1988

Barroco, olhar e vertigem

por Ferreira Gullar

Resumo

O privilégio do olhar na aquisição do conhecimento é inegável. O olhar permite ao homem apreender o mundo com mais riqueza de informações do que permitem os nossos outros sentidos. Mas a percepção do homem também é histórica. O homem vê o mundo através de sua história.

Na Renascença, o homem racional, conhecedor da perspectiva, é também o homem liberto do domínio da igreja, das superstições, do obscurantismo medieval. Sua arte e sua arquitetura são harmônicas, objetivas, simétricas, equilibradas. O espaço racional é organizado. No quadro renascentista, tudo “está” dentro da tela. O mundo está dentro da tela.

Por volta de 1620, não coincidentemente na mesma época que Copérnico descobre que a terra não é o centro do universo, surge o barroco. O homem que se acreditava no centro do universo, descobre-se como sendo somente uma parte dele.

A irregularidade, a assimetria, a paixão em lugar da racionalidade caracterizam o Barroco. O mundo está fora do quadro e o pintor apreende somente um pedaço desse espaço. Há uma exploração do trompe-l´oeil, da ilusão de ótica que conduz ao delírio e à vertigem. A arquitetura é um meio de expressão muito característico da arte barroca e a igreja seu espaço de plenitude.

O barroco foi decisivo para a arte colonial brasileira. As primeiras manifestações do barroco no Brasil se dão nas igrejas de Pernambuco e da Paraíba. Mais tarde, em Minas Gerais surge um barroco brasileiro que tem como principal figura Aleijadinho. A mistura do Maneirismo, do Barroco, do Gótico à mulatice de Aleijadinho fazem do barroco mineiro um barroco autônomo, diferente em muitos aspectos do barroco europeu.

Um crítico francês chama a atenção pro fato de que há no barroco brasileiro algo de carnavalesco, uma religiosidade alegre.

O Barroco só será conceituado e reconhecido como estilo, ainda que de forma depreciativa, na metade do século XVIII. Somente no século XIX, e muito graças ao Impressionismo, ele será valorizado e resgatado como uma expressão estética válida e de alta significação.

 


