1987

Benjamin: política e paixão

por Katia Muricy

Resumo

Em suas análises sobre a modernidade e, em especial sobre a obra poética de Baudelaire, Walter Benjamin aproxima paixão e política.

No mundo moderno, apegado a formas culturais que não acompanham as transformações e que se recusam a representar a realidade impositiva da mercadoria, há um desequilíbrio que determina uma constante expressão do velho no novo e constrói fantasmagorias. Para Benjamin, a imagem do Eterno Retorno do Mesmo permite representar os elementos específicos da modernidade. O mundo dominado por suas próprias fantasmagorias é a repetição do Mesmo. Que a morte, a transitoriedade sejam a sua paixão e beleza, explica-se na eternidade dessa repetição

Na produção capitalista, as mercadorias são esvaziadas de seus conteúdos concretos e tornam-se fetiches em um processo onde a novidade do produto é de extrema importância assim como a exigência de sua repetição em uma produção de massa. Diversos fenômenos da vida moderna se estruturam da mesma forma, na mesma repetição do Idêntico.

A moda, por exemplo, é uma forma do Idêntico na aparência da novidade. A reprodução fotográfica e fílmica é uma outra aparição do Mesmo. No entanto, a invenção dessas técnicas redimensionará as formas de arte tradicionais e o próprio conceito de obra de arte.

Na poesia de Baudelaire, considerada como alegoria, Benjamin encontrará a melhor manifestação das fantasmagorias do Segundo Império. Na alegoria, a significação importa mais do que a beleza. Nesse sentido, a alegoria é constitutiva da criação moderna. Obras alegóricas também têm afinidades com a crítica: elas se oferecem à crítica como ocasião de revelação de sua verdade. Assim, obras alegóricas só são belas na medida em que contêm uma verdade digna de ser objeto do conhecimento.

Se a modernidade é o “inferno do Mesmo”, ela é também a possibilidade, para os homens, de se libertarem do mito que caracteriza a História. A política é a via que permite essa liberação. A compreensão da política em Benjamin pode ser compreendida pela elevada opinião que ele faz de Auguste Blanqui, líder da revolução de 1848.

Para Benjamin, o impulso de felicidade da humanidade, tema insistente da obra de Proust, nos remete ao passado pois a imagem de felicidade relaciona-se à época a que pertencemos e que nos escapa. A nossa promesse de bonheur constrói-se com o passado. É o que poderia ter sido que mobiliza o nosso desejo.

Libertar-se da História é livrar-se do Mito. A modernidade, exacerbando a repetição do Mesmo, traz para a cena os mitos arcaicos que a Antiguidade figurara e o Iluminismo disfarçara. Entre esses, a História entendida como telos. A política como promesse de bonheur é astúcia e arrogância; é ela a paixão que pode nos arrancar do círculo do Mesmo e, nas ruínas da História, enfrentar o Mito.


A modernidade tem as suas paixões particulares. Em Baudelaire, são elas que particularizam o conteúdo de beleza presente na vida moderna. A relação entre a paixão e a política pode ser feita, em Walter Benjamin, no horizonte de sua análise sobre a modernidade e, em especial, sobre a obra poética de Baudelaire. É uma dessas paixões modernas que animam o poeta em um dos mais famosos poemas de As flores do mal, o soneto “A uma passante”. Neste poema, “o amor se reconhece como estigmatizado pela cidade grande”:[1]

A rua ensurdecedora urrava ao meu redor.

Alta e esbelta, toda de luto, majestosa na dor,

Uma mulher passou, a mão vaidosa

Erguendo, balançando a bainha e o festão.

Ágil e nobre, com pernas de estátua.

Eu, crispado como um extravagante, bebia

No seu olho, lívido céu que gera o furacão,

A doçura que fascina e o prazer que mata.

Um clarão… e a noite depois! — Fugidia beleza,

De olhar que me fez renascer,

Será que só te verei de novo na eternidade?

Tão longe daqui! Tão tarde! Talvez nunca!

