, subordinado – com o mundo do trabalho da produção. Mas Lamartine, ainda que provisoriamente, expressa uma diferença: sua “loucura”. É através dela que se apresenta a chance de um outro ponto de vista sobre os valores de seu próprio ambiente social. No embricamento cuidadosamente preciso e labiríntico das representações de Lamartine filho e Espártaco pai, deflagra-se a possibilidade da leitura crítica: as armadilhas da família e a percepção da instituição psiquiátrica como espaço politico de gestão e controle social, onde a lógica do mundo dos “normais” pode ser reconhecida em toda a sua violência e loucura.

Em Quatro olhos, essa mesma leitura crítica se faz presente, num texto menos cheio de armadilhas. Uma narrativa que, desde o início, fala e parece duvidar de si mesma, de sua precisão, de sua capacidade de estabelecer-se definitivamente. De novo, como em Lamartine, uma escrita a “quatro olhos e um sanatório”.

O narrador perde um romance que havia escrito, e tenta reconstituí-lo, a partir de sua passagem por um hospital psiquiátrico. A tentativa dessa reconstrução, que constitui o romance que lemos, confunde passagens do livro perdido, as andanças do narrador à sua cata e lembranças de episódios que poderiam fazer parte do romance perdido, sem que, de fato se possa ter certeza disso: “Não sei se falo da vida ou de coisas do livro ou mesmo se relato a memória ou estou inventando no momento”.

Em Quatro olhos, a relação loucura-política é mais direta. A própria passagem do narrador pelo hospital, sua experiência com a perda da razão, seu processo de alienação estão significativamente vinculados à ação da polícia política.

Dessa forma, como nota Luís Costa Lima (Réquiem para a Aquarela do Brasil, 1978, mimeo.), o papel de controlador que em Armadilha para Lamartine é atribuído ao pai deixa aqui de ser personificado, aparecendo sob o perfil de uma entidade extensa e poderosa, não mais controladora apenas dos conflitos familiares: o Estado. Também em Quatro olhos, temos a presença – tão frequente em romances dos anos 70 – da tematização dos recentes descaminhos da intelectualidade militante.

Em Renato Pompeu, essa discussão, ao ser tratada em vários níveis, se faz mais complexa. Aqui, a militância política em movimentos e organizações pré e pós-68 surge através da mulher do narrador, que alia seu impulso em direção “à luta ao lado das massas” a uma vida bem pouco “revolucionada” de filha da classe dominante.

Se a relativa distância experimentada pelo narrador em face dessa militância permite que ela seja vista em toda a sua dimensão contraditória, não faltará por certo ao romance a crítica das instituições, da opressão e da alienação social. E, afinal, é a própria literatura – que não deixa de ter sua dimensão institucional – que surge relativizada em sua suposta capacidade de se apoderar da realidade e de funcionar como instrumento privilegiado de intervenção política.

A militância, a loucura, a perda, a procura. Temas fundamentais e mesmo centrais da experiência social desse período que aqui se tomam elementos constitutivos da séria produção de Renato Pompeu.

Armadilha para Lamartine e Quatro olhos: não escondemos uma particular preferência por esses trabalhos, que, junto com A festa e Zero, mostram que, na literatura, o engajamento político pressupõe e mesmo só se realiza num engajamento com a própria linguagem.

PRODUTO NACIONAL CULTO

Artificial ou não, programado ou inevitável, o boom editorial de 1975 trouxe dividendos. Algumas editoras se firmaram, outras passaram a ter sua atenção voltada para o autor nacional. A Ática destaca-se investindo numa linha editorial agressiva que procura capitalizar as diversas formas de comercialização do livro. A Civilização Brasileira prossegue, com um salto nas listas de títulos, atenta à divulgação do trabalho de escritores brasileiros, sem, todavia, o apelo de marketing da Ática. Tornando-se oportuna do ponto de vista comercial a divulgação de novos autores, algumas multinacionais surgem no ramo e outras, nacionais, como a Codecri, aparecem com força total.

A produção se estabiliza e conhece um bom nível, com a proliferação de autores “médios”, que, como se sabe, são mais expressivos, no sentido do “tom” de uma época, do que os altos voos do grande autor episódico.

A conquista de mercado e o maior interesse que a literatura parece despertar, se favorecem alguns oportunismos editoriais, trazem, por outro lado, a possibilidade de uma maior divulgação do trabalho de escritores de diversos pontos do país, relativizando (ou reabastecendo?) o vicioso circuito Rio-São Paulo-Minas.

Norte-Sul, Leste-Oeste. Do Amazonas, Marcio Souza envia Galvez, Imperador do Acre. E, com ele, um folhetim maravilhoso modernista-tropical onde as contradições de um Brasil que “pode ser um absurdo” explodem no delirante cenário do ciclo da borracha, na ascensão e queda de Luiz Galvez. Provérbio quinhentista português: “Além do Equador tudo é permitido.” Luiz Galvez: “Nem tudo.”

A recuperação do humor, uma boa notícia, aparece também do outro lado do mapa nos contos vivos e rápidos e inventivos de Moacyr Scliar: Balada do falso messias, Carnaval dos animais e História da terra trêmula. Ainda do RS, Tânia Faillace, com Vinde a mim os pequeninos e 035° ano de Inês. O Pará surpreende com Minossauro, segundo romance de Benedicto Monteiro, que desafia o regionalismo tradicional numa mixagem fortemente contextualizada, nas contradições da Amazônia contemporânea. Do Nordeste a dupla Joaquinho Gato de Juarez Barroso e Parabélum de Gilmar Carvalho: boas surpresas. Em Minas a grande presença de Roberto Drummond com O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado e A morte de DJ em Paris. Num quadro realístico-mágico-brasileiro, Roberto Drummond fecha sua lente no detalhe dessas marcas pessoais, mas transferíveis, como o maço de Hollywood, a escova Kolynos, o sal de frutas, as fantasias ou realidades das Ritas Hayworths e Tyrones Powers integrados no universo de personagens do Brasil urbano. É um tipo de jornalismo imaginário que reporta o universo marcado pelas mutilações e pelo conflito. Enquanto Wander Pirolli agita o mercado de livro infantil com os polêmicos A mãe e o filho da mãe, O menino e o pinto do menino e tantos outros.

O território da teoria nos surpreende com Maíra de Darcy Ribeiro (o índio enfim conquista seu espaço legítimo na ficção), com a nossa melhor e rara ficção científica em Noites marcianas e O cão polvo de Antares de Fausto Cunha, com a lucidez mágica e As marcas do real de Modesto Carone e com o trabalho de Silviano Santiago em O banquete, que brinca corrosivamente com as modalidades do conto, e O olhar, a novela edipiana da família belorizontina.

Do Rio, outras faces da moeda: Aguinaldo Silva num percurso que vem da reportagem policial ao universo subversivo do avesso da história das minorias sexuais. Primeira carta aos andróginos, República dos assassinos, Geografia do ventre, No país das sombras. E a “viagem” curiosíssima de Flávio Moreira da Costa com Desastronauta, As armas e os barões, As margens plácidas.

A tragédia carioca: a segura câmera lenta de Ary Quintella pegando o instantâneo e os não ditos em Sandra Sandrinha e a violência em Terror e êxtase, onde Cadinhos de Oliveira carrega nas tintas e na barra-pesada.

Sônia Coutinho, Rubem Mauro Machado, Helena Parente Cunha.

De além-mar, a presença ótima de Augusto Boal com a deliciosa e sangrenta aventura latina de Jane Spitfire e Crônicas de nuestra América. De além-mar, ainda, Paulo Francis invade o litoral com sua linguagem atropelada, memorialista, ensaística, jornalística e mobiliza as atenções e os debates nativos: Cabeça de papel e Cabeça de negro. A história contada pelo universo do Poder.

Observações: 1) É de leitura obrigatória Lavoura arcaica e Um copo de cólera, de Raduan Nassar, sem dúvida um dos melhores escritores que a ficção 70 revelou.

Por volta de 1976/77, ainda sob os efluxos do boom, a palavra “novo”, de tão repetida, parece velha. Passemos, portanto, aos novíssimos. E aqui vai uma curiosidade: temos os novíssimos da ficção e os novíssimos na ficção. São autores que tiveram sua formação e informação no período pós-68, quando a universidade e o debate político e cultural apresentam condições bastante específicas. A própria experiência social dessa geração traz marcas e cicatrizes bastante evidentes. O apelido “geração do sufoco” já está datado e registrado em cartório.

E, nesse caso, é interessante notar um confronto de saídas que vieram se revelar nas diferenças entre os novíssimos da e na ficção.

Se a poesia conhecida como marginal se organizou em termos de mercado alternativo e de uma poesia que se quer antes de tudo gesto lúdico e vitalista, valorizando de preferência um pacto com o descompromisso do que a escrita profissionalizante, o conto dos novíssimos percorre o caminho inverso.

No rastilho do impulso experimentado pelo movimento editorial pós-74, esses escritores, basicamente dedicados ao conto ou à short-story, relacionam-se com a literatura como um compromisso marcadamente profissionalizante e de inserção no mercado. É dessa leva a maior parte dos jornalistas, roteiristas para TV e cinema e atividades afins a que já nos referimos anteriormente.

Mesmo em relação à representação de mundo que expressam, as diferenças são sensíveis: aqui, uma ficção de gosto realista, preocupada mais diretamente com o dia-a-dia das classes desfavorecidas e dos marginais. A publicação pela Codecri da antologia Histórias de um novo tempo (1977) explicita na introdução que se trata da “arte a se aproximar do cumprimento de sua função social”. Essa antologia reúne os trabalhos de Julio Cesar Monteiro Martins, Luiz Fernando Emediato, Domingos Pellegrini Jr., Caio Fernando Abreu e Antônio Barreto.

Angústia, impotência, travestis, surfistas, a mulher, sexo e política. O universo que a geração do sufoco não reconhece como patologia. Marginais, malditos.

A produção do novíssimo conto se desdobra em muitos nomes e prolifera em edições. E, como já dissemos, certas vezes com algumas escoriações e ferimentos graves.

Por sua vez, os novíssimos da poesia, aqueles que se especializaram no drible do sufoco, arriscam alguns passos em direção à prosa. Não se poderia aqui falar de conto ou mesmo de ficção. É como que uma poesia que está querendo contar uma estória. É o Quamperius do Chacal, O CatXupe do Tavinho Paz, a correspondência e os diários da misteriosa Ana C. ou os textos de Angela Mellin.

De uma forma e de outra, bem ou mal, os novíssimos abriram brechas importantes para a fala de uma geração.

AEROPORTO INTERNACIONAL DO GALEÃ0,1979

“De Norte a Sul, de Leste a Oeste, o povo grita Luís Carlos Prestes.” Milagre, distensão e abertura. Do Ato 5 à rearticulação partidária, do silêncio à explosão das manifestações, múltiplas, espontâneas, (des)organizadas. Nesse final de década um novo dado em cena: a emergência das reivindicações populares — agora de próprio punho: a insatisfação com as condições materiais de vida, com a política fornecida pelo regime e o ensaio de uma nova postura que parece desconfiar dos paternalismos. Energia e Vitalidade. Os estudantes reconstroem suas entidades e, à revelia, “consentida”, do Estado, trazem de volta a UNE. A anistia, ainda longe de ser ampla, recebe os exilados, aguardados, saudados, festejados.

Panorama movimentado de um momento crítico. Projetos em disputa começam a se delinear com maior clareza. O Estado enfrenta a crise, tentando a todo custo assegurar a iniciativa no terreno político, promovendo reformas, decretando sua democracia, trabalhando “por cima” uma abertura de corte autoritário.

No campo das oposições o debate está aberto com as diferenças vindo à tona, novos campos se definindo, alianças se reavaliando. A “frente” recompõe-se, ou de fato tenta constituir-se, agora contando com a complexidade das diferenciações. Cinco mil alto-falantes pedindo apartes, colocando questões, dando lugar a um debate vivo e quente.

Entre a intelectualidade, as divergências que durante a década estiveram latentes, ou que apenas se insinuaram aqui e ali, chegam às páginas da imprensa. Odaras e ortodoxos, desbundados e reformistas, radicais e populistas — as posições definem-se ou são definidas num jogo que tem como pano de fundo os redimensionamentos das ligações intelectual-Estado-povo. Entre os apelos das agências estatais de cultura e a efervescência da retomada dos movimentos de massa os intelectuais balançam (inclusive os anos 70 na literatura).

