2005

As novelas, novelinhas e novelões: mil e uma noites para as multidões

por Maria Rita Kehl

Resumo

A novela remete sempre ao “Realismo”, à “realidade brasileira”, à “vida real” ou a qualquer outra expressão que encontre na imitação das aparências da realidade empírica um elemento de sucesso, favorecendo ainda mais a identificação emocional dos espectadores com a problemática vivida e sofrida pelos personagens principais. Fala-se em “doses de realismo”, “nível de realidade”, “graus de aproximação com o real” como se, num passe de contabilidade, a realidade para a televisão funcionasse como um tempero, um superaditivo a ser acrescentado em doses maiores ou menores à obra. Daniel Filho, responsável pela direção ou supervisão da grande maioria das novelas da Globo, define claramente os ingredientes que compõem os estouros de audiência: no horário das sete, a saída ainda é a grande comédia romântica (“tipo Doris Day”), que não se livrou da influência cinematográfica norte-americana. “Mas aos poucos passamos a colocar dados brasileiros, locais brasileiros, som brasileiro… É importante que a novela contenha um nível de verdade, de cotidiano, e um nível de fantasia”. No horário das oito da noite, novelesco e “pseudamente inteligente” (sic), é preciso que haja sempre um grande mistério. A novela deve dar lugar a personagens de várias faixas etárias (para identificação do público mais amplo possível), mas com uma problemática mais feminina do que masculina. Tem que abranger todas as classes sociais e principalmente é imprescindível que haja ascensão social. O personagem central deve ser o personagem que ascende: a Júlia do “Dancin’Days”, a Lili de “O astro”. Por fim, a novela deve lançar um pouco de gente nova no elenco ao lado dos atores consagrados, e conter sempre uma novidade, um assunto emergente no momento, uma moda qualquer que não é a televisão que cria mas é ela que difunde por todo o país. É o caso das discotecas de “Dancin’Days”.

Às seis da tarde, horário dos adolescentes, das empregadas e das donas-de-casa, a Globo criou o modelo das adaptações de literatura romântica para televisão e aqui o aditivo milagroso já não é mais “o real”, mas a dose da “nossa cultura” que é levada para o povo — pois quantos brasileiros teriam ouvido falar em “Senhora”, “A escrava Isaura”, “O feijão e o sonho”, “Helena”, se não fosse a televisão? Evidentemente a relação do espectador com a novela adaptada não tem nada a ver, qualitativamente, com a relação do leitor com a novela escrita; mas de alguma forma os nomes de livros e autores se incorporam ao repertório do grande público, que, à maneira da burguesia ascendente que consome obras da alta cultura internacional como signos de status, tem através da televisão a possibilidade de se aproximar do círculo dos letrados. Mais uma vez há motivos para iludir-se com as virtudes democráticas da indústria cultural. Finalmente, o horário das dez da noite, define Daniel Filho, é o “mais adulto” (além de atingir um público mais restrito, que não tem que estar de pé às cinco ou seis da manhã), permitindo por isso maior experimentação na estrutura da novela, que pode ser por exemplo na base de crônicas semanais em vez de uma história linear, dispensando o gancho dos grandes mistérios, caprichando nas inovações de linguagem, etc. No núcleo das “dez” foram produzidas as novelas mais criativas da televisão brasileira, as primeiras a serem exportadas para Portugal e países da América Latina, as melhores estética e politicamente.

Então, o eixo para análise das telenovelas desloca-se da questão do maior ou menor realismo “contido” em cada uma delas. Pois o que a novela faz e fez durante todo esse período de sua hegemonia nos lares brasileiros é exatamente reiterar o real no nível em que ele é percebido e explicado — ou justificado — pelo senso comum, através dos valores, perspectivas e interdições apontados pela ideologia dominante. Se a maior aspiração que a novela alimentou foi sempre a de ascensão social individual, e a maior fantasia, a de um casamento feliz e condigno com esta ascensão; se a maior pobreza humana em termos novelescos consiste ainda em superar as intrigas e desentendimentos que sempre separam os casais predestinados até o último capítulo e a maior sabedoria está em aprender as regras do jogo social para tirar dele proveito maior; então, a novela não escapa do real. Reproduz continuamente a maneira como a ideologia explica os fatos históricos — do mais corriqueiro problema doméstico à mais intensa paixão — apresentando-os como fatos consumados, naturais, inevitáveis. Dentro das situações mais absurdas que a novela é capaz de criar para manter a atenção de milhões de espectadores durante meses a fio, ela não deixa de ser absolutamente conforme com este nível do presente, da realidade imediata. Conforme, conformada, conformista — a ponto de nunca apontar para qualquer perspectiva de superação/transformação desse real imediato. Todos os malabarismos que ela cria ocorrem dentro do enquadramento limitado que ela mesma propõe.


“Mas eu não sei se essas coisas que acontecem na televisão são de verdade mesmo. Acho que não: pois não é que esses dois tinham se casado no Astro e agora parece que nem se conhecem de novo?” (papo de telespectadora em Porto Seguro, Bahia)

Em seu artigo do dia 23/6/1972 para a Folha de S.Paulo, intitulado “Ministro, novelas e enlatados”, a colunista Helena Silveira comenta as declarações do então ministro das Comunicações, Higino Corsetti, sobre a televisão brasileira. O ministro havia declarado que “o que há de melhor em nosso teatro passou para a televisão, que está num nível artístico muito bom”, e a maior comentarista de televisão no país (ao lado de seu colega Artur da Távola, do jornal O Globo) se entusiasma com a possibilidade de elogiar o gênero com respaldo governamental: “… E não é a primeira vez que o ministro das Comunicações fala sobre telenovelas em termos de agrado. Lembro-me de que, certa feita, declarou aos repórteres que, tendo ficado acamado, viu, compulsivamente, TV. Programas de auditório (alguns) não lhe agradaram e o que achara de melhor realizado ainda era, mesmo, a telenovela”. Mais adiante: “Já não é mais pejorativo dizer-se que se está seguindo telenovela” (…) Isto porque, para Helena Silveira, a novela de televisão estava de fato se tornando mais respeitável, digna de um outro status em relação às tradicionais baixarias (veja-se o exemplo dos shows de auditório) produzidas pela “nossa” TV, ou frente à invasão de culturas alienígenas via enlatados, que ela comenta mais adiante na matéria.

Ainda sobre a “subida de nível”, das telenovelas: “Depois de Redenção (o novelão de Raymundo Lopes da extinta TV Excelsior que aguentou nada menos de dois anos no ar, em 1965/66) muita água correu. O público tornou-se exigente. Hoje em dia não é mais negócio arrastar uma novela. A última que foi esticada (A fábrica, Geraldo Vietri, TV Tupi), segundo dados fornecidos, perdeu audiência” (…) “a verdade é que não se pode verberar contra um gênero que tem a servi-lo nossos maiores artistas. Não é na novela que se pode encontrar uma Natália Timberg, um Jardel Filho, uma Dina Sfat, um Francisco Cuoco?” E segue por aí, enumerando gente de teatro que vem sendo incorporada aos quadros da televisão, “profissionais do maior gabarito que (…), se não fossem as telenovelas, ficariam economicamente à mercê de esporádicos sucessos teatrais, para não falar no incipiente cinema nacional, que tão poucas vezes é bem-sucedido comercialmente”. O que interessa aqui não é a constatação da “evasão de talentos” de outras áreas da produção artística para a televisão (ver texto Um só povo, uma só cabeça, uma só nação) ou da importância dos outros veículos, em termos de sucesso financeiro e de público, diante da expansão/penetração da TV. Nesta crônica de meados de 1972, é importante notar que a novela adquire respeitabilidade; torna-se um tipo de diversão “inteligente”, que gente culta pode ver sem se envergonhar, como é o caso do citado ministro ou de outro amigo da colunista, professor Rocha Pombo, “uma das maiores inteligências do Brasil”, que na hora da novela interrompia qualquer conversa com as visitas e se desculpava: “É hora de minha maconha”. A expressão é genial, sobretudo na boca de um ilustre representante do meio universitário: aparentemente a novela seria a maconha dos bem-ajustados, a distração inocente que, se permite ligeiros vôos para “fora da realidade” (onde é isso??), não faz mal para ninguém.

