1992

A invenção do novo

por Gerd Bornheim

Resumo

Experiências e interpretações do tempo são muitas. Daí a precariedade de qualquer tentativa de aprisioná-lo, mesmo a mais exaustiva; necessariamente, anacrônica. A filosofia acotovela-se.

A relação entre tempo e história, que hoje parece banal, foi a última a impor-se à consciência filosófica, sobretudo pela obra de Hegel, pois é nela que tal relação ganha estatuto ontológico. Por outro lado, rarefaz-se em alturas metafísicas, teológicas.

Não por acaso viria a ser um discípulo de Hegel a conferir materialidade ao tempo histórico. Karl Marx – cujo conceito de novo é o que interessa aqui.

“Novos valores de uso, novos produtos, novos processos de trabalho…” – o adjetivo foi naturalmente incorporado à linguagem de Marx. E não só, já que são muitos os indicadores subliminares do novo atravessando toda sua obra.

A começar pela ideia de necessidade, indispensável ao materialismo histórico. Bem, se a natureza da necessidade é, em primeiro lugar, animal, o homem transformou-a em fenômeno histórico – ou o contrário. Como? Satisfeita a necessidade, ela e o já conquistado objeto de satisfação produzem novas necessidades. É essa produção a origem da ação histórica. Surge assim o homem inteiro voltado para a criação do novo. Ele aprisionado pela matéria.

Com a revolução burguesa, passa-se a distinguir melhor repetição e criação. A intensidade do processo é tal que se pode afirmar que é a partir disso que surge o novo como categoria. É como se qualquer movimento social fosse lento até tomar consciência de si. O homem moderno, por exemplo. Ele surge, de fato, com a auto-representação de sua condição. Com sua novidade. Foi repetitivo porque qualquer mudança era então muito lenta, fosse no processo de produção – o sapato era a estabilidade do sapato -, fosse na arte; passou a inovador quando a imitação (ora plágio) foi substituída pela cópia, a universalidade pela diversidade imprevisível do singular, a metafísica pela técnica.

E Marx foi o primeiro filósofo a acompanhar – mais: analisar – o novo ritmo social, engendrado não por Deus, mas pelo homem “essencialmente criativo”. Ele inova, renova, inventa, reinventa, transforma. A máquina fotográfica simboliza-o. Nietzsche antecipa-o. É o super-homem.

E a alienação?

Estranhamente, ela não é incompatível com o novo. Do contrário, como explicar a vertiginosa sucessão de movimentos artísticos, literários, musicais, comportamentais etc. ao longo dos séculos XIX e XX?

Já hoje a estética da repetição, quando não esteriliza a arte, tende a torná-la medíocre. Assim, nunca a obra de arte excepcional esteve tão longe e perto do “lixo”. É a radicalidade do novo, capaz inclusive de velhices geniais e predições decrépitas.


Tamanha é a riqueza das experiências e das interpretações do tempo através do curso da história que se acaba sucumbindo à impressão de que qualquer intento de atribuir-lhe uma definição que se pretendesse exaustiva revelar-se-ia precária e antecipadamente anacrônica. São raros os conceitos que podem ostentar uma prodigalidade tão grande de abordagens, todas como que a mostrar a inesgotabilidade do tema. Baste aqui lembrar algumas das muitas explicações que se acotovelam ao longo da história. Uma das mais decisivas prende-se já aos primórdios neolíticos da consciência humana, à distinção entre tempo sagrado e tempo profano, à maneira da conhecida explanação de Mircea Eliade.[1] Mais tarde, com o advento da filosofia, a contraposição entre estes dois níveis chegará a ser radicalizada, a ponto de Platão, no Timeu, excluir pura e simplesmente o tempo da ordem da eternidade.[2] Mas caberá a Aristóteles, em sua Física, pensar racionalmente o tempo em suas três stasis — passado, presente e futuro — e instituir as bases da doutrina sobre o tema no pensamento ocidental.[3] Outro passo prenhe de porvir encontra-se em santo Agostinho, se a famosa análise do capítulo XI das Confissões ressalta com eloquência o paradoxo insondável do tempo — acentuando a presença de um mistério que não deixa de camuflar o tema enquanto problema —, Agostinho dá um passo decisivo ao ligar o tempo à alma, distentio animae. A relação, já pressentida por Aristóteles,[4] seguirá um incisivo itinerário, até alcançar a sua subjetivação em Kant. De permeio, desdobra-se esta outra distinção, estranha a qualquer sentido de mistério, que acentua a insuficiência do tempo relativo, preso à multiplicidade de modos de movimento, e justifica por aí a elaboração de um tempo matemático, o que torna o tempo finalmente dócil aos anseios de dominação da natureza por parte do homem moderno. Com as análises de Heidegger topamos com uma nova dinâmica, que desvincula o tempo das amarras do passado, no sentido de que, se a existência humana foi lançada no mundo, tal passividade originária como que suscita o projeto que é o futuro — promovido, este, a dimensão fundamental do tempo: da existência se deve dizer que “seu sentido primário (primaerer Sinn) é o futuro”.[5] Com Heidegger, o tempo alcança a dignidade de ser chamado “o primeiro nome (Vorname) para a verdade do ser”.[6]

Chamo a atenção ainda para uma questão que hoje se afigura como óbvia, mas que, surpreendentemente, foi a última a se impor à consciência filosófica: a da relação entre tempo e história. O desempenho da filosofia hegeliana foi, neste ponto, de importância decisiva, já que, para o autor da Fenomenologia do espírito, o próprio fundamento se faz histórico. “A filosofia”, escreve Hegel, “tem a ver tão-somente com o esplendor da Ideia, que se espelha na história universal.”[7] A história e o tempo adquirem, desse modo, pela primeira vez, densidade ontológica: “A história universal é, em si mesma, a explicação do Espírito no tempo”. Evidentemente, o fundamento é entendido aqui à maneira da metafísica, porquanto o que está e[8]m jogo “é a verdadeira teodiceia, a justificação de Deus na história”.[9] Assim, a história, o tempo e o próprio Deus passam a constituir um processo homogêneo. Contra tais inícios delirantes, a crise da metafísica logo deixaria perceber que o teologismo hegeliano termina desfigurando o processo histórico. E é então que o tempo histórico passa a conquistar o seu espaço próprio. Mas não é deste tema que me quero ocupar aqui.

Prefiro concentrar por ora a minha atenção em outro autor e em outro tema: o autor é Marx, e o tema é a categoria do novo. Que o novo passa com Marx a ser uma espécie de categoria é o que espero fique claro no correr deste texto. E como a melhor introdução ao pensamento de Marx — depois dos contundentes ensinamentos, na época progressivamente mais evidentes, da revolução burguesa — está na filosofia hegeliana, volto por alguns instantes ao mestre do idealismo alemão e faço três breves observações.

Em primeiro lugar, chamo a atenção para a singular deferência que Hegel empresta aos “tempos modernos”, aos “novos tempos”. É que fatos e acontecimentos começavam a ocorrer de modos inéditos, e Hegel o percebeu. “Nos novos tempos”, observa, por exemplo, o filósofo, “transformaram-se todas as relações.”[10] E anota com agudeza, já antecipando Marx: “No novo tempo multiplicaram-se as necessidades; e isso decorre apenas da divisão das necessidades gerais em muitas necessidades particulares e em modos de satisfação”. E claro que para o idealista tudo isso se explicaria pela “atividade do entendimento”.[11] Não é mera curiosidade observar que Hegel não se restringe, nessa sua sensibilidade em apreender o novo, ao plano das ideias gerais, ele se apraz em descer aos detalhes, mesmo aos comezinhos. Veja-se este exemplo: já o jovem Hegel, em 1798, não se inibe em pretender que “a inclinação para o jogo de cartas é um traço capital (Hauptzug) no caráter de nosso tempo”.[12] E a explicação que disso dá o filósofo merece ser lembrada, mesmo porque antecipa nitidamente as interpretações que fará, no correr dos anos 20, o jovem Brecht sobre o esporte (no caso, o boxe, mas que se aplica ao esporte em geral, inclusive ao nosso futebol); impressiona Brecht a coabitação dos opostos: o mais desvairado e irracional entusiasmo do público não o leva jamais a abandonar um certo espírito crítico, o público não esquece a racionalidade das convenções, as normas assentes do jogo.[13] Pois Hegel se refere ao entrelaçamento da atividade do entendimento e da paixão no simples jogo de cartas; o entendimento “procura as regras e as aplica pelo julgamento a todos os instantes”, o que não impede o nosso pensador, além de referir o “prazer da vitória”, de ver “na mudança da paixão em temor e esperança a circunstância que torna o jogo de cartas tão generalizado”.[14] O novo disso tudo está aqui: no fascínio da novidade presente até mesmo na vida cotidiana. Apenas lembro outro exemplo: de passagem, Hegel faz, em ensaio da maturidade, até alguma consideração sobre a moda.[15]

Observo, em segundo lugar, que as mudanças novidadeiras despertam uma crítica essencial em Hegel. Pois sucede que o nosso filósofo discorda do próprio princípio do mundo moderno. Com suas palavras: “O princípio do novo mundo está antes de tudo na liberdade da subjetividade”,[16] “nesse ‘eu quero’, que constitui a grande diferença entre o mundo antigo e o moderno”[17] Entretanto, Hegel não cansa de repetir que esse sujeito moderno, “princípio absoluto — como momento de nossos tempos”,[18] é abstrato. Não é necessário aqui desenvolver o tema. Baste lembrar que esse “princípio abstrato do mundo moderno” está na subjetividade abstrata enquanto “vazia”, ou melhor, que “se fez vazia”.[19] A diferença entre o antigo e o moderno põe de manifesto a indisfarçável nostalgia hegeliana pelo “belo meio-termo” dos antigos gregos: “Os gregos tinham a unidade substancial da natureza e do espírito como base, ela pertencia à sua essência”.[20] A novidade dos modernos só é aceita por Hegel com reservas em nada secundárias, pois tudo se passa como se a “substância objetiva”, ou a “unidade substancial”, se tivesse dissolvido, tornando o nascimento de um homem novo uma aparência a ser superada.

A terceira observação refere-se à dialética. Numa certa perspectiva cabe dizer que o cerne da questão da dialética reside na alteridade, na aceitação do outro. Contudo, o asserto só vem à tona com a crise da metafísica, no passo que vai de Hegel a Marx. Enquanto a metafísica apresentou vigência efetiva, o problema do outro mal era aflorado, ou era simplesmente banido, como acontece já na filosofia de Aristóteles. Mas não é de somenos importância observar que o Platão maduro, tanto quanto lhe permitia o tempo e a sua própria doutrina, inclui entre as categorias supremas o movimento, o não-ser e o outro, e fala a propósito de “parricídio”,[21] autêntica afronta que representa a intromissão de tais categorias no pensamento de seu mestre Parmênides. O principal argumento platônico para este procedimento, sabe-se, reside na necessidade de pensar de algum modo o não-ser para contornar o absurdo de inocentar o sofista. Mas Platão não esconde o verdadeiro fascínio que despertava nele toda esta problemática. E é bem por isto que, no Timeu, por ora instalado no mundo das sombras, ele volta ao tema do outro; o demiurgo, encantado com a beleza do cosmo devido à sua harmonia, decide que sua obra deve ter uma alma, e ele a cria, misturando em uma cratera dois elementos fundamentais, o mesmo e o outro.[22] Este belíssimo mito que acolhe o outro será, como disse, totalmente esquecido por Aristóteles e por praticamente toda a tradição metafísica ocidental. O tema emerge novamente, e agora de modo decisivo, justamente no pensamento hegeliano, pela relevância que assume a contradição no processo dialético; na medida dessa relevância, o outro, e mesmo o seu fundamento, o nada, adquirem certa cidadania. A causa dialética do ser-pai está no filho, que se afirma como outro que não o pai. Rompe-se, dessa maneira, o reducionismo que informa a metafísica em sua própria raiz. E, se Hegel abre com isto uma porta importante e mesmo definitiva para o desdobramento da ontologia contemporânea, ele só consegue caminhar neste sentido até certo ponto, posto que o seu pensamento, em sua intenção última, permanece metafísico: a totalidade idealista termina reduzindo o outro à condição de mera aparência. Mas, seja como for, a dialética hegeliana acaba pondo à mostra uma ambiguidade radical. Se há o privilégio da totalidade metafísica, o alcançamento de tal totalidade não pode dispensar o trabalho e a paciência do negativo, da contradição. Digamos que o peso ontológico maior concentra-se, para Hegel, na totalidade metafísica, ao passo que, para Marx, se não se trata de negar pura e simplesmente a totalidade, aquele peso maior, contudo, transfere-se agora para a contradição.[23] Na precisa medida em que se empresta mais destaque à contradição, cessa o reducionismo da identidade metafísica, e, em consequência, resgata-se o outro em seu estatuto próprio. E é justamente mediante esse resgate que o novo encontra o seu espaço de manifestação: é em uma dialética transformada em seu sentido que o novo se fundamenta.

As três observações feitas não poderiam deixar de repercutir na ruptura que representa o pensamento marxista em relação ao hegeliano. Pois é bem disto que se trata: de uma ruptura aprofundadora. E é por meio dela que se pode emprestar ao novo, como disse, um estatuto outro, inexistente no passado. Sabe-se que Hegel já tinha certa consciência do fato cultural; baste lembrar o bem conhecido passo do Prefácio da Fenomenologia do espírito: “Não é de resto difícil perceber que o nosso tempo é um tempo de nascimento e de passagem pura para um novo período”.[24] A questão toda está em que Hegel só pode pensar, em definitivo, a situação nova dentro das coordenadas de seu idealismo metafísico, e o tema todo se torna ambíguo. Marx aprendeu, sem dúvida, a lição hegeliana: o homem burguês é o homem da ruptura, é um homem novo. Mas, superado o idealismo, Marx acede ao entendimento do caráter essencialmente transitório da revolução burguesa; digamos que o homem novo, em que pese a importância de seu aparecimento, não é suficientemente novo. A pretensão da burguesia de estabelecer o homem burguês como homem universal revela-se precária: este homem não é suficientemente universal; a exploração, na modernidade, do elemento novo não esgota todas as suas virtualidades, a ruptura deve ser mais radical. É por aí que se entende que o adjetivo novo alce-se em Marx à condição de categoria. Convém lembrar: as categorias são os nomes mais gerais das coisas, são os conceitos que permitem organizar a inteligibilidade do discurso. E a tese, portanto, é esta: o novo como categoria.

Entretanto, não existe em Marx uma teoria do novo. E desconheço qualquer resquício de intenção de nosso filósofo de vir a ocupar-se do tema ou de algo que lhe seja correlato. Mas isso não impede que a categoria do novo perpasse de ponta a ponta por todo o pensamento de Marx. Aliás, mais necessário que a tematização explícita do novo é aquilo que poderia justificar tal explicitação — a sua súbita e indisfarçável vigência histórica. No fundo, nem falta uma teoria do novo em Marx, como também não falta o prometido ensaio sobre a dialética, coisa que nem Hegel escreveu, e isto está longe de representar uma lacuna no pensamento de um e de outro.

Advirto que não procedi a uma releitura da obra de Marx à caça do adjetivo em causa. Isso, de resto, nem é imprescindível, ainda que possa constituir um interessante tema a ser explorado. Para tornar patente a importância da questão, baste citar aqui alguns trechos de Marx. É assim que nosso autor fala, analisando o assunto maior que é o processo do trabalho, em “novos valores de uso, novos produtos, capazes de incentivar […] novos processos de trabalho”.[25] É simplesmente notável observar como o adjetivo novo se intromete na maneira por assim dizer usual da linguagem de Marx. Veja-se um exemplo:

No próprio ato da reprodução modificam-se não apenas as condições objetivas — por exemplo, a vila se torna cidade, a selva campo cultivado —, pois também os produtores se modificam, enquanto criam novas qualidades, transformam-se a si próprios desenvolvendo a produção, formam novas forças e novas representações, novos meios de comunicação, novas necessidades e nova linguagem.[26]

Que o adjetivo apareça grifado se faz até necessário: depois de afirmar que “a produção é imediatamente consumo, e o consumo é imediatamente produção”, Marx explica que o “consumo cria a necessidade de nova produção, o consumo constitui a base ideal, o impulso interior da produção, e é seu pressuposto”.[27] No mais, o adjetivo novo nem sequer precisa aparecer, tamanha a força de sua presença. Veja-se este exemplo — após escrever que o homem se contrapõe “à matéria natural como uma força natural”, Marx assevera:

Nós subordinamos o trabalho a uma forma, que pertence ao homem de modo exclusivo. Uma aranha realiza operações que se assemelham às do tecelão, e uma abelha chega a envergonhar não poucos arquitetos pela construção de suas celas de cera. Mas o que distingue de saída o pior arquiteto da melhor abelha é que o arquiteto construiu a célula em sua cabeça antes de realizá-la na cera.[28]

Não se trata aqui de um ato particular, que fugisse à norma, trata-se muito mais de distinção constitutiva da própria condição humana: inovar pertence a essa condição.

Parece-me que os textos citados e as referências feitas falam por si tão incisivos são, e mostram a contento a importância que assume a nossa pequena palavra no âmbito geral do pensamento de Marx. Acontece que há em sua obra análises ainda mais significativas, por apontarem à própria essencialidade da categoria do novo. Penso aqui na caracterização geral da condição humana, que se repete de maneira praticamente idêntica no jovem Marx e em seu pensamento maduro. Um dos pressupostos basilares de toda a doutrina marxista encontra-se na distinção entre natureza e história. Contra o idealismo hegeliano, Marx tem razão em afirmar que o homem é natureza de ponta a ponta. Correto: onde meter a inteireza da realidade humana senão na esfera natural? Marx usa até a palavra gegenstaendlich (objetivo),[29] um pouco à maneira de Goethe: se o olho pode ver o sol, é porque o olho de alguma maneira é solar. Deixo aqui de lado o problema da intensa carga metafísica que trazem em seu bojo palavras como objeto e objetivo. Para o nosso assunto interessa apenas salientar que, quando Marx afirma que o homem pertence ao reino da natureza, ele acrescenta de imediato e invariavelmente que o homem, além de ser um ser natural, é também, e originariamente, um ser histórico. Vale dizer que, se a natureza — e a natureza animal — é essencialmente repetitiva, o advento do homem representa uma certa forma de ruptura na ordem repetitiva natural. A origem da história não está na história da origem e em suas sequelas continuadamente repetitivas. A origem da história está muito mais num aqui-e-agora que reinventa desde a sua raiz o próprio sentido do todo natural. [30]

Estabelecida a distinção entre natureza e história, Marx arrola no correr de sua obra certas características da realidade humana. E a primeiríssima está no fato de que o homem se deixa determinar a partir de suas necessidades. A palavra necessidade constitui um verdadeiro Leitmotiv através de toda a obra de Marx, coisa que, em sua base, aparenta o homem ao animal. Ocorre que a diferença, ou a ruptura em relação à mesmidade do reino animal, deriva deste outro fato: ao satisfazer as suas necessidades — já as primárias: comer, beber, proteger-se, morar, vestir-se e “algumas coisas mais” — o homem cria necessariamente novas necessidades. Digamos que o homem está todo inteiro na invenção do novo. Baste aqui uma citação tirada de A ideologia alemã: estabelecido o fato de que o homem tem necessidades e precisa satisfazê-las para poder “fazer história”, Marx indica um segundo pressuposto:

a própria primeira necessidade satisfeita, a ação da satisfação e o já conquistado instrumento da satisfação levam a novas necessidades — e essa produção de novas necessidades é a primeira ação histórica.[31]

O inventário continua com a afirmação da família, a produção de pessoas. Depois, volta a insistir que se trata nisso tudo de aspectos de um mesmo processo social: os modos de produção permanecem unidos aos modos coletivos de agir do homem e do desenvolvimento social. E é sempre em último lugar que aparece em Marx a consciência. A referência usual e imediata a Hegel neste tipo de análise mostra bem que nosso autor busca deixar de lado as posições do idealista: o homem não tem “de saída” consciência, “enquanto consciência ‘pura’” “O ‘espírito’ carrega consigo de saída a maldição de estar ‘aprisionado’ à matéria.”[32]

Mas, resguardada a encarnação do espírito, ou seja, o fato de que a consciência permanece essencialmente ligada aos processos sociais, ele não aparece em último lugar: é evidente que a passagem da satisfação das necessidades para a criação de novas necessidades é impensável sem a atuação da consciência. Sem dúvida, as necessidades sempre são “naturais e socialmente criadas”.[33] Mas isso, longe de diminuir o estatuto da consciência, insere-a em seu contexto exato e desqualifica os intentos idealistas. Originariamente, a consciência humana permanece ligada ao instinto, e é somente com a evolução social que o desempenho da consciência pode complicar-se, como de fato aconteceu: foi dentro da filosofia que surgiu a ideia de que o pensamento se torna autônomo em relação à práxis. N‘ A ideologia alemã, Marx explica:

A divisão do trabalho torna-se realmente divisão a partir do momento em que se introduz a divisão entre o trabalho material e o espiritual. A partir desse momento pode a consciência realmente imaginar ser outra coisa que não a consciência da práxis vigente.[34]

Acontece que esta divisão entre o material e o espiritual, ou entre o pensamento e a práxis, está instalada no próprio cerne da metafísica ocidental; ela já fundamenta o elogio grego da vida teorética, e nela se encontra a justificativa da definição do homem como animal racional. Realmente, esta definição, que perpassa por toda a cultura ocidental, está longe de constituir mera questão filosófica, adstrita à esfera da determinação das essências. Bem antes disso, ela só se faz inteligível a partir daquela divisão do trabalho. Em sua obra-mestra, Marx toca no problema quando diz:

No sistema da natureza pertencem uma à outra a cabeça e a mão, o processo do trabalho une o trabalho da cabeça e o trabalho da mão. Mais tarde separam-se os dois a ponto de alcançar uma contraposição morta.[35]

No Ocidente, a expressão filosófica de tal separação deve ser vista justamente naquela definição grega do homem, que preside toda a brutal separação entre o artesanato e o trabalho prático de modo geral e, de outro lado, o exercício da vida teorética e espiritual. E se Marx aponta o problema é porque ele já consegue visualizá-lo a partir do processo de sua superação. De fato, o pano de fundo que mostra o desenvolvimento desta questão deve ser visto na Revolução Industrial, porquanto é dentro do contexto dessa revolução que encontramos a primeira grande “crítica” prática da definição grega do homem: é que surge esse ser bicéfalo que é o engenheiro, esse tipo de homem novo, não “calculado” pela ciência, mas que decorre da essência da ciência; o engenheiro inova: ele estuda a teoria em função da prática. E por aí, num nível totalmente novo, retoma-se a união do que estava separado, a cabeça e as mãos. Mas: supera-se com esta síntese a definição do homem como animal racional? Em verdade, tudo permanece a meio caminho; o que se começa a superar é a separação entre animalidade e racionalidade, mas percebe-se logo que tudo continua a ser feito sob a égide da velha definição: o animal e o racional ainda persistem como balizas intocáveis. E o próprio Marx, não obstante a importância que ele empresta à práxis e por causa dessa importância, desdobra o seu pensamento como que à sombra daquele engenheiro.

É também nesta perspectiva que deve ser considerada a distinção que Marx estabelece reiterativamente entre o homem e o animal, já referida acima. Retomo o tema por um instante. É ainda n’A ideologia alemã que se lê: “Onde houver uma relação, ela existe para mim; o animal não se relaciona com nada, ele sequer se relaciona. Para o animal não existe a sua relação com outros enquanto relação”.[36] O homem se distingue do animal exatamente por sua aptidão em apreender a relação em si mesma. “A consciência é de saída um produto social (…)”[37] e o que distingue este produto social está numa certa distância que se estabelece em relação à consciência; cabe dizer até que a evolução social educa essa distância. Marx chega a falar em “separação”[38] na relação do indivíduo com a propriedade (a partir de certo estágio na evolução da propriedade, o indivíduo pode correr o risco de “perdê-la”), e é precisamente a experiência da separação que fomenta o surto de “novas qualidades”. Digamos, então, que o novo desponta nessa distância que existe entre o estar em sociedade, inserido dentro dos seus processos de produção e desenvolvimento, e a capacidade de apreensão da relação enquanto relação. A distância é sem dúvida mínima, como que aderida aos processos. Mas ao mesmo tempo ela é de certa forma abissal, no sentido de que a apreensão da relação em si mesma revela-se fundamental para viabilizar os processos de transformação (totalmente alheios ao mundo animal). E é precisamente nesse hiato mínimo que medra o novo.

São processos estes que se acentuam singularmente com o advento da revolução burguesa. Agora, as potencialidades brotam da terra, tornam-se ato, e faz-se possível estabelecer sempre mais agudamente a distinção entre repetibilidade e criação — distinção essa que passa a desenvolver um novo perfil, uma intensidade inédita, e é a partir daí que o novo começa a poder ser considerado como categoria. Repito que inexiste em Marx uma teoria do novo propriamente dita, as coisas não vão além das indicações que fiz mais acima. Isto não impede que a distinção que acaba de ser feita, entre repetição e criação, possa funcionar como a exata fundamentação do novo. E, neste particular, o que Marx adianta já é suficiente para que se consiga medir as dimensões da ruptura que o seu pensamento estabelece com toda a tradição: a novidade concentra-se justamente no modus essendi do novo.

Marx sublinha o caráter de lentidão de todo o processo social, até alcançar o momento em que o novo toma, digamos, consciência de si mesmo: aos poucos, o próprio homem se auto-interpreta como moderno, como novo. Mas, na medida em que as coisas permanecem emperradas naquela lentidão, cabe dizer que os processos se definem muito mais pela repetição. Todo trabalho artesanal ou agrícola era essencialmente repetitivo, seu aperfeiçoamento era quase imperceptível, o sapato era a estabilidade do sapato. A fim de clarear a situação, baste acenar aqui para a arte do passado. As coisas se passam em geral de um modo incrivelmente alheio a qualquer sentimento de mudança. E, ainda que se possam fazer ressalvas ao que vem de ser afirmado, observe-se antes de tudo o caráter basicamente teológico dos grandes momentos da arte do passado, seja a grega seja a medieval: tudo é manifestação imediata da própria presença divina, e a beleza era, como se dizia, esplendor da verdade. A imutabilidade divina reflete-se, assim, no mundo humano, e faz com que o plano das mudanças seja interpretado antes como uma deficiência: tudo o que é gerado e se corrompe, já ensinavam os gregos, pertence precisamente a esse mundo considerado inferior. Realmente, a arte se mostra repetitiva tanto na forma quanto no conteúdo. É digno de nota observar como os estilos são transmitidos de modo por assim dizer imperturbável, o gótico, por exemplo, estende-se por alguns séculos, mas é necessário chegar ao declínio do flamboyant para perceber alguma mudança mais incisiva — e quem a percebe são principalmente os estudiosos do século XX. Foram necessárias as análises de Wölfflin para mostrar as distâncias entre a arte renascentista e a barroca. O conteúdo também não se revela menos repetitivo. Se se parte do necessário conceito de universal concreto para caracterizar a arte pré-burguesa percebe-se logo a limitação temática da arte: deuses e deusas, santos, reis e heróis são os assuntos incansavelmente repetidos. E tudo isso muda, tanto na forma quanto no conteúdo, com o nascimento do homem moderno: passa-se da imitação para a cópia, da verticalidade da Divina comédia para a horizontalidade da Comédia humana, abandona-se a concentração do universal e deixa-se a arte fincar os pés na diversidade imprevisível do singular. A regra nas escolas do passado era o plágio; ele agora se faz crime. A exigência do novo e da originalidade invade os horizontes. Como já disse no início deste ensaio, os apoios metafísicos desaparecem, esquece-se a identidade do mesmo para descobrir a alteridade do outro, numa revolução na qual a presença do novo se revela inesgotável.

Dentro deste processo de tão inédita transformação o pensamento de Marx é o primeiro, no que aqui nos interessa, que tenta acertar o passo com a nova situação. É que o homem, justamente pelo relevo que passa a ostentar o novo, deixa de ser compreendido como o repetidor — em última análise repetidor da eternidade —, e promove-se a inventor do novo. Para Marx, o homem é essencialmente criativo, a criatividade pertence à própria condição humana. No passado, a criação, em sentido forte, era exclusividade divina, e o artista era visto como um criador de segunda mão, ele criava como que por procuração. Ainda Hamann, no século XVII, pretendia que a criação humana seria apenas uma criação segunda, que procura repetir — ou imitar — tanto quanto possível a criação absoluta. De repente, o ato criador simplesmente humano começa a manifestar certa autonomia. Dessa história faz parte, por exemplo, a modificação do sentido da palavra gênio a partir de fins do Renascimento, que passa a designar o artista excepcional, afastando-o da modéstia do artesão: filho dileto de Deus, só ele seria digno de pintar o retrato de uma criatura; e sabe-se do clamor que despertou, ainda em princípios do século passado, a atividade iconoclasta, anônima e impessoal da máquina fotográfica. Mas é somente com Marx que a transferência decisiva, do Deus para o homem, foi dada: a criação pertence agora à própria natureza do homem, e o homem é necessariamente criativo, ele inova, renova, inventa e reinventa, transforma — e tudo isso recai sobre a sua própria condição: produzindo ele se produz, e o novo como que se instala em sua essência. O tema, em verdade, é de época; Marx terminaria encontrando neste ponto um aliado inesperado: Nietzsche, precisamente pela preeminência que o criador do super-homem empresta à criação humana.

Uma possível objeção à análise feita é até fácil e não se faz esperar: a alienação como que arranca o homem de sua própria natureza, e tudo dependerá, em consequência, da extensão da experiência alienatória. Não pretendo aqui entrar na discussão do tema. Permito-me apenas fazer algumas observações.

Em primeiro lugar, parece que os conceitos de alienação e de novo não se excluem reciprocamente. O homem das sociedades alienadas, dentro das medidas permitidas por cada sociedade, é capaz de inovar e de deixar-se fascinar pelo novo. O espinhoso tema estaria em saber como analisar o novo dentro do contexto da alienação, e parece que o único caminho viável consistiria em aplicar ao novo os males gerais da alienação. Mas até que ponto a alienação funciona como critério? Dizer que uma tragédia grega ou uma catedral gótica são expressões de uma sociedade alienada leva, afinal, ao elogio da alienação. E o mesmo vale para a invenção da maquinaria: ela se explica como uma necessidade histórica. Reconheça-se que Marx não avançou muito no tema, talvez porque fosse demasiado cedo. Quando assevera, por exemplo, que “as contradições e os antagonismos inseparáveis da aplicação capitalista da maquinaria não se explicam como decorrência da própria maquinaria, e sim de sua aplicação capitalista!”[39] — convenhamos que botar o monstro dentro da própria gênese do anjo não faz mais do que transferir as contradições e os antagonismos para dentro da explicação de tipo marxista. Hoje já sabemos que esse modo de relação não é tão simples, nem mesmo se restringirmos a questão ao terreno da indústria. Em relação ao novo, observe-se que se trata de um fato incontestável: essa verdadeira ascensão do novo apresenta uma história tão intensa quanto recente, com ou sem alienação.

Note-se, ainda, em segundo lugar, que o moderno surto do novo está intimamente ligado à ideia de ruptura, e a ruptura está longe de ser uma exclusividade do marxismo — o que torna o tema, aliás, ainda mais relevante. De fato, o pensamento pós-hegeliano, em suas manifestações mais representativas, faz da ruptura uma verdadeira bandeira. As coisas já começam a manifestar-se um pouco antes de Marx, com o positivismo de Augusto Comte; realmente, o cientificismo faz, pela primeira vez, uma crítica radical ao passado globalmente considerado, e isso para justificar a necessidade de um processo de transformação da sociedade a ser executado pelas ciências positivas. Num outro caminho, encontramos Nietzsche que, a par de uma crítica ao platonismo cristão, postula a criação de uma nova ordem de valores. Vê-se logo que se trata do clima geral da época — clima necessário, e que se prolonga ainda até os nossos dias. Lembro também, para dar mais um exemplo da exigência da ruptura, os diversos movimentos anarquistas que medram na segunda metade do século passado. Em tudo e por tudo é a categoria do novo que comanda o espetáculo.

