2003

Bioética e manipulação da vida

por Volnei Garrafa

Resumo

Neste início do século XXI está configurada a possibilidade de a técnica vir a dominar o mundo, a sociedade e a natureza sem mediação científica, anulando os conflitos sociais. O assombroso desenvolvimento da engenharia genética e outros avanços tecnocientíficos alteraram o curso da história que, construída com narrativas longas vindas do Antigo Testamento, vem sendo gradativamente substituída por narrativas curtas, fragmentadas. Desautorizando teorias sobre o fim da história, a reprodução assistida, a clonagem, e a transgenia, entre outras descobertas, (re)iniciaram narrativas, recriaram fatos, nos devolveram uma nova história.

Dentro deste contexto, no entanto, a humanidade não pode permitir que a tecnologia venha a tornar-se eticamente submissa ou histericamente dominadora. Aquilo que deve ser evitado a todo custo precisa ser determinado exatamente pelo que deve ser preservado a todo custo, Uma filosofia da natureza deve articular o é cientificamente válido com o deve das injunções morais. Entre os grandes problemas práticos da bioética está a dificuldade de trabalhar as relações entre a certeza do que é benéfico e a dúvida sobre os limites, sobre o que deve ser controlado e, principalmente, como essas coisas devem ser controladas. E é exatamente nessa fronteira, tremendamente insegura, que conta com tão pouca iluminação moral para levar-nos às certezas, que se situam os campos da prudência e da responsabilidade.

Resta-nos, então, dirigir nosso fazer pelos estreitos limites entre o necessário e o possível. O grande nó relacionado com a questão da manipulação da vida humana e planetária, portanto não está na utilização em si de novas tecnologias ainda não assimiladas moralmente pelas sociedade, mas no controle dessas novidade. Apesar de o diálogo entre todas partes envolvidas ser necessário e possível, esse controle deve dar-se em patamar diferente dos planos técnico e/ou científico. O controle é ético. Por esta razão, a chamada ética prática ou aplicada, por meio da bioética, torna-se cada dia mais relevante.


Os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico e tecnológico nos campos da biologia, da saúde e da vida, de um modo geral, principalmente nos últimos trinta anos, têm colocado a humanidade diante de situações até há pouco tempo inimagináveis. São diárias as notícias provenientes das mais diferentes partes do mundo relatando a utilização de novos métodos investigativos ou de técnicas desconhecidas, a descoberta de medicamentos mais eficazes, o controle de doenças tidas como fora de controle. Se, por um lado, todas essas conquistas trazem na sua esteira renovadas esperanças de melhoria da qualidade de vida para as sociedades humanas, por outro, criam uma série de contradições que necessitam ser analisadas responsavelmente, visando não só ao equilíbrio e ao bem-estar futuro da espécie como à própria sobrevivência do planeta.

Hans Jonas[1] foi um dos filósofos que se debruçaram com mais propriedade sobre esse tema, ressaltando a impotência da ética e da filosofia contemporâneas ante o homem tecnológico, que possui tantos poderes não só para desorganizar como também para mudar radicalmente os fundamentos da vida, para criar e destruir a si próprio. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que gera novos seres humanos por meio do domínio de técnicas cada dia mais complexas de reprodução assistida, agride diariamente o meio ambiente do qual depende a manutenção futura da espécie. O surgimento de novas doenças infecto-contagiosas e de diversos tipos de câncer, assim como a destruição da camada de ozônio, a devastação de florestas e da biodiversidade, além da persistência de velhos problemas relacionados com a saúde dos trabalhadores (como a silicose, por exemplo), são invenções desse mesmo “homem tecnológico”, que oscila suas ações entre a criação de novos benefícios extraordinários e a insólita destruição de si mesmo e da natureza.

Além do tema da ética da responsabilidade (científica, social e planetária), dentro das preocupações que envolvem o presente contexto é indispensável que sejam enfocados ainda os problemas que se relacionam com os “limites da ciência”, bem como a questão da “equidade”, assunto cada dia mais momentâneo no mundo dito “globalizado”.

Assim, os temas da ética da responsabilidade, dos limites da manipulação da vida e da equanimidade na distribuição dos benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico são imprescindíveis à pauta de discussões deste início de milênio. Nesse sentido, o presente estudo tratará de abordar o assunto, com base no marco conceitual da bioética, a partir dos seguintes prismas: a) manipulação da vida: limitar ou controlar? b) a ética da responsabilidade: científico-tecnológica, social e ambiental; c) a promoção da equidade, enfocada como “atenção diferenciada para os desiguais”.