Eu me lembro que nos artigos que eu fazia no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, no final dos anos 50, eu falava por exemplo sobre o Cubismo, e concluía com uma “tentativa de compreensão”. Comecei a usar essa expressão na crítica de arte brasileira. Depois outros críticos passaram a usar também essa modesta expressão: “tentativa de compreensão”. Servia naquela época e serve hoje. Estou sempre tentando compreender. Eu não sei nada, não sei nada. Então, por exemplo, eu agora vinha pensando na rua que devia convidar vocês a pensar junto comigo essa questão do Barroco, do olhar barroco. Eu me sinto melhor assim do que chegar e dizer coisas aqui. É melhor pra gente, pra mim, pra vocês, a gente tentar entender, decifrando esse problema, esse tema: o olhar. Eu vou falar do Barroco. Na verdade do tema do olhar no Barroco. Então eu tenho que falar do olhar. Outros conferencistas terão falado aqui do olhar colocando a sua maneira de entender isto, em alguns casos até falaram do olhar em termos metafóricos, ou seja, o olhar que vê as contradições, o olhar que vê os problemas da sociedade, o olhar que vê os valores da sociedade. Mas eu não, eu vou falar aqui de olhar mesmo, porque eu vou falar de artes plásticas, do olhar físico. O olhar que não é metafórico. É sobre esse olhar que eu gostaria de falar como introdução a esse nosso pensar do Barroco. Eu tenho algumas noções a respeito disso e alguns pensamentos que são meus, até poemas sobre o olhar. Um filósofo que influiu muito na minha maneira de abordar essas questões foi Merleau-Ponty. Todo mundo que me conhece sabe disso, inclusive na época do neoconcretismo, a base filosófica do neoconcretismo decorre, se apóia amplamente na visão do Merleau-Ponty, porque ele tem de fato uma visão do problema da percepção que é muito próxima da arte. E eu me atrevo a dizer, especialmente da minha maneira de ver a arte, sempre como descoberta. A razão pela qual eu discordava do movimento concretista era exatamente porque eu não via ali a colocação do olhar, da visão, da percepção como um instrumento de descoberta e transformação da realidade e sim como uma coisa pronta que se fosse usar. Então o olhar… mas eu não vou desviar do tema… eu imagino o olhar. Se eu não olhasse, se eu não tivesse do mundo a apreensão pelo olhar, só o apreendesse pelo tato, pelos ouvidos, pelo olfato, pelo gosto, se eu só o apreendesse assim, que noção eu teria por exemplo da manhã? O que seria a manhã, o amanhecer, o dia, e o entardecer, a noite? Que visão teria eu dessa realidade, se eu não apreendesse o mundo pelo olhar? A textura, a corporeidade das coisas, dos objetos, é diferente se eu apenas os tocar com os dedos. Mas quando eu olho, a riqueza que a minha percepção recebe do olhar é uma coisa incomparável com relação à que os outros sentidos me permitem apreender. Então me parece que a construção do mundo humano deve muito ao fato de que o homem vê a realidade, de que ele apreende a realidade inclusive e principalmente pelo olhar. Ele é quase a base do conhecimento, não é verdade? Mas se o olhar tem essa importância, é verdade também que eu apreendo pelo olhar elementos que pertencem a outros sentidos, e os outros sentidos apreendem coisas que pertencem ao campo do olhar. Por que é que eu digo “som agudo”? Agudo é uma impressão tátil. Ou “era um som áspero”. Áspero é tátil. “Era um som escuro”, escuro é visual. “Era uma voz doce”, é gustativo. Merleau-Ponty diz: “Os sentidos se traduzem uns nos outros sem precisar intérprete”. Quer dizer, eu apreendo o mundo por este ou aquele sentido, mas os sentidos se integram numa totalidade, são meios diversos de que o corpo humano dispõe para apreender a diversidade do real; então não existe uma faixa em que o que é do olhar está aqui, o que é do tato está ali, não. Como apreensão eles vêm por canais diferentes, mas eles se somam e se fundem na simbólica geral do corpo conforme a expressão de Ponty. Então, por exemplo, quando é de noite, uma noite escura e espessa, eu não tenho a noção dos planos. É uma realidade sem objetos, sem coisas, e isso nos faz ver o quanto a vista é significativa. Na medida em que a luz se acende, então, o mundo parece surgir pra nós, revelado.

Pois bem, essa importância da visão na apreensão da realidade vai nos fazer entender uma série de coisas que aparecem no Barroco. Uma outra coisa que nós temos que compreender é que a percepção do homem é histórica. O homem não viu sempre a realidade como vê agora. Através da história o homem aprendeu a ver, criou modos de ver, desapareceu e criou outros modos. O Barroco é um dos modos de ver a realidade, que surge em determinado momento da história da visualidade. Mas o olhar é histórico também na medida em que ele está ligado à história não só do homem como humanidade mas como indivíduo. Eu não apreendo cada coisa aqui e agora como se eu nascesse neste momento. Eu vejo o mundo com a minha história. A arte quer ser uma mensagem nova e inesperada, mas se ela fosse (e ela não consegue ser) totalmente inesperada ela não poderia ser percebida pelo ser humano. Assim como não há percepção sem fundo, quer dizer, eu não percebo nenhuma forma senão sobre algum fundo, eu também não percebo nada sem que haja o fundo da história, sobre a qual opera a minha percepção. Está certo? Não estou falando difícil, não, não é? Eu estou querendo que vocês me acompanhem porque só tem sentido se a gente chegar junto. Então esse olhar histórico, quando nós chegamos à Renascença, aí se constrói um modo de ver, decisivo na história da arte, na história da experiência estética do homem. Por uma série de fatores, que nós não vamos nos alongar em ver quais são, as características culturais e históricas daquele momento, torna-se possível ao homem a criação de um espaço harmônico, objetivo, racional. Porque a Renascença expressa uma passagem para o mundo moderno, um início, embora isso seja uma coisa polêmica. Mas é indiscutível que mesmo que o mundo moderno já se tenha manifestado no século XII, no século XIII, na verdade a Renascença é um passo adiante, pelo menos incorpora uma série de valores novos da racionalidade, uma certa libertação de fatores de superstição e do domínio religioso, do obscurantismo da Idade Média e coisas que foram sendo vencidas. E o homem consegue acreditar em sua racionalidade e criar um espaço de razão. A arquitetura do Renascimento, a expressão mais importante, mais significativa dela, como a de Brunelleschi, é a capacidade de apreender e organizar esse espaço com riqueza, com harmonia. A pespectiva é aí um instrumento realmente maravilhoso dessa nova visão. O homem consegue organizar o espaço porque, veja bem, antes não se conhecia a perspectiva, a organização do espaço era quase sem profundidade e, quando havia profundidade, essa profundidade era ambígua, ela não tinha a clareza, a racionalidade que passa a ter com a perspectiva, com o Renascimento. Tudo bem. Esse espaço, essa forma de ver, esse modo de ver, ele termina se estereotipando, ele evolui para um outro tipo, não propriamente para um outro tipo, mas evolui para uma certa estereotipia, uma racionalização maior dessas conquistas, dessas descobertas porque, apesar desse caráter racional e claro do espaço renascentista, na verdade um dos seus descobridores, Paolo Uccello, quase enlouquece para inventar a perspectiva, para construí-la. Havia uma paixão nisso. Não era uma coisa fria. Havia uma paixão nessa descoberta e na construção desse espaço racional. A outra figura importante, que é Leonardo da Vinci, era uma mistura de cientista e artista, de experimentalista, que terminou pondo a perder algumas das suas mais significativas obras pela experimentação técnica. Mas então havia uma certa paixão, e nem tampouco o Renascimento era essa clareza racional, porque também havia certas superstições ainda, mesmo em Leonardo havia ainda um resto de visão mágica misturado com a ciência, sem contar que a crença em Deus continuava, o sentimento do pecado era presente ainda. Basta dizer que Leonardo da Vinci, quando morreu, deixou no seu testamento dinheiro para 99 missas, sendo nove missas altas e noventa missas baixas. Ele sabia o que ele tinha feito pra querer tanta missa.

Então o Barroco surge no século XVII sem ninguém saber, surge sem ser chamado de barroco. A gente vai usar data só pra se orientar, já que as datas nunca correspondem à realidade estrita, mas servem como uma orientação. De 1610 a 1750, seria essa a duração do Barroco. Há algumas diferenças, uns dizem 1620, mas é esse espaço: quase um século e metade de outro. Mas é só no século XVIII, é só na outra parte, no outro século, quando a maior parte do Barroco já tinha acontecido, é que se começa a conceituá-lo, quer dizer, a reconhecê-lo como um estilo, mas a conceituá-lo de maneira depreciativa. O Barroco era para alguns críticos e historiadores da arte o extremo do ridículo e do absurdo, ele era apresentado assim. Para outros o Barroco era “uma coisa desorganizada, a irregularidade, o exibicionismo, o não saber fazer, o mau gosto”. Ele era o sinônimo de tudo que se considerava antiartístico, que não era estético. E é no século XIX que de fato se dá uma valorização do Barroco, que ele é resgatado como uma expressão estética válida e como um fenômeno estético de alta significação, porque até aí ele não tinha esse valor… Deixa ver aqui por onde eu ando… Então esse espaço barroco, veja bem, enquanto a Renascença se caracteriza, como a gente falou, pelo equilíbrio, pela harmonia, pela racionalidade dessas construções, a simetria, o Barroco é exatamente o contrário, ele é a irregularidade, a assimetria, a paixão em lugar da racionalidade. É claro que alguns elementos do Barroco já aparecem antes dele. Esse é um dado importante porque aí nós vamos ver que o Barroco é uma coisa complexa, quer dizer, a gente fala: o Barroco, mas você tem um barroco que surge (que é onde ele surgiu) em Roma, um barroco da corte e dos ciclos católicos. Tem um barroco da classe média; tem mais tarde um barroco naturalista, tem um barroco mais clássico, mais ligado ao classicismo francês. Você tem ainda o barroco que surge na Holanda, mais ligado ao naturalismo, tem o barroco realista que vem da obra de Caravaggio, e tem um barroco mais passional que é o barroco da Espanha. Então você tem uma variedade enorme de barrocos porque, quando se passa a examinar o Barroco com um conceito novo, ele põe em questão uma série de valores que com facilidade se usavam pra examinar as escolas artísticas. Ele bagunça um pouco o coreto, porque ele não tem exatamente a pureza que você encontra em outros estilos. Não há estilo puro, mas há relativa pureza que você encontra em outros estilos. No Barroco, a complexidade é bem maior. E não é maior por acaso.