Ensaiam-se alternativas à produção mais comprometida com esquemas institucionais. Grupos teatrais de bairro, portas de fábrica e universidade, a volta do Te-Ato Oficina, shows para levantar fundos para as entidades que se reorganizam, literatura de periferia, imprensa de bairro e de sindicato. E, finalmente, começa-se a perceber o potencial revolucionário de questões sobre a mulher, o negro, o índio, o homossexualismo e a ecologia.

A retomada do discurso político direto, sem dúvida, tende a retirar da literatura e da produção de cultura em geral o privilégio de ter sido um espaço onde, entre alegorias, artimanhas e alusões, manteve-se um debate sobre a realidade e o momento brasileiro. Espaço que nos deu bons momentos mas que serviu também de zona franca para que a literatura política dita de esquerda encampasse alguns equívocos ideológicos e de linguagem. Sem o álibi da censura e do fechamento repressivo que os 70 experimentaram, a literatura dos 80, a depender da conjunção dos astros, também tende a se repensar.

Por enquanto, o que é absolutamente legítimo e merecido, experimentam-se as emoções e surpresas que as brechas, conquistadas, da abertura oferecem.

No circuito, saem das gavetas filmes, peças, romances e canções censuradas que ganham a dimensão de documento e reconhecimento de terreno. A história vai sendo revista com o desejo vivo de avaliar experiências, de discutir essa realidade — que teve lá seus momentos de ficção terrível — do Brasil dos últimos anos.

Nesse impulso, literatura, depoimento e memória — de liberais, militares e militantes — esquentam as bancas e livrarias. O outro lado do poder, por Hugo Abreu, As memórias de Gregório Bezerra e Guerrilha do Araguaia, de Mourão Filho, Exílio, de Abelardo Jurema, Tortura, de Antonio Carlos Fon, Milagre no Brasil, de Augusto Boal, e ainda outras publicações como O livro negro, da USP, e Os expurgos, da UFRS.

Os personagens de Bar D. Juan, Reflexos do baile, A festa, Quatro olhos, Em câmara lenta pegam da pena e recontam suas histórias: A esquerda armada, testemunho dos presos políticos do Presídio Milton Dias Moreira; Os exilados de Cristina P. Machado, Cartas sobre a anistia de Fernando Gabeira, Cartas do exílio de Flávia Schilling.

As peças e músicas em cartaz neste domingo de outubro de 1979 dão o clima de um certo sentimento que estamos experimentando: Jaz-o-coração, Explode o coração, Rasga o coração.

É aí que chega o mineiríssimo Gabeira e pergunta: “O que é isso, companheiro?”

ANTONIO CALLADO

Escritor e jornalista. Autor das obras A Assunção de Salviano (1954), A madona de cedro (1957), Quarup (1967), Bar D. Juan (1971) e Reflexos do baile (1976)

Numa década de fechamento, como a de 70, que papel a literatura pôde desempenhar?

Em épocas assim, como se sabe, a literatura tende quase a se substituir à crítica direta dos acontecimentos. Quando a crítica é direta demais, a literatura pode perder, passados os acontecimentos, o valor que terá tido. Ou só reterá um valor de documento.

Como você vê a aproximação de literatura e jornalismo na ficção recente?

Eu diria que no Brasil o assunto está crescendo para lá de todos os limites. O que importa é a obra de literatura tal como acabada e apresentada ao público. Drummond é o nosso grande poeta e é também excelente cronista, inclusive com faro de repórter para os fatos importantes do dia-a-dia. Graham Greene é até hoje, quando já dobrou o cabo dos 70, um excelente jornalista, no sentido de escrever artigos diretos sobre acontecimentos internacionais. E para seus romances colhe material vivo tal como faz um repórter. Repito que a única coisa que conta é a obra acabada.

Que tipo de vida você imaginaria para o Padre Nando nestes dias de intensa movimentação política?

Uma coisa que eu acho que ele faria seria entrar para a Igreja outra vez. Quando se libertou de uma falsa Igreja que se transformava em arte pura e dava as costas ao povo, Nando, principalmente por intermédio da mulher, assumiu sua plena figura de homem e de revolucionário. A revolução direta não tendo sido ainda possível, ele bem poderia voltar ao aprisco, no sentido de colaborar com o bispo Casaldáliga, com D. Tomás Balduíno, com D. Paulo Evaristo Arns. Acho fascinante a evolução da Igreja no Brasil e vejo Nando muito bem inserido nela, nesta Igreja corajosa e que botou Deus no meio da rua de novo. Já comecei a tomar vagas notas para escrever, sem prazo e sem forma ainda, um livro que se chamará A velhice do padre Nando.

ABEL SILVA

Escritor e letrista. Autor das obras O afogado (1971), O açougue das almas (1974) e Asas (1974)

Abel, fale do seu trabalho nesses longos e negros anos 70.

Eu tenho três livros publicados, os dois primeiros escritos em 1968/69, um romance e um livro de contos — O afogado e Açougue das almas. Os dois escritos ao mesmo tempo e que são como verdadeiros sintomas do que eu, minha geração estávamos vivendo. Repare nos títulos dos livros: Açougue das almas, veja, agora o comércio de carne é feito por butiques e a morte do animal fica obscurecida, você não tem mais aquela crueza dos açougues. Na Zona Sul, pelo menos, não tem mais açougue, só butique de carne; mas nos açougues você via as carnes penduradas, coelhinhos rosados pendurados, porquinhos, quartos de boi, você via a morte, até a expressão da morte na cara de alguns animais você via. E neste período de 1968/69 no Brasil eu via tudo como um grande açougue, via tudo esquartejado, exposto aos pedaços, tudo ensanguentado. Eu poderia escrever mais 30 livros e todos teriam um título destes e falariam deste mesmo sentimento de esquartejamento. Eu reparo que na verdade todos os livros escritos naquela época são sintomas desta visão de terror.

Este procedimento é o que se costuma identificar como “Alegorias Táticas”, num momento em que não se podia falar claramente?

Mas estas metáforas estão só nos títulos, dentro se diz tudo bem claramente. Em O afogado há um personagem que vai preso como terrorista, outro enlouquece, outro vai pras praias da Bahia, outro entra fundo nas drogas, outro vira místico, não há nenhuma alegoria tática, eu não estava em condições de armar táticas. O afogado é um livro sincero, cujo maior defeito é justamente não ter ultrapassado literalmente esta sinceridade.

Hoje você ainda acha que esta visão faz jus à época?

Não, eu acho que faltava distanciamento. Veja Portugal, teve uma ditadura por mais de 30 anos e quando ela acabou os críticos portugueses, os jornalistas, ficaram dizendo, pois bem, cadê os romances, as peças de teatro, cadê os poetas, os cineastas que reclamavam da censura e do obscurantismo, cadê as obras, como se fosse uma coisa imediata, pra cinco minutos depois. Mas você não pode exigir que um corpo enfraquecido pela doença, tão logo cessem os sintomas, a febre, as dores, você não pode querer que este corpo vá logo disputar 100 metros rasos. E com os narradores — os poetas não, os poetas podem jogar mais com o presente — mas os narradores necessitam de um tempo histórico, os narradores falam do passado. Então acabou a censura no Brasil, acabou o AI-5 e nós começamos a ter só agora os sintomas de uma verdadeira literatura pós-64, falo de literatura de inspiração política, mais madura, menos testemunhal. Acho que, por exemplo, Reflexos do baile, A festa, Cabeça de papel e Cabeça de negro, Maíra, esses são romances pós-64 — são os primeiros pós-ditadura no Brasil — entendeu? Agora eu, quando escrevi O afogado, com vinte e poucos anos, eu fiz um teste público, eu fui um ingênuo. Eu expus um rascunho, a minha experiência direta, o rascunho inclusive de minha formação literária. Tanto assim que depois destes dois livros eu fiquei seis anos sem editar. Só fui retomar com Anima. Só eu sei que tipo de crise foi essa, que tipo de processo foi esse. Porque eu já não me dava mais o direito de vozes que não fossem a minha, eu não queria ficar me escondendo de minha barra macaqueando velhas vanguardas. Não ia entrar neste tal “saudável beco sem saída” onde até hoje uns brilhantes cérebros de minha geração estão enfiados. “Nós precisamos aprender”, como diz Melodia. Publiquei agora Asas porque já me ouvia quando me lia. Só quando estava em condições de voar. Quer dizer, Asas é assim o meu primeiro livro, mas eu gosto de ter escrito aqueles outros dois — aliás, Açougue das almas já está em terceira edição e as edições da Ática são grandes — porque foi um aprendizado, foi uma exposição corajosa. Na época pintavam José Agripino de Paula, João Ubaldo Ribeiro, Gramiro de Mattos, Jorge Mautner — são quatro que eu sinto que são da minha. Apesar de serem completamente diferentes uns dos outros e eu de todos eles. O João Ubaldo é hoje um escritor conceituado, mas Setembro não tem sentido, seu primeiro livro, é um livro de aprendiz. Daí pra Sargento Getúlio foi um grande passo! Já o processo de um Paulo Francis é outro. É um intelectual que investiu o tempo todo na crítica, no jornalismo, no ensaio onde você só arrisca mesmo a opinião. Então quando ele foi escrever romances ele já tinha não só um poder — aliás um grande poder, basta ver como a crítica tirou o cu da seringa, teve uma do Otto Lara Rezende, na Veja, que foi um primor de pessedismo ele tinha então este poder e um desembaraço de médico-cirurgião, de alguém acostumado aos mecanismos do corpo literário. Só faltava mesmo criar um. É a velha história do médico e do monstro. Outra coisa é você expor seus rascunhos juvenis escritos em quartinhos de empregada. Eu estava aprendendo tudo. Eu me perguntava: um escritor deve ou não escrever todo dia? Eu queria escrever todo dia! Escrevia!! Meu conceito de disciplina partia de uma generalidade absurda. Cada um tem que descobrir a sua disciplina, sua maneira de “manter-se em forma”, como diz Norman Mailer. A minha vem de uma ligação poético-existencial plena. Quero estar o tempo todo capaz da percepção estética. Agora, se escrevo ou não é outra questão.

Abel, fala um pouquinho daqueles tempos. Como é que você vivenciou, experimentou o chamado vazio cultural dos 74 pra frente?

Eu percebo que foi um momento histórico completamente original no Brasil, porque foi um momento em que não só as classes economicamente inferiores sofreram o tacão do poder, mas também a classe média sofreu. Foi uma guerra civil, que dividiu a nossa história em antes e depois dela. Raras são as famílias burguesas que não tiveram filhos presos, malucos, exilados, paranoicos, drogados, então houve um envolvimento geral, qualquer mãe de classe média brasileira hoje é de uma certa maneira politizada, qualquer mãe mineira que antes só conhecia o terço e a família tem hoje um sentimento mais amplo porque um filho seu, um sobrinho, a filha de uma vizinha, o marido da filha, alguém ligado a ela de alguma maneira sofreu os efeitos desta guerra.

E os escritores?

Então os escritores como parte desta sociedade entraram na dança. O barco afundou pra todos. Foi o maior trauma coletivo brasileiro, foi a nossa guerra civil espanhola, nossa Guerra do Vietnã, foi muito maior que maio de 68 pra França, foi um envolvimento total, uma implosão. Então de 1974 em diante já começa a haver uma espécie de tomada de campo, a contagem dos mortos, a retirada dos feridos, um processo que vivemos hoje em seus últimos momentos. Nesse período negro surgiu também uma “crítica”, um exercício masturbatório de intelectuais colonizados que teve na revista Vozes seu veículo principal. Ficava um cara falando dos quadrinhos, outro descobria que “a poesia agora está na música popular”, outro analisava Capitu pelos princípios da antipsiquiatria, aquela beleza. E eram estes os caras que cobravam dos jovens escritores brasileiros uma obra de vanguarda, uma produção assim ou assado. Enquanto eles faziam aquela titica cultural. Cadê estes caras hoje? Pra eles não há anistia que resolva.

E a ala desbundada?

Qual delas? Torquato Netto, que você está citando, repare bem. O livro de Torquato editado depois de sua morte, por ele você percebe bem a trajetória de Torquato. Torquato surgiu na música popular com o tropicalismo. Na verdade surgiu antes, produzindo com Gil e Caetano. Pois bem, veio depois um grande período em que Torquato esteve totalmente marginalizado. A gente encontrava Torquato na rua, ele estava completamente frágil, no sentido de que se sentia à margem do espaço dos próprios companheiros, se sentia sozinho. E não foi só “loucura”. Foi um período que só esse livro veio depois esclarecer. Foi, pra mim, o mais importante do poeta Torquato Netto. Ele estava secretamente fazendo uma obra de sintoma que teve uma grande qualidade cultural mas que principalmente expôs o homem Torquato, só naqueles textos a gente se defronta mesmo com ele, não é na Navilouca, não é nos Super Oito, não é na Polem. E, num certo sentido, a morte avalizou esta obra, sacramentou-a como testemunha, como verdade. Eu sou completamente contra a mistificação de Torquato no sentido careta. É preciso ver que a obra de Torquato é importante como a verdade do poeta no momento secreto, como experiência singular, não generalizável. Hoje, com a apologia do brilho e da vitória pessoal, Torquato estaria de novo em silêncio, marginalizado, pensando na morte.

Quais são as referências literárias de que você se lembra nesse período?

Bem, eu estava ouvindo música. Eu estava ouvindo Paulinho da Viola, estava ouvindo Caetano, estava ouvindo os não-literatos de minha geração. Eles estavam muito mais afinados com o que eu vivia, Capinam, Torquato e também Bob Dylan, Haevens, Joe Cocker, claro, além de todas as coisas brasileiras eu estava ouvindo o maná de minha geração internacional, Woodstock eu poderia mostrar pra meu filho como um show de minha rua, uma festa de São João. Aliás, essa coisa de década, de geração… Nossa década de 60 teve um golpe militar em 64 e o AI-5 em 68: uma porrada no princípio, outra no fim. Geração também é um conceito muito frágil — qual a geração de Clarice Lispector? Parece que é a mesma de Otto Lara Rezende — e daí? Eu estou começando agora. Eu sou da década de 80.

Abel, e o 75, quando esquenta a ficção e começa uma coisa que eu acho nova, que é o escritor se profissionalizando, lidando com direitos autorais, lidando com sindicatos, se organizando com editoras com mais sentido de marketing etc? O que você vê disso que se chama normalmente de boom?

Eu acho que a grande novidade do Brasil atual são os números. Quando o Jô Soares diz que “meu caso é números” é uma coisa inteligente, porque os números no Brasil são assustadores e toda reflexão sobre a cultura brasileira tem que levar nossos números em conta. Em 1982 o Brasil terá 50 milhões de eleitores, Maria Bethania, que já foi uma cantora de elite, vende hoje 700 mil discos, Roberto Carlos vende 2 milhões, Chico, 600 mil, sei lá. Um compositor jovem, no seu 5° ou 6° disco, já quer vender 100 mil cópias. O cinema brasileiro já supera King-Kong, os tubarões e os chefões, o teatro tem condições de crescer muito, foi quem mais sofreu com a censura, mas o teatro brasileiro pode crescer muito. É o momento em que o capital descobre que cultura brasileira dá lucro e ainda há, para o Brasil, o mercado do chamado terceiro mundo, a América Latina, a África. Esse é um dado novo, um dado que as elites culturais sempre desprezaram, mas que agora, com a abertura de um novo tempo, de um novo país, não dá mais pra desconhecer, todo mundo tem que sair à luta pelos novos espaços. Então o boom do contista… ora, o boom do contista! Aconteceu que algumas editoras resolveram acreditar que o escritor brasileiro vende, no caso os contistas. E os livros dos contistas venderam. Se houver um investimento sério em poesia, teremos o boom da poesia. Todos os boons são possíveis na cultura brasileira.

Quais eram na sua cabeça os principais nomes em 1975?

Ficção, poesia 75? A revista Anima. As revistas literárias desempenharam um papel muito importante nesta época. Reativaram o fogo. As editoras estavam cheias de burocratas sonolentos, preconceituosos, a maioria ex-escritores, todos acomodados com a derrota da cultura brasileira. as revistas como Anima faziam circular o sangue sadio, a produção mais inquieta, mais viva.

E a aproximação entre literatura e jornalismo? Como você vê isso em termos de mercado e de criação?

Isso de literatura jornalística é papo de jornalista, não é de escritor, não. Jamais conheci um jornalista que não fosse escritor, que não tivesse um livro inédito na gaveta, que não estivesse “armando alguma” pra cima da literatura. E vem sempre com aquele papo de Hemingway, de Graciliano, mas acontece que a literatura de Hemingway é literatura, claro, não é jornalismo editado em livro. Literatura tem a ver com a fantasia, o Eros, o não-fato. O fato em literatura, ao contrário do jornalismo, é o fenômeno gerador, é um mero trampolim para a linguagem, a criação.

E o romance-reportagem?

Estas reportagens editadas em livro? Ora, o meio não é a mensagem, pelo menos não sempre. Não existe jornalismo romanceado, ou é uma coisa ou outra. Eu acho que os grandes livros-de-jornalista escritos no Brasil foram os Cabeças, de Paulo Francis. E não são jornalismo, são literatura. Antonio Callado é jornalista tanto quanto Drummond é funcionário público.

Escuta, Abel, o que você tem a dizer sobre o neopopulismo que surgiu lá pelo final da década… e que pretende ficar?

O populismo é uma espécie de epidemia, ele aparece sempre que há uma maior abertura democrática. Porque o populismo na verdade é uma questão de mercado, é uma questão de quantidade. É uma redução da qualidade em função da quantidade. Graças ao populismo o sujeito pode entregar-se ao mais deslavado comercialismo resguardando a retaguarda com a desculpa do assunto politico, da conscientização…

Mas e a bandeira política que eles carregam como sendo a literatura?

Bandeira política em arte… As bandeiras que todo populismo carrega se baseiam nas metáforas marcadas. São estas metáforas de manual, metáforas como cavalos de carruagem, que correm sob domínio, sempre carregando o sentido óbvio, não abrem o sentido, não voam. Populismo é antidialético, é sempre uma visão de cima para baixo, é orientador, didático e principalmente culposo.

Mas eles se julgam os porta-vozes do povo, você concorda?

Claro que não. O discurso populista é um discurso de circunstância, é oportunista. Em termos de arte isso é simplesmente fatal. Um artista tem que acreditar na capacidade de subversão da sua linguagem, não deve desejar massagear a maioria a qualquer custo.

Abel, você diria que Jorge Amado é populista?

Jorge Amado é um artista maravilhoso, um gênio da raça brasileira.

Mas o que se diz é que Jorge Amado mistifica o povo, vende o povo.

Isso é papo de crítico paulista. Jorge Amado é um cavalo do povo. É um fato, não é uma questão. É um escritor extraordinariamente coerente. É preciso reler hoje o que Oswald, a língua mais ferina da cultura brasileira, disse de Jorge Amado. A cada novo livro dele reaparece essa galeria obscura pra dizer que Jorge já era, que já não tem mais o mesmo pique. Ora, Tieta é um dos melhores livros de Jorge Amado. Junto com Maíra e os dois últimos de Clarice Lispector, está entre os melhores livros brasileiros contemporâneos. Eu noto que todo escritor adora Jorge e todo crítico quer tirar uma casquinha…

Eu queria saber do seu trabalho nesse quadro aí de emergência do populismo, de abertura, de final, de liquidação de década, de novos ventos…

Eu estou completamente concentrado em meu trabalho, não sei se está acabando a década de 70, não sei por onde anda o populismo, qual é a das vanguardas, isso só me interessa pra debate, quando sou excitado pra isso, mas na verdade eu busco outros alimentos. Em termos de poesia estou lendo pra trás — cada vez mais Bandeira, Jorge de Lima, Joaquim Cardozo, que eu considero um poeta absolutamente extraordinário, estou lendo Murilo Mendes, ah, Murilo… “As esferas dormem, os triângulos vigiam”… Quintana, Drummond. Eu quase só leio poesia.

Hoje você está trabalhando como?

Quero simplesmente estar anotando. Tenho uns textos urbanos, o nome talvez seja Favos de pedra, que é uma imagem de José Craveirinha, poeta moçambicano. São “percepções das esquinas”, assim como Asas são “solos de lira elétrica”. E estou preparando um livro de contos pra Ática de São Paulo, Rajah das veredas.

Você concorda que a literatura brasileira estava caminhando para a autobiografia?

Eu acho que a imaginação e o real estão muito próximos para um escritor. Tudo é pré-linguagem. Esta literatura testemunhal, ligada a uma experiência pessoal, tem lugar num país que sofre mudanças tão bruscas, um país dinâmico, novo. São como cartas de navegantes. Mas pra ser literatura o texto tem que atravessar o terreno do mero desabafo. Afinal em literatura nada é fato, tudo é literatura.

Mas com isso, Abel, você está dando mais um chega pra lá em toda essa ficção que está se dizendo historiadora da época, dessa década, que está voltada pro fato.

Pra mim os historiadores da década, de todas as décadas, são os loucos, os videntes, os cavalos da raça. Sem essa de fatos!

WALY SALOMÃO

Poeta e letrista. Autor da obra Me segura qu’eu vou dar um troço (1972).

Waly, como você avalia, hoje, o Me segura em função do panorama político-cultural 70-73?

Falar sobre o Me segura…?

Bem, uma coisa para mim é visceral: marcar o caráter IRREDUTÍVEL dele.

ELE está ali inteiro integral talqual uma rocha donde mina uma fonte d’água quem quiser saber

do que ele trata não faça arrodeios se chegue mais para perto bote as palmas da mão em concha

arregace suas mangas e beba DIRETO sem intermediários sorva daquele manancial intacto.

Eu não parei ali mas ele está lá intacto.

Que queriam de mim? A brandura dos que batem no próprio peito mea culpa mea máxima culpa?

Uma Madalena arrependida, expiando autocríticas? O prosseguimento moto contínuo do mesmo

périplo? O Me segura… de novo? O Me segura n°2?

O meu é um curso enviés torto oblíquo de través. O meu é um fluxo MEÂNDRICO.

Eu subo e desço mas não desaguei de todo ainda.

Em termos de linguagem, como você define o Me segura?

Antônio Cândido quase entendeu o alicerce do Me segura quando assinalou a RUPTURA DE

GÊNEROS que ali de fato se perfaz…

Você o considera como literatura engajada, ou mesmo como um trabalho de intervenção política?

A MEDIDA DO HOMEM é uma espécie de curto KABUKI CABOCLO.

É TEATRO RELÂMPAGO pois possui estrutura homóloga ao COMÍCIO RELÂMPAGO.

TEATRO DA TORTURA visto do vértice do torturado.

CONCISÃO E BREVIDADE.

Que significações teve o desbunde na geração 70?

Desbunde e desbundado são o que pode refletir o olho reificador do sistema. In SAINT GENET, COMEDIEN ET MARTIR eu encontro esta frase que recorto com minha tesoura-síntese: “As pessoas de bem dão nome às coisas e estas conservam tais nomes.”

Quem sabe o que eu sei quem está dentro da minha pele sou eu. Agora se você quer saber o que eu faço: então vá lá.

Sobre as outras questões a que você se refere: a História pode talvez não ser um pesadelo mas a historiografia político-cultural-literária certamente sempre será.

Uma receita de arte poética?

OLHO DE LINCE

quem fala que sou esquisito hermético

é porque não dou sopa estou sempre elétrico

nada que se aproxima nada me é estranho

fulano sicrano beltrano

seja pedra seja planta seja bicho seja humano

quando quero saber o que ocorre à minha volta

ligo a tomada abro a janela escancaro a porta

experimento invento tudo nunca jamais me iludo

quero crer no que vem por aí beco escuro

me iludo passado presente futuro

urro arre i urro

viro balanço reviro na palma da mão o dado

futuro presente passado

tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo

é fósforo que acende o fogo da minha mais alta

[razão

e na sequência de diferentes naipes

quem fala de mim tem paixão

ALEX POLARI

Preso político por engajamento na luta armada de 1970 a 1979. Autor das obras Inventário de cicatrizes (1978) e Camarim de prisioneiro (1979).

Em 1964, a ditadura tratou de quebrar a continuidade de um processo social que, mesmo nos moldes populistas, estava “engajando” muita gente e ficando perigoso. O período posterior, depois de uns dois anos de marasmo, encontrou a minha geração num processo de aprendizado de mundo voltado pra “fora”. Nessa época, eu iniciava minha existência útil político-genital, tomava surf, ouvia Beatles, esses baratos. Desde 1966 havia recomeçado a rearticulação do ME e a invasão da Faculdade de Medicina foi o grande marco. A partir daí, esse processo, que culminou com 68, liberou as energias criadoras pra fora. Havia um espaço de legalidade pra que fosse assim, o que não houve, por exemplo, na geração de 70, que surgiu sob a égide da viagem “pra dentro”. Bem, nessa época, quando fiz minha estreia, havia referências de participação social muito fortes. E o processo foi se polarizando à medida que o espaço que o Poder nos dava foi-se estreitando. Cada vez ficou mais difícil o meio-termo. O negócio foi virando ou arriscar a vida ou saltar fora e arranjar um Nirvana qualquer para se refugiar.

Foi isso precisamente que minha geração escolheu em 1969. Desbunde, piração ou guerrilha, já que a militância ao nível do reformismo era negada. Quem optou por alguma coisa intermediária optou geralmente pela integração total, pela corrupção ou pela mediocridade. Resistência marginal só houve essas duas.

LUÍS COSTA LIMA

Professor e crítico. Autor das obras Por que literatura (1966), Lira e antilira (1968), Metamorfose do silêncio (1974), Perversão do trapezista (1976), Mimesis e modernidade (1980)

Como você vê o desempenho da crítica nesses anos 70? Houve alguma evolução em termos de formação de quadros e aprofundamento teórico?

Na década de 70 consolidou-se o vazio da crítica que fora desempenhada pelos suplementos. A produção universitária, que poderia tê-la substituído, pelas deficiências de nossas instituições universitárias, junto com a degola promovida pelo Estado e o clima de terror estabelecido, não chegou a cumprir este papel. Como resultado prático, o exercício da crítica — entendido no sentido de militância judicativa — passou a se confundir com o exercício de um “bico” ou com a prática de intelectuais que começavam a aparecer. Dentro deste quadro, houve uma ruptura quanto à tradição do sistema literário nacional, sem a substituição da prática do rodapé de um Cândido ou de um Álvaro Lins.

Contudo, o balanço não é só negativo. Se é verdade que a produção universitária não desempenhou o papel idealmente esperável, em troca permitiu o aparecimento de nomes que, em conjunto, deram um vigor analítico que antes desconhecíamos. Não é por acaso que a grande maioria desses nomes esteja vinculado à USP — Schwarz, Lafetá, Davi Arrigucci, Walnice Galvão, João Alexandre Barbosa, etc. Seus livros permitirão pensar-se numa melhoria do padrão analítico se derem lugar a algum tipo de continuidade. Mas para tanto é necessário que se crie o hábito da discussão e do debate a sério, que continua em falta.

Se houve aprofundamento teórico, não sei. No sentido estrito da palavra, continua a nos faltar uma tradição teórica. No máximo foram dados alguns pequenos passos preliminares. De todo modo uma resposta menos incompleta só poderia ser dada pelo exame das obras então produzidas. Em sua falta, lembro apenas que é sintomática a ausência de repercussão, ao menos escrita, de um livro do peso de Formalismo e tradição moderna do Merquior. Esta ausência, de fato, me parece sintomática: a reflexão teórica é uma coisa de que ainda prescindimos. Até quando, como posso saber?

Como você vê hoje as polêmicas que nessa década tiveram lugar na universidade e na imprensa, a respeito dos métodos estruturais de análise literária?

Parece-me que elas derivaram de uma série de equívocos: a) os polemizadores não conheciam o que se estava falando; b) o fato de que o nome “estruturalismo” adquiriu entre nós uma amplidão tal, que aí cabia tudo o que aparecia como realce do formal e desprezo pela explicação histórica. A partir daí, por nossa inanidade teórica, criou-se a seguinte alternativa geral: 1) acusava-se o realce do formal e o abandono da explicação histórica de formalismo. A pichação substituía a indagação sobre o papel da forma na ficção, o que seria estrutura, porque a explicação histórica era posta em segundo plano, ou 2) aceitavam-se tal realce e tal menosprezo, sem tampouco indagarem-se suas razões teóricas, por ser uma posição mais cômoda e politicamente não problemática.

Em suma, acredito que tais polêmicas pouco esclareceram e, antes, ficaram como um curioso maniqueísmo. Ser acusado de “estruturalista” tornou-se xingamento, suspeita de colaboração com a ditadura etc. Como resultado, neste fim de década a chamadaintelligentsia brasileira mostra-se, em geral, perplexa como uma criança que houvesse deixado a água escorrer de suas mãos.

Creio que o estruturalismo representa um momento, com falhas e acertos, de um requestionamento das ciências sociais, do papel da literatura em uma sociedade que cada vez mais não sabe o que fazer com ela, que deverá ser entendido para ser ultrapassado. Da maneira como foi recebido não terá passado de um modismo que não afetou nosso velho diletantismo.

Como você avalia sua participação e de outros críticos universitários na imprensa, num momento em que a literatura estava bastante presente no debate cultural?

Minha presença pessoal foi quase insignificante, resumida às raras oportunidades que me foram oferecidas (Visão, Opinião, José). A dos colegas paulistas, um pouco maior e melhor, mas tampouco decisiva. Na verdade, além dos meios jornalísticos e universitários terem, forçosamente, concepções diversas de seu trabalho, além da desconfiança mútua, a colaboração de professores na imprensa é dificultada pelos encargos burocráticos com que o pessoal universitário se defronta — orientação de teses, bancas de exame, administração. Acresce ainda os salários universitários que nos obrigam à busca de meios de complementação que os jornais não ofereceram (ou oferecem) a muitos. Em suma, como contribuição coletiva, não creio que tenhamos dado muito. Nem creio que tenha havido um interesse suficiente por parte dos encarregados das seções culturais, para o desenvolvimento e desdobramento dessas discussões. Pergunto-me mesmo se já haverá agora. Mas minha experiência, estritamente pessoal, não é muito animadora.

SILVIANO SANTIAGO

Professor e crítico. Autor das obras Angelo (1961), 0 olhar (1974), 0 banquete (1976), Carlos Drummond de Andrade (1976) e Uma literatura nos trópicos (1978)

Que problemas teóricos são colocados pela crítica literária brasileira contemporânea?

O principal problema que a crítica literária sempre coloca num país como o Brasil, embora nem sempre consiga envolvê-lo conceitual ou metodologicamente, é o da atualização do conhecimento.

Num país que sofreu violentas censuras culturais no período colonial e que, depois, sofreu uma benéfica mas às vezes castrante onda de nacionalismo, torna-se imperioso não só abrir as portas para o pensamento universal contemporâneo, como ainda deixar que exerça poder no processo de avaliação da nossa produção cultural nacionalista. Nesse sentido, a última década revela-se bastante decidida a enfrentar o touro à unha.

Mas é preciso tomar um cuidado inicial: nesse processo indiscriminado de atualização, embota-se muitas vezes o senso crítico do próprio projeto teórico, tornando-se ele apenas “estrangeirado”. Pensando assim é que percebemos que só nos últimos cinco anos é que se tem colocado o problema da atualização dentro da perspectiva certa: a da dependência cultural. Se o processo de atualização é indispensável, pois é ele que não nos deixa contentes com o nacionalismo estreito, é por outro lado capital para que o nosso pensamento se inscreva numa órbita de preocupação e de discussão internacionais.

A discussão sobre a dependência impede, ainda, que esta entrada no universal, a nossa, se dê com as cores fáceis do ufanismo, ou seja, com a ingenuidade de quem acredita que uma vez mais o mundo se curvará diante do Brasil. O mundo se curvará, sim, no momento em que pudermos apresentar uma produção que traduza o contemporâneo, que indique estarmos livres das censuras culturais e que ateste que já acreditamos que o pensamento nosso não é autóctone. Mas, para isso, é necessário que o país, como um todo, já tenha foros de independência tanto no plano econômico quanto no político. E, como ainda não tem, urge colocar em primeiro plano o problema da dependência.

Dentro dessa perspectiva, o problema capital dos estudos teóricos sobre a literatura brasileira é o da literatura comparada. Sendo esta uma disciplina de origem europeia, torna-se imperioso começar a pensá-la no aqui e agora. Creio que nestes últimos anos deu-se uma tentativa de desconstrução do aparato conceitual básico da literatura comparada. E os conceitos que mais têm sofrido críticas (desde, por exemplo, os primeiros escritos de Antônio Cândido) são os de fonte e influência.

Vistas sob a perspectiva da fonte e da influência, as literaturas dependentes serão sempre literaturas menores e… dependentes. O círculo é por demais vicioso para que o pensamento universitário da nossa geração ficasse contente com ele. Não é que sejamos contra, indiscriminadamente, o estudo de fontes e de influências, mas é que a priori já sabemos a que nos conduzirá ele no caso de uma literatura dependente. Daí a necessidade de estabelecer uma nova estratégia de leitura: minimizar toda a dívida (embora ela exista e seja forte) para com o estrangeiro, tentando maximizar (embora ela seja mínima) a contribuição original que, apesar dos pesares, é a marca certa da nossa inscrição na cultura.

Obviamente, para que este tipo de inversão se dê criticamente, temos de sair inicialmente (o que acontecerá depois não sabemos) dos padrões racionais de pensamento europeu. Somente um pensamento criado pela imaginação do paradoxo pode dar alguma contribuição para o adiantamento da discussão do problema como é estrategicamente (repitamos) posto. Pensar, por exemplo e com a ajuda ficcional de Borges, que Pierre Menard possa ter escrito o Dom Quixote.

Quais as tendências da crítica nesta década?

Dentro desta visão tripartida (atualização, dependência e estudos comparados), creio que duas correntes se firmaram no Brasil, pelo rigor, inventividade e consequência na prática da leitura. De maneira esquemática, diria que, em São Paulo, houve um interesse maior pelo neomarxismo, dando uma preocupação maior para com os aspectos sociológicos da abordagem do texto brasileiro. Esse grupo de estudiosos não deixa de marcar sua dívida para com os pensadores da Escola de Frankfurt, mas, ao mesmo tempo em que marcam o débito, tomam a peito a discussão do lugar da teoria marxista no Brasil. Só assim é que podemos compreender, por exemplo, a já célebre discussão sobre as “ideias fora do lugar”, e sobretudo o conceito-chave de Roberto Schwarz, “ideologia de segundo grau”. É este conceito contribuição originalíssima — e quão brasileira! — à teoria da ideologia. Ainda que seja um conceito discutido — e o foi —, ainda que seja um conceito discutível — e tudo em cultura o acaba sendo —, não deixa de ser uma contribuição original exatamente porque é ele que pode dar conta, dentro do pensamento de Schwarz, daquela visão tripartida a que nos referimos no início. É ele que nos ajuda a melhor compreender a importância (ou não) do “influxo externo” no direcionamento do nosso pensamento e da nossa ação culturais.

Schwarz falava de Machado de Assis, o nosso maior romancista, mas isso não o impediu de avançar a discussão teórica nestes lados do Atlântico. É este, a meu ver, o espírito da época e que não é compreendido (e às vezes mal compreendido e por isso caluniado) pelos que se acomodam nas comodidades do envelhecimento. O envelhecimento precoce é uma das atitudes que a nossa geração mais tem atacado.

Ainda de maneira esquemática, diria que no Rio de Janeiro se instala com grande sucesso uma revisão da crítica literária colocando-se o problema de maneira radical a partir da “matéria” que constitui o próprio objeto de estudo: a linguagem. Deixando que as discussões fossem geradas a partir deste núcleo, houve necessidade de um excessivo interesse (inicial, hoje já equilibrado) pelos estudos linguísticos. No presente caso, as fontes teóricas se originaram sobretudo no formalismo russo e no estruturalismo francês de um lado, e do outro, no pensamento filosófico de Heidegger no que se refere ao problema da linguagem poética.

Ambos os grupos, no entanto, ainda estão devidamente conformados e informados pelos dois grandes trabalhos anteriores: o de Antônio Cândido, Formação da literatura brasileira, e o coletivo, sob a direção de Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil. Ainda não houve uma retomada da “história literária” a partir da atualização que se deu nos anos 60/70. Aqui e ali, apenas indicações, indicações fortes que assinalam ser este talvez o tópico que preocupará a década de 80.

Esquematicamente ainda, diria que o principal problema teórico, colocado tanto pelo grupo de São Paulo como pelo do Rio, foi o da necessidade de a leitura do texto literário ser feita a partir de uma visão interdisciplinar. Tendo esta discussão se esquentado depois da violenta influência formalista no fim da década passada (inspirada não só no formalismo morfológico russo como no primeiro estruturalismo, de nítida influência linguística), serviu ela para direcionar a prática de leitura da década em vista de uma apreciação negativa dos padrões anteriores da teoria literária entre nós. Os padrões rejeitados pelos grupos são os da crítica psicológica bem anterior (advindos da leitura dos new critics americanos) e os da crítica sociológica marxista (por demais presos à teoria do reflexo).

Assim, por exemplo, a partir da assimilação, discussão e prática de leitura feitas em torno de um Althusser, pôde-se acertar o passo da pesquisa teórica no Brasil, no que se refere ao possível congraçamento do marxismo e da psicanálise. E é esse congraçamento que retira de cena as leituras psicológicas e sociológicas, feitas pelas gerações anteriores, da literatura brasileira.

Situe a polêmica da crítica quando entra para o debate geral da imprensa e da universidade.

Como já deve estar ficando mais ou menos explicitado nas respostas anteriores, não é cômoda e fácil a posição da crítica universitária quando entra para o debate geral. Seus valores não são, a priori, o do “geral”, pois a universidade é o lugar por onde deve falar o saber “científico” de uma sociedade, e este saber, apesar de não precisar necessariamente trabalhar com categorias elitistas, é no entanto o conhecimento de um grupo socialmente configurável e especializado.

Já a produção que se dá ao nível do “geral” deve se primar, a meu ver, por divulgar, de maneira correta e inteligente, aquilo que já está mais ou menos constituído ao nível especializado. É a maneira como a sociedade, no seu todo, pode se aproveitar dos enriquecimentos que grupos pequenos lhes podem dar. Assim sendo, esse conhecimento tem também o seu lugar, lugar de divulgação, que não é a sala de aula ou o seminário, mas a imprensa semi-especializada, ou não, grande ou nanica.

Vemos então que, para que a discussão entre o nível do “especializado” e do “geral” se possa dar com rendimento para ambas as partes, é preciso que se acertem antes os relógios. Ou então temos o que vemos de maneira geral hoje: certos jornais metendo o pau na crítica universitária por considerá-la “estrangeirada” ou elitista, de difícil acesso ao grande público, ou então certos professores universitários (de reconhecido valor intelectual) usando o espaço-jornal com artigos que obviamente lá não deviam estar, pois não levam em consideração a competência de quem, em princípio, os deve ler naquele lugar.

De um lado, preconceito. Do outro, elitismo. O que é realmente uma pena.

A isso se agregam dois defeitos tipicamente nossos, que complicam mais a situação: a falta de paciência e a censura artística. Para que os relógios se acertem, para que o diálogo se afirme bilateral, é preciso que sejamos generosos com o tempo. Essas coisas não se fazem num dia ou numa semana. Mas, tão logo começa uma polêmica, já na semana seguinte o assunto é desclassificado pelo jornal por falta de interesse. O outro defeito nosso, a censura artística, como já adiantamos antes, foi ela que impediu que a circulação do objeto livro se desse em números socialmente representativos. Ora, como esperar debate com o “geral” se o livro tem hoje, num país de 110 milhões de habitantes, uma tiragem de 3 mil exemplares? Como se pode esperar um verdadeiro e real debate com o “geral” se não existe interesse do grande público pela literatura?

Ou mudamos o nosso processo de acesso do analfabeto adulto (Mobral), ou da criança, ao mundo da linguagem e do livro, ou então ficaremos para sempre com uma cultura entregue a 50 mil pessoas, mãos especiais, e, apesar de não serem universitárias, são ainda por demais “especializadas”.

A crítica literária articulou-se, ou não, à produção cultural da época?

Acho que sim. A produção cultural da década, no seu todo, tem encontrado um espaço bastante generoso tanto nos jornais (suplementos literários) como nas revistas semanais (seção de literatura). A pergunta que faço é se as editoras e o público a têm recebido com a mesma elegância e curiosidade.

As resenhas têm sido feitas com espírito, de maneira geral, elogiativo, mas isso é bom sobretudo num período em que o problema mais grave é o da falta de leitores. Creio que já houve períodos piores para a literatura, como os anos entre 1968 e 72. Creio mesmo que houve uma “sensibilidade” para o material das novas gerações. E quando não houve, as novas gerações constituíram um lugar ao lado da grande imprensa. Houve uma época em que a gente tinha a impressão de que havia mais tabloides numa banca do que grandes jornais.

Acredito ainda que certos valores da nova geração foram devidamente incorporados pela crítica (como exemplo, veja em particular a segunda parte de meu livro Uma literatura nos Trópicos), apesar de aqui e ali os próprios criadores terem se oposto ao trabalho crítico por intransigência grupal. Lembro-me da posição altamente conservadora de um Antônio Risério nos idos de 1972. Ele não pôde perceber que, naquele momento, se opera uma fragmentação definitiva no antigo experimentalismo dos anos 50 (concreto, neoconcreto), e que o crítico que estava tentando dar conta dessa fragmentação estava, apesar dos pesares, tendo uma atitude mais “jovem” do que a dele. Ele, por exemplo, de maneira alguma podia admitir que a sintaxe estava de volta no verso. Uma sintaxe diferente do hermetismo e do sublime de 45, diferente do verso longo e derramado dos anos 30, uma sintaxe que se realimentava na sua fonte original, 22. Era só isso que o crítico lhe dizia, analisando os poemas dos marginais.

Também a incorporação da música popular à literatura foi plenamente seguida pela crítica literária (apesar de forte oposição dos redutos da geração de 45). Desde o movimento Tropicália, os diversos grupos foram estudados com carinho e interesse, não havendo nos estudos, os que conheço, nenhuma marca de preconceito.

Existe um dado inesperado. Pode ser que exista algum Sousândrade escondido por aí e que a crítica e o público desconhecem. Contra essa injustiça não há antídoto; temos é de depositar todas as nossas esperanças na revisão da época que farão os críticos que devem surgir nesta geração.

A universidade tem acolhido também de maneira satisfatória a produção da década e, na medida do possível, tem reavaliado o seu aparato crítico para dar conta do objeto novo. O acolhimento se deu de duas formas: primeiro, introduzindo em sala de aula a produção mais definidora da época, através da leitura e da discussão dos textos seja dos autores já consagrados (produzidos nos últimos anos), seja dos autores mais jovens; segundo, incentivando os jovens mestrandos a abordar (caso assim o desejassem) a produção dos seus companheiros de idade, em teses de mestrado. Não deixa de ser este um fato inédito não só dentro da crítica literária universitária (na França, até há poucos anos, era preciso que o autor tivesse morrido para que se pudesse dar entrada com o pedido de tese. Podem adivinhar o tamanho da fila, na Sorbonne, no dia seguinte ao da morte de Albert Camus) como ainda dentro do pensamento crítico brasileiro.

JOÃO ANTONIO

Escritor e jornalista. Autor das obras Malagueta, peru e bacanaço (1963), Leão-de-chácara (1975), Malhação do Judas carioca (1975), Casa de loucos (1976), Calvário e porres do pingente Afonso Henrique de Lima Barreto (1977), Lambões de caçarola (1977) e Ô Copacabana (1978).

Num momento de intensa repressão, como foi a década de 70, que função política pôde desempenhar a produção cultural, em particular a literária?

Função política de resistência, o que é evidente. Embora sabendo que o produto cultural, numa sociedade paupérrima como a nossa — em que dois terços da população sequer podem comer ou morar —, fica orbitando o tímido trânsito de um bem de e para a classe média. E, mesmo assim, uma fatia privilegiada da classe média, pois também a classe média vem sendo acachapada no Brasil e se proletariza dia a dia. Necessário encarecer que um país pobre econômica e politicamente também é pobre culturalmente. Apesar de tudo, a função intelectual e política do escritor nessa sociedade brasileira tem crescido. Não há dúvida que, debaixo do AI-5, quando a censura abrangeu diretamente todas as formas de expressão, da televisão ao jornal, do teatro à vida sindical, a literatura cresceu de importância, principalmente a partir de 1975, quando os escritores, além de se deterem mais sobre as realidades brasileiras, passaram a fazer manifestações mais efetivas — assinando manifestos, participando de debates com estudantes universitários, influindo mais na vida da imprensa e, principalmente, se arredando da odiosa torre de marfim. Mesmo sem um projeto político e ideológico definido ou programado, é óbvio que as gerações jovens de escritores brasileiros estão colocadas à esquerda de um sistema que detém o poder. Afinal, uma literatura de verdade não pode existir apenas para o pó de vaidade de uma sociedade e, quando se preza, põe o dedo na ferida. Parece-me que o passo politico mais importante dado pelo escritor brasileiro nesse sentido foi o de se conscientizar de que é mera ingenuidade achar que o poder se modificará a si mesmo. O poder, na verdade, fará tudo para permanecer, além de usar todas as manipulações da demagogia, do populismo e, principalmente, da corrupção.

A que você atribui a emergência da ficção nos meados da década? Que questões e que linguagem certas vertentes da produção ficcional colocavam para merecer a atenção do investimento editorial e do público?

A pressão origina a descompressão. E o sufocamento de todas as liberdades brasileiras foi um fato sinistro na década de 70. Aliás, a meu ver, continua vivo neste finalzinho de comédia macabra luso-afro-sino-nipo-ítalo-tupiniquim em que a palavra abertura não tem, na verdade, passado de uma ficção. Mas a literatura brasileira em 70 interessou a editores (como negócio) e a leitores (como consumo cultural) porque ela passou a falar de problemas que tocavam diretamente uma população. E ganhou, a meu ver e sentir, uma pluralidade de características entre os autores. Além disso, o país que tinha todos os meios de expressão rigorosamente vigiados tinha também uma literatura de tiragens medíocres, paupérrimas e até grotescas: afinal, para 122 milhões de brasileiros nós temos apenas 300 livrarias em todo o território nacional e tiragens de apenas 5 mil exemplares. Um livro como Leão-de-chácara, por exemplo, que ficou mais de 30 semanas na lista dos mais vendidos de Veja, não extraiu, até o momento, mais de cinco edições. No entanto, de Manaus a Ijuí, no Rio Grande do Sul, o que noto é o aparecimento da preocupação clara em atingir realidades brasileiras, acima de estilos ou tendências estéticas. Há uma riqueza e uma multiplicidade. Trocando em miúdos: a literatura feita pelo senhor Márcio Souza em nada lembra a de Juarez Barroso, que não tem nada a ver com a de Hermilo Borba Filho, Sérgio Albuquerque ou Luiz Vilela, que não se parece com a de Wander Pirolli ou a de Oswaldo França Júnior, que é independente do trabalho de Manoel Lobato, Roberto Drummond, Garcia de Paiva ou José J. Veiga, José Godoy Garcia ou Sérgio Faraco. Descendo para o Sul, além de Faraco, encontramos autores personais e marcantes e sem grandes similitudes entre si — Aguinaldo Silva, Moacyr Scliar, Josué Guimarães, Ignácio de Loyola Brandão, Raduan Nassar, Tânia Faillace, Marcos Rey, Rubem Fonseca, Sergio Sant’Anna, Plínio Marcos… Esses autores consolidam uma obviedade — o espaço cultural para o fazer literário é amplo, nele muitas experiências e linhas são válidas. E provam mais: uma literatura é feita de obras. E não de obras-primas. Numa literatura cabem uma escritora como Hilda Hilst ao mesmo tempo que um Caio Fernando Abreu ou um Domingos Pellegrini Jr. O que deve contar é o nível de qualidade. Bem. Apesar de todas as precariedades que temos com a distribuição e a divulgação, parece-me que há um rico público em potencial quando se pode oferecer esse nível de qualidade. Parece-me que sou, de todos os escritores atuais, um dos que mais viajam a convite de estudantes de letras e de comunicação para conferências e debates e, em nome dessa atividade, posso garantir que há para a literatura brasileira um excelente mercado inexplorado.

Pode-se dizer que o chamado boom de 75 sofreu um decréscimo no final da década?

Devemos ter, para começo de boa conversa, um solene desprezo pela expressão boomliterário, como diz Wander Pirolli. O que houve e está havendo de certa forma é um esforço com momentos bons, maus e médios. Além de editores, nele entram até publicações nanicas como Versus, Escrita, Ficção, Inéditos e a participação com momentos muito vivos de tabloides como o ex-Opinião, o ex-EX, o próprio Versus, o pessoal dos nanicos apoiando, entrevistando, questionando, criticando, ajudando a brigar. Muita coisa feita paralelamente, como Extra-Realidade Brasileira ou Livro de Cabeceira do Homem. Volto a um ponto que me parece fundamental: o que motivou esse barulho? Ora, num país em que quase todos os meios de comunicação e de expressão artística estão violentamente vigiados, marcados corpo-a-corpo — TV, jornais da grande imprensa e também nanicos, revistas, teatro, música popular, dança, cinema, rádio — pela censura oficial, a literatura vem se prestando como uma válvula de escape, desembocadouro de muitas preocupações e inquietações. Ela, que extrai ridículas tiragens de 3, 4 e 5 mil exemplares por edição, é menos violentamente perseguida, apesar de casos vergonhosos de censura e apreensão: Aracelli, meu amor, de José Louzeiro; Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca. Além da prisão de Renato Tapajós, autor de Em câmara lenta, e outras insânias. Assim, os sufocamentos e inquietações represadas acabaram se escoando pela literatura. Já que não foram possíveis outras saídas. Muito jornalismo de boa qualidade passou a ser feito em livro. Tentei, por exemplo, editar duas publicações em que lutei para incentivar o movimento: o Livro de Cabeceira do Homem e Extra-Realidade Brasileira, com Malditos Escritores!. Mas os dois duraram pouco, que a Censura Federal exigiu para ambos censura prévia. E eu particularmente não aceito mais trabalhar sob censura prévia. É preferível e menos aviltante vender gasparinos na praça pública. Mas o Livro de Cabeceira do Homem foi decepado no número três e Extra-Realidade Brasileira, no número quatro. Esses esforços, aliados a outros, de escritores, jornalistas e até de professores, historicamente ficarão. Como ficarão todos os que não aceitaram a omissão, o obscurantismo, a coação e lutaram contra o medo, a repressão e outras formas de violência e indignidade. Se o boom decresceu no final da década? Ora, mas não houveboom. Existiu apenas um esforço, uma chegada de caráter, um pingo de vergonha na cara. Apenas isso. Agora, como isso era muito necessário ao país, foi bastante importante. Afinal, a grande crise brasileira ainda continua sendo a imensa falta de caráter. E de vergonha, claro.

Como você vê a reação de alguns setores da esquerda ao que chamaram de uma literatura “neopopulista”, surgida nos anos 70 e assim identificada pelo tipo de tratamento dedicado aos temas da marginalidade, do submundo e do “povo”?

Filhotes do estruturalismo, nada mais. Reações de colonizados e nenhum espírito de tolerância diante de fenômenos como Plinio Marcos, Wander Pirolli ou Domingos Pellegrini Júnior. E, principalmente, o resultado de todo um espírito que é típico do subdesenvolvimento: sentimento de menos valia ou complexo de inferioridade. A chamada alta “crítica” brasileira acha que deveríamos, sem lastro cultural para tanto, fazer obra de tal envergadura que pudesse ser aplaudida lá fora por, por exemplo, intelectuais como James Joyce, André Malraux, Thomas Mann ou Marcel Proust. Então, cada vez que se tenta navegar nessas altas esferas da arte e do pensamento, começamos a nos afastar de nossas realidades mais prementes. O que me parece que esta fatia de “críticos” está esquecendo é que precisamos reatar certas raízes brasileiras lá atrás: Manoel Antônio de Almeida, Afonso Henriques de Lima Barreto, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos e outros. Outro fator que é necessário questionar no país é a chamada “marginalidade”. Quem realmente não é marginal num país em que dois terços da população estão marginalizados, em que a força de trabalho foi marginalizada e em que as verdadeiras reformas – urbanas e rurais – que desmarginalizariam essa população vêm sendo cinicamente proteladas, adiadas ou ferozmente evitadas e omitidas? Para a ótica dessa “crítica” me parece que sempre que se falar ou escrever sobre povo ou classes lesadas se causará, imediatamente, uma sensação de indecência, de transtorno e de heresia.

Como você vê as tendências da ficção brasileira contemporânea e como situaria o seu trabalho neste quadro?

Tendências proteiformes porque a própria realidade do país, inspiradora e motivadora dessa ficção, é multivariada. Zona Franca e devastações na Amazônia e a maior cooperativa de trabalhadores da América do Sul entre os triticultores de Ijuí, no extremo Sul, a cento e poucos quilômetros da fronteira com a Argentina. Ponte Rio-Niterói e quase 3 milhões de favelados no Rio de Janeiro. Três colheitas de feijão ao ano e o país ameaçado com uma economia de guerra. Sem lastro habitacional para o povo, o Rio de Janeiro tem, no entanto, uma classe média alta que mora pagando o condomínio mais caro do mundo: Ipanema-Leblon. O discreto charme buimelesco é nada diante das festivalanças e desperdícios do Baixo Leblon ou da Gávea Pequena. Boias-frias e limusines importadas. Escrevo apenas sobre o que conheço e sinto. Parto do princípio de que um homem saciado não pode entender um faminto. Tenho procurado dar voz a quem não tem nenhuma no mundo brasileiro de hoje: pivetes, marginalizados, gente sem eira nem beira, bem mais de 60 milhões de brasileiros. Meu personagem é desdentado ou tem mau hálito, é mestiçado, feio, sujo, mora em muquifos, mocambos e favelas. A maioria não tem Carteira de Trabalho assinada e sequer votou uma única vez na vida. Não faz três refeições por dia, não viaja de avião e só tem voz para gritar nos estádios de futebol, onde também – como em todas as áreas – é enganado, desrespeitado, usado e surrado pela polícia quando se torna inconveniente ou protestante. Vive fora de moda, não sabe usar os talheres e jamais é assunto dos jornais da grande imprensa. Mas é mais da metade do povo brasileiro.

No entanto, acho que o espaço cultural pode abarcar realizações proteiformes e todo escritor de verdade deve experimentar e assumir a sua inteira liberdade de criação. Assim, se tenho o direito de escrever uma peça de ficção como Joãozinho da Babilônia ou Lambões de caçarola – Trabalhadores do Brasil, também posso escrever coisas como Afinação da arte de chutar tampinhas. Mas no estágio brasileiro atual apenas uma pequena faixa da classe média – professores, estudantes, jornalistas, gente intelectualizada – lê os meus livros. Eu escrevo sobre o povo e até para o povo, mas sou consumido pela classe média. Ao povo, a meu ver, antes de livros, teríamos de dar proteínas, habitação e condições decentes de vida. Um pobre-diabo que corre um dia inteiro por um prato de arroz-e-feijão não tem tempo sequer para ler jornal.

Os meus temas, a minha linguagem, as minhas histórias se lastreiam no seio dessa massa de esquecidos, espezinhados e feios. E mais: se algum dia algum texto meu foi brilhante, isso se deve ao fato de que brasileiros que transitam em Malagueta, perus e bacanaço e Leão-de-chácara, por exemplo, são brilhantes, vivos, criativos, apesar do miserê crônico em que estão metidos. Eles, garanto, sabem fazer a arte da miséria melhor que eu.

Como você vê a valorização da “reportagem romanceada” — a aproximação literatura/jornalismo — nos anos 70?

Isso começa antes de 70. Uma das maiores contribuições para a compreensão, exposição, reflexão e até mapeamento das realidades populares brasileiras foi a da equipe da ex-revista Realidade, que encerrou seu período mais produtivo com a chegada da frente mais sinistra da repressão, o AI-5. Ali foi inaugurado o conto-reportagem no Brasil em 1968 e, além de mim, outros profissionais fizeram experiências bastante significativas em romancear o fato, em extrapolar os limites da reportagem, da entrevista, do perfil etc. A partir da equipe dessa que foi a mais brilhante e vitoriosa das revistas brasileiras (400 mil exemplares vendidos em 1968, sem contar com assinantes) e, seguramente, a maior revista da América do Sul, várias realizações de parajornalismo foram executadas no Brasil. A imprensa nanica, já na década de 70, aceitou alguns desafios e, por exemplo, Movimento partiu para as Cenas Brasileiras. Talvez o ano de 1975 seja o mais vivo do parajornalismo brasileiro com os trabalhos de José Louzeiro, Aguinaldo Silva e outros.

Mas é preciso ressaltar que o parajornalismo brasileiro é feito de forma caseira e tupiniquim. Enquanto nos Estados Unidos um editor tem dinheiro, profissionalismo e fôlego para financiar durante seis anos uma obra como A sangue frio, de Truman Capote, nós aqui não temos um editor que nos financie nem por seis meses. Como também não temos fundações culturais, auxílios do MEC etc. E a própria palavra pesquisa está inteiramente desmoralizada no Brasil.

Fatores fortes me levam a crer que temos profissionais de investigação e de texto para fazer bom parajornalismo. Esse trabalho poderia lançar muita luz sobre a compreensão de vários de nossos problemas, principalmente sociais, comunitários etc. Mas não temos empresários ou investidores nesse trabalho.

Um país pobre economicamente não pode se dar a certos “luxos” culturais de informação, conhecimento etc. Terá no máximo, a meu ver, uma boa e sentida arte da miséria.

WILSON COUTINHO
Filósofo e jornalista

Como você vê, hoje, a questão do nacional e do popular tão polemizada nesta década? Estas questões estão presentes ou superadas?

Os termos nacional e popular são termos políticos. Eles nasceram na medida em que a cultura brasileira se debate com problemas econômicos, sociais etc. Como termo político ele se opõe à colonização cultural, à opressão cultural que faz com que poucas pessoas tenham acesso aos bens culturais. Creio que é um termo amplo e, por si só, não define as inúmeras práticas artísticas realizadas aqui. Como projeto político ele significa, ao meu ver, um processo em que a cultura pode ser comunicada para um maior número de pessoas, processo que exige não só uma série de procedimentos artísticos (a questão nem está aí), mas, sobretudo, um longo programa que passa pelas universidades, pelo livro, pela alfabetização, enfim, um processo realmente político que coloque a cultura e sua produção dentro de um espaço até hoje interditado pelas elites dominantes.

O nacional popular é uma questão com pontos nodais. O que interessa é como esses pontos aparecem, como o nacional e o popular são defendidos. No final da década de 70, alguns escritores defenderam nos seus textos uma “ida ao povo” e foram pejorativamente chamados de populistas. O “nacional” e o “popular” que apareciam ali eram a expressão de uma literatura que tateava um segmento do mercado e descrevia, talvez por causa disso, o povo de forma carismática, como o político que em época de eleições assume os tiques populares e que tenta estar no mesmo rio em que o povo nada. Mas não como peixe, evidentemente.

O problema foi a maneira, formal e de conteúdo, como o “povo” aparecia. A percepção destes escritores o captava em seu estado natural. Ele era um bom selvagem, utilizava-se de uma linguagem peculiar que devia ser registrada, descrições físicas e de costume que deveriam ser acentuadas etc. O populismo era, ao meu ver, um atraso literário e que conduz ao atraso do leitor pequeno-burguês, consumidor dos enlatados populares. Analisando um pouco, podemos talvez dizer que o populismo literário é a emergência política do leitor pequeno-burguês na literatura. A maioria daqueles livros foi escrita para esse público, para o seu prazer e para construir para esse público a sua visão de povo.

Como você vê essa questão na literatura de Jorge Amado e de João Antonio?

O último Jorge Amado — como se costuma dizer — e o primeiro e último João Antonio são escritores dessa emergência do leitor pequeno-burguês na literatura. Eles estão mais próximos de uma história da leitura do que, propriamente, de uma história da literatura. Ler é também uma instituição e o leitor, não tomado como um mero receptáculo de textos, mas como uma instituição definida, caracterizada ideologicamente e pelo mercado, não é uma coisa somente passiva, que desembarca na livraria e compra tal livro, com tal mensagem “popular”. O leitor é ativo — ele se entranha nesta literatura. Talvez seja, até, o seu verdadeiro personagem. Talvez, um dia, possa-se estabelecer uma história da leitura no Brasil, momentos em que irrompe não o texto, mas uma massa de leitores determinados por gostos, pelo estilo, por uma determinada convenção do ler e tirar o seu prazer disto.

Como você vê a proximidade da ficção com o jornalismo em nossa época?

Foi, de saída, um mimetismo do colonizado. Alguns escritores americanos inventaram esta fórmula, principalmente Truman Capote no A sangue frio. Tivemos o nosso Lúcio Flávio. É uma literatura popularesca e não popular. O seu sucesso — os livros foram escritos por bons jornalistas — é que acrescentavam uma diferença à leitura dos jornais. A diferença da emoção. Desde que, por exemplo, Lúcio Flávio pense e se movimente como ficção, longe da suposta imparcialidade da imprensa, ele pode se tornar uma agradável massa de texto comunicável ao leitor pequeno-burguês. Aquilo funciona — como se diz — para uma máquina precária, de pouca utilidade, mas que continua movimentando suas engrenagens.

A história desta década foi contada pela literatura?

A história desta década, a história oficial desta década foi a história da repressão e da violência política. Somente agora os escritores estão tentando documentar este período. Houve, evidente, livros como os do Callado, que tentaram descrever a situação vivida. Mas não sei se somente a história oficial da repressão e o seu contrário, a luta contra ela, possam dar conta de uma história de dez anos. Ou para ser mais simples: se esta documentação é inteiramente representativa de um fato literário completo, onde há uma real comunicação estética com os fatos sociais, espaço este onde os escritores são obrigados a traçar a estratégia e o destino dos seus textos.

JULIO CESAR MONTEIRO MARTINS

Escritor. Autor da obra Algemas da terra (1975), Torpalium (1977), Sabe quem dançou? (1978), Artérias e becos (1978) e Bárbara (1979).

Num momento de intensa repressão, como foi a década de 70, que função política pôde desempenhar a produção cultural, e em particular a literatura?

Durante os anos negros da repressão política, e em grande parte como uma reação quase que fisiológica a esta, a produção cultural brasileira deu um salto, inicialmente quantitativo e aleatório, para logo depois solidificar-se em projetos de grande amplitude e crescente qualidade. Isto ocorreu em algumas áreas culturais, que pela sua forma intrínseca e veiculação foram atingidas com rigor dosado pelo sistema repressor. Outras áreas, mais ligadas à comunicação de massa, embora também enriquecidas pela diversificação, pela pluralidade compulsória a que foram submetidas, ainda não encontraram caminhos para fruição das ideias dos novos tempos, e sustentam a perplexidade inicial da década, marcada pela oscilação entre o inexato e o emasculado. A meu ver, seria apressado e equivocado supor que a repressão esmagou e volatilizou a cultura da década, que passamos por uma pequena “idade das trevas” tupiniquim. A repressão gerou uma cultura de resistência, uma produção artística subterrânea, de grande poder de convocação da opinião pública e de aliciamento para o exercício da criação, além de forçar a busca de novas linguagens em todos os gestos de cultura, desestruturando o óbvio e o simplismo das duas décadas anteriores, tornando-os ineficazes ou demasiadamente perigosos. Uma rápida recapitulação da poética das letras musicais, por exemplo, do período pré-bossa nova e das demais que a sucederam até o momento pode servir como um claro exemplo da desagregação, da sofisticação imposta pela perplexidade, da metaforização dos conceitos (acompanhada de uma evolução no mesmo sentido por parte do público), da sutileza aguçada, da síntese indispensável e da objetividade pelos rumos do possível. Se os anos 60 foram anos de ação, os anos 70 foram de reflexão sobre esta ação, de autocrítica e de reformulação de projetos já então obsoletos, através do acréscimo de novos dados e da constatação da complexidade das relações históricas, antes nem mesmo pressentidas. Os anos 70 começaram pela análise, pouco fértil em obras porquanto estudo, e desembocaram, a partir de seus meados, numa síntese abundante dos elementos da nossa realidade. Sem dúvida, soubemos sair enriquecidos da nossa mais amarga trajetória no tempo político, e ficamos com as cicatrizes mal ocultas da paranoia, por muitos anos ainda impulsiva, instintiva e irracional, e sua filha bastarda, a autocensura, que deixará resíduos por mais algumas décadas, isto se nenhum outro macabro acidente político intervir no rumo das nossas esperanças.

A função política da produção cultural e da literatura em particular, nestes anos, foi principalmente a de resguardar a nossa integridade criativa, a nossa dignidade ameaçada. A cultura, a todo momento, relembrava os nossos princípios mais básicos, no instante em que praticamente todos estavam sendo violentados, manteve viva a presença de um pensamento humanista, provou a capacidade de reciclagem criativa de um povo que pretende consolidar-se como nação, e denunciou, frequentemente sob o extremo risco de severas penas, as tentativas bestiais de esmagamento da nossa essência e de aniquilamento da nossa existência física ou moral, revigorando todos os valores que, de cima para baixo, eram vilipendiados sucessivamente. Foi uma década de guerrilha cultural, de golpes francos ou baixos de ambos os lados, de escaramuças da arte contra as casamatas da censura, de tocaias e emboscadas da imaginação contra o opressor obtuso e seu tacão de ferro.

A que atribui a emergência da ficção nos meados da década?

Entre outras, três razões podem ser detectadas de imediato. A primeira trata do fato de que a literatura é a arte mais barata de ser produzida, principalmente se considerarmos os recursos ditos “marginais”, fator importante para atrair a preferência de uma geração ávida para exprimir-se e conhecer formas não-oficiais de expressão. Acrescente-se a isto o fato de que havia um certo consenso de que a literatura, por não ser um veículo de massas no Brasil, não oferecia tanto perigo ao regime político em vigência, pois seu consumo era limitado a umas poucas dezenas de milhares de leitores, e as informações que porventura contivessem as obras seriam redundantes, pois repetiriam denúncias e conceitos que, embora considerados subversivos na época, já seriam de conhecimento do leitor potencial, pelo menos em tese. Esta propalada negligência da censura pela obra literária provocou uma procura crescente pelo produto escrito, arregimentando leitores e criadores neófitos, confiantes na possibilidade, que se mostrou verdadeira, de passar pela literatura dados e juízos de valores impossíveis nas demais expressões artísticas. Lembremos ainda que o livro, o folheto, o panfleto, pelo seu caráter portátil, é a maneira mais eficiente de “contrabandear” informações. Projetar um filme proibido ou montar uma peça interditada, por exemplo, seria muito mais perigoso do que mimeografar, manuscritar ou emprestar um volume impresso, atos que dificilmente seriam detectados pelas milícias repressoras.

A segunda razão trata de uma circunstância mercadológica. As editoras perceberam ou intuíram que havia um público potencial disponível para a literatura muito mais numeroso do que aquele que estava sendo ativado. Isto significava estar perdendo dinheiro, pecado que o capitalismo não perdoa jamais. Os autores que mobilizavam o público eram praticamente os mesmos há 15 anos ou mais, isto em meados dos anos 70, e o público ou não tinha mais interesse por eles, ou mantinha este interesse estagnado em uma faixa já ativada de consumidores, ou já tinha adquirido as suas obras. Surgiu a necessidade de arregimentar novos nomes e novas obras, e reabilitar nomes esquecidos ou obras cujo potencial de sucesso jamais havia sido ativado por razões várias. Os instrumentos desta grande convocação foram as revistas literárias, que de repente apareciam às centenas, e em cada pequeno vilarejo dos estados mais longínquos, os concursos literários milionários, que contavam com grande publicidade e o apoio do Estado e de fortes empresas privadas, e a promoção exaustiva de ciclos de debates, palestras de escritores, caravanas pelo interior, reportagens, entrevistas, depoimentos, badalações e mitificações de toda sorte. Arregimentados e reabilitados os possíveis sucessos editoriais, passou-se a uma fase decrescente, de esvaziamento do espírito de convocação, levando em conta que o mercado potencial já estava não apenas ativado integralmente, como já principiava a dar mostras de saturação do seu poder de consumo de novos lançamentos. Sobre esta fase nos ateremos melhor adiante.

A terceira razão trata do fato universal de que a literatura é a matriz de todas as artes, detonando e extinguindo linguagens de época e pesquisando a priori novas formas de representação do real, que depois são transferidas para as artes cênicas, visuais, musicais, etcétera. A literatura, por ter palavras e conceitos como matéria-prima de construção, dá sempre o primeiro grito e o último sussurro das vertentes expressivas que se sucedem, e este talvez tenha sido o século em que elas se apresentaram com maior vigor e se sucederam com maior velocidade, algumas até surgindo e desaparecendo simultaneamente, nos mesmos centros de produção cultural. Nos períodos de crise histórica, em que a cultura como um todo está ameaçada, como nos primórdios da década de 70 no Brasil, a literatura se apresenta como o veículo mais propício para experimentações de todo gênero, como ponta de lança para o rompimento de impasses que à primeira vista parecem incontornáveis, como polo catalisador de exercícios temáticos ou estilísticos mais radicais, e como região definidora de vertentes em contextos confusos e relações contraditórias do homem com as suas circunstâncias.

Pode se dizer que o chamado boom de 75 sofreu um decréscimo no final da década? E por quê?

O chamado boom de 75, como ficou apelidada a tal convocação editorial a que me referi anteriormente, sofreu um decréscimo significativo a partir da constatação da saturação do mercado e de uma recessão econômica que atingiu principalmente a classe média — a maior consumidora de livros e revistas — a partir de aproximadamente 1977. Como um trem que houvesse partido repleto demais. Os retardatários, por mais que se apressassem, não mais o alcançariam. O trem, em andamento, por não suportar a carga que comportava (e nem pensar em acréscimo de carga!), começou a atirar pela janela uma boa quantidade de passageiros. Esta imagem pode servir para uma visualização do que seria o crackliterário, que sucede ao tão afamado boom. Algumas editoras que, em 1975, publicavam livros de contos ou romances sem sequer os ler, estas mesmas, hoje, recusam originais dos mesmos gêneros, também sem sequer os ler, com raras e honrosas exceções. Autores que foram lançados com grande alarde quatro anos atrás, ou mesmo menos, não conseguem hoje que seus originais sejam sequer apreciados pela mesma editora que os lançou, ou por muitas outras, pelo fato de não terem estes autores atingido no prazo previsto ou tolerável a marca de vendagem esperada. Para os autores ainda inéditos, a situação se mostra ainda mais difícil, e não se vislumbram perspectivas de reabilitação de autores mais antigos, que não tenham sido reabilitados até o princípio da fase de recessão editorial. As tiragens monumentais, que atingiam a marca dos 30, 50 ou até 100 mil exemplares para obras em prosa, ficaram substancialmente reduzidas para os convencionais 3 ou 5 mil exemplares. As revistas literárias foram desaparecendo uma a uma, e apenas algumas poucas ainda sobrevivem em permanente déficit, graças ao mecenato de seus fundadores. Os jornais reduziram o espaço dado à literatura e aos escritores, assim como as revistas de variedades. Os concursos literários desapareceram ou caíram em total descrédito, deixando também de interessar aos seus antigos patrocinadores. Este quadro pouco animador reúne fatos estatísticos inegáveis. Acredito que o pior período de decréscimo já passou, e que o mercado está voltando a reagir, num crescimento estável, assim como as editoras estão adotando uma política não mais de severa contenção, mas distante do irrealismo que imperou na fase da descoberta do potencial mercadológico. A meu ver, entre as causas do decréscimo estão exatamente a política irrealista anteriormente adotada, que transformou uma pequena recessão num fracasso retumbante, e o recente clima de “abertura” implantado no país, que deu margem ao público de voltar-se com mais atenção para outros meios de manifestação cultural, antes rigorosamente sufocados e controlados, como o cinema, o teatro, a música, a televisão, entre outros. De qualquer modo, se compararmos ao período anterior a 1975, o saldo foi bastante positivo, pois houve um crescimento real do mercado, que acreditamos permanente e em expansão. E, se houve um decréscimo, foi relativo a um período curto, de investimentos altíssimos e fantasistas, com características muito específicas, e que dificilmente se repetirá a curto ou médio prazo.

Como vê a reação de certos setores da esquerda ao que chamaram de neopopulismo, identificado no tipo de tratamento de alguns temas emergentes, tais como a marginalidade, o submundo e o “povo”?

A princípio, eu não creio que esta reação seja somente de alguns setores da esquerda, até porque já está bastante difícil conceituar com um mínimo de precisão o que seria “esquerda”, “centro” ou “direita” no Brasil de agora. A reação a este tipo de literatura (que, a despeito dela, continua sendo febrilmente produzida, principalmente no interior do país), partiu a princípio de camadas da intelectualidade, que se rebelaram contra o tratamento privilegiante que aquela estava recebendo por parte da imprensa, de uma parcela do público leitor e de uma certa crítica especializada. Depois, esta reação estendeu-se ao próprio público, fazendo com que a literatura dita “marginal”, ou de temática “marginal”, fosse, ela própria, pouco a pouco, marginalizada. Nós estamos falando de literatura, mas vale lembrar que esta identidade do criador brasileiro com temáticas “marginais” ou populistas deu-se, num certo período, em todas as áreas de criação. A meu ver, esta identidade espúria da intelectualidade, com uma certa imagem de “povo” folclorizada e estereotipada, deveu-se a uma forte sensação no inconsciente coletivo dessa intelectualidade de que estava sendo absolutamente marginalizada do processo político e decisório de seu país. O intelectual sentia-se um “marginal” dentro de um sistema totalitário que o absorvia e o emasculava. Esta ficção de falsos “pingentes”, “malandrecos” e “bóias-frias”, por outro lado, estava de tal modo sufocando a criação dentro de outros prismas de análise, como o existencial, o experimental, o mágico e o intimista, que involuntariamente promovia, ou ameaçava promover, um empobrecimento da nossa literatura. Ela estava se tornando também totalitária, reproduzindo ao avesso o sistema que procurava criticar. O princípio das chamadas “aberturas” políticas, inicialmente chamada “descompressão”, lá pelos idos de 1977, foi o golpe de misericórdia na vertente neopopulista, então dominante. A posterior arregimentação de intelectuais para o exercício do poder, com uma dose de delegação decisória, também chamada por outras vertentes de “cooptação”, tirou das camadas da intelectualidade, com exceção das que mantêm posturas mais radicais ou ortodoxas, a sensação de “marginalidade” diante do sistema. Extinguindo-se as causas, cessaram imediatamente seus efeitos.

Como você vê as tendências e a ficção brasileira atual e como situa neste quadro o seu trabalho?

A política cultural adotada pelo governo após o grande fechamento de 1968 e o clima de repressão e medo dela resultante criaram uma espécie de “frente ampla das oposições” em todas as áreas, a cultural inclusive. A literatura radicalizou esta “frente ampla”, reunindo do mesmo lado, e com o apoio da crítica especializada, todos os que se opunham ao sistema em vigor, a despeito das enormes diferenças de nível qualitativo, visão de mundo, estilos literários e tudo o mais. No final da década de 70, com a notável redução da influência destrutiva do Estado sobre a cultura, nós estamos assistindo a uma desagregação desta “frente ampla” em todos os setores, as diferenças ideológicas (que não são pequenas) dentro desse amálgama de criadores descontentes estão vindo rapidamente à tona. Este processo, na minha opinião, não traduz um esfacelamento do pensamento brasileiro, enfraquecendo pela divisão o que antes, unido, era forte. Ele traduz, isto sim, o desvelamento das disparidades ideológicas e formais, que haviam tido uma união provisória e de certo modo artificial, apenas para combater, ou resistir ao inimigo comum, aparentemente mais poderoso. Uma união tática e estratégica, mas que em momento algum eliminou as diferenças abissais existentes dentro do meio de produção cultural. Não se poderia mesmo manter as diferenças ideológicas profundas ou sutis achatadas e niveladas sob o manto do medo. Não poderia ser sustentada uma cultura do pavor. A rica diversidade cultivada nos subterrâneos da repressão teria que, mais cedo ou mais tarde, vir a público com todas as suas proposições. E é o que está ocorrendo. A década de 70, tendo sido uma década de reflexão, deu margem a um enriquecimento ainda incalculável das teorias e das práticas de representação do real, e este enriquecimento implica numa composição cultural multifacetada e pluralista. Se em algum momento a literatura neopopulista resumiu os anseios nacionais no campo da ficção, sua abrangência não ultrapassou os limites da multiplicidade que se esboçava. Na verdade, não tivemos um estilo de época fortemente dominante nesta década, como tivemos diversas vezes em épocas anteriores. Os resultados disto estão sendo conhecidos agora, e já se pode divisar que foram extremamente benéficos. Jamais a nossa literatura apresentou tamanha diversidade temática ou estilística, e portanto jamais atingiu o grau de representatividade que ora se nos apresenta. A tendência para os anos 80 é de acirramento destas posturas e de desenvolvimento prático das tendências que agora se revelam, ainda de modo embrionário, principalmente nas publicações dos autores que emergiram durante a fase de arregimentação dos meados da década. Os panoramas confusos irão se clarificando, o patético, o cético e o lúdico irão sendo substituídos pela manifestação de crença nos mais variados valores, e os anos 80 prometem ser férteis em definições, posturas revisadas e questionamentos internos dentro da própria intelectualidade, tudo isto a partir de obras de ficção e ensaísticas que tendem a proliferar-se, com crescente interesse e acompanhamento do público leitor. Nos anos 70 bastava saber-se o que não se queria. Nos anos 80, há que se revelar o que se pretende, sob o risco de, se assim não o fizer, ser o intelectual hesitante atropelado por uma avalanche de definições categóricas e passar a residir num certo limbo cultural, que também já aponta em estado embrionário.

Situar meu trabalho neste quadro não é exatamente tarefa minha, mas sim da crítica que porventura se ativer sobre ele algum dia. Mas posso adiantar alguns dados. Minha obra, que hoje conta com dois livros de contos, Torpalium e Sabe quem dançou?, dois romances, Artérias e becos e Bárbara, três peças teatrais, Abrindo o seu corpo ao coringa, O que se come e Motivo de força maior, e um livro de poemas, As algemas da terra, esta obra em fase de rápida transformação e ainda em processo de pesquisa e estudos, foi altamente beneficiada pelo clima de pluralidade temática e estilística da década de 70, reproduzindo assim praticamente todas as tendências que nela se esboçaram e tentando traçar variantes e desenvolver cada uma das proposições, dentro de uma visão de mundo estritamente pessoal e alguns princípios básicos intrínsecos à minha criação. Assim, por exemplo, o livro de poemas As algemas da terra é subdividido em três partes: parte cega, parte surda e parte muda. Cada uma delas reúne um número considerável de poemas dentro da vertente que the é própria. Assim, a parte “cega” reúne poemas de raízes regionais ou populares, utilizando-se da linguagem da literatura de cordel, das cantorias nordestinas, dos folhetos de feira, com propósitos semididáticos de uma poética política acessível às camadas mais populares. A parte “surda” reúne poemas retrabalhados sobre a poética da contracultura, do underground, de surrealismo osvaldiano, do tropicalismo e do exercício lúdico e livre da palavra e suas sonoridades. A parte “muda” reúne poemas da vertente mais forte e conhecida da poesia brasileira, poemas que fundem construções românticas, como as de Castro Alves, com o tom de um João Cabral e a informalidade de um Drummond, estas poéticas digeridas e transformadas visceralmente, antropofagicamente, para servir a temáticas sociais, políticas e principalmente existenciais, próprias do meu tempo, do meu lugar, da minha índole e da problemática que me envolve. Assim, As algemas da terra pode bem representar a poética do criador num período de transição e reflexão como foram os anos 70, dando lugar a toda sorte de experimentações, radicalizações, redefinições e desenvolvimento de tendências que já vinham se projetando anteriormente. Maior diversidade ainda poderá ser encontrada em meus livros de contos, nos romances ou no teatro, por terem constituído campo de experimentações ainda mais vastas e radicalizantes que a poesia.

Quanto à publicação de meus trabalhos, posso dizer que foi um processo diretamente derivado do chamado boom, fui um dos arregimentados para um mercado potencial não-ativado, e Torpalium, aprovado para publicação em 1976, foi mandado para a editora que o publicou pelo correio, sem maiores explicações ou relações. Em princípio de 1977, a coletânea de contos Histórias de um novo tempo, que organizei e da qual participo com dois contos, vendeu nada menos que 30 mil exemplares em poucos meses, o que fez de seus autores portadores da imagem, logo depois desmentida parcialmente, de prováveis best-sellers tupiniquins. São fatos anteriores à recessão do mercado, o que não tornaria incorreta a impressão de que eu seria um “filho do milagre brasileiro”, que desabou fragorosamente, com danosas consequências para o próprio mercado editorial, às quais, felizmente, sobrevivi, talvez porque alguma meia-dúzia tenha realmente gostado do meu trabalho e resolvido pagar pra ver. Preocupo-me somente em exercer o meu ofício, o de escritor, com coerência e dignidade, e dedicar um certo número de horas diariamente ao seu desenvolvimento. É possível que a década de 80 arranque de mim definições mais precisas, o que talvez seja uma pena. Ao menos, tenho consciência de que o outro lado da multiplicidade pode ser o empobrecimento e, consciente, torço e trabalho para que ocorra o oposto. Viveremos e veremos.

25 anos depois:

Da releitura do título deste ensaio ao texto propriamente dito, a viagem no tempo é a mesma. Voltam subtextos, memórias, histórias, paranoias. Sobretudo, 25 anos depois de sua primeira publicação, a leitura traz de volta o impasse provocado pelo slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Escrito por quem optou, não sem conflitos, pela alternativa “1”, ou seja, por quem ficou no país, o texto revela, em primeiríssimo lugar, a obstinação de provar e comprovar a vitalidade literária da década, a presença desafiadora de vozes ativas e reativas, a emergência de novos escritores, a permanência, enfim, de uma força crítica na produção literária no Brasil do Milagre. O texto empunhou, como bandeira de guerra, o desafio às avaliações correntes sobre o processo cultural do país ao longo da década de 70, à ideia de que se vivia uma espécie de “vazio”. Naquela hora, a expressão “vazio cultural” tornou-se um quase lugar-comum, servindo para salientar o papel da repressão política e da censura sobre a produção de cultura. Se bem que fossem, de fato, anos de “sufoco”, como se dizia na época, a noção de “vazio cultural” não deixava de conter uma dose de preconceito ou mesmo de desatenção em relação a uma série de manifestações do período. Se a ação da censura fazia-se sentir pesadamente sobre as artes, ainda assim produzia-se — e consumia-se. Ao lado de intelectuais que vinham de anos anteriores, a nova geração, que viria a explodir em passeatas em 1977, já começava a criar suas alternativas culturais. Novos grupos de teatro se haviam formado, filmes alternativos e experimentais estavam sendo feitos, a música popular se renovava e já estava em cena uma nova produção literária, notadamente poética, mas também ficcional.

Quando topamos traçar um panorama da ficção brasileira naqueles anos, tínhamos em mente que não se tratava de bater na tecla da censura e do vazio cultural, mas sim de investir na estratégia de mostrar que não só havia vida cultural na década de 70 mas também que ela tinha adquirido determinadas características, muitas delas moldadas pelas relações dos autores e das obras com o ambiente político.

Assim, o texto que produzimos, a convite do Adauto Novaes, acabou sendo uma espécie de inventário, um tanto “a sangue quente”, da produção ficcional brasileira do período. Nesse sentido, temos mais travellings do que closes.

De olho no debate político e visceralmente ligados ao contexto, terminamos sacrificando a apreciação mais detida de determinadas obras em nome de um levantamento mais amplo da produção. A presença hiperdimensionada do contexto político e social em nosso exame da década, de certa forma, comprometeu nossa respiração crítica. Talvez isto seja na realidade mais um sintoma do “sufoco” que tanto identificamos nos artistas ao longo do texto.

/comentário de Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves /

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