A Globo pode não ter sido a emissora que inaugurou a era das telenovelas “inteligentes” (explico as aspas: “inteligência” aqui não está empregada como critério de algum tipo de faculdade intelectual, mas como critério de valor para setores razoavelmente cultos da sociedade). Mas certamente foi quem soube capitalizar experiências esparsas de outras emissoras – as novelas sobre grandes temas nacionais da Excelsior, como A muralha e As minas de prata, ou a bem-humorada Beto Rockefeller (Bráulio Pedroso), da Tupi, que inaugurou o gênero do anti-herói como simpático desencadeador de confusão no meio da alta sociedade. E construiu a partir daí um modelo para sua produção. Atitude, aliás, perfeitamente compatível com a mentalidade empresarial a que se atribuem a eficiência e o sucesso da Globo, utilizando matéria-prima nacional (talentos em diversas áreas) e modelo multinacional de funcionamento de grande empresa, elementos a partir dos quais criou grandes linhas de produção de comando unificado, fórmulas diferenciadas por horários (que pressupõem uma diferenciação do público por idade, sexo e classe social) e núcleos autônomos de realização subordinados evidentemente às diretrizes centralizadas na figura do temido e respeitado (dentro da Globo) Boni, superintendente de Programação.

A preocupação da Globo com a “melhoria de qualidade” e o incremento da programação nacional em horário nobre começa em 1970, segundo Walter Clark, com o início da consolidação da rede. E resulta numa linha de programação que se firma por volta de 1973, com o advento da TV a cores no Brasil (que permite a melhoria de qualidade no padrão visual da publicidade, feita a cores já há mais tempo por motivos de definição da imagem, “puxando” por sua vez a qualidade visual dos programas) e coincidindo com o pico da euforia consumista das classes médias. As telenovelas da Globo modernizaram sua linguagem, nesse período. Ultrapassaram definitivamente os limites impostos pelo ambiente dos estúdios e seus cenários restritos, pela tradição da formação teatral e da experiência de teleteatro – diálogos empolados, marcações rígidas, expressões exageradas – pela sua origem nos dramalhões mexicanos (ou melhor, cubanos de Miami, impostos aqui pela escritora/relações-públicas da Colgate-Palmolive, Sra. Glória Magadan), diretamente chupados do gênero folhetim europeu do século 19; e a Globo passou a investir no talento de seus autores sobre o lucrativo terreno da “realidade brasileira”.

Tipos e situações extraídos dos subúrbios cariocas (O bofe, 1972, de Lauro Cézar Muniz e Bráulio Pedroso) e do sertão da Bahia (O bem-amado, 1973, de Dias Gomes), da decadente aristocracia paulistana (Os ossos do barão, 1973/74, de Jorge Andrade) e sobretudo das classes médias, todas as modalidades possíveis e imagináveis de classes médias do Rio e São Paulo, servem de alimento para a insaciável fome de assuntos da telenovela, que se aproxima cada vez mais do coloquial, do cotidiano. A gíria se incorpora despudoradamente aos diálogos. Personagens jovens trazem para o vídeo seus modismos, seus conflitos com a velha geração, suas propostas de transformação devidamente absorvidas e esvaziadas pela indústria cultural, que vende qualquer proposta libertária sob a forma de “calça velha, azul e desbotada”. As novelas globais se modificam ao nível formal, ao nível estético das locações, figurinos, cenários, diálogos e direção de atores pela incorporação, em todos esses terrenos, de elementos identificáveis pelo público como sendo componentes de um cotidiano próximo ao seu. Sempre um pouco mais glamourizado, um pouco mais anti-séptico, um pouco mais bem-sucedido no final, mas de qualquer forma um cotidiano que se supõe familiar ao tal “brasileiro médio” — este mesmo “homem brasileiro” cuja identidade cultural é meta prioritária a ser criada a partir da Política Nacional de Cultura do ex-ministro Ney Braga (ver texto Um só povo, uma só cabeça, uma só nação).

OS LIMITES DO REAL

“Realismo”, “realidade brasileira”, “vida real” passam a ser nessa década as grandes bandeiras dos autores e diretores de telenovelas, que encontram na imitação das aparências da realidade empírica um elemento de sucesso, favorecendo ainda mais a identificação emocional dos espectadores com a problemática vivida e sofrida pelos personagens principais. Fala-se em “doses de realismo”, “nível de realidade”, “graus de aproximação com o real” como se, num passe de contabilidade, a realidade para a televisão funcionasse como um tempero, um superaditivo a ser acrescentado em doses maiores ou menores à obra — que assim ocuparia um lugar medido numa escala de zero a dez, ou seja: da fantasia desvairada à realidade nua e crua. Consistindo a última a reprodução perfeita da vida cotidiana pela TV, no ideal (inatingível?) a ser alcançado…

Convivendo com tão pedagógicas pretensões (pois trata-se de ensinar ao espectador das telenovelas como é a sua realidade), as fórmulas que determinam o sucesso comercial das novelas permanecem mais ou menos intocadas. Daniel Filho, responsável pela direção ou supervisão da grande maioria das novelas da Globo, define claramente os ingredientes que compõem os estouros de audiência: no horário das sete, a saída ainda é a grande comédia romântica (“tipo Doris Day”), que não se livrou da influência cinematográfica norte-americana. “Mas aos poucos passamos a colocar dados brasileiros, locais brasileiros, som brasileiro… É importante que a novela contenha um nível de verdade, de cotidiano, e um nível de fantasia”. No horário das oito, novelesco e “pseudamente inteligente” (sic), é preciso que haja sempre um grande mistério. A novela deve dar lugar a personagens de várias faixas etárias (para identificação do público mais amplo possível), mas com uma problemática mais feminina do que masculina. Tem que abranger todas as classes sociais e principalmente é imprescindível que haja ascensão social. O personagem central deve ser o personagem que ascende: a Júlia do Dancin’Days, a Lili do Astro. Por fim, a novela deve lançar um pouco de gente nova no elenco ao lado dos atores consagrados, e conter sempre uma novidade, um assunto emergente no momento, uma moda qualquer que não é a televisão que cria mas é ela que difunde por todo o país. É o caso das discotecas do Dancin’Days (que Daniel, aliás, considera o maior exemplo de novela bem-sucedida em toda a sua carreira dentro da Globo).

Às seis da tarde, horário dos adolescentes, das empregadas e das donas-de-casa, a Globo criou o modelo das adaptações de literatura romântica para televisão e aqui o aditivo milagroso já não é mais “o real”, mas a dose da “nossa cultura” que é levada para o povo — pois quantos brasileiros teriam ouvido falar em Senhora, A escrava Isaura, O feijão e o sonho, Helena, se não fosse a televisão? Evidentemente a relação do espectador com a novela adaptada não tem nada a ver, qualitativamente, com a relação do leitor com a novela escrita; mas de alguma forma os nomes de livros e autores se incorporam ao repertório do grande público, que, à maneira da burguesia ascendente que consome obras da alta cultura internacional como signos de status, tem através da televisão a possibilidade de se aproximar do círculo dos letrados. Mais uma vez temos razões para nos iludir com as virtudes democráticas da indústria cultural. Finalmente, o horário das dez, define Daniel Filho, é o “mais adulto” (além de atingir um público mais restrito, que não tem que estar de pé às cinco ou seis da manhã), permitindo por isso maior experimentação na estrutura da novela, que pode ser por exemplo na base de crônicas semanais em vez de uma história linear, dispensando o gancho dos grandes mistérios, caprichando nas inovações de linguagem, etc. No núcleo das dez da noite foram produzidas as novelas mais criativas da televisão brasileira, as primeiras a serem exportadas para Portugal e países da América Latina, as melhores estética e politicamente.