Mas o mais importante está num terceiro aspecto do nosso assunto. Uma questão que pede a análise está no sentido histórico da alienação; quero dizer que a alienação tem uma história que se diversifica progressivamente, ela evolui em seus modos de ser. Isto é evidente ao menos relativamente à alienação tal como ela vem se verificando em nosso tempo. Penso aqui nos processos de robotização. Tornou-se hábito associar o tema à indústria e à classe operária, e já Marx chama a atenção para o problema. Assim, quando escreve: “Todo trabalho com a máquina exige um aprendizado antecipado por parte do operário, a fim de que possa aprender a adaptar a si próprio os movimentos contínuos e uniformes de um autômato”.[40] A máquina passa a ocupar o primeiro lugar, a ponto de tornar o operário substituível.[41] Reforça-se então também aquilo que Marx chama de Gesamtarbeiter (trabalhador coletivo), isto é, o trabalho realizado num conjunto combinado: “Para trabalhar produtivamente já não é mais necessário utilizar as próprias mãos; basta tornar-se órgão do trabalhador coletivo”.[42] Foi sem dúvida Marx o primeiro a transmitir essa ideia que associa os processos de robotização à figura do operário, e que se fez até popular com a figura de Carlitos, no filme Tempos modernos, rodado em 1936. Quando Marx afirma que o homem “age sobre a natureza que lhe é exterior e a modifica, [e que] ele modifica também, concomitantemente, a sua própria natureza”,[43] o asserto deve ser estendido também à ação da máquina: através da máquina o homem transforma a sua natureza. O tema merece a melhor consideração, justamente em decorrência dos atuais processos robotizadores.

De fato, o correr do tempo viria emprestar ao problema da alienação dimensões completamente novas, que Marx mal poderia ter entrevisto. O fulcro da questão reside no fato de que a robotização se fez universal, a ponto de dissociar-se até mesmo das estruturas do trabalho. Concordemos, todavia, que o trabalho deve ser posto na origem de tudo: é o trabalho com a máquina que coloca o homem comum diante dessa outra máquina que é um aparelho de televisão, inaugurando por aí um comportamento passivo do espectador. Sucede que, hoje, tais modos de apassivamento adquirem dimensões que emprestam à alienação uma densidade que pode ser considerada ontológica. A questão deixa-se vincular à hegemonia que assume em nosso século a presença do objeto, ou melhor, a avassaladora tirania que ostenta hoje a dicotomia sujeito-objeto, ou daquilo que a tradição metafísica fez, a partir do platonismo, com a dicotomia. Demitidos os deuses e a vigência dos universais concretos, resta a onipresença da dicotomia, tudo se deixa a ela reduzir. Se o sujeito, em sua própria base, é facultas (atividade), ele não pode dispensar a passividade inaugural que consiste em receber o objeto — ele é leidendes (passivo), segundo Marx.[44] Acontece que em nosso tempo estas duas categorias, sujeito e objeto, tornaram-se intercambiáveis. O objeto passa a exercer sobre o homem um verdadeiro fascínio, verifica-se um prazer em reduzir-se à condição de objeto. Sartre, em sua primeira fase, foi possivelmente o primeiro pensador a analisar o tema, em sua doutrina da má-fé: a volúpia de ser a identidade plena e passiva do objeto, experiência esta que pode ser universalizada. Volúpia ou tédio, seja o que for; ou simples esvaziamento. E é precisamente isto que caracteriza a robotização: um novo tipo de repetição que se intromete no comportamento, nas atitudes, no pensamento, nas emoções; uma nova experiência da repetibilidade. Não é por acaso que o citado Sartre, em sua segunda fase, dominada pela Crítica da razão dialética, como que amplia o tema da má-fé mediante dois conceitos; na medida em que o homem abandona a atividade que o constitui como sujeito, ele se entrega à inércia, ou seja, à passividade, e, por outro lado, à serialidade, isto é, à repetição.

Sabe-se o que é a alienação segundo Marx: basicamente, o homem se aliena da natureza e aliena-se a si próprio. Acontece que este processo alienante conserva em Marx todas as características de um drama humano; a dor, o sofrimento, a exploração, o engodo não levam o homem como que a “cair” fora de si mesmo. Numa sociedade dominada pela exploração, em que “o trabalhador não trabalha para si, e sim para o capital”,[45] a alienação não deixa de ser um modo de preservar a densidade humana do homem, ainda que de modo negativo. Mas entenda-se: um negativo que é a semente de novos horizontes. Já a robotização faz com que o homem, de certo modo, pela passividade neutralizadora, caia fora do humano. O consumismo, por exemplo, leva o homem, de modo até inadvertido, a instalar-se na repetição. Já neste sentido poder-se-ia utilizar a expressão que fez fortuna, de Marcuse, de homem unidimensional. De fato, o movimento se dá em direções até opostas: o ser-objeto do sujeito se contrapõe às antropomorfizações do ser-sujeito do objeto.

Poderíamos dizer, apenas para esquematizar o tema, que a doutrina de Marx está situada entre dois tipos de repetição. A repetição do trabalho pré-industrial, o artesanato classificado em um nível platonicamente inferior, mas que se torna elevado no artesanato superior, o da arte — a repetição encontra o seu fundamento, neste caso, no plano onto-teológico. A outra repetição é a contemporânea, que se vincula à serialidade, à robotização. A diferença essencial entre as duas modalidades de repetição está em que, em nossos dias, verifica-se uma contradição radical entre a repetição e o novo. A repetição é sem dúvida absorvente, ela tende a reduzir o novo a si. Mas o novo funciona como uma espécie de exigência a priori em nossa sociedade; o novo é o antídoto preciso contra a repetição. E o novo se quer radical; em tudo, e não só na arte, a originalidade tornou-se o primeiro dos critérios, ela é o que distingue o indivíduo da repetição avassalante. A contradição é aqui tão acentuada que acaba dando razão à dialética negativa de Adorno: o importante está em pensar a contradição, mergulhar nela, já que nem se vislumbra a menor possibilidade de síntese entre repetição e criação.

E no entanto, Marx termina tendo razão: o homem é essencialmente criativo, e toda a sua criatividade prende-se hoje à busca do novo; o homem não constrói apenas, mas sabe que constrói, e a história da arquitetura, por maior que tenha sido o seu emperramento inicial, torna-se uma necessidade insuperável. E isso passou a valer até mesmo para a infância. Comparem-se os nossos institutos de belas-artes com as proliferantes escolinhas de arte. As primeiras desembaraçaram-se a duras penas de postulados que encontraram sua expressão por assim dizer perfeita na doutrina de Winckelmann, doutrina que arribou até nós por meio de um seu discípulo, o fundador da nossa Escola Nacional de Belas-Artes, Grandjean de Montigny. As estátuas brancas que povoam este e outros institutos representam as essências que devem ser imitadas, ou repetidas, e para isso ensinam-se as normas exatas. E é sabido que os últimos decênios passaram a transformar este estado de coisas com a adoção de novos métodos, novos critérios — em definitivo, com a progressiva abolição da estética normativa. Já as escolinhas de arte não hesitaram um único instante: dá-se à criança uma folha de papel em branco e alguns lápis de diversas cores, e o resto fica por conta da imaginação infantil. Parte-se, pois, do pressuposto de que a criança é criativa por si mesma.

Para concluir, faço algumas considerações a propósito do problema da estética em Marx. Sabe-se que também neste ponto não existe propriamente uma doutrina estética em sua obra. Sabe-se também a paixão com que Marx frequentava as artes, e nem causa espécie, por isso, que ao longo de seus textos o leitor depare, mas não muito, com observações sobre as artes e a literatura. Quer dizer, sempre de passagem, como se o tema devesse um dia merecer talvez uma elaboração mais consistente. Se a análise feita sobre a categoria do novo em Marx estiver correta, parece até fácil perceber que seria justamente em torno dessa categoria e do homem como criativo que deveria estar o ponto de partida de uma estética marxista. Mas não é o que se constata lendo Marx. Em matéria de arte, nosso filósofo se insere resoluto nos mais rígidos padrões do academicismo classicizante. Senão, vejamos.

Restrinjo-me aqui a um único livro, os Grundrisse, de 1857. Já no Prefácio, Marx tece alguns comentários sobre a arte grega clássica; são quase duas páginas, talvez o mais longo texto do autor sobre a arte. Destaco apenas duas frases, que sintetizam a posição de Marx:

A dificuldade não está em compreender que a arte e a epopeia gregas estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade está em que elas ainda hoje nos proporcionam gozo artístico e em certa relação valem como norma e modelo inatingível. [46]

Estas duas frases colocam diversos problemas sérios, e a solução que Marx oferece — “os gregos eram crianças normais” — é ao menos trôpega. Mas chamo a atenção apenas para o elogio da arte grega, que chega a ponto de admitir que os antigos funcionem como norma e modelo inatingível. Evidentemente, a afirmação, se feita hoje, teria nada mais do que um sentido histórico. É que Marx insere-se passivamente na tradição Winckelmann-Goethe-Schiller-Hegel, ou seja, ele adota o classicismo e os seus pressupostos, e isso sem nenhuma reserva. É bem verdade que os tempos o apóiam. Por exemplo: parece que Marx nunca fez qualquer referência ao pintor David, porém ele não podia deixar de conhecer uma obra tão prestigiada ao longo de quase um século. Pois o regicida David foi o grande artista dos revolucionários de 89, e continuou sendo considerado um grande artista também nos tempos da Restauração. A razão é elementar, até demais: é que as velhas virtudes romanas tinham de ser valorizadas contra a decadência monarquista. Hoje é até fácil falar desse neoclassicismo como “Renascença enganosa”, ou dizer, talvez com razão, que “David é um realista camuflado”.[47] Mas o que se via de fato na época era a forma antiga mantida em sua exemplaridade, justamente como norma e modelo inatingível. No caso de David, a sutil derrapada da imitação para a cópia nem sequer era vista e, se o fosse, deporia provavelmente contra o pintor. É nesta linha que se situa Marx: a do neoclassicismo, a do estertor da arte imitativa, sem o menor laivo de distância crítica.

Formulo a seguir uma pergunta que certamente soará de modo deslocado e pode até parecer impertinente: se Marx tivesse conhecido um quadro como Os comedores de batata, de Van Gogh, qual teria sido a sua reação? Nem faz sentido querer responder à pergunta: o quadro, lembro, é de 1885. Mas o interesse da pergunta está no fato de ela colocar o problema dos limites. Afinal, o quadro de Van Gogh é possivelmente o primeiro trabalho importante que mostra a nova classe operária, apresentada sem o menor vestígio de idealidade; as sujas e rudes pessoas “retratadas” trabalham em minas de carvão. E creio que não me engano se avanço que pela primeira vez é a própria alienação que aparece pintada. Daí o instigante da pergunta: qual teria sido a reação de Marx? Porque a estética do nosso filósofo nada tem a ver com o mundo revelado por Van Gogh. E Van Gogh começou em tudo como sendo uma exceção. Realmente, a arte do primeiro século da Revolução Industrial não refletia o submundo que estava na raiz da pujança das fábricas. Mas isto tudo é compreensível, e Marx pode referir-se, calmamente, às “leis da beleza”.[48]

E, no entanto, existem em Marx todas as premissas para a elaboração de uma estética nova — desde que se abandonem, evidentemente, as já fátuas ideias de modelo insuperável e de leis da beleza. Digamos que o marxismo apresenta as virtualidades para desenvolver duas estéticas diferentes e talvez opostas — mas opostas, ao que parece, por força do rumo que as ideias de Marx tomaram depois de sua morte. A única coisa que estas duas estéticas poderiam oferecer de comum estaria na superação do neoclassicismo. Mas acontece que, das duas, apenas uma foi realmente desdobrada, tendo encontrado na obra de Lukács o seu defensor mais representativo. Sem entrar aqui numa discussão mais ampla, lembro apenas que o chamado realismo social do húngaro vincula-se todo inteiro à estética da cópia, que ganha cidadania através dos avanços da cultura burguesa, e isso em detrimento da estética da imitação que lhe é anterior e hoje totalmente desvirtuada. Em última instância, está na cópia a justificativa da análise que Lukács faz da vida cotidiana, base do romance burguês. E convém observar que o conceito talvez medular da estética lukacsiana, o de particularidade, nada deve a Marx, sorvido que foi por inteiro de Goethe e Schiller. Em verdade, as interpretações de Lukács sintetizam muito bem a estética do romance moderno. São concepções, as do realismo social, que já haviam evidenciado todas as suas limitações no naturalismo da virada do século. O inconformismo de um Brecht com esse realismo estreito acabou, como é sabido, numa polêmica mais ou menos estéril com Lukács. Aquelas limitações, de resto, tornaram-se ainda mais patentes, e mesmo patéticas, com a estética “oficial” dos regimes totalitários de direita e de esquerda. Isto tudo não impediu, contudo, que o realismo, já devido à imensa abrangência do conceito, continuasse produzindo os seus resultados.

Já a outra linha estética permaneceu marginal, para não dizer escassa, nas cogitações de orientação marxista. Tratar-se-ia precisamente, como disse, de uma estética baseada na categoria do novo e na criatividade, e, por consequência, oposta à do realismo social lukacsiano, obviamente ligado à repetição como seu traço estético mais característico. O referido inconformismo de Brecht com a estreiteza do realismo social fê-lo caminhar, tanto quanto ele julgou suficiente, justamente no sentido de uma estética do novo. É bem verdade que o questionamento de Brecht constitui muito menos uma exceção do que possa parecer à primeira vista. Ou melhor: o panorama torna-se um tanto contraditório. Entre nós, por exemplo, alguns dos melhores críticos de artes plásticas de meados do século, de orientação marxista, estavam longe de confinar-se nos limites do realismo. E não se esqueça o exemplo de um Picasso, que muito cedo soube abandonar os cânones da arte repetitiva. Pois acontece que, hoje, a estética da repetição tende a tornar a arte medíocre, e mesmo estéril; quando um artista começa a se repetir, a autoplagiar-se, ele perde em criatividade, é como se aplicasse uma forma imutável a tudo o que faz. Claro que a mediocridade sempre existiu. Há uma multidão de artistas do passado que se perdem no tempo do anonimato, dependurados amiúde em antiquários poeirentos. E, no entanto, de certo modo eles se “salvam”, acobertados que estão por uma “bela forma”: o estatuto menor consegue amparar-se nas muletas de alguma estética normativa.

Ora, o império da categoria do novo é tão forte em nosso tempo que a mediocridade simplesmente não pode mais ser camuflada, ela se mostra de rosto inteiro, porquanto não consegue mais apoiar-se em nenhuma normatividade. Isto já se mostra válido para a arte da repetição, e chega a ser até mesmo contundente para o que se faz sob o patrocínio da estética do novo. Nunca a obra de arte excepcional e a obra que não vai além do “lixo” estiveram tão distanciadas uma da outra e tão próximas, o que quer dizer que nunca os seus níveis de qualidade foram tão facilmente reconhecíveis — ao menos no que respeita a obra-lixo, o que vem facilitar enormemente certa crítica. Crítica, acrescente-se, que não desfruta mais do seguro apoio de normas para exercer-se — o que compreensivelmente pode gerar uma nostalgia inconformada. Isso tudo deriva da radicali-dade com que em tudo se intromete a estética do novo. Quando um pintor pinta um quadro ou um diretor de cena monta um espetáculo, já não basta mais a ajuizada escolha de um tema ou de uma ideia excelente ou de um texto consagrado. A criação atual exige que, além de tudo isso, o artista invente a própria estética que vale tão-somente para um quadro determinado ou para um determinado espetáculo. Este é, ao menos, o desafio maior, a situação-limite. A estética do novo define-se aqui: se medida há, a medida termina configurando justamente a sem-medida.

Notas

[1] M. Eliade, Das Heilige und das Profane, Vom Wesen des Religiõsen, Hamburgo, Rowohlt.

[2] 37d.

[3] Livro IV, caps. 10-4.

[4] Física, 223a, 21-9.

[5] M. Heidegger, Sein und Zeit, Tübingen, Neomarius, 1949, p. 327.

[6] M. Heidegger, Einleitung zu “Was ist Metaphysik?”, in Wegmarken, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1967, p. 205. Heidegger insiste no tema: “Assim o tempo torna-se o primeiro nome a ser meditado com vistas à experiência originária da verdade do ser” (p. 206).

[7] G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Frankfurt, Suhrkamp, 1970, p. 540.

[8] Idem, ibidem, p. 96.

[9] Idem, ibidem, p. 540.

[10] Idem, ibidem, p. 548.

[11] G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, vol. I, Frankfurt, Suhr-kamp, 1971, p. 557.

[12] G. W. F. Hegel, Frühe Schriften, Frankfurt, Suhrkamp, 1971, p. 445.

[13] Veja-se, de nossa autoria, Brecht — A estética do teatro, São Paulo, Graal, 1992; o tema é discutido no capítulo intitulado “A linguagem do esporte”.

[14] G. W. F. Hegel, Frühe Schriften, op. cit.

[15] G. W. F. Hegel, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, op. cit., vol. I, pp. 556-7.

[16] G. W. F. Hegel, Grundlinien der Pbilosopbie des Recbts, Frankfurt, Suhrkamp, 1970, p. 439.

[17] Idem, ibidem, p. 449.

[18] Idem, ibidem, p. 78.

[19] Idem, ibidem, p. 176.

[20] Idem, ibidem.

[21] Sofista, 241d.

[22] Timeu, 34b.

[23] Sobre o tema, veja-se, de nossa autoria, Dialética teoria praxis (Rio de Janeiro, Globo) e “Vigência de Hegel: os impasses da categoria de totalidade”, in O idiota e o espírito objetivo (Rio de Janeiro, Globo).

[24] G. W. F. Hegel, Phanomenologie des Geistes, Frankfurt, Suhrkamp, 1970, p. 18.

[25] K. Marx, Das Kapital, ed. Dietz, vol. I, Berlim, 1975, p. 198.

[26] K. Marx, Grundrisse der Kritik der politiscben Oekonomie, ed. Dietz, Berlim, 1974, p. 394.

[27] Idem, ibidem, p. 13.

[28] K. Marx, Das Kapital, op. cit., pp. 192-3.

[29] K. Marx, Nationaloekonomie und Philosopbie, in K. Marx, Die Fruebscbriften, ed. Alfred Kroener, Stuttgart, pp. 273 ss.

[30] Idem, ibidem, p. 275.

[31] K. Marx, Die Fruebscbriften, op. cit., p. 355.

[32] Idem, ibidem, pp. 356-7.

[33] K. Marx, Grundrisse, op. cit., p. 15.

[34] K. Marx, Die Fruebscbriften, op. cit., p. 358.

[35] K. Marx, Das Kapital, op. cit., p. 531.

[36] K. Marx, Die Fruebscbriften, op. cit., p. 357.

[37] Idem, ibidem.

[38] K. Marx, Grundrisse, op. cit., p. 394.

[39] K. Marx, Das Kapital, op. cit., vol. I, p. 465.

[40] Idem, ibidem, p. 443.

[41] Idem, ibidem, pp. 443-4.

[42] Idem, ibidem, p. 531.

[43] Idem, ibidem, p. 192.

[44] K. Marx, Die Fruebscbriften, op. cit., p. 274.

[45] K. Marx, Das Kapital, op. cit., p. 532.

[46] K. Marx, Grundrisse, op. cit., p. 31.

[47] René Huyghe, Dialogue avec le visible, Paris, Flammarion, 1955, p. 155.

[48] K. Marx, Oekonomisch-pbilosopbiscbe Manuskripte, apud K. Marx, Über Kultur, Aestbe-tik, Literatur, Leipzig, Reclam, 1987, p. 366.

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