Tanto a discussão sobre os “limites” ou o “controle” da manipulação da vida como a defesa de uma ética da responsabilidade e a busca da equidade no tratamento dos sujeitos sociais e do próprio biossistema são fundamentais para o bem-estar futuro da humanidade, seja na discussão sobre a descoberta e a utilização de novas técnicas e medicamentos no campo médico-biológico, seja no controle de alimentos e outros setores relacionados não somente com a saúde de pessoas e populações, mas também com a proteção ambiental e planetária.

O CONCEITO DE BIOÉTICA E A REALIDADE ATUAL

Inicialmente, é indispensável fazer um esclarecimento aos iniciados no assunto, sobre o estatuto epistemológico da bioética, uma vez que grande parte daqueles que têm utilizado essa expressão no Brasil o tem feito de forma errônea. A bioética não chegou pautada em proibições, limites ou vetos; e muito menos na necessidade imperiosa que alguns vêem de que tudo seja regulamentado, codificado, legalizado. Pelo contrário, baseada na multidisciplinaridade, na irreversível secularização dos costumes e na necessidade de respeito ao pluralismo moral constatado nas sociedades modernas, para ela, o que vale é o desejo livre, soberano e consciente dos indivíduos e das sociedades humanas, desde que as decisões não invadam a liberdade e os direitos de outros indivíduos e outras sociedades.[2]

A modernidade da bioética está, exatamente, em libertar-se dos paternalismos que se confundem com beneficência. Historicamente, a humanidade vem carregando o peso do maniqueísmo entre o “certo” e o “errado”, entre o “bem” e o “mal”, entre o “justo” e o “injusto”. Para a bioética laica, o que é certo, bem ou justo para uma comunidade moral não é bem, certo ou justo para outra, já que as moralidades (mores, costumes) podem ser diversas. Dessa maneira, em vez de pautar-se em proibições, vetos, limitações, normatizações ou mesmo em mandamentos, ela atua afirmativamente, positivamente. Para ela, portanto, a essência é a liberdade, porém, com compromisso, COM RESPONSABILIDADE.[3]

O neologismo bioética tornou-se internacionalmente reconhecido apenas em 1971, após uma publicação do cancerologista norte-americano Van Rensselaer Potter. Anteriormente, essa mesma palavra já havia sido mencionada por outros autores, mas por sua imprecisão conceitual inicial acabara caindo no esquecimento. O filósofo e bioeticista italiano Maurizio Mori considera que o renascimento da ética aplicada, aliado ao novo interesse pela moralidade do tratamento dispensado aos animais e pelos problemas da ética normativa em geral, representa um dos aspectos mais significativos da reflexão cultural dos últimos anos: “Nesse sentido, os anos 1970 parecem constituir um daqueles períodos históricos nos quais nasce alguma coisa de novo e a história se encontra diante de uma encruzilhada que pode levar a mudanças significativas”.[4]

Atualmente a bioética se apresenta como a procura de um comportamento responsável por parte daquelas pessoas que devem decidir tipos de tratamento, de pesquisa ou de outras formas de intervenção relativas à humanidade e ao próprio biossistema terrestre. Tendo descartado, em nome da objetividade, qualquer forma de subjetividade, sentimentos ou mitos, a racionalidade científica não pode — sozinha — estabelecer os fundamentos da bioética. Além da honestidade, do rigor científico ou da procura da verdade — pré-requisitos de uma boa formação científica —, a reflexão bioética pressupõe algumas questões humanas e planetárias que não estão incluídas nos currículos universitários.

No sentido amplo do conceito que se pretende dar à bioética, seus verdadeiros fundamentos somente podem ser encontrados por meio de uma ação multidisciplinar que inclua, além das ciências médicas e biológicas, também a filosofia, o direito, a antropologia, a ciência política, a teologia, a comunicação, a sociologia, a economia. A rapidez já referida dos avanços científicos e tecnológicos exigiu que as diversas áreas de conhecimento envolvidas com os fenômenos relacionados ao nascimento, à vida e à morte das pessoas, além das intervenções sobre a natureza, se adequassem à nova realidade.