Mas antes de chegarmos a esse outro ponto, vamos nos deter mais na linguagem do Barroco, na linguagem desse espaço. Ele é um espaço operístico, não é verdade? É pena que eu tenha esquecido de pedir ao Adauto que conseguisse slides pra gente colocar aqui visualmente algumas expressões bem significativas do Barroco. Mas sabem por que eu não dei importância a isso no começo? Porque, desde o momento, entendi que não vinha aqui realmente contar a história do Barroco — como não pretendo estar fazendo. Vim aqui discutir a questão do Barroco dentro da história da visualidade, do olhar, um dos modos do olhar, dentro do tema geral deste curso. Depois eu vi que, se tivesse alguns slides, a coisa seria mais interessante. Mas vocês se lembram, todo mundo se lembra, quando eu falo que o Barroco é operístico vocês logo lembram aqueles tetos de igreja, aquela perspectiva esfuziante. Enquanto na Renascença Leonardo bota a Santana, a virgem e o menino sentados diante de uma perspectiva, de um espectador imóvel, num ponto de vista determinado, o mesmo não ocorre num quadro de Veronese, por exemplo; aí você olha por baixo os pés das figuras; você está olhando por baixo as figuras que estão voando, por baixo dos pés, quer dizer, as figuras se entortam todas. Então essa perspectiva, essa configuração espacial muda tudo. Imaginem o que é uma perspectiva renascentista: eu aqui, uma praça, os prédios laterais da praça se alongando no horizonte, mais largo à medida que se aproxima de mim, espaço racional todo organizado e (diz Merleau-Ponty) em que as coisas estão submetidas à vontade, à ordem esquemática, à ordem deliberada dessa visão renascentista. No Barroco isto muda inteiramente, então esse espectador olha de baixo, olha de lado. Outra característica desse espaço é a seguinte: o artista barroco põe muitas vezes no primeiro plano uma figura grande que nem aparece inteira: uma costa, um ombro, uma cara — e o resto da cena se desenvolve, à sua frente. É como se fosse uma apreensão instantânea de uma cena, enquadrada por uma máquina fotográfica. Porque depois você vai ver, por exemplo, em Degas, você vai ver quadros dele, por exemplo, num teatro. Então, aqui no primeiro plano, temos as costas dos espectadores, olhando de lá pra lá; adiante está uma cena de mulheres dançando e tal. O quadro reúne elementos que só aparecem em parte, como são vistos num relance. Isso não acontece num quadro da Renascença, onde tudo “está” dentro da tela. Compreendeu? O mundo está dentro da tela. Se o quadro tem este tamanho, tudo o que o pintor quer dizer está dentro do quadro; o que está fora do quadro é outro assunto, não conta. No Barroco você tem a impressão de que o mundo está fora do quadro e o pintor apreendeu um pedaço desse espaço, mas o mundo está lá fora. Esta é uma das características da visão barroca ao contrário da visão clássica, da visão renascentista. Mas espera um instante, estou me alongando… Essa visão em que o mundo está fora, o mundo está fora, o quadro te diz que o mundo está lá fora, esse comprometimento com a realidade é um fator importante para se compreender a visão barroca. Agora, ao mesmo tempo que há este comprometimento com a realidade, com este mundo que está fora, ao contrário da Renascença em que tudo está no quadro que significa um grau de abstração muito maior e a pretensão de um controle muito maior sobre a realidade, no Barroco há uma retórica, porque ela é essencialmente uma arte retórica, e há uma exploração do trompe-l´oeil quer dizer, da ilusão de ótica, que conduz ao delírio e à vertigem e conseqüentemente à ilusão. Contraditoriamente, mais que a Renascença esta arte busca a ilusão. E aí eu chamo a atenção para o que eu disse antes quando me referi à importância do olhar na construção da realidade, na construção do sentido do real. O sentido do real depende basicamente do olhar, o que eu vejo me dá a realidade muito mais que outro qualquer sentido, tudo bem. Mas o olhar, por isso mesmo, me dá também a irrealidade mais do que qualquer outro dos sentidos meus. E precisamente porque é pela visão, é pelo olhar que eu apreendo e assento os termos da realidade, a arte que trabalha com a ilusão desse sentido chega ao delírio, chega a violentar a noção de realidade com eficácia. Quer dizer: se o que eu vejo é real, e o pintor me pinta a irrealidade, eu passo a ver a irrealidade em termos de realidade. É um pouco o que faz o circo de horrores. Uma coisa é o cara te contar uma história de terror, outra coisa é o cara pegar e botar o monstro na tua frente. Aquilo que não é verdade mas, porque se torna visualmente percebido, ganha uma força de realidade muito grande. Então o Barroco consegue exatamente a vertigem por explorar os elementos da visualidade e os elementos que fingem a realidade. Ele é realista por um lado, mas usa isto para criar a ilusão. Então, por exemplo, na Santa ceia, do Leonardo da Vinci, você tem um elemento de ilusão que é o seguinte: a ceia, o mural, está na parede de fundo do refeitório de um convento. Então o que faz o Leonardo? Ele imita a sala do refeitório no quadro, projeta o espaço na perspectiva do mural que ele pinta e cria a ilusão de que esse espaço real se prolonga no quadro e que a Santa ceia da mesma maneira que uma ceia real está acontecendo, aqui, no espaço real do refeitório. Então ele aí usa o trompe-l’oeil para acentuar o fator de realidade que ele quer imprimir ao que pintou. O Barroco faz o contrário, ele usa o trompe-l’oeil para imprimir o fator de irrealidade, de delírio, de vertigem, de desequilíbrio, que eram os objetivos dessa arte. Giuglio Carlo Argan — que é um dos grandes críticos de arte contemporâneos e foi recentemente o primeiro prefeito comunista de Roma — diz que o Barroco substitui a pintura que nascera em Veneza — e que era uma pintura poética, a pintura de um Giorgione —, substitui essa pintura por uma retórica. Então há um fator de autenticidade, de sinceridade na pintura de Giorgione que desaparece com o Barroco. Porque o Barroco não busca a autenticidade, busca a retórica e busca a ilusão. E essa exploração da retórica faz com que a arquitetura seja um meio de expressão muito característico da arte barroca e que a igreja seja realmente o local onde o espaço barroco de fato se realiza com total plenitude. Por quê? Porque o Barroco trabalha a ilusão no espaço arquitetônico, criando falsas perspectivas dentro da perspectiva real, escadarias que não existem, reentrâncias de vazios e cheios que não existem mas que a pintura finge nos muros do templo e especialmente no teto que tem, na arte barroca, uma função muito importante. Então essa perspectiva alucinada que o Barroco cria no espaço da igreja transforma-a inteira num grande trompe-l’oeil. Quer dizer, aquele espaço todo vira uma grande ilusão de ótica, como se você tivesse realmente num espaço de fantasia, sinfônico, que atua sobre você com a realidade das coisas verdadeiras. Então é a igreja o local onde se dá realmente o grande acontecimento do espaço barroco. Mas o, desenvolvimento dessa arte coincide também com o surgimento e o desenvolvimento da ópera, que é uma criação tipicamente barroca, inclusive pelo fato de juntar, de sintetizar várias expressões artísticas: a poesia, a música, o teatro, a pintura, o vestuário, enfim, os elementos arquitetônicos do cenário. A ópera é uma síntese barroca, uma síntese das artes de caráter barroco. Nesse período, por exemplo, na Itália, que é o próprio berço da ópera, o teatro clássico grego, que em outros países era retomado e montado, o teatro trágico, a comédia clássica grega, nada disso é montado nesse período na Itália, porque é contra o espírito barroco.

É claro que a recuperação do Barroco como um estilo artístico de importância, como expressão autêntica, verdadeira da cultura e da arte, só se dá na época moderna, no século XIX, depois do Impressionismo; e essa é uma observação de Hauser. Ele diz: “Sem a assimilação do Impressionismo não se teria resgatado o Barroco”. Mas por quê? Exatamente pelo fato de que a visão clássica é que rejeita o Barroco, porque o Barroco explora certos níveis de expressão que eram um avanço, uma visão nova do homem, não apenas no espaço da pintura, da arquitetura: refletia uma visão nova do próprio homem, da própria situação histórica do homem, do conhecimento do mundo. A rejeição do barroco era ao mesmo tempo uma rejeição do moderno. Por exemplo, Benedetto Croce, já no século XX, continuava a rejeitar o barroco, porque ele rejeitava também as expressões modernas de arte. Então por que é que o Impressionismo possibilita a compreensão do Barroco? Porque de fato começa com ele uma nova maneira de entender a linguagem pictórica e o espaço humano. Wölffin, o homem que conceitua pela primeira vez o Barroco, divide a história da arte em duas linhas fundamentais. Uma que ele chama de expressão “linear”, em que predomina o contorno, a linha, a precisão, a definição dos planos, e outra, que ele chama de “pictórica”, em que predomina o claro-escuro, o meio-tom, a mancha, que é basicamente a linguagem do Impressionismo e é também basicamente a linguagem do Barroco. Não é por acaso que o pintor impressionista Renoir — que tem uma influência evidente do barroco Rubens nos seus nus (basta olhar os nus de Rubens e os de Renoir, você vai encontrar essa identidade) —, quando estava pra morrer, quis ver, antes de deixar o mundo, o célebre quadro de Veronese, que está lá no Louvre, chamado As bodas de Caná. Esse quadro, admirado por todos os impressionistas, era também a paixão de Cézanne. Quer dizer, o Barroco, antes de ser conceituado, já era reconhecido e valorizado pelos pintores de vanguarda do século XIX. Os homens que estavam falando a nova linguagem da arte encontravam identidade não na pintura clássica ou neoclássica, mas exatamente naqueles pintores que romperam com essa linguagem tranqüila, essa linguagem fechada, essa linguagem racional, que surgira com a Renascença.

Antes de fechar esse assunto, eu gostaria de tocar num outro aspecto. Já disse que houve vários barrocos: um barroco italiano da corte e dos ciclos católicos, um barroco mais ligado ao clássico, que surgiu na França, outro da Espanha, outro da Holanda, da Alemanha, que tem também características muito específicas ligadas à própria história cultural alemã, de muita repressão, e que no Barroco se expressa de uma maneira muito peculiar. Mas houve também o barroco que veio pro Brasil. Também no Brasil esse fenômeno aparece e é um fenômeno decisivo da arte colonial brasileira. Ele surge aqui no século XVII também. Depois de 1654, que é quando os holandeses são postos pra fora, surgem no Nordeste, surgem em Pernambuco, inicialmente ali, Pernambuco, Paraíba, as primeiras manifestações do Barroco. E surgem inicialmente dentro dos templos, alguns templos que haviam sido destruídos. Recuperam-se os templos mantendo a sua forma antiga, mas o interior dos templos já é construído em termos de uma nova linguagem, que é o Barroco, o Barroco diretamente importado da Europa através de Portugal, o Barroco italiano. Em Pernambuco, na Bahia, em seguida começam a surgir os templos barrocos mesmo, quer dizer, com a sua forma externa também barroca. Mas é só mais tarde, em Minas Gerais, na região do ouro, tendo Vila Rica, como o centro, Mariana, São João Del Rey, é que surge então um barroco cuja principal figura é o Aleijadinho. Esse barroco tem características brasileiras. O barroco mineiro surge tardiamente, já na segunda metade do século XVIII, e tem características diversas do europeu em muitas de suas expressões, e somando heranças estilísticas distintas. Chama a atenção a pouca diferença de data entre o acontecimento barroco na Europa e o surgimento dele no Brasil, porque, vejam vocês, se ele começa na Europa por volta de 1620, vai surgir no Brasil — embora de uma maneira moderada e transplantada — por volta de 1660, a diferença não é tão grande se você leva em conta a época, os meios de transportes, tudo isso. E se estende por todo o século XVIII e começa a sofrer a transformação em rococó. Aí é difícil dizer até que ponto isso foi importado, uma vez que essa transformação já se dera na Europa, ou se isso foi o produto do desenvolvimento autônomo do barroco brasileiro. É uma coisa difícil de dizer. Existem teses divergentes em torno disso, mas a verdade é que uma certa autonomia esse barroco adquire, sobretudo porque isso é inevitável quando surge uma personalidade genial, como é o caso do Aleijadinho. Ele soma o Maneirismo, o Barroco, o Gótico, juntando-os à sua mulatice, um fenômeno do tropicalismo brasileiro. Um crítico francês que escreveu um livro sobre o barroco brasileiro chama a atenção pro fato de que esse barroco brasileiro é algo carnavalesco. Vamos ver agora um pouco do barroco mineiro nos slides. Vamos mostrar algumas coisas pra gente não ficar só na palavra. Eu teria falado menos se tivesse conseguido outros slides. São poucos slides exclusivamente de um templo que é possivelmente a obra-prima do Aleijadinho — a igreja de São Francisco de Assis, de Ouro Preto. Essa igreja impressionou muito os críticos europeus, acostumados a ver os barrocos da Europa, e de repente encontram aqui esse barroco que realmente tem algo de escola de samba, quer dizer, um tanto tropicalista. O Brasil é — aqui eu vou fazer uma digressão —, o Brasil é um país barroco. É barroco inclusive na paisagem, essa paisagem de Rio de Janeiro aí, com esses montes recortados que influenciaram — segundo sua confissão — Oscar Niemeyer. Influenciaram a própria arquitetura dele, que tem algo de barroco também. É claro, um certo toque, porque se você for discutir o que é barroco e o que não é barroco, há uma faixa aí em que é difícil definir. Uma das características do Barroco é a linha curva que suplanta a linha reta, é uma das características desse estilo. A predominância da linha curva, que é uma característica do Barroco, é também uma das características da arquitetura de Oscar Niemeyer, e é uma característica da paisagem brasileira. Agora, a escola de samba é uma manifestação barroca, não há dúvida nenhuma, e operística, não é verdade? É uma ópera popular, tem algo de ópera como fusão de arte, como síntese de arte, porque há nela artes plásticas nas alegorias, tem o figurino, tem a música, tem a dança, tem o canto. Há muito de barroco na nossa realidade; esse teto de igreja, por exemplo, que é tipicamente um teto barroco, quer dizer, a exploração do teto como espaço vertiginoso. Só que nas igrejas brasileiras (isso é interessante observar) é um pouco diferente. Na igreja barroca o espaço do teto dá a impressão de que você vai cair pra lá, “cair pra cima”. Nas igrejas barrocas européias, em geral, não só a construção do espaço arquitetônico gera essa vertigem como a própria pintura do teto tem essa perspectiva; é desenhada numa perspectiva de vertigem. No caso brasileiro, não. Se você for olhar detalhadamente os tetos das igrejas brasileiras, a composição espacial não explora o trompe-l’oeil como em geral nas igrejas barrocas, onde isso é levado à exacerbação. Aqui é uma expressão bastante carnavalesca do nosso barroco, quer dizer, é religioso mas você vê aí que é uma religiosidade bastante alegre, não é verdade? O barroco já é “alegre” em comparação com a arquitetura gótica; o gótico tem uma coisa algo sinistra, algo soturna. Porque o gótico se baseia numa visão espacial que tende à metafísica, à verticalidade. As formas arquitetônicas do gótico parecem buscar aquele céu metafísico e ao mesmo tempo há uma mistura de pecado e de demoníaco naquele espaço meio obscuro. E aqueles demônios de fora da igreja você vê saindo assim, sendo expulsos. Nas igrejas de Paris há quantidade desses demônios que são expulsos pelas paredes, com aquelas gargantas, aqueles pescoços de demônio que estão sendo expulsos do espaço sagrado do templo. Isso no templo gótico. Mas no templo barroco não existe nada disso.

Há uma outra coisa, e é sobre essa coisa que eu queria falar agora. Pode tirar esse slide e acender a luz.

Nós estamos falando aqui exatamente do olhar. Mas então esse espaço barroco, esse espaço operístico, esse espaço inquieto, ao contrário do espaço renascentista, esse espaço que tem nele o efêmero, que tem nele o eventual — esse espaço expressa uma visão de mundo, uma transformação na visão de mundo do homem dessa época. Se eu não me engano é em 1610 que Copérnico descobre que a Terra não é o centro do sistema, não é o centro do Universo. Ele descobre que, pelo contrário — e depois Galileu, em seguida, em 1650 se não me engano, por aí, vai comprovar com a luneta o movimento dos corpos celestes, e se configura então uma visão nova que é a seguinte: a Terra não é o centro do Universo; ela é apenas um dos planetas que giram em torno do Sol, que é o centro do sistema. Então nós saímos da posição de centro do mundo para ser apenas uma parte, deixamos de ser o centro privilegiado para ser uma coisa instável que roda em torno de outra. Isso vai atingir a teologia. Começam a surgir as dúvidas: será que de fato o ser humano é este ser privilegiado que Deus criou como sua suprema obra, o ápice da natureza? Pois bem, é este homem, que não é mais o centro do Universo e que não tem mais certezas definitivas, que cria o espaço barroco. Por isso nesse espaço não cabe tudo. A segurança da Renascença de pôr tudo dentro do quadro, de dominar a realidade, expressa uma visão do mundo, de senhor do mundo, de quem está com tudo. O outro já não põe tudo dentro do quadro porque ele já sabe da relatividade do espaço e de sua visão, embora ainda não a. tenha conceituado, ainda não surgira Einstein.

Os rumores de uma nova compreensão da realidade que já se faz presente, esta inquietação, esta insegurança movimentam o espaço barroco. Porque coincidentemente se a Terra não é o centro do sistema e nem ela está rodeada por esferas fixas, mas, pelo contrário, há um espaço infinito onde esses corpos celestes estão girando e não se sabe que tamanho tem esse espaço, então estamos diante de uma realidade angustiante, de uma realidade inquietante, que vai explodir na célebre frase de Pascal: “O silêncio eterno desses espaços infinitos me assusta”. É esse espaço infinito, é esse espaço móvel, que o homem já não governa, que gera o espaço barroco. E o trompe-loeil, a ilusão, é a tentativa de buscar nesse espaço angustiante algo que o transcenda; então busca-se a ilusão como uma forma de, sem poder mais negar a nova realidade, criar uma nova fantasia, a fantasia possível dentro de um espaço real que não se pode negar nem, tranquilamente, assimilar.

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