Pois ignoro para onde vais e não sabes para onde vou.

Ó tu que eu teria amado, ó tu que sabias disto.[2]

A massa urbana aparece no poema como condição de existência do amor do poeta. A aparição da mulher se dá como um choque, os muitos a que se submete a percepção do citadino. Não se trata de um envolvimento romântico, no qual um tempo mais lento constituiria a paixão. É, antes, a crispação de um desejo súbito, imperioso. O tema real do soneto seria, para Benjamin, o da “função da massa na existência do erótico”. A paixão que nasce desse encontro, quase um esbarrão no tumulto da rua, tem o seu ponto alto no “talvez nunca”. Oferecida e subtraída pela multidão, a passante desperta no solitário citadino um amor que, segundo a admirável fórmula de Benjamin, não é mais à primeira vista: mas à última vista. O amor à última vista tem no que poderia ser tomado como a sua frustração — a perda da amada — a condição de sua existência. A fugidia e anônima beleza faz renascer e mata, aparece e já se perde. É um instantâneo erótico.

A mulher que apaixona o poeta está vestida de preto. Na época de Baudelaire, o preto é a cor da moda. No seu texto de crítica artística sobre o salão de 1846, o poeta indicara a conveniência das roupas pretas como expressão da “estrutura espiritual pública, representada por uma infinda procissão de papa-defuntos: papa-defuntos políticos, papa-defuntos eróticos, papa-defuntos particulares”. Também porque, acrescenta, “nós todos sempre temos algum enterro pela frente…”.[3]

No encontro erótico do poema, o momento da sedução — proporcionado pela massa que permite a ousada troca de olhares anônimos — é também o momento da despedida: “ignoro para onde vais e não sabes para onde vou”.

Esse aspecto de transitoriedade é a marca moderna do belo. Descrevendo, em tom de manifesto, o “pintor moderno”, Baudelaire refere-se a Constantin Guys: “Ele buscou por toda parte a beleza transitória, fugaz, da nossa vida presente. O leitor nos permitiu chamá-la de modernidade”.[4]

Entre as paixões modernas, uma esclarece, na sua expressão radical, esse conteúdo de transitoriedade. Mais do que isto, é a paixão própria da modernidade: o suicídio. “A modernidade, escreve Benjamin, deve estar sob o signo do suicídio, que sela um querer heroico que não faz concessões à atitude que lhe é hostil. Tal suicídio não é desistência, mas heroica paixão. É a conquista da modernidade no âmbito das paixões.”[5]

Baudelaire, na sua teoria do moderno, indicara como o suicídio, a “paixão particular da vida moderna”, de exceção na Antiguidade, passa, na modernidade, por uma sinistra democratização.[6] Contemporâneo das teorias do poeta foi o fascínio pela ideia do suicídio nas massas trabalhadoras urbanas. É este fascínio que explica, nos exemplos de Benjamin, a popularidade de uma litografia da época representando o suicídio de um operário inglês desempregado. Ou o apuro dramático do operário que se enforca na casa de Eugène Sue, deixando a explicação que escolhera morrer na casa de quem sempre defendera os trabalhadores. Ou, ainda, o exemplar suicídio de Adolphe Boyer, um tipógrafo que lutara para que as antigas corporações de artesãos itinerantes se organizassem em modernas associações de operários. Sem êxito, este representante e vítima da modernidade suicida-se exortando, em uma carta aberta, seus companheiros a lhe seguir o exemplo.