No entanto, é importante considerar que o envolvimento emocional do espectador das dez com sua novela não é menos legítimo do que o envolvimento do espectador das novelinhas das sete ou dos novelões das oito (tratando-se por vezes do mesmo espectador a acompanhar mais de um horário). Assim como não é menos real a emoção despertada por uma cena melodramática de telenovela do que aquela vivida diante de uma peça de Shakespeare, um filme de Bergman, de Eisenstein. A diferença está não na sinceridade da emoção (e quantos de nós, críticos ou leitores mas certamente também espectadores, dirão que nunca se envolveram com os climas de suspense, paixão, desespero, euforia, criados pela televisão?), mas no tipo de motivação mobilizado para despertar tal ou tal afeto; na gama de possibilidades que uma obra de arte faz ante o real (e o real nem sempre é evidente ou empírico…) provocado pela nova relação entre elementos da realidade, proposta por qualquer trabalho artístico; e na gama de possibilidades que uma obra de arte faz emergir, a partir deste estranhamento.

Então, o eixo para análise das telenovelas desloca-se da questão do maior ou menor realismo “contido” em cada uma delas. Pois o que a novela faz e fez durante todo esse período de sua hegemonia nos lares brasileiros é exatamente reiterar o real no nível em que ele é percebido e explicado — ou justificado — pelo senso comum, através dos valores, perspectivas e interdições apontados pela ideologia dominante. Se a maior aspiração que a novela alimentou foi sempre a de ascensão social individual, e a maior fantasia, a de um casamento feliz e condigno com esta ascensão; se a maior pobreza humana em termos novelescos consiste ainda em superar as intrigas e desentendimentos que sempre separam os casais predestinados até o último capítulo e a maior sabedoria está em aprender as regras do jogo social para tirar dele proveito maior; então, a novela não escapa do real. Reproduz continuamente a maneira como a ideologia explica os fatos históricos — do mais corriqueiro problema doméstico à mais intensa paixão — apresentando-os como fatos consumados, naturais, inevitáveis. Dentro das situações mais absurdas que a novela é capaz de criar para manter a atenção de milhões de espectadores durante meses a fio, ela não deixa de ser absolutamente conforme com este nível do presente, da realidade imediata. Conforme, conformada, conformista — a ponto de nunca apontar para qualquer perspectiva de superação/transformação desse real imediato. Todos os malabarismos que ela cria ocorrem dentro do enquadramento limitado que ela mesma propõe.

“Meus personagens são gente humilde, sem grandes vôos”, explica Janete Clair por ocasião do lançamento da novela Duas vidas (1976). “André não é um grande herói, é um homem comum, com reações humanas comuns”, avisa a mesma autora no final de Pai herói (agosto de 1979). Analisando-se o comportamento de tais personagens, fica evidente que a perspectiva “realista” das novelas consiste em fazer com que milhões de pessoas mobilizem-se meses a fio em torno de histórias em que o padrão geral é composto por atitudes mesquinhas, projetos e aspirações medíocres (“sem grandes vôos”… deve ser isto), defesa de interesses imediatistas, jogos e manipulações egoístas com as emoções alheias, valorização exagerada das aparências e das conveniências. Nivelar por baixo, baixar as aspirações sociais ao nível de um “programa mínimo” de felicidade, limitar perspectivas e expectativas — tudo o que a novela propõe e condiciona é coerente com o empobrecimento da vida política e social deste país nos últimos quinze anos. Ao apontar para (esta) realidade como “natural”, a ideologia tenta fazer com que as pessoas não se dêem conta de que existem outras possibilidades, outras opções de vida e investimento de energia, outras qualidades de relacionamento humano e de emoção a serem produzidas coletivamente.

O PAIS SE MODERNIZA

Mas mesmo que o esquemão geral das telenovelas permaneça inalterado e seja o mesmo de todas as outras produções enquadradas pela cultura dominante, do folhetim romanesco à literatura de cordel ou à fotonovela, é importante voltar a considerar que o sucesso do gênero se deve à sua flexibilidade; à sua capacidade de preencher esse esquema geral e redundante com elementos atuais, com os temas do momento, capazes de motivar o público que busca nesse tipo de consumo um canal ou um continente para suas necessidades, desejos e preocupações (sobretudo num período em que outros canais estiveram totalmente bloqueados, no Brasil). No nosso caso específico — Rede Globo, Brasil, anos 70— a problemática que serve de pano de fundo para o desenrolar da grande maioria das novelas das oito e das dez horas (as “mais adultas”, na expressão de Daniel Filho) me parece estar centrada em um só tema: o da urbanização e modernização da sociedade brasileira.

Não que a novela se detenha a examinar ou narrar as bases do processo de expansão do capitalismo aqui dentro, as transas da burguesia nacional com o imperialismo e outros aspectos espinhosos (e censuráveis) do panorama político e econômico da década. O que ela faz é enfocar, através de uma série de recursos estilísticos (uso de metáforas, analogias com o passado, criação de microssistemas que contenham todos os elementos do sistema geral, etc.), as modificações e conflitos ao nível das relações sociais, que se dão em consequência desse processo de invasão de todas as instâncias da vida privada, de todas as subculturas regionais, de todas as tradições e valores que regiam a vida de setores diferenciados da sociedade brasileira, pelas novas normas ditadas pela burguesia internacional. As determinações de progresso e desenvolvimento, a necessidade de aquisição de novos hábitos e novos padrões de vida compatíveis com o Brasil da indústria automobilística e da poluição, o Brasil do consumismo e das cadernetas de poupança, das paisagens destruídas pelo “progresso”, dos compositores novos gravando em inglês para conseguir um lugar no mercado, dos colonos que viram bóias-frias, dos nordestinos que viram pingentes da Central. Enfim, o Brasil da Rede Globo, que ironicamente parece estar produzindo uma vacinação em massa para que a grande parcela da população que constitui seu público possa absorver sem dor e sem reações as violências do ritmo de desenvolvimento-a-qualquer-preço em que o país engrenou de 1968 para cá.

Embora as experiências de dinamização da estrutura das novelas, através do enxerto de elementos atuais e cotidianos que arejassem um pouco o enredo embolorado dos velhos novelões, já venham acontecendo desde Véu de noiva (de Janete Clair, com direção de Daniel Filho, 1969), as primeiras novelas de sucesso nessa década ainda não são representativas do estilo que a Globo firmou e “patenteou” corno o tal Padrão Globo de Qualidade, mais ou menos por volta de 1973, 74. Até então, predominava o novelão tradicional, não muito diferente dos modelos criados pela Excelsior, que produzia telenovelas desde 1963, tendo sido campeã de audiência, por exemplo, com Yvani Ribeiro (Dez vidas, de 1969, A muralha, de 1968, etc.), e pela Tupi, com nomes como Geraldo Vietri (O cara suja, de 1965, Antonio Maria, de 1968, etc.). A Record, a partir de 1970, fez algumas novelas importantes — As pupilas do Sr. Reitor e Os deuses estão mortos, tendo Lauro Cézar Muniz como adaptador da primeira e autor da segunda.

Enquanto isso, ainda disputando uma audiência que não era tão garantida quanto é hoje, a Globo não arriscava para o horário nobre mais do que os temas de grandes aventuras e improváveis mistérios, usando e abusando da imaginação folhetinesca de Janete Clair:Irmãos Coragem em 1970 fez grande sucesso, O homem que deve morrer em 1971, Selva de pedra em 1972 — sempre temperados, obviamente, por complicadíssimos romances que acabavam por ocupar o centro das atenções do público até o final feliz.

Sobre Selva de pedra, por exemplo, as opiniões da colunista Helena Silveira na Folha de S.Paulo foram se modificando com o decorrer da novela. Em agosto, uma boa novela prejudicada pela Censura: “Consta que trinta capítulos já gravados de Selva de pedra foram apreendidos. Janete Clair vai ter que mudar completamente o relacionamento Francisco Cuoco-Dina Sfat-Regina Duarte”… “O fato é que, posteriormente, se Selva de pedra se tornar mais uma novela simploriamente maniqueísta, sua autora será acusada com impropriedade”. Em outubro, a Censura está vencendo o páreo: “Creio que a novelista não está nada bem com a insistente colaboração da Censura (que…) lesou a urdidura do enredo. É absolutamente infantil o retorno de Simone (Regina Duarte) com identidade de Rosana”, etc. Em novembro, os rumos da novela são considerados um equívoco da autora: “Muito telespectador ficou revoltado com Janete Clair por causa da dupla Simone-Rosana, equívoco que pode ser derrubado num único episódio…” e Helena Silveira sugere que os autores de telenovelas deveriam ter mais tempo para “estudar a vida brasileira”, de modo a não correr o risco da criação de tipos inverossímeis e de situações que revoltam o público. De certa forma a Censura continua sendo um poderoso álibi para as improcedências dos autores, o que não deixa de ser verdade até certo ponto, principalmente se considerarmos que nesta década a Censura atuou em três níveis: o policial, o empresarial (a chamada censura interna das empresas) e o psicológico, mais eficiente e nefasto que todos os outros, pois a repressão à criatividade, os bloqueios, a autocensura não se derrubam por decreto.

Em compensação, o horário das dez, até então menos significativo em termos de audiência, permitia aos autores maior margem de inovação. Bandeira dois (Dias Gomes, 1971, direção de Walter Campos) e O bofe (Lauro Cézar Muniz e Bráulio Pedroso, 1972, direção de Lima Duarte), por exemplo, foram grandes brincadeiras sobre a cidade grande, ricos e pobres, suburbanos e marginais, mais puxados para a caricatura do que para o “realismo”. Mas parece que O bofe exagerou na alegoria e na experimentação (a novela teve três finais diferentes para que o público optasse pelo de sua preferência, e acabava numa cena fantástica em que compareciam todos os personagens, vivos e mortos) e foi um fracasso de audiência. Afinal, cria-se um público reforçando o que existe nele de mais conservador e depois as consequências são estas: não se pode mais ousar impunemente. A partir daí o horário das dez também foi relativamente “enquadrado”; as novelas podiam continuar sendo satíricas, “críticas” ou puxadas para a linha de denúncia social e da seriedade, mas sem romper muito com uma estrutura linear ao alcance dos hábitos do público e, principalmente, sem abusar das irreverências em relação a esses mesmos hábitos, valores e padrões estéticos. O “senso de medida” é imprescindível para uma televisão que já se tornou respeitável, evitando grosserias tipo Chacrinha e apelações melodramáticas para as quais a classe média já aprendeu a torcer o nariz. Portanto: rumo à “realidade”, que é sempre um terreno seguro — se a Censura deixar.

ASCENSÃO (E QUEDA) DA INTELIGÊNCIA NA TV

Voltando à presença da temática de modernização/urbanização nas novelas, há alguns casos em que esta preocupação fica mais evidente. O bem-amado, de Dias Gomes (1973), foi situada na fictícia cidade baiana de Sucupira, onde as águas se dividem com muita clareza: de um lado o coronel Odorico Paraguassu (Paulo Gracindo), prefeito da cidade, seus admiradores e puxa-sacos. De outro lado a juventude (Sandra Bréa, filha do coronel) e os representantes da cidade grande (Jardel Filho no papel do médico humanista e liberal que considera as ideias do velho Odorico ridículas). O coronel Odorico é um Febeapá ambulante, representante da ignorância nacional, de mentalidade atrasada e manias de grandeza. Seu maior sonho é conseguir um defunto para inaugurar o cemitério da cidade com a presença do governador do Estado. No fim da novela é ele quem morre e inaugura pateticamente o cemitério, liberando sua filha, amante do ardoroso médico, para ir viver com ele em Salvador, longe da atrasada Sucupira.

A gozação indireta em cima dos broncos e poderosos que governam o país, representados pela figura do velho Odorico e seus “colaboradores”, foi tão bem-feita (houve até um Watergate caboclo no confessionário) que O bem-amado foi bem recebida inclusive por setores do público e da crítica que costumavam ver novela com desprezo. E o coronel (que a Censura, bestamente, não deixava ser chamado assim) não representava, de qualquer forma, uma crítica à burguesia ou aos valores burgueses em ascensão. Suas atitudes ridículas e exageradas estavam relacionadas a uma imagem que o Brasil Grande gostaria que pertencesse ao passado, a suas origens agrárias já superadas pela era da urbanização. Os tipos “populares”, por sua vez, são pueris e inofensivos, embora comoventes: o pescador romântico, representado por Milton Gonçalves, consegue realizar seu sonho no último capítulo e voar. Zeca Diabo (Lima Duarte) é um cangaceiro de coração mole que só deseja ser “protético”, profissão que considera mais digna e nobre que sua vida de matador. No final, os personagens de Sandra Bréa e Jardel Filho inauguram sua liberdade no apartamento do médico, em Salvador. O bem-amado foi uma novela bonita e ambígua: fantasiosa, às vezes quase delirante (como no caso do vôo do pescador) e por outro lado apontando, como alternativa à velha Sucupira, o Brasil do presente. Para onde mais poderia apontar, afinal?

Depois dela, uma novela de Jorge Andrade — Os ossos do barão, de 1973/74 — encontra um bode expiatório mais fácil para contrastar com os ideais e as perspectivas da modernidade: como o próprio nome sugere, a vítima aqui é a decadente aristocracia paulistana (outra vez Paulo Gracindo) em confronto com a burguesia arrivista (Lima Duarte) e com as aspirações da pequena burguesia jovem e saudável.

Algumas novelas do horário das oito: Fogo sobre terra, de Janete Clair (1974), de temática rural, mostra o choque do homem do campo com o progresso que “vem da cidade”. Nas palavras da autora, é um conflito entre “o homem do campo, preconceituoso em relação ao progresso, e o homem da cidade, impelido a acabar com a miséria, levar ao campo conforto e civilização”. Para dar maior emoção à história, os dois homens em questão são irmãos, um camponês e outro engenheiro. A pequena cidade de Divineia deve desaparecer submersa pelas grandes obras de retificação do curso de um rio, importantes para o progresso da região porque tornarão o rio navegável. Os dois irmãos são bons, mas o homem do campo, mais ingênuo, não se conforma com os projetos (vencedores, afinal) do irmão citadino, mais prático e realista…

Escalada (1975), de Lauro Cézar Muniz, trata da ascensão de um caixeiro-viajante do interior de São Paulo, homem empreendedor e perseverante que termina como grande empresário no Rio de Janeiro. Lauro Cézar: “É a história de um brasileiro, de uma classe em ascensão, produto típico da revolução de 30 que propiciou o surgimento de um novo homem. Essa ascensão possível tem a ver com a industrialização e a urbanização que foram propiciadas naquele período”. Antonio Dias (Tarcísio Meira) é este homem que vem do campo para a cidade tentar enriquecer com o comércio, com as brechas que o desenvolvimento industrial lhe oferece. É o sonho pequeno-burguês que se realiza. Dados políticos da época (a novela desenvolve-se até a atualidade numa estrutura de três fases, décadas de 30, 50 e 60, tendo seu epílogo em 1975) conferem à história maior credibilidade apesar dos obstáculos da Censura. Na segunda fase (1950), por exemplo, o nome de Juscelino Kubitschek é proibido de ser pronunciado no vídeo… Lauro Cézar é o autor das grandes sagas a partir de Os deuses estão mortos (TV Record, 1971); em 1976 fez O casarão, saga de uma família desde 1900, quando são grandes proprietários rurais na cidade de Tangará, até a atualidade no Rio de Janeiro, passando pela década de 20, que marca as transformações da sociedade brasileira do ponto de vista da crise daquela família de fazendeiros. Na comparação entre as gerações há oportunidade para tratamento de temas como a emancipação da mulher, o desquite (este tremendamente prejudicado pela ação da Censura) e até um pouco de política. Ainda a respeito da Censura: O casarão foi enquadrado na Lei Falcão, pois, por ocasião das eleições de 1976, o autor introduziu o assunto da campanha eleitoral na cidadezinha de Tangará, onde a heroína da geração atual (representada por Beth Mendes) era vagamente “de oposição”. Resultado: Lei Falcão nela e em seu candidato preferido, pois aquilo poderia parecer propaganda do MDB pela televisão.

Até mesmo Janete Clair entrou na linha da “realidade nacional”. Chamada às pressas para escrever alguma coisa que substituísse Roque Santeiro, de Dias Gomes, totalmente vetada pela Censura (porque se baseava numa peça teatral já proibida, do mesmo autor — é o que dizem…), fez Pecado capital (1975), a primeira novela das oito a cores, de temática essencialmente urbana e atual. De um lado, uma família remediada de subúrbio carioca, e de outro uma família burguesa proprietária de uma fábrica de confecções, cujo pai é viúvo e romântico. O amor do velho Salviano (Lima Duarte) pela suburbana que se torna manequim de sua indústria (Betty Faria) e a oposição de ambas as famílias ao casamento consistem no eixo principal da novela. Francisco Cuoco, ex-noivo da jovem, é o tipo grosseirão do subúrbio, bruto e ciumento, que perde a noiva para o rico e gentil industrial. O clima de aventura é criado por um roubo de dinheiro em que o personagem de Cuoco é envolvido, tentando enriquecer ilicitamente. Mas ele é assassinado no último capítulo, enquanto sua ex-namorada se casa com quem enriqueceu pelos canais competentes.

Maior sucesso do que Pecado capital teve Duas vidas, de 1976/77, que em seu último capítulo atingiu 92% de Ibope. Novamente a autora se arrisca a uma temática urbana e atual, auxiliada pelos recursos de direção de Daniel Filho. Cria uma trama em que as obras do metrô devem levar à desapropriação de uma rua tradicional carioca onde os habitantes, todos antigos no lugar, resistem a abandonar suas relações de bairro e entrar no esquema impessoal da cidade grande. Mais uma vez o progresso, inevitável, invade a estrutura de vida de pessoas que prefeririam conservar seu antigo estilo de vida. Em entrevista à revista Claudia de julho de 1977, Janete Clair explica a fórmula do sucesso estrondoso de sua novela: “Hoje em dia estou mudada, não procuro mais só temas românticos; já escrevo procurando contestar alguma coisa”. (Mas…) “o público não gosta só de sofrer. Precisa também ver um ambiente sofisticado ou a novela ficará feia, pobre. Eu quero que minha novela agrade, sempre”. Por isso, Janete admite que faz concessões: “No final de Duas vidas, Leda Maria (Betty Faria) e Vítor (Cuoco) deveriam se separar… Mas o número de cartas que recebi do público, pedindo que os dois ficassem juntos, foi tão grande que não pude deixar de contentá-los e mudei para um final feliz”. Aliás, falando sobre o final de Pai herói à revista Amiga de agosto de 1979, Janete Clair reitera suas intenções de “agradar o público”: “Eu fiz Pai herói para André terminar com Ana Preta (Toni Ramos e Glória Menezes)… Mas o público tomou-se de encantos por Carina (Beth Savala), pediu tanto, escreveu tanto, que eu tive que uni-los.” E admite novamente. “Confesso que mudei o final, pela primeira vez, atendendo ao público”. Mais uma vez a televisão, democraticamente, se curva ante o conservadorismo do público que ela própria ajudou a criar…

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Uma constante no horário das oito, até hoje, é o revezamento quase absoluto entre Janete Clair e Lauro Cézar Muniz; Janete é a autora mais popularesca, plenamente identificada com seu público, e Lauro Cézar apresenta pretensões mais intelectualizadas — de inovações formais na novela, de inserir informações históricas do roteiro, etc. — numa relação um tanto mais tensa com seus espectadores. Atualmente a Globo também começou a adotar essa espécie de revezamento às sete, quando o velho Cassiano Gabus Mendes compõe dobradinha com autores um pouco mais inovadores — Mário Prata, Bráulio Pedroso. Assim, entre as velhas fórmulas garantidas e algumas tímidas experimentações, a emissora assegura seu lbope enquanto procura renovar-se lenta e gradualmente; pois qualquer empresário bem-sucedido sabe que até mesmo sua linha de produtos mais tradicional necessita certas mudanças de embalagem de tempos em tempos.

Outra constante evidente, entre os temas de ascensão social individual e de conflitos entre o velho e o novo, é a maneira como estes elementos são tratados. Os choques entre o Brasil moderno e o arcaico são representados por oposições entre rural e urbano, tradição e progresso, jovens e velhos, aristocracia agrária e burguesia ascendente. O novo é visto como inevitável, ainda que, em alguns casos, pintado com cores sombrias e representando a destruição de modos de vida e valores nostalgicamente desejáveis, como no caso do Espigão, de Dias Gomes (1974, direção de Régis Cardoso), e O grito, de Jorge Andrade (1975/76, direção de Walter Avancini). Ambas as novelas, no horário das dez, tratavam da especulação imobiliária no Rio e em São Paulo, respectivamente, mostrando a violência que o crescimento desenfreado das cidades acarreta na vida privada (O espigão, segundo Daniel Filho, foi censuradíssima dentro da Globo por pressão dos anunciantes, sobretudo grandes construtoras e /ou imobiliárias).

Mas, geralmente, sobretudo no horário das oito, é possível alguma conciliação entre os oponentes. Os valores tradicionais, caipiras ou suburbanos (e mesmo os aristocráticos) raramente são vistos com desprezo total, embora os personagens que os representem sejam com frequência apresentados de forma infantilizada, ingênua, folclórica — enfim, como figuras simpáticas porém inofensivas. Até mesmo os pretensos heróis que batalham contra o inevitável — os personagens de Walmor Chagas no Grito, Claudio Marzo no Espigão, insistentes defensores da ecologia — são neutralizados por sua própria condição quixotesca, a impotência de sua resistência romântica e solitária contra “a força da grana que ergue e destrói coisas belas”.