Dentro desse novo contexto, a filosofia viu-se repentinamente obrigada a caminhar com agilidade compatível com a evolução dos conceitos e das descobertas e com as consequentes mudanças que passaram a se verificar no cotidiano das pessoas e coletividades. Parâmetros morais secularmente estagnados passaram a ser questionados e transformados, gerando a necessidade do estabelecimento de novos referenciais éticos que, por sua vez, requerem da sociedade também ordenamentos jurídicos pertinentes à nova realidade ante a ruptura da gasta polarização entre o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto…

Desse modo, estão se tornando cada dia mais frequentes e delicados os conflitos gerados entre o progresso biomédico, os direitos humanos e o equilíbrio planetário futuro. Em alguns momentos já tem sido rompido, até de forma inescrupulosa, o frágil limite que separa essas três situações. Com tudo isso cria-se uma série de distorções, como nas questões relacionadas à mercantilização de óvulos, esperma e úteros nas fecundações artificiais e à compra/venda de órgãos humanos em casos de transplantes. Nesses casos, invariavelmente, cidadãos pobres são os vendedores e pessoas com poder aquisitivo são as compradoras. Incontáveis exemplos também acontecem no campo da saúde pública, no qual recursos financeiros indispensáveis, de projetos que visam à sobrevivência de milhares de pessoas, são frequentemente desviados por políticos ou técnicos para atividades de importância secundária que não guardam nenhuma relação com as finalidades originais dos referidos projetos.

Todos esses variados temas, portanto, que vão desde os dilemas éticos que se colocam ao administrador de saúde ao repartir verbas insuficientes entre atividades impostergáveis até problemas gerados a partir da aplicação da tecnologia de ponta, são hoje objeto da bioética, que, em poucos anos de vida, ampliou substancialmente seu campo de estudo, ação e influência.

A discussão bioética surge, assim, para contribuir na procura de respostas equilibradas ante os conflitos deste novo milênio. Embora a bioética exija respostas pluralistas, para os países periféricos e pobres do hemisfério sul não é suficiente a aceitação acrítica das propostas, tampouco das amarras (ou limitações) conceituais sobre bioética vindas dos países centrais e ricos, onde as discussões giram preferencialmente em torno de avançadas situações-limite decorrentes do desenvolvimento da ciência e da tecnologia.[5] Temos o compromisso de aproveitar a abrangência e oportunidade que a bioética proporciona em se tratando de uma nova disciplina que estuda a ética das situações de vida, ampliando seu campo de influência teórica e prática desde as situações persistentes ou cotidianas (como a fome, o abandono, a exclusão social, a má distribuição de recursos escassos, o racismo, o tratamento discriminatório dispensado aos excepcionais, o aborto, a eutanásia…) até as situações emergentes, de limites ou de fronteiras (novas técnicas reprodutivas, engenharia genética, transplantes e doação de órgãos etc.).[6]

O atual contexto mundial, com crescente desequilíbrio entre as situações verificadas nos países do hemisfério norte (na maioria ricos) e nos do hemisfério sul (na maioria pobres), requer da bioética uma proposta menos observadora e simplesmente analítica e mais interventiva. A essa “bioética de intervenção”, na qual os conflitos entre o “individual” e o “coletivo” (ou, se os leitores preferirem, entre os princípios da autonomia e da justiça/equidade) têm uma leitura filosófica sustentada no utilitarismo consequencialista e que faz a balança pender para o lado das maiorias excluídas, tenho chamado de “bioética forte” ou “bioética dura” (hard bioethics).[7]

A MANIPULAÇÃO DA VIDA E O TEMA DOS ”LIMITES”

A questão da “manipulação da vida” pode ser contemplada a partir de variados ângulos: científico-tecnológico, político, econômico, social, jurídico, moral… Em respeito à liberdade individual e coletiva conquistada pela humanidade no transcurso dos tempos, a pluralidade constatada neste início de milênio requer que o estudo bioético do assunto contemple, na medida do possível e de forma multidisciplinar, todas essas possibilidades.

Com relação à vida futura do planeta, não deverão ser regras rígidas ou “limites” exatos que estabelecerão até onde poderemos ou deveremos chegar. Para justificar essa posição, vale a pena levar em consideração alguns argumentos de Morin sobre os sistemas dinâmicos complexos. Para ele, o paradigma clássico, baseado na suposição de que a complexidade do mundo dos fenômenos devia ser resolvida a partir de princípios simples e leis gerais, não é mais suficiente para considerar, por exemplo, a complexidade da partícula subatômica, a realidade cósmica ou os progressos técnicos e científicos da área biológica.[8] Enquanto a ciência clássica dissolvia a complexidade aparente dos fenômenos e fixava-se na simplicidade das leis imutáveis da natureza, o pensamento complexo surgiu para enfrentar a complexidade do real, confrontando-se com os paradoxos da ordem e da desordem, do singular e do geral. De certa forma, incorpora o acaso e o particular como componentes da análise científica e coloca-se diante do tempo e dos fenômenos.

Segundo Jonas, o tema da “liberdade da ciência” ocupa posição única no contexto da humanidade, não limitada pelo possível conflito com outros direitos.[9] Para ele, no entanto, o observador mais atento percebe uma contradição secreta entre as duas metades dessa afirmação, porque a posição especial alcançada no mundo graças à liberdade da ciência significa uma posição exterior de poder e de posse, enquanto a pretensão de incondicionalidade da liberdade de investigar, juntamente com o conhecimento, está separada da esfera da ação. Porque, naturalmente, na hora da ação toda liberdade tem suas barreiras na responsabilidade, nas leis e nas considerações sociais. De qualquer maneira, ainda de acordo com o mesmo autor, sendo útil ou inútil, a liberdade da ciência é um direito supremo em si, até mesmo uma obrigação, estando livre de toda e qualquer barreira.

Abordando o tema da “ética para a era tecnológica”, Casals diz que se trata de atingir o equilíbrio entre o extremo poder da tecnologia e a consciência de cada um, bem como da sociedade em seu conjunto: “Os avanços tecnológicos nos remetem sempre à responsabilidade individual, bem como ao questionamento ético dos envolvidos no debate, especialmente aqueles que protagonizam as tomadas de decisão”.[10]

De acordo com o que já dissemos anteriormente, para as pessoas que defendem o desenvolvimento livre da ciência, embora de forma responsável e participativa, não é fácil conviver pacificamente com expressões que estabeleçam ou signifiquem “limites” para ela. O tema, contudo, é de difícil análise e solução. Por isso, enquanto não encontrar uma expressão (ou iluminação moral suficiente…) que seja mais adequada às minhas exatas intenções, prefiro utilizar a palavra “limites” entre aspas, procurando, com esse artifício, certamente frágil, expressar minha dificuldade sem abdicar de minhas posições.

Assim sendo, é necessário que se passe a discutir categorias ou referenciais mais amplos que, sem serem quantitativos ou “limítrofes” na sua essência, possam proporcionar contribuições conceituais e também práticas no que se refere ao respeito ao equilíbrio multicultural e ao bem-estar futuro da espécie humana e do próprio planeta na sua integralidade.

A ÉTICA DA RESPONSABILIDADE: CIENTÍFICO-TECNOLÓGICA, SOCIAL E AMBIENTAL

Para algumas pessoas, neste momento histórico pelo qual passa a humanidade, existe o perigo de a técnica vir a dominar o mundo, a sociedade, a natureza, sem mediação científica, e anulando (ou esquecendo) os conflitos sociais. As mudanças genéticas possíveis — vegetais,animais e humanas — já alteraram irreversivelmente o curso da história. A história, que, no dizer de Lucien Sfesz,[11] tinha uma narrativa longa, é substituída por pequenas narrativas curtas, fragmentadas. Contradizendo a teoria simplista de Francis Fukuyama sobre o “fim da história”, a engenharia genética, as técnicas reprodutivas ou os medicamentos de última geração, entre outros procedimentos científico-tecnológicos, nos devolvem uma nova história.

Trata-se, assim, da superação do esgotamento dos mitos, do envelhecimento irreversível do mundo e das pessoas, e de voltarmos ao fundamental, à essência de nossa vida. Contra o fracasso da história e a precariedade de nossa passagem terrena, somente a ideologia e as decisões humanas têm capacidade para recriar a imagem do eterno retorno e da eterna permanência, da busca de nossa imortalidade como espécie, em megaprotesto contra a fragilidade de nossa transitória condição social e humana.

Hans Jonas,[12] mais uma vez, foi um dos pensadores do século XX que detectaram com mais lucidez a caducidade dos termos em que tradicionalmente se exprimiam os questionamentos dirigidos pela ética ao progresso tecnocientífico: “Continuamos a discutir a técnica do ponto de vista da verdade antropológica, quer na direção de ela realizar o verdadeiro sentido do humano, quer, opostamente, no sentido de ela constituir a própria negação do ser humano ou da natureza”. Ora, a técnica não pode ser nem eticamente submissa nem histericamente dominadora.

Em outras palavras, as coisas que devemos evitar a todo custo devem ser determinadas por aquelas outras coisas que devemos preservar a todo custo. Uma filosofia da natureza deve articular o é cientificamente válido com o deve das injunções morais. Entre os grandes problemas práticos da bioética está a dificuