2005

A imagem, vestígio desconhecido da luz

por Evgen Bavcar

Resumo

Reiterativa e, por isso, recíproca ou substitutiva, a díade palavra-imagem nem sempre foi assim. Na renascença florentina, por exemplo. Dois de seus eminentes homens, Marsílio Ficino e Leonardo da Vinci, puseram-se questões muito parecidas. No primeiro caso, tratava-se de saber o que seria mais agradável para indicar um lugar: uma imagem ou uma descrição. Já no caso de Leonardo, o que seria melhor para evocar uma dama: uma pintura ou um poema.

Tais questões continuam atuais, o que prova não só a pertinência delas como a possibilidade de recuperação do valor dos sentidos e meios de expressão hoje. Mais: do invisível e do silêncio, assim como vivia Deus em seu estado puro: “… curvado sobre si mesmo” – para usar a bela expressão de Jean Starobinski.

E eis que, em sua solidão, Ele começa a criar – para que tudo não seja Ele ou Ele tudo.

“Fiat lux” é o verbo que antecede a primeira imagem de Deus, tal como primeiro véu perceptível ou “nostalgia do outro”. A luz passa, então, não só a companheira como a bipartição fatal. Para o homem também – uma vez que, para ele, tal véu será para sempre invisível. “Deus fala sem se mostrar”; para a tradição judaica, sobretudo.

Com o outro e o verbo, tem início a atribuição de nomes. A palavra, invisível por ela mesma, sugere a imagem. Trata-se do movimento da arte cristã mesma: o de gerar ícones, ou seja, imagens do invisível, à exceção de Deus, para o qual se reserva a transcendência, que é, por natureza, inexprimível. Apesar disso, Ele se assusta: com a perfeição de suas criações. Daí a morte – para arrebatar do olhar do homem tal condição. Por isso que, no absoluto, a imagem é cega; a narcísica, sobretudo. Ela que, no espelho do mundo, é a distância original, pois implica a impossibilidade tanto do eu quanto do outro. Isso no sentido de que a imagem não é o objeto em si. Não é, por exemplo, o outro, mas do outro. E quanto à imagem de si? Ela é tão cega quanto reflexiva.  E, nisso, Narciso é exemplar. Afinal, se ele tivesse sabido que, entre ele e sua imagem, havia água – ou qualquer outra mediação – não teria morrido. Mais: continuaria amando a ninfa Eco, sem a qual o ser de si morre na condição de ser pensante, uma vez que, sem imaginar que se existe, não há existência, mesmo como imagem para o outro – que jamais é a mesma, aliás. É que, viajante do espelho, o homem sempre vê nele vaga lembrança da Medusa, fatal. Há, pois, que o quebrar; junto, o narcisismo.

É quando nasce a dicotomia, e, com ela, a predominância, claro, da imagem. Assim, as palavras não pertencem senão aos danados das trevas, exilados da ideologia oculocêntrica, vigente desde a iconofilia bizantina, processo que se acentuou até afogar a palavra na comunicação. Uma tendência sustentada, hoje, pela tecnologia, que quer racionalizar tudo pela medida e pela norma social, a ponto de aprisionar o som, em toda sua riqueza e nuance.

Em sociedade tal, a verdade é que não se há novidade, exceto o fato de que a todo momento esquece-se o que já se viu. Assim, não há mais narrativa, e a sensação, em meio aos fogos de artifício, é a de uma eterna promessa de festa sem festa. Participar do espetáculo do mundo é viver e morrer no nada, uma vez que a condição para tal é submeter-se a um fluxo imagético inapreensível.

Superar tal condição dependeria de evitar a ditadura do visível sobre o olhar. Mais: oferecer a possibilidade do invisível e, com ele, do novo. Para tanto, há que se dispor a vigiar a noite para que a aurora apresente o batismo do inédito, a ser nomeado – nosso.


Talvez lhe pareça estranho que eu me atreva a falar da imagem, logo eu, a quem ela tão pouco pertence, neste mundo oculocêntrico.

Em princípio não tenho esse direito, mas na realidade concebo sua presença não apenas em minha experiência de fotógrafo, e sim como qualquer pessoa que tenha imaginação. Sim, tenho a pretensão de lhe dizer que imagino você aí, presente à minha frente, nesta sala, aqui e agora. Já em poucos instantes, e muito mais depois, essa imagem constituirá um pedaço de minha memória.

É difícil falar de imagem sem relacioná-la à palavra. Essa dupla, imagem-palavra, ao mesmo tempo unida — hoje — e, antes, separada, é, no entanto, difícil de compreender e, sobretudo, de conceber como uma igualdade recíproca ou como uma ligação fatal, em que uma se sobreponha à outra. É por isso que a gente pode se interrogar sobre a imagem e a palavra como o fizeram outrora Marsílio Ficino e Leonardo da Vinci. Evidentemente é uma reflexão ao alcance de todos, e cada um pode ter sua própria resposta, ou, antes, sua própria pergunta.

Na época em que a ligação entre a palavra e a imagem ainda tinha um sentido, o filósofo florentino perguntava a seus contemporâneos: “Se um lugar for indicado de um lado por uma imagem e de outro por uma descrição, qual indicação será mais apreciada pelo visitante: a imagem ou a descrição?”.

O que é mais simples e mais prático: ler ou olhar? A escrita, a palavra, ou o quadro visualizado?

Leonardo formulava a mesma questão de modo um pouco diferente. Dizia: “Se possuirmos a imagem de uma pessoa amada e um poema sobre essa pessoa, a qual daremos preferência?”. Trata-se, pois, de uma imagem como lembrança de uma presença ou de um texto que comunique a beleza de uma mulher pela magia da palavra.

Apesar dos séculos, essas duas perguntas não perderam nada de sua atualidade e de seu frescor. Num mundo totalmente visual, essa questão ainda é pertinente, e ter o privilégio de discuti-la neste quadro de reflexão sobre a imagem é uma oportunidade excepcional, e também uma difícil tarefa.

Será verdadeiramente necessário resolvê-la e fazer uma escolha? Será preciso chegar lá de uma maneira ou de outra? Haveria uma terceira possibilidade, mas qual? O obstáculo da escolha é ainda maior quando se trata de uma bela mulher. O que escolher? A que dar a prioridade, uma vez que, seja qual for o estado em que ela seja representada pela imagem ou exaltada pela poesia, ela, em carne e osso, não está mais lá? Há apenas duas maneiras de indicar a presença do lugar — ou, antes, sua ausência — no momento concreto em que é preciso decidir; e dá na mesma quanto à beleza inacessível da mulher. O obstáculo da escolha é apenas uma aparência, mais um dado real e concreto de todas as nossas civilizações e de todas as nossas culturas em particular.

Deixemos de lado, por ora, esse aspecto da questão. Falemos antes da primeira imagem do mundo tal como nos é dada pela Bíblia. Evidentemente, não se trata somente da imagem de Deus, com as diferentes interpretações que se fazem dele. A questão que se põe é sobre a origem da imagem na escuridão pré-histórica, nas trevas bíblicas, até que o Eterno comece a Criação. Trata-se, pois, da transcendência primária, em que Deus existe só, curvado sobre si mesmo, como o descreve Starobinski, quando era dono absoluto do cosmos indiferenciado. Nessa solidão sem dúvida insuportável, ele queria criar qualquer outra coisa, qualquer coisa diferente. Seu espírito, que flutuava nas trevas, devia estar cansado do eterno retorno da mesma solidão transcendental, das incessantes repetições, da autoconfirmação de si, sem o outro, sem princípio diferenciado do mundo.

Em grande solidão, o Eterno devia querer sair da perfeita prisão do Um, esse convento único, desprovido de irmãos e irmãs. Talvez fosse isso: a solidão absoluta, que obrigou Eterno a crer. Então, seu primeiro ato foi a expressão: Fiat lux.

Não é essa verdadeiramente a luz como a entendemos hoje. Mas é o primeiro véu positivo perceptível e, portanto, reconhecível do Eterno em seu princípio negativo de ainda não ser. A luz tornou-se então, de qualquer modo, a primeira imagem de Deus, sua companheira, sua presença visível no mundo, mas também sua separação fatal deste. Essa luz ontológica, saída das trevas indiferenciadas do cosmos, nasceu então da nostalgia do Outro, desse desejo do Eterno de que houvesse alguma coisa de diferente à sua frente. Esse outro criado — o visível — tornou-se então, ao olhar do homem que queria ver Deus, um véu insuperável. Paradoxalmente, se a luz pôde abrir os olhos do homem, ela encobre mais do que revela; na verdade, a face oculta do Eterno é tão luminosa que nos impede de ver claramente. Desse modo, as trevas permanecem para sempre o berço primeiro da imagem, sua terra natal, mas também seu túmulo na escuridão do Verbo. É assim que devemos compreender Deus, que fala e não se mostra, já que — como quer a tradição judaica — ele não é representável, uma vez que não pode ser representado como imagem saliente, ou seja, em relevo.

Ao criar a luz, Deus situou-se em posição de exilado. Doravante, ele mostrará sempre essa face velada de seu infinito pela qual se explica a nostalgia das origens, o desejo do retorno à unidade do mundo indiferenciado. Na realidade, por trás dessa máscara está o grito inicial do verbo, da palavra do narrador que nomeia as coisas do mundo. A arte cristã, por exemplo, é inteiramente a expressão dessa narração: é a palavra tornada imagem, isto é, a imagem saída da cegueira da palavra.

Se a palavra se torna invisível, ela nos deixa ver tudo aquilo que não é mais ela mesma, tudo aquilo no qual ela não pode tornar-se, isto é, ela se explica por si mesma. Assim, o véu opaco das trevas torna-se a máscara em aparência transparente da luz, mas sobretudo a máscara que esconde o rosto inacessível de Deus ao olhar dos humanos. Como diz são Paulo: “No momento é possível ver Deus por meio de um espelho, enquanto mais tarde o veremos diretamente”.

Isso significa que apenas o transcendente, ou seja, o retorno ao domínio situado além da visibilidade aparente, nos permitiria aproximar o rosto de Deus. Assim, devemos compreender os ícones como imagens do invisível, isto é, como janelas veladas por onde sondamos o olhar de Deus. A imagem revela essa presença oculta de Deus e constitui o presente em estado puro. Para evitar essa descida até o negativo absoluto, Deus criou o homem como imagem dele mesmo e as coisas como reflexos de seus múltiplos olhares. Aí, podemos perceber a primeira ideia do espetáculo visual, o oculocentrismo de Deus expresso como reflexo nas coisas do mundo. É assim que podemos perceber sua criação, que, na perspectiva de inúmeras interpretações, evidentemente, é perfeita.

Deus — diz-nos a lenda — assustou-se ao ver que as coisas de sua criação eram tão boas. Isso o levou a criar a morte, para arrebatar de nossos olhares tangíveis o caráter da perfeição absoluta. Assim, a imagem remete também a uma forma do nada expresso pela existência da morte. Em outras palavras, é graças ao enfraquecimento das coisas que temos o direito à imagem como único sedimento possível da memória enquanto sobrevivência da morte do outro.

Após a morte, também nos tornaremos imagem ao olhar dos sobreviventes, na percepção desses que não seremos mais nós. Nossa consciência coletiva como memória de todos aqueles que partiram é criada, sobretudo, a partir das imagens dos desaparecidos. Para os romanos, a imago é o retrato do defunto desenhado sobre uma urna funerária. Não é a mesma coisa que os célebres retratos de Fayoum, destinados à transcendência dos mortos, que o pincel do pintor captou como num último adeus ao mundo da existência. É o olhar da morte que destrói o corpo ou, mais exatamente, que o transforma em múmia tridimensional ou em imago, como representação plana. Pouco importam as dimensões dadas àquele que não está mais, que não existe mais no mesmo registro que nós. Não sendo mais nosso contemporâneo, ele se situa para além da imagem, já que a representação interior de qualquer pessoa ou o desenho exterior de uma ausência são coisas que pertencem à transcendência do ser. A imagem de Narciso que nos assoma no espelho do mundo é então nosso algures original, nossa impossibilidade de sermos nós mesmos e o outro, de sermos solidão original do Criador.

Se estamos lá, é porque houve uma separação cósmica, uma interrupção brutal da solidão cósmica. É porque nos tornamos ao mesmo tempo órfãos da noite e filhos visíveis do dia. A imagem é sempre o outro.

A imagem, no contexto de nossa morte, não é a mesma coisa que a ideia de aura em Walter Benjamin, já que nele há concordância entre o aqui e o agora, entre o verbo que fala e a imagem que se vê e se olha ao mesmo tempo. O instante da aura em seu aqui e agora é, pois, a situação daquele que se vê vendo-se a si mesmo. Podemos dizer simplesmente que a vida não é ainda a imagem, mas é sua condição sine qua non. Não há imagem que não venha a ser precedida por esse aqui e agora, pela felicidade da unidade paradisíaca, pela miragem enganadora de sermos nós mesmos como o outro.

No absoluto, a imagem é sem visão, quer dizer, desprovida de olhar que pudesse sondá-la no espelho, velando-se tanto quanto outra. A imagem é, pois, uma ficção que se vê justificada por si mesma pela morte de Narciso no espelho, sem separação. Se Narciso soubesse que há água entre a imagem e ele, não poderia afogar-se na visibilidade absoluta. O olhar da Górgone nos escruta, e é apenas por meio do espelho que podemos desviar sua força petrificante, em outras palavras, o olhar em direção ao reflexo da morte ainda permanece livre e pode ainda dar um sentido ao eco da palavra dita. Assim, a apreensão da morte na imagem permanece sempre essa memória incontornável da ninfa bem-amada de Narciso, sua querida Eco, repudiada pela imagem absoluta dele mesmo. No momento em que a palavra morre, o ser de si entra no silêncio da imagem e afoga-se no reflexo como ausência fatal do corpo, como outro lugar absoluto de sua presença material.

No momento em que silenciamos, perdemos a possibilidade de nos imaginar como seres pensantes. Seria preciso dizer então “imagino que existo”, mais do que “existo”. Existindo, só posso ser imagens para os outros, a ilusão de uma visão que jamais é a mesma.

Postado diante do espelho, posso contemplar o reflexo de mim mesmo, tendo consciência de que eu mesmo não sou nunca o mesmo. Essa diferença temporal e também espacial significa que, no silêncio do espelho, subsiste ainda a memória do verbo e que, se falo diante do espelho, espero encontrar aí um leve eco de minha presença terrestre.

Cada espelho, como ilusão de meu ser redobrado, remete à morte, quer dizer, à imagem de meu ser mortal, jamais o mesmo ou nunca mais o mesmo. A imagem torna-se a passagem entre aqui e agora, entre o ser aqui e o ser alhures. Se eu imagino que existo, também devo me imaginar devendo morrer, por meio da mensagem do espelho, que me fala de uma presença efêmera.

Não posso esquecer que o espelho reflete as coisas e os seres postos diante dele ou que se postam diante desse juiz silencioso de nossa materialidade corporal. No olhar do espelho há sempre uma vaga lembrança da Medusa, que só desaparecerá no momento em que aceitarmos conscientemente a quebra do espelho. É só assim que às vezes podemos nos libertar e contornar o inevitável narcisismo quanto ao plano de nossas experiências pessoais.

É aí também que nasce a dicotomia entre dois irreconciliáveis, com a predominância, é claro, do mundo das imagens. Assim, a palavra não pertence senão aos danados das trevas, aos fantasmas da escuridão sustentada pela angústia crescente da perda da imagem. Trata-se de uma fuga do mundo do verbo, como se não houvesse senão o visual para justificar nossa existência e nossa presença sobre a Terra.

A vitória da imagem é o resultado de uma ideologia oculocêntrica do mundo, aquela que, já entre os bizantinos, fez a vitória da iconofilia sobre a iconoclastia. Depois disso, inscrito na história política de Bizâncio, o desequilíbrio tornou-se cada vez mais grave, e até afogou a palavra como meio de comunicação. Uma tendência sustentada em nossos dias pela tecnologia, que quer racionalizar tudo pela medida e pelo controle visual, e que chegou a aprisionar o som, em toda a sua riqueza e suas nuances.

O espetáculo é unicamente o assunto dos olhos, o resto é apenas acessório insignificante e sem valor. De sorte que somos obrigados, no cotidiano, a repetir maquinalmente a morte de Narciso, já que não estamos mais em condições de estabelecer o equilíbrio entre o verbo e a imagem. A foto digital reduz a imagem a fórmulas matemáticas, como são as realidades ditas virtuais. Apesar dessa extrema racionalização, a imagem perde sua força original e torna-se objeto de consumo sem reservas e sem distância, como qualquer objeto banal.

A morte da imagem é antecipada por sua bulimia, que não permite mais repetição nem distância em seu consumo. O hipermercado de ícones modernos tornou-se mais importante que a possibilidade de criação, já que esse próprio princípio remete à pré-fabricação do visual. Aquilo que vemos não tem nada de novo, exceto o fato de esquecermos que já o vimos, para que amanhã não nos lembremos mais de nada e, sobretudo, para que não pensemos na necessidade de esquecê-lo. Libertando-se da narração, o mundo das imagens é o dos fogos de artifício, que nos fornecem o tempo todo a promessa da festa, sem que possamos festejar o que quer que seja.

É por isso que a surdez e o mutismo são sempre considerados nas lendas como uma forma de morte ou um perigo de morte se nos aproximarmos demais, por exemplo, da fada muda. O silêncio significa a ausência de palavras como véu de proteção contra a visibilidade pura, contra a cegueira absoluta no todo visível. Assim que a imagem separa-se da palavra e esquece até sua terra natal, ela deixa atrás de si seu corpo (a palavra), que a protegia contra a auto-suficiência no espelho maldito do infeliz Narciso.

No mundo contemporâneo, a realidade das imagens visuais na televisão, no cinema, no vídeo torna-se uma forma de espetáculo em si, sem referências a nenhuma coisa de material e tangível. Em lugar de viver por nosso corpo, somos obrigados a existir por meio da percepção ocular, como se a própria realidade da vida não bastasse mais. A vida como tal torna-se espetáculo, e o espetáculo já é vida no círculo vicioso das realidades virtuais. Estar no mundo significa tornar-se imagem ao olhar dos outros, e isso apenas até que esse outro deseje ver também sua referência material. Trata-se de dois mundos, quer dizer, o mundo subterrâneo — que é auditivo — e o da superfície — que se imagina. Confundindo visual e visível, invisível e ausência de visão, tornamo-nos escravos das imagens, como se estas formassem uma cadeia inquebrável, em que nenhum elo fosse diferente dos outros.

Eis por que a prioridade dada à imagem no mundo contemporâneo é uma forma de injustiça em relação ao verbo, que permitiu à arte cristã principalmente seu impulso e a seus artistas um necessário repouso à sombra de sua escuridão. O verbo enquanto voz de Deus invisível representa o retorno às origens, ao tempo em que a luz ainda não havia estendido o véu entre o homem e o divino. A todo momento o verbo efetua o retorno do invisível; oferece-nos a possibilidade de novos olhares, quer dizer, a imagem justificando-se por si mesma. Desse modo, ele evita a condenação à morte da imagem, já que cria sua necessária oposição e, assim, sua razão de ser. O olho no olho seria concebível apenas para o olhar de Deus. A visão de uma câmara na própria câmara é igual a zero. O todo-visível, ou seja, a visão absoluta, termina forçosamente em cegueira generalizada desprovida de imagens, já que desprovida de olhar. A luz, como primeira máscara de Deus, é, portanto, parente do sagrado, a proteção indispensável para o olhar fatal; ela é, na realidade, a máscara colocada sobre a face de Deus.

Para compreender o papel da máscara, pensemos na máscara de ouro de Tutancâmon ou na de Príamo, que significa o desvio do olhar do vivente através da morte, para reencontrar outra realidade, a da viagem transcendental. Entre o olhar do faraó voltado para o sol e nós, essa máscara dourada estende-se como separação simbólica entre dois mundos, entre duas realidades. Ocorre o mesmo com o espelho de Perseu como anteparo protetor contra o olhar da Górgone. Os olhos de Perseu podem suportar a imagem refletida, mas não a da face, os olhos nos olhos. Assim, a realidade refletida já é uma forma de proteção contra o olhar insuportável da morte, ou mesmo da divindade. Esta última, como diz o já citado São Paulo, mostra-se em reflexo, isto é, em espelho opaco de nossas realidades humanas.

A imagem que necessita de máscara situa-se no limite da visão. Podemos compreendê-la também como presença acentuada do absoluto, seja negativamente, seja positivamente. A título de exemplo, podemos evocar o Cristo velado da Capela de San Severo, de Nápoles, que pode nos ajudar a compreender o papel da imagem em uma perspectiva teológica. O Cristo velado evita a ilusão da imagem realista de seu Pai. Em outras palavras, o Filho mascarado remete ao Pai Todo-poderoso, assegurando totalmente ao observador a possibilidade de outras imagens sobre o mesmo assunto. Pode ser que essa figura de Cristo dê ao homem a mais perfeita ilusão do Deus escondido atrás do corpo mascarado de seu Filho. De sorte que o desvelamento se torna um trabalho privilegiado do olhar interior, aquele que não se detém nas realidades refletidas do divino sobre a tela deste mundo.

Nesse ponto podemos compreender a separação e sobretudo o exílio do divino, sua partida inelutável da Terra, evocada pelos gritos de são João no deserto da ausência. O Cristo velado de Sammartino é a figura visível mais convincente desse grito; é a presença do divino na imanência do corpo do Filho tornado homem. Nossos olhares são, portanto, as visões veladas do absoluto, que sempre se detêm às portas do invisível, onde começa o domínio sagrado do absoluto, negativo ou positivo. A necessidade da máscara remete à fatalidade do corpo, que, por sua vez, pode acolher a imagem parcial do divino, isto é, uma semi-imagem, em algum lugar entre o visível e o invisível absoluto do verbo. É apenas assim que a palavra ocultada reencontra seu direito, sua razão de ser e força para ressuscitar a imagem. Evidentemente seu lugar não pode ser definido de maneira segura, já que ela remete sempre a inúmeros elementos perceptivos que estabelecem as relações entre o sujeito e o objeto, eu que olho o outro e me percebo também a mim mesmo, e eu me vendo como o outro. Merleau-Ponty diz que, assim que observamos um quadro, não sabemos mais exatamente onde ele se encontra. A impossibilidade de encontrar o lugar da imagem exprime o enigma do olhar tanto exterior quanto interior, e nos incita a não separarmos a imagem do imaginário e sobretudo da memória como lugar privilegiado da subjetividade. Sem ela, a imagem está morta, e é efetivamente a única certeza que temos no mundo do espetáculo.

Esse tema, desenvolvido por Guy Debord, também põe a questão da imagem como realidade auto-suficiente cujo único sentido seria a consumação direta do visível. Participar do espetáculo do mundo é viver e morrer ao mesmo tempo no nada, já que, atrás dessas imagens, só há um vazio sem referências concretas.

Uma vez que somos bombardeados por imagens sem poder controlar seu fluxo, a força delas ultrapassa a capacidade de nossa memória, que necessita de um tempo próprio para digerir os dados visuais. Na realidade, contentamo-nos com imagens como uma espécie de Margarida moderna, sem chegarmos a ter o desejo de Fausto de parar o tempo em seu objeto. A imagem dela não fala mais; ela nos sufoca sem mesmo ter necessidade de nos dizer: “Não me toque, se não quiser morrer”. Assim, começamos a morrer sem conseguir ultrapassar o mito de Margarida, cuja beleza — ou mais ainda o ideal que ela representa — outrora provocava o desejo.

Desde a nossa queda na mortalidade, quer dizer, na história, a eternidade reduz-se a um adiante ou a um antes. De fato, nosso corpo é a imagem do tempo em sua duração e o descontínuo no ordo sempiternum rerum. Acreditamos assim, como Fausto ou outros sonhadores, parar a inexorável marcha rumo ao nada, de onde saímos para lá retornarmos, como diria Sófocles. Então, para que servem as imagens? Em parte nós as criamos para nos consolar da precariedade de nossa existência e para dedicá-las à memória, única maneira de resistir ao esquecimento das coisas. O corpo, como morada da alma, sonha morar toda a eternidade no efêmero da existência. Se a alma não é mais que a imagem do corpo, então é o corpo que se deve imaginar ser eterno graças à memória da alma. Em outras palavras, a alma é a imagem da eternidade tanto sob o aspecto da história coletiva como da individual. Quando ouvimos palavras como “a eternidade está além de minha percepção”, isso significa que ela é o domínio do invisível, já que o real é aquilo que vejo enquanto estou vendo. Aquilo que não posso perceber percebendo pertence ao tempo de antes ou de após minha crônica pessoal. Posso perceber o sentido do tempo uma vez que o imagine como parte integrante da minha experiência corporal; como Guillevic, posso compreender: “Tudo o que possuímos é um pouco de tempo”. Nesse bem efêmero está incluída a imagem de mim tal como me imagino, ao mesmo tempo que estou me imaginando, ou efetivamente existo sabendo que existo no tempo definido e concreto de minha presença material.

Assim, a imagem como síntese dos elementos interiores e exteriores a mim existe apenas em uma constelação, e não pode ser pensada fora dessa corrente inevitável.

A imagem pode ser ao mesmo tempo visual e não visual, portanto, pertencer ao dia e à noite, se aceitarmos esse duelo temporal. Conta-se que Michelangelo queria gravar acima de seu grupo que representava o Dia e a Noite: “Levamos Lourenço de Medici rapidamente à morte”. Trata-se efetivamente de uma alternância que pode servir-nos para situar a imagem. Se o dia e a noite estão em uma relação de igualdade, a imagem pertence equitativamente aos dois. Ainda que ela se situe a meio caminho, será apenas metade luz, metade escuridão. No momento em que se discute a origem bíblica do mundo, a imagem da escuridão — isto é, a noite — precede o dia. Deus instalou-se nas trevas até o momento em que não suportou mais aquela solidão. E, criando a luz, instaurou também o tempo, ou seja, a alternância. Na perspectiva de Rosenzweig, a perfeição da criação divina requer a existência da morte. Esta última pode ser compreendida como a imagem da Eternidade, em comparação com os instantes efêmeros da vida. Em outras palavras, a Eternidade é, no sentido ontológico do termo, a imagem por excelência do invisível. Imaginamo-nos sem poder percebê-la, nem, sobretudo, vivê-la. Na experiência do vivido, imaginamo-nos como corpo, isto é, como luz de nossa presença, desejando ao mesmo tempo ver o invisível da noite transcendental. Nisso, a imagem da eternidade está inclusa na experiência de nosso corpo, em sua própria imanência. A memória, como uma das cúmplices da imagem, justifica-se apenas pelas ideias de perenidade, isto é, pela esperança de um mundo invisível além do mundo representável.

Quando nos observamos no espelho de nosso corpo, olhamos ao vivo o tempo e seus desgastes, e não podemos identificar-nos com nossa imagem justamente por causa do deslocamento temporal. Narciso morreu quando se tornou espaço (lugar do espelho), sem levar em conta o deslocamento temporal ao qual o atraiu a generosa ninfa Eco, isto é, o verbo.

Se fôssemos eternos, não poderíamos mais falar. Isso porque a imagem pode ser o alto lugar do silêncio; mas, no momento em que ela perde seu complemento verbal, não existe mais na temporalidade de nossas experiências. Podemos compreender o mundo moderno e a morte da imagem justamente pelas razões evocadas. A espacialização absoluta do visível não significa outra coisa senão a morte em uma ilusão mentirosa da eternidade. As imagens que não são sustentadas pela repetição discursiva são condenadas a perecer, por serem frágeis demais para resistir ao esquecimento na banalidade. Só possuímos as imagens ao preço da ausência de nossa realidade, isto é, abandonando o corpo que cria a imagem se imaginando.

Vivemos a abundância das imagens que não temos mais como imaginar, isto é, de nos apropriar pelo trabalho da memória. O tempo moderno caracteriza-se pelo espetáculo que não significa outra coisa que o esquecimento programado das imagens assim que elas aparecem sobre as telas de nossos instantes vividos. Trata-se, portanto, de uma experiência da visão — tecnicamente falando — de uma câmara dentro de uma outra, portanto, de um nada. Quando Bentham concebeu seu célebre panóptico, isto é, um lugar de onde se poderia ver qualquer outro lugar — uma perfeita prisão —, ele não suspeitava que no século XX as descobertas tecnológicas dos meios de comunicação permitiriam a realização de um panóptico moderno. Somos observados sem saber a quem pertence nossa imagem e somos imaginados sem poder contestar as imagens que nos impõem.

Por assim dizer, a imagem justifica-se por si mesma, destacada de seu referencial tangível e de seu berço, a escuridão, que chamo ontológica. Isso porque ela se apresenta como câmara dentro da câmara, sem operador, ou como olhar dentro do olhar, sem sujeito. Apesar disso, ela não tem nada de divertido, já que nos arrebata nossa origem e, com ela, a fonte do invisível. Esse espetáculo sem visão passa-se graças à sua própria lógica, dando-nos ao mesmo tempo a impressão de que nós é que a definimos. Trata-se de reflexos que poderíamos ilustrar com o exemplo de dois espelhos virados um para o outro, os quais crêem cada um possuir o outro e cada um ver mais que o outro. Na realidade, eles não representam mais que o último sarcófago da imagem, sem poder refletir o que quer que seja. É aí que podemos situar o espetáculo do visual em estado puro, isto é, a ilusão absoluta do homem moderno.

Uma vez que tudo isso se apresenta como verdade indiscutível de nosso saber ver, não podemos ver aí nada senão a visualidade vazia, portanto, o nada. Com a morte do verbo, que outrora justificava a imagem, frequentemente nos encontramos outra vez na situação de espectadores mudos como os prisioneiros involuntários do panóptico terrestre. Assim, fazemos o trágico caminho de Narciso ignorando que entre nós e nossa imagem há algum truque técnico que não podemos mais imaginar. Se quisermos encontrar a imagem em paridade com o verbo, seremos obrigados a restabelecer uma forma de arqueologia do invisível para dar um novo sentido ao olhar que recusa tornar-se prisioneiro da modernidade imposta.

Se isso não for possível, seguramente morreremos sem epitáfio, já que a morte da imagem acontece sempre em silêncio. É por isso que o anjo do progresso evocado por Benjamin deve relembrar-nos as ruínas que ele deixa para trás, às quais pertencem também as imagens destituídas, já que não tinham sido nomeadas ou não éramos ainda capazes de lhes atribuir uma palavra para acompanhá-las.

A ruína das imagens caracteriza um mundo em que o homem não encontra mais o tempo necessário para criar balizas discursivas de defesa que evitem as identificações mortuárias entre o olhar e o visível. Se um dia desejarmos crer de novo no olhar inocente das crianças, devemos lhes oferecer a possibilidade do não-visível para que elas possam entrar em uma nova utopia e descobrir as realidades que ultrapassam os limites do banal cotidiano. Ser livre é poder olhar de outra maneira e poder, sobretudo, imaginar-se por si mesmo e por meio de suas próprias visões. É preciso, portanto, vigiar durante a noite para que a aurora de um dia nos interpele com uma nova imagem que nos aguarde, no batismo do inédito, para que possamos nomeá-la e fazê-la nossa.

* Tradução: Eric Roland Rene Heneault.

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