Por sua vez, o “povo” (Pepo e Ana Preta em Pai herói, Alzira e as amigas em Dancin’Days, a família de Lili no Astro) e os velhos (Seu Menelau em Duas vidas, Seu Alberto em Dancin’Days) recebem um tratamento dúbio, entre o simpático e o pueril. Seus sentimentos são sérios, mas não muito… Entretanto, esses representantes de valores ou de setores secundários perante a ascensão gloriosa dos personagens principais funcionam como elemento afetivo importante na estrutura das novelas, despertando, com sua faceta desprotegida e um tanto patética, fortes identificações por parte do público. Às vezes até mais profundas do que o casal principal, que, como parece evidente no caso de Pai herói, desperta mais interesse pelo valor abstrato que representa — o Amor! — do que pela figura humana dos personagens.

Além disso, os personagens não-vencedores da novela (observação: os perdedores propriamente ditos são apenas os que merecem punição, no final) existem com uma finalidade específica: sua função é de sobreviver em gentil convivência com os vencedores, e até mesmo beneficiando-se de alguma forma com este contato. Eles estão ali para demonstrar que a convivência não só é possível como também vantajosa para todos, sendo que há sempre um membro da família premiado pelo contato bem-comportado com os vencedores: a jovem pobre que se casa com o moço rico, o rapaz do interior que vai para a cidade grande e sobe na vida, o outro que redescobre um parente desaparecido e recebe enorme herança, etc. O elemento caipira ou suburbano também é recebido na ambiente dos bem-sucedidos (dos modernos) como portador de autenticidade e espontaneidade e, assim, além de lucrar com a convivência pacífica, ainda contribui de alguma forma para alegrar o mundo dos campeões, ensinar-lhes a simplicidade, a alegria das pequenas coisas, a espontaneidade… Valores que, na estrutura da novela, não devem se perder durante a ascensão social.

Ou seja: a não ser os “mal-intencionados”, ninguém tem muito a perder; existem apenas obstáculos a transpor até que um novo equilíbrio, muito semelhante ao proposto no início da novela, seja estabelecido. Como não há contradições, e sim conflitos, a História não caminha na telenovela: a vida descreve círculos voltando sempre ao ponto de origem, movimento no qual a ordem “natural” das coisas se reafirma, se fortalece, se aperfeiçoa.

O IBOPE BALANÇA, A OUSADA CAI

Em fins de 1977 a Globo, tendo firmado e reafirmado suas linhas de programação e seu monopólio da audiência, dava-se ao luxo de permitir alguns tímidos avanços e experiências na estrutura das novelas. Às oito da noite Lauro Cézar Muniz tentava desmitificar para o público a vida dos artistas de televisão e os bastidores de uma grande emissora com seu Espelho mágico, numa estrutura de metanovela (Coquetel de amor, a tal novela-dentro-da-novela que pretendia criticar o esquemão tradicional do gênero) que acabou confundindo os espectadores acostumados, pela relação imposta pela própria televisão, a ver novelas para não pensar. De qualquer forma, Espelho enfocava a própria Globo como mais digna representante da onda de modernização que assola o país, pois no decorrer da novela todos os personagens, artistas das mais diversas áreas, imigram para a televisão encontrando nela o melhor espaço – ou a saída inevitável – para seu trabalho, em vista do esmagamento dos outros setores do mercado de trabalho em “artes e espetáculos”. Mas o público se desgostou com a novela, que baixou até 53 pontos de audiência, e quase escapa para a Tupi, que nessa altura jogava alto (ou baixo?) com a mediunidade do Profeta, de Yvani Ribeiro, não fosse a intervenção salvadora de titia Janete com seu retumbante (e redundante) Astro.

“CRISE NA TV: Cuoco veste turbante para salvar as novelas”, anuncia a revista Manchete, supondo um desgaste do gênero que motivaria uma queda geral de 11 pontos na audiência da TV, segundo o autor da matéria, Carlos Heitor Cony. Às sete, a novela de Mário Prata, Sem lenço, sem documento, cheia de jogadinhas cúmplices para conquistar simpatias de um público de esquerda ou do público jovem anti TV (“Não escrevo para teatro desde 68; a barra tá pesada”, declara um publicitário ao amigo. Insinua-se que ele precisa do emprego porque manda dinheiro para a família de um amigo, preso político. “Você vai à festa? Vai ter de tudo”, “Ah, meu filho, eu estou tão careta…” é outro diálogo que vaza entre dois personagens mais “desbundados”, insinuando alguma transação com drogas. Em todo caso, esses detalhes se davam numa linguagem tão cifrada que a Censura deixava passar), também não se firma direito. Começa tentando inverter a estrutura tradicional das novelas e colocar, como personagens principais, quatro empregadas domésticas vindas do Recife para o Rio e outros tipos, da pequena burguesia remediada para baixo. O tema central no início do Sem lenço… é o desemprego, a luta pela sobrevivência dos nordestinos, e mesmo de famílias cariocas, no Rio. No fim, por injunções de Censura e público, o autor consegue a proeza de promover socialmente todas as quatro domésticas e seus agregados, transformando-as em manequim, dona de butique, esposa de advogado e esposa de um astro do rádio. De qualquer maneira, para o horário das sete, Sem lenço, sem documentoainda foi a novela mais inovadora.

Na mesma época, às dez, estava no ar uma nova imagem de Regina Duarte no papel de Nina, na terceira novela de Walter George Durst para a Globo depois de Gabriela (a novela mais bonita feita na televisão brasileira, na minha opinião) e de Despedida de casado; esta última foi o segundo caso sério entre a Globo e a Censura: para Durst, que tentou fazer passar quatro sinopses diferentes sem sucesso, a novela tratava da “difícil arte da convivência entre um homem e uma mulher”, e era “tremendamente construtiva”, apesar de tratar do tema do desquite. Mas não passou mesmo, e “hoje existe fragmentada por aí, em temas de outras novelas, do Malu mulher, em Como salvar meu casamento da Tupi, etc. Agora, pode!”

Nina, por sua vez, foi uma novela bem-feita e difícil, que reconstituía o período de 1926 a 30 em São Paulo e tinha como fundo a decadência da aristocracia cafeeira (Mário Lago), a ascensão da burguesia arrivista (Antonio Fagundes), os abalos sofridos pela moral provinciana da época com as ideias “modernas” positivistas, representadas pela atrevida professorinha Nina (Regina Duarte). Infelizmente, Nina estava condenada a ser uma contestadora puritana, impedida pela Censura de ter qualquer tipo de vida sexual, pois, em se tratando de Regina Duarte, ex-símbolo das menininhas puras da família brasileira, sua sexualidade se tornaria duplamente imoral — tal é o poder da televisão sobre a imagem do ator, condicionando em torno dela as fantasias e desejos do público.

Enfim, Nina abordou com certa profundidade um período que parece ter um incrível poder de metáfora em relação às transformações pelas quais o país está passando hoje (ou melhor, na década de 70…) — o período que precede a Revolução de 30, utilizado como referência em diversas outras novelas. A vitória da industrialização sobre a economia cafeeira é representada pela ascensão de Bruno (Fagundes), que, numa vantajosa aliança, termina se casando com uma filha da aristocrática família Galba, salvando-os das consequências do crack da bolsa de Nova York. E a vitória do “livre-pensar” característico do capitalismo de livre-concorrência surge apenas como perspectiva longínqua, pois Nina, depois de presa, perseguida e incompreendida por todos, termina lecionando num colégio qualquer de cidade de interior. A câmara pára sobre o rosto de uma criança atenta, enquanto a professora ensina que “a terra foi feita pelo fogo” (e não por Deus!), sugerindo que o Brasil, através de suas novas gerações, marcha inevitavelmente para o fim da sua longa Idade Média rumo ao começo da modernidade.

Nina talvez tenha se aprofundado demais, o Espelho mágico se complicado demais, Sem lenço, sem documento brincado demais, e os autores e diretores da Globo perceberam neste período que o preço do monopólio é a quase imobilidade. Para a estrutura comercial da emissora, os pequenos balanços no Ibope (afinal o que são 11 pontos para quem está permanentemente 30 ou 40 pontos à frente das outras?) parecem tão assustadores que a Globo já não tem mais a liberdade de sair do esquema de sucesso que ela mesma implantou. Surpreender o público, contrariar suas expectativas (as três novelas em questão, por exemplo, haviam diluído um pouco o peso dos “casais centrais” a que se refere Daniel Filho, em relação à estrutura total do enredo), abalar seu condicionamento diante da telenovela, implica num risco de audiência que a Globo já não podia mais correr. A partir de então, as fórmulas de sucesso garantido voltaram a imperar – O astro, de Janete Clair, Te contei, de Cassiano, e O pulo do gato, de Bráulio, respectivamente às oito, sete e dez horas, repetem, com pequenas modificações, receitas bem-sucedidas de cada um dos autores e não merecem análises à parte. Dois meses depois de O astro entrar no ar, a Globo anunciou triunfante a recuperação de seus picos habituais de audiência (“Isso é liderança”, no boletim para imprensa da segunda semana de fevereiro de 1978, acusa que o Ibope no horário nobre já voltou para a média dos 60 pontos nas principais capitais, etc.)

O horário das sete até hoje não apresentou mais nada de importante. Às oito, O astro foi sucedido pela esfuziante Dancin’Days, de Gilberto Braga, a novela onde Daniel Filho melhor aplicou sua receita infalível de realismo-com-purpurina, misturando um clima de oba-oba da Zona Sul carioca com os velhos desencontros amorosos e familiares, muito merchandising e todo o embalo da onda das discotecas – modismos que aliás a novela difundiu por todo o país, contribuindo para a tal “integração” da nação via aquisição de novos hábitos de consumo etc. Depois dela, e com a saída do entusiasmado Daniel do núcleo das oito, as novelas deste horário caíram numa obscuridade (Pai herói, de Janete, Os gigantes, de Lauro Cézar) da qual ainda não conseguiram se levantar.

Às dez, merece algum destaque Sinal de alerta, em que Dias Gomes parece ter abandonado de vez qualquer resquício de bom humor e levado o realismo às últimas consequências, construindo uma espécie de novela-denúncia sobre os problemas da classe operária (superconcentrados na questão da poluição), onde o clima que paira sobre a ala pobre é tão pesado e tão solene, seus personagens são tão exemplares, tão cerebrais e tão sisudos que o eventual público operário não deve ter se identificado na tela, e o público de classe média se afastou entediado. Sinal de alerta não passou muito de uma novela carregada de boas intenções, e encerrou com tons cinzentos o núcleo das novelas das dez. Em 1979 a Globo volta com tudo ao sistema da estratificação bem delimitada por horários (ver texto Um só povo, uma só cabeça, uma só nação) e concentra todas as suas perspectivas progressistas – ou, em outras palavras, todos os seus esforços – na conquista de setores mais sofisticados de público na proposta das Séries brasileiras. Aplauso, Carga pesada, Malu mulher e Plantão de Polícia.

O BOM GOSTO ESTÁ À ESQUERDA

Eu acho que o sistema político brasileiro tem receio da invasão dos meios de comunicação pelos chamados ideólogos de esquerda. Mas não a indústria. A indústria precisa deles.(Paulo Afonso Grisolli, diretor de Malu mulher).

E precisa mesmo; de que outra maneira, a não ser através do trabalho de autores e ideólogos mais progressistas, um veículo abrangente como a televisão pode mascarar seu caráter de classe a fim de atingir parcelas de todas as classes sociais?

No caso específico do Brasil, o discurso populista ainda é o mais abrangente pela sua tradição junto às camadas trabalhadoras e pela sedução que representa para a burguesia, oferecendo-lhe uma ideologia conciliatória capaz de aplacar sua má consciência sem colocar em crise seu poder. É ao tratamento populista que a Globo recorre ao perceber que, de uns anos para cá, setores incômodos do chamado povão brasileiro insistem em voltar à cena política e a televisão não pode ignorá-los: seria um descuido tático e um grande erro estratégico.

Finalmente, se o consenso entre burguesias e classes médias anda um pouco abalado pela crise econômica, urge construir novos pontos de consenso mesmo que à custa de pequenos avanços ideológicos (os tais “avanços preventivos”, ver texto Um só povo, uma só cabeça, uma só nação): este é o principal papel dos homens que trabalham para o que Mauro Salles chama de “comunicação social”; tarefa diplomática espinhosa porém imprescindível, sobretudo para uma emissora que pretende manter-se como critério de verdade, como mediador privilegiado das relações entre seu público e a realidade social.

Até poucos meses atrás, a Globo oferecia canais esporádicos de desafogo para as demandas esquerdistas e/ou inovadoras (ao nível da moral e dos costumes) de seu público. De vez em quando o Globo repórter saía com alguma grande “denúncia” (alta do custo de vida, inseticidas envenenando os alimentos, menores abandonados etc.) apresentando, evidentemente, sua própria versão de “por que essas coisas acontecem”. O Planeta dos Homens utiliza o humor e a sátira política para aplacar consciências mal-humoradas — o riso é uma válvula de escape e uma vacina — e algum Caso especial vinha abordar dramaticamente os problemas da “nossa gente”. Indulto de Natal, por exemplo, em 1975, era uma história baseada na angustiosa e impotente espera de um homem (Joel Barcelos) e seu filho pela esposa/mãe presidiária que deveria ser solta para passar o Natal em família. Escrito e produzido por Walter Avancini, este Caso especial misturava realidade e ficção, situando cenas no interior de um presídio feminino verdadeiro e envolvendo o espectador com a cansativa e esperançosa “via-crúcis” da dupla pai-e-filho, às vésperas de Natal, tentando obter alguma informação sobre a lista das indultadas entre os frios corredores da burocracia.

Jorge, um brasileiro, de 1977, baseado no livro premiado de Osvaldo França júnior, mostrava o mundo dos motoristas de caminhão, com Fagundes no papel principal e Paulo José na direção: “Trata-se de um épico mineiro em tom menor, irônico; Jorge não é o super-herói, é um homem normal, um herói brasileiro…” Botar o povo na tela, “a cara do povo do jeito como ela é”, como dizia Paulo Pontes (mas, em se tratando de Globo: o povo banhado, barbeado e, no mínimo, com a dentadura em bom estado…), substituir o grande herói pelo chamado “homem comum” já era proposta de Oduvaldo Vianna Filho para sua Grande família, que durou de 1973 a 75 narrando em episódios semanais a vida simples de uma família simples com dramas simples etc., etc. Paulo Pontes, co-autor da série: “A matéria-prima de meu trabalho é a vida do homem comum, este herói desconhecido que por 12 horas diárias carrega nas costas frustrações e dificuldades”…

As elites jovens e supostamente liberadas das grandes cidades, as propostas inovadoras ao nível da moral sexual, das relações familiares e do próprio sistema de vida pequeno-burguês encontraram espaço na curta série Ciranda, cirandinha (fins de 1977 e 1978), em que uma equipe de quatro autores — Domingos de Oliveira, Antonio Carlos Fontoura, Lenita Plonczynska e Luis Carlos Maciel — dirigida por Daniel Filho criou alguns episódios baseados na constatação de que, para as novas gerações, “o sonho acabou mas papai não tem razão”. Quatro jovens dividem um apartamento em algum lugar da Zona Sul carioca e enfrentam, romanticamente, problemas como o da violência da grande cidade, a crise existencial de um companheiro que “acreditou demais na década de 60”, a criação coletiva de uma criança, a dificuldade em realizar os próprios sonhos. Talvez por estar dirigido a um público muito próximo dos próprios autores, talvez por tratar de um tema que parece dizer respeito apenas a uma minoria (o que sossega bastante a Censura), talvez por abordar classes médias em vez do “povo”, e assim escapar do populismo, ou por tudo isso junto, Ciranda, cirandinha foi, a meu ver, a experiência mais avançada da Globo.

Das experiências esporádicas e variadas dos Casos especiais a Globo se lançou na produção das Séries brasileiras, na esteira de uma proposta da Embrafilme em financiar a produção de seriados nacionais para a TV — mais uma vez, antes que outro aventureiro lançasse mão. As séries são também tentativa de fixar no horário das dez um público de elite que não se interessou pelas novelas, mas de quem a televisão não pode desistir inclusive por motivos comerciais, pois, como diz Homero Sanchez, diretor do Departamento de Análises e Pesquisas da Globo, “conteúdo elevado” chama um “público elevado”, que chama publicidade cara… e então “o Dr. Roberto Marinho será não milionário, senão bilionário ou trilionário”.

Uma série de adaptações teatrais variadas, uma série que percorra o interior do país, outra que cubra os subterrâneos marginais e/ou suburbanos da cidade grande e uma que permita o tratamento dos problemas existenciais das minorias cultas do país, eis um painel completo, na horizontal e na vertical, das realidades socioeconômica-culturais brasileiras. Rigorosamente vigiadas pelo olhar desconfiado e reacionário do Dr. Roberto Marinho, as Séries brasileiras balançaram um pouco em termos de audiência, de custos e de censura interna, mas parece que, depois de seis meses no ar, tomaram pé — fala-se mesmo em uma quinta série para 1980, ocupando a quarta-feira, única noite ainda tomada pelos enlatados.

Seus autores podem ser considerados os tais “ideólogos de esquerda” a que se refere Grisolli, com passagens pelos teatros de Arena e Opinião dos anos 60 e pelas propostas dos Centros de Cultura Popular da UNE. Na Globo, adaptando ligeiramente estas propostas, continuam trabalhando no sentido de fazer com que “o povo brasileiro se reconheça na tela”, como pedia Paulo Emílio Salles Gomes ao cinema nacional. É possível conciliar projetos dos setores da produção cultural mais à esquerda, na década de 60, com a linha de programação de uma emissora como a Globo? Pelo jeito, é possível. No mínimo porque o tempo passa, a realidade social do país se transforma e as tais propostas já não se situam mais tão à esquerda (difícil seria talvez que a Globo encampasse as propostas político-culturais de esquerda que surgem hoje — se é que ela já não efetuou a tarefa preventiva e aparentemente impossível de encampá-las antes que elas surjam). No mínimo porque, transformadas em produtos de consumo de televisão, essas propostas já não são mais as mesmas (ver texto Um só povo, uma só cabeça, uma só nação).

“Existe uma continuidade nas minhas preocupações, desde o tempo do CPC até meu trabalho com o Aplauso. A intenção de levar cultura ao povo… Curei-me definitivamente do vanguardismo” (Ferreira Gullar, equipe de criação do Aplauso). Gullar opõe autores individualistas e forma listas aos que aceitam trabalhar para a TV dado o seu grande alcance, etc.

Carga pesada propõe-se a “fugir do esquema americano. Levantar nossos problemas e até mesmo influir na sua solução” (Gianfrancesco Guarnieri, um dos autores de Carga pesada). “Havaí 5-0, não: Maranhão 79″. (Carlos Queiroz Telles, idem). Mas “por enquanto não há como evitar o modelo dos seriados americanos, uma fórmula bem-sucedida. Vamos mudar principalmente no conteúdo”. Outro autor desta série, Dias Gomes fala em basear os episódios em casos reais, traçar um vasto painel do interior do país, etc., “mas sem o exagero de regionalizar”. Também considera importante não desprezar a experiência dos seriados americanos, só que com “uma temática 100% nacional”. O recurso dos dois caminhoneiros (Antonio Fagundes e Stênio Garcia) rodando pelo país permite o traçado deste painel a que se refere Dias Gomes. Ao mesmo tempo, a relação passageira, quase “turística” dos dois caminhoneiros com os problemas dos locais por onde viajam impede qualquer aprofundamento nesses problemas, qualquer peso maior para a cabeça do espectador — o que é, aliás, uma limitação da própria forma clássica dos seriados, e que exigiria muitas transformações para ser superada. “O noticiário policial é um microcosmo da sociedade”. Permite a abordagem de “temas fortes, mas também com um pouco de humor” (Antonio Carlos Fontoura, autor de Plantão de Polícia). “Não são façanhas de um policial, mas a realidade policial”. (Aguinaldo Silva, idem). Acertadamente, o personagem principal de Plantão de Polícia não é um policial, e sim um jornalista da seção policial de um pequeno jornal carioca. A estas alturas, com quinze anos de militares nas costas e cansado de ouvir falar ou sentir na pele a violência da polícia, o público provavelmente não acreditaria num herói policial. Hugo Carvana, o Waldomiro Pena, “último jornalista romântico”, é o encarregado de percorrer as barras-pesadas e/ou folclorizadas da malandragem carioca na série das sextas-feiras.

Malu mulher é mais uma vez a Regina Duarte tentando escapar das limitações que a Censura lhe impôs por ocasião da novela Nina. Mas desta vez, depois de muita briga com a direção da empresa, parece que Daniel Filho conseguiu quebrar a redoma de cristal que protegia a atriz e assim criar uma personagem feminina que é tão exemplar quanto Nina, mas consegue evitar ser assexuada. “Essa é uma história de todas as mulheres que tomam consciência. Seus problemas não resolvidos no dia-a-dia são os de todas as mulheres” (Lenita Plonczynska, uma das autoras de Malu). “Malu não é uma revolucionária, é só uma mulher que resolveu viver e usar suas potencialidades humanas” (Armando Costa, idem). “Vamos discutir o ser humano através de uma mulher brasileira” (Euclydes Marinho, idem). “Não vamos discutir os problemas das mulheres da classe baixa porque não os conhecemos, seria falso. Mas vamos tentar defendê-las, fazer alguma coisa por elas” (Renata Palottini, idem).

Admitindo mais uma vez que a fórmula dos seriados não será muito diferente da receita implantada pelos “originais” norte-americanos, os autores de Malu se propõem, entretanto, a, através da personagem, tratar essencialmente da nossa realidade — se é que se pode dizer que os problemas enfrentados por uma mulher desquitada, universitária, classe média-alta com apartamento bem decorado e carro do ano sejam “representativos da realidade brasileira”. Malu, com suas ousadias que chocam patriarcas e donas-de-casa, é representativa, sim, da auto-imagem narcisista de um setor da sociedade que se pretende de vanguarda. Individualista em sua “luta”, conservadora em sua maneira de viver, Malu acumula experiências novas com o mesmo furor consumista com que desejaria, tempos atrás, geladeiras, liquidificadores e marido. Ponta-de-lança da Globo em sua programação para a próxima década, Malu vem avisando que as regras do jogo não mudaram muito; embora o vocabulário televisivo tenha se alargado para comportar verbetes como orgasmo, aborto, “porcochauvinismo” e liberação, essas conquistas continuam sendo, como a velha ascensão social das novelas, privilégios dos melhores — dos eleitos. E que, se a vida é dura, não é possível tentar entender o que a torna assim ou procurar novas maneiras de viver. O negócio — diria ela à sua filha e aprendiz Eliza — é endurecer também, entrar na guerra e defender o seu.

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