A suposição de W. Benjamin de que a modernidade esteja sob o signo do suicídio ultrapassa a eloquência desses testemunhos. Ela se explica no uso que faz da categoria do Mesmo, em sua análise da modernidade. Categoria fundamental de sua reflexão, ela lhe permite representar os elementos específicos da modernidade na imagem de um Eterno Retorno do Mesmo. Assim vista, a humanidade está condenada à danação: “Tudo o que ela pode esperar como novo se revelará como sendo uma realidade já desde sempre presente”.[7]

Se o mundo moderno é, por um lado, o mundo da revolução tecnológica e o da liquidação das formas tradicionais da cultura, é também, por outro lado, o mundo do desencontro fatal entre esse desenvolvimento da técnica e uma ordem social que não se renova. É um mundo que se agarra a formas culturais que já não acompanham as transformações pelas quais passa e que se recusa a representar a realidade impositiva da mercadoria. Esse desequilíbrio determina uma constante e intercambiável expressão do velho no novo: a construção de fantasmagorias.

O mundo dominado por suas próprias fantasmagorias é a repetição do Mesmo, ou seja, a modernidade. Que a morte, a transitoriedade sejam a sua paixão e beleza, explica-se na eternidade dessa repetição: “A humanidade estará presa a uma angústia mítica enquanto houver nela lugar para a fantasmagoria”.[8]

A análise da modernidade em Benjamin considera a ação do fetichismo da mercadoria sobre a imaginação e sobre o pensamento. O que lhe interessa não é a origem econômica desse fetichismo; é a reação dos homens à modernidade que eles produziram. É a dialética da experiência no momento da destruição das tradições milenares pelo dinamismo do capitalismo moderno.

Segundo Benjamin, os escritores, os artistas, não reagem imediatamente às transformações da sociedade, mas sim àquelas da estrutura da experiência. A experiência aparece como um conceito de mediação entre a estrutura econômica da sociedade e a criação artística.[9]

Na modernidade, ocorre uma ruptura da experiência, entendida como tradição. “É verdade, escreve Baudelaire, que se perdeu a grande tradição e que a nova ainda não foi feita.”[10]

Esta análise da modernidade sob a categoria do Mesmo é, propriamente, uma “teologia do inferno”: “Trata-se de ver que a face do mundo, precisamente no nível da última novidade, permanece o Mesmo em todas as coisas. Esta é a lei da eternidade do inferno. Determinar a totalidade dos traços nos quais se grava a modernidade equivaleria a representar o Inferno”.[11]

Na produção capitalista de mercadorias, diferentes valores de uso se tornam idênticos no valor-preço. Esvaziados de seus conteúdos concretos, tornam-se fetiches em um processo onde a novidade do produto adquire uma inusitada importância, só comparável à exigência de sua repetição em uma produção de massa. Diversos fenômenos da vida moderna se estruturam da mesma forma, na mesma repetição do Idêntico. A “massa” ou a “multidão”, acontecimento moderno que corresponde ao desaparecimento histórico do indivíduo diferenciado, é um exemplo. A compreensão moderna de indivíduo resulta mais da atomização da massa pelas técnicas de controle: o indivíduo que se constitui aí é o número do documento de identidade, a ordem do Mesmo.

A moda é outra forma, e eloquente, do Idêntico na aparência da novidade. Também o trabalho mecânico feito por gestos, por movimentos sempre iguais, admiravelmente representado na coreografia proletária de Metrópolis ou na patética comicidade de Chaplin dos Tempos modernos. Mais radicalmente, e de forma inevitável, a modernidade acalenta o Mesmo na neurose, “o artigo de massa na economia psíquica”.[12] Na teoria do Eterno Retorno de Nietzsche e de A. Blanqui, Benjamin vê transportar-se para o cósmico a categoria do Mesmo, quando a própria História se torna um artigo de massa.[13] A noção de progresso — objeto da crítica definitiva de Benjamin nas famosas teses sobre o conceito de História — esconderia essa condição de repetição do Mesmo, com benefícios para uma estratégia política fundamentalmente conservadora.

A reprodução fotográfica e fílmica é uma outra aparição do Mesmo. No entanto, a invenção dessas técnicas redimensionará as formas de arte tradicionais e o próprio conceito de obra de arte. Nelas, se rompe a unicidade da experiência que definia a beleza da obra de arte aurática. Fotografia e cinema, reproduzindo pessoas, coisas e acontecimentos, num tempo atomizado, elaboram a nova percepção moderna, sob o modelo do choque. Cortes, aproximações, acelerações: o olhar natural submete-se à máquina que lhe abre insondáveis perspectivas.

É nas produções estéticas, nas novas formas artísticas derivadas do desenvolvimento tecnológico que Benjamin encontrará a expressão de verdade da época moderna. Mas é, em especial, a poesia de Baudelaire, chave que encontra na leitura de Benjamin a sua fechadura, que abrirá as portas para a compreensão crítica da modernidade. Aí o conceito de modernidade ganha uma aparente ambivalência que enriquecerá a sua análise. A modernidade não é só a repetição do idêntico. Na estética, para Benjamin, ela é a consciência dos artistas que a expressam criticamente.

Na segunda metade do século XIX, início da modernidade para Benjamin, ocorre uma tensão entre o desenvolvimento das forças produtivas e das técnicas, por um lado, e, por outro, a cultura que não acompanha este desenvolvimento e que volta as costas à realidade do mercado: “(seus) produtos estão a ponto de serem encaminhados ao mercado como mercadorias. Mas eles ainda vacilam no limiar”.[14]

No espaço dessa vacilação, Benjamin desenha as figuras que irão representar a fantasmagoria poética de Baudelaire, expressão crítica da modernidade: o flâneur, o herói, a boêmia. Essas figuras encarnam as paixões modernas e são também as transfigurações do poeta em Baudelaire. O flâneur é o desocupado: ele se permite não fazer nada em um mundo onde o privilégio do ócio não é mais reconhecido sequer na classe dirigente, que se afana nos negócios. Não se submetendo às exigências de horários, o flâneur é uma figura essencialmente transgressora: o seu passeio, ao sabor da imaginação e do desejo, é uma manifestação não intencional contra o tempo da indústria. Além disso, o flâneur também se recusa aos deveres do consumidor. Ele não vai “às compras”. Perambula pelas Passagens, embriagado pela multidão produtiva.

A arquitetura das Passagens parece ter sido criada para a flânerie; a importância deste espaço é decisiva em Benjamin, que faz da Passagem uma imagem dialética da Paris oitocentista. As Passagens, ao mesmo tempo que anunciam as grandes lojas, transformam a rua em interior: procuram familiarizar o homem, segundo Benjamin, com o universo glacial das mercadorias: passagem para a modernidade.

A literatura chamada “fisiologia”, de grande sucesso na época, tem a mesma função. As “fisiologias”, classificando os homens da rua em tipos originais, pitorescos, procuravam dissimular a angústia moderna diante da uniformização das multidões e, mais fundamentalmente, esconder a hostilidade básica nas novas formas de relação entre os homens, determinadas pela concorrência.

A cidade se torna, sob a concorrência cada vez mais aguda, um terreno de caça. Um conhecimento especial dos tipos citadinos é condição para a sobrevivência. É nesse contexto, o mesmo que organiza, com o saber estatístico, o controle da população, que Benjamin explica o nascimento, com E. A. Poe, da novela policial. Este novo gênero literário tem como condição de possibilidade a presença das grandes massas urbanas. Seu sucesso, ao contrário da apaziguadora literatura dos fisiologistas, está ligado a sua expressão dos “aspectos inquietantes e ameaçadores da vida citadina”, onde a multidão é vista como o “asilo do criminoso”.

Mas a multidão não é só o asilo do proscrito ou do erotismo moderno; ela é também o narcótico do flâneur. Benjamin não deixa dúvidas quanto à natureza dessa embriaguez: “a embriaguez na qual o flâneur se abandona é a da mercadoria levada pela torrente dos fregueses”.[15]

O flâneur, que não é o consumidor, identifica-se com a mercadoria; nela ele se encarna “como estas almas errantes que procuram um corpo”, de que fala Baudelaire.[16]

Não distinguindo o seu lugar na economia de mercado, não compreendendo a sua força de trabalho como mercadoria, o artista “entra em empatia” com a mercadoria, confunde-se com ela. Ao desconhecer esta “natureza mercantil da sua força de trabalho”, o artista protela a sua ida ao mercado e faz disto um prazer, mas no caminho vende-se como a prostituta: “Esta santa prostituição da alma que se dá inteiramente, toda poesia e caridade, ao imprevisto que se mostra, ao desconhecido que passa”.[17]

É no contexto do heroísmo que Baudelaire irá situar as paixões modernas. É a partir delas que ele define a beleza moderna e esta se articula com o épico. Há um “lado épico da vida moderna”, das paixões propriamente citadinas, que os artistas seus contemporâneos não enxergam: “O espetáculo da vida mundana e de milhares de existências desordenadas que vivem nos subterrâneos de uma cidade grande — dos criminosos e das prostitutas —, a Gazette des Tribunaux e o Moniteur provam que apenas precisamos abrir os olhos para reconhecer o heroísmo que nos é peculiar”. [18]Escapa aos contemporâneos do poeta a expressão da beleza moderna, esta “beleza particular inerente às novas paixões”. No texto do Salão de 1845, Baudelaire anuncia o “verdadeiro pintor”: o que “saberá arrancar o lado épico da vida atual, e nos fará ver e compreender, com linhas e cores, como somos grandiosos e poéticos em nossas gravatas e em nossas botas de verniz”.[19]

É na imagem de herói que Baudelaire decalca a sua imagem de artista. Descrito como um “solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando pelo grande deserto de homens”, o artista moderno deverá “extrair da moda o que ela pode conter de poético no histórico; arrancar o eterno do transitório”.[20]

A imagem da modernidade se mistura à da Antiguidade em Baudelaire. A modernidade deve ser valorizada para que, um dia, ela se tome Antiguidade Clássica. Tal é o objetivo, para o poeta, das artes. Se a beleza moderna é, pela expressão das paixões citadinas, particularização de algo eterno e absoluto, este absoluto está na Antiguidade.

Para viver a modernidade é preciso, portanto, ser um herói antigo e nada se aproxima mais da tarefa do herói antigo do que a de dar forma à modernidade. Mas, nas suas várias faces modernas — o proletário, o suicida, o dândi, a prostituta, o apache —, o que encontramos é, antes, um papel de herói. A heroicidade moderna é paródica; o épico é aí um desempenho do papel de herói. Na modernidade heroica, tomada como um drama barroco (Trauerspiel), distribuem-se os papéis do herói.

Não é na teoria da modernidade de Baudelaire, contudo, que Benjamin irá encontrar a melhor manifestação das fantasmagorias do Segundo Império. É na sua poesia, considerada como alegoria.[21]

É na Origem do drama barroco[22] que Benjamin estuda explicitamente essa categoria fundamental do seu pensamento. Com o conceito de alegoria, pretendia forjar um “conceito paralelo e corretivo do conceito de símbolo”, dominante na estética desde o romantismo. O símbolo, como conceito totalizante, harmonizava, no belo, o moral; na estética, o ético. A essa totalidade orgânica do símbolo, a alegoria opõe os fragmentos sem forma de sua escrita. Ela apresenta a face mórbida da História, no que esta comporta de doloroso e de falho. Na alegoria, a significação importa mais do que a beleza; ela mantém afinidades com a destruição da aura na sua recusa da bela aparência, da harmonia, da totalidade acabada. Nesse sentido, a alegoria é constitutiva da criação moderna. Obras alegóricas também têm afinidades com a crítica: elas se oferecem à crítica como ocasião de revelação de sua verdade. Assim, obras alegóricas só são belas na medida em que contêm uma verdade digna de ser objeto do conhecimento. O artista, como alegorista, é um teórico em potencial.

“A visão alegórica se funda sempre sobre um mundo fenomenal desvalorizado.” Essa desvalorização tem causas e formas particulares. O sentimento que corresponde à experiência moderna de desvalorização do mundo fenomenal, o sentimento de catástrofe permanente, é o spleen. A resposta a esse sentimento é a melancolia heroica de Baudelaire: sua poesia como a “mímese da morte”, de que fala Benjamin. Nessa alegoria moderna, a figura-chave é a lembrança: “Tenho mais lembranças que se tivesse mil anos”, escreve o poeta.

A “mímese da morte” é a expressão radical do sentimento de transitoriedade, pelo qual o moderno é aproximado do antigo. Benjamin nos fornece a imagem espacial dessa proximidade: a Paris destruída pelas reformas urbanas de Haussmann, revelando em suas ruínas a “caducidade da grande metrópole”. Como a passante que suscitara, em um só movimento, a paixão e a perda, a edificação da moderna Paris revela a morte em seus escombros: “A modernização da cidade faz aparecer sua antiguidade e torna Paris alegórica”.[23]

No poema “O cisne”, a melancolia do poeta diante de Paris em ruínas encontra sua forma clássica: sua angústia é a de Andrômaca na Troia destruída. Na velha Paris destruída, nas obras das novas avenidas que se abrem, revelam-se a antiguidade e a verdade do moderno: a catástrofe, a morte.

Paris mudou! porém minha melancolia

É sempre igual: torreões, andaimarias, blocos,

Arrabaldes, em tudo eu vejo alegoria,

Minhas lembranças são mais pesadas que socos.[24]

Na construção destas alegorias, Baudelaire calcula cada efeito da linguagem, do ritmo, da versificação. Nela ele faz irromper inesperadas palavras prosaicas, imagens banais do cotidiano; a sua técnica é, para Benjamin, a do conspirador: surpresa, agilidade, choque.

Baudelaire participa daquele pathos rebelde dos conspiradores profissionais, elementos que Marx encontrou na boêmia parisiense. Nas anotações de seu diário, Baudelaire registra suas impressões da revolução de 1848: “Minha embriaguez em 1848. De que natureza era esta embriaguez? Gosto da vingança. Prazer natural da demolição […] O 15 de maio. Ainda o gosto da destruição. Gosto legítimo se tudo o que é natural é legítimo. Os horrores de junho. Loucura do povo e loucura da burguesia. Amor natural do crime”.[25] Essa postura de Baudelaire exemplifica o que Benjamin chama de “metafísica do provocador”, com sua peculiar estrutura psíquica: “Essa raivosa ira — la rogne —, esse rancor havia sido a estrutura psíquica que alimentara meio século de lutas de barricadas nos conspiradores profissionais de Paris…”[26]

É a paixão — a ira, o rancor — que alimenta o trabalho de levantar barricadas, exemplo que Benjamin dá, citando Fourier, de “trabalho não assalariado mas apaixonado”. A construção de barricadas é a apropriação do espaço urbano pela população rebelada. Mais do que isto, é a transgressão de uma ordem, que inscreve espacialmente a dominação, e a criação de uma nova ordem em um espaço de resistência. “A barricada está, de fato, entre os traços permanentes do movimento conspiratório. Tem para si a tradição revolucionária.”[27]

É no contexto da boêmia conspiradora que comparece a figura de Auguste Blanqui, na análise da modernidade de Benjamin. A elevada opinião que ele faz do líder da revolução de 1848 nos introduz na compreensão da política em Benjamin.

Se a modernidade é o “inferno do Mesmo”, ela é também a possibilidade, para os homens, de se libertarem do mito que caracteriza a História. Permite também aos homens libertarem–se da herança cultural como fardo imobilizante das possibilidades criativas do presente, para a apropriação de seus valores com vista às necessidades deste presente.

A política é a via que permite essa liberação. Em última instância, a política é uma categoria teológica em Benjamin: “Arrancar a política das malhas do mundo profano” é a tarefa revolucionária.

Esse conteúdo teológico se esclarece pela valorização da questão da felicidade, tema inabitual na tradição da filosofia política e decisivo no pensamento político de Benjamin. Encontramo-lo no Fragmento político-teológico, como um imperativo da História: “A ordem do profano deve se erigir sobre a ideia de felicidade”.[28] Encontramo-lo também como critério para a avaliação do progresso das transformações históricas. Mais do que isto, a felicidade, como aspiração, é o fator indispensável para a ação política. Se a luta de classes é pela garantia da subsistência ou do conforto, pela liberdade, somente o desejo de felicidade pode mobilizá-la.

A política se erige sobre a ideia de felicidade e esta não é o reino de deus ou a sua promessa; é uma categoria de aproximação do reino no presente, sob a marca da fugacidade. “O reino de Deus não é o telos da dynamis histórica; ele não pode ser proposto como sua meta.”[29]

O messiânico em Benjamin é tomado em um sentido muito específico. Sua compreensão articula-se com a ideia de acaso, de fugacidade: a natureza é o seu modelo. “A natureza é messiânica por sua eterna e total fugacidade.”[30]

Assim, o Messias se anuncia no processo histórico; ele é, antes, a metáfora do acaso.

A humanidade possui este “dilacerante e explosivo impulso de felicidade” que Benjamin encontrou como o tema insistente da obra de Proust.[31] É este impulso de felicidade que nos remete ao passado, pois a imagem de felicidade relaciona-se à época a que pertencemos e que nos escapa. A nossa promesse de bonheur constrói-se com o passado. Somos incapazes de invejar o futuro. É o que poderia ter sido que mobiliza o nosso desejo. A experiência de felicidade, a “iluminação profana” está vinculada à salvação do passado. A tarefa da política “arrancada das mãos profanas” não é a de construção do futuro, mas a de apropriação do passado — em função do presente. Trocar o olhar histórico sobre o passado por um olhar político supõe o abandono da compreensão da História como um processo inteligível e a adoção de uma visão trágica do tempo.

Libertar-se da História é livrar-se do Mito. A modernidade, exacerbando a repetição do Mesmo, traz para a cena os mitos arcaicos que a Antiguidade figurara e o Iluminismo disfarçara. Entre esses, a História entendida como telos.

A sagacidade do Messias — esta irrupção do acaso — é enfrentar esses mitos como paródias, tomando a História como uma narrativa cujo sentido é dado pelo narrador, segundo as necessidades do presente. A política como promesse de bonheur é astúcia e arrogância; é ela a paixão que pode nos arrancar do círculo do Mesmo e, nas ruínas da História, enfrentar o Mito, como os pequenos heróis dos contos de fada: “O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância. O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado. O adulto só percebe essa cumplicidade ocasionalmente, isto é, quando está feliz; para a criança, ela aparece pela primeira vez no conto de fadas e provoca nela uma sensação de felicidade.”[32]

[1] Benjamin, Walter, Das Paris des Second Empire bei Baudelaire e Über einige Motive bei Baudelaire, in Gesammelte Schriften I, 2, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1977, pp. 511 e 605. Traduções adotadas: A Paris do Segundo Império em Baudelaire, de Flávio R. Kothe, in Walter Benjamin, São Paulo, Ática, 1985; Sur quelques thèmes baudelairiens, de Maurice de Gandillac, in Poésie et révolution, Paris, Denoël, 1971, e Sobre algunos temas en Baudelaire, de Jesús Aguirre, in Poesia y capitalismo, Madri, Taurus, 1980.

[2] “La rue assourdissante autour de moi hurlait./ Longue, mince, en grande deuil, douleur majestueuse,/ Une femme passa, d’une main fastueuse/ Soulevant, balançant le feston et l’ourlet;/ Agile et noble, avec sa jambe de statue./ Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,/ Dans son oeil, ciel livide où germe l’ouragan,/ La douceur qui fascine et le plaisir qui tue./ Un éclair puis la nuit! Fugitive beauté/ Dont le regard m’a fait soudainement renaítre,/ Ne te verrai-je plus que dans l’éternité?/ Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être!/ Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,/ Ô toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais!

[3] Baudelaire, Charles, Critique artistique, Le salon de 1846, in Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard, 1961 (col. Pléiade).

[4] Baudelaire, Charles, L’artiste moderne, in Oeuvres Complètes.

[5] Benjamin, Walter. A Paris do Segundo Império em Baudelaire, op. cit.

[6] Baudelaire, Charles. De l’héroïsme de la Vie Moderne in Oeuvres Complètes. Os exemplos de Benjamin sobre a democratização do suicídio aparecem no referido A Paris do Segundo Império em Baudelaire.

[7] Benjamin, W., GS, V, v. 1, 1982, p. 61.

[8] Idem, ibidem.

[9] A noção de experiência (Erfahrung) é uma das noções capitais da teoria da cultura de Benjamin. A ela se junta a noção de vivência (Erlebnis). A experiência está relacionada à memória, individual e coletiva, ao inconsciente, à tradição. A vivência relaciona-se à existência privada, à solidão, à percepção consciente, ao choque. Nas sociedades modernas, o declínio da experiência corresponde a uma intensificação da vivência. Cf. o citado Sur quelques thèmes baudelairiens e Der Erzähler, O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskow, trad. de Sérgio Paulo Rouanet, in Walter Benjamin. Obras escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1985.

[10] Baudelaire, Charles. De l’héroïsme de la Vie Moderne, in Oeuvres Complètes.

[11] GS, v, 2, p. 676, 1982.

[12] GS, I, 2, p. 662.

[13] A análise do texto de Blanqui, L’eternité par les astres, descoberto por Benjamin em 1937, encontra-se em GS, v, 1, pp. 76-7.

[14] Benjamin, Walter. Paris, die Hauptsdadt des XIX Jahrhunderts. Paris, capital do século XIX, trad. de Flávio R. Kothe, in Walter Benjamin, São Paulo, Ática, 1985.

[15] Benjamin, Walter. Paris do Segundo Império, op. cit.

[16] Baudelaire, Charles. Oeuvres Complètes.

[17] Idem, ibidem.

[18] Idem, ibidem.

[19] Idem, ibidem.

[20] Idem, ibidem.

[21] Benjamin pretendia escrever um capítulo introdutório a estes que compõem Paris do Segundo Império em Baudelaire e que seria chamado de Baudelaire Alegorista. Deveria também escrever um capítulo final, “A mercadoria como objeto poético”. Os fragmentos de Central Park os manuscritos das Passagens podem reconstituir essas intenções. Cf. Rainer Rochlitz: “Walter Benjamin — Une Dialectique de l’Image”, Critique, 1982.

[22] Benjamin, Walter. Ursprung des Deutschen Trauerspiels; A origem do drama barroco alemão, GS, I, 1, p. 203, trad. de Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1984.

[23] Benjamin, Walter. Paris do Segundo Império, op. cit.

[24]Paris change! mais rien dans ma mélancolie/N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs/ Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie/ Et mes chers souvenirs plus lourds que des rocs”. Trad. de Jamil Almansur Haddad in As flores do mal, Difel, 1964.

[25] Baudelaire, Charles, Mon Coeur Mis à Nu in Oeuvres Complètes.

[26] Benjamin, Walter, A Paris do Segundo Império em Baudelaire, op. cit.

[27] Idem, ibidem.

[28] Benjamin, Walter, GS, II, v. 1, p. 203. Fragment Théologique-Politique, trad. de Maurice de Gandillac in Mythe et Violence, Paris, Denoël, 1971.

[29] Idem, ibidem.

[30] Idem, ibidem.

[31] Benjamin, Walter, Zum Bilde Prousts, GS, II, v. 1, p. 310; A imagem de Proust, trad. de S. P. Rouanet in Walter Benjamin, Obras escolhidas.

[32] Benjamin, Walter. Der Erzähler, GS, II, v. 2, p. 438, O narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskow, trad. de S. P. Rouanet, in Walter Benjamin, Obras escolhidas, São Paulo, Brasiliense, 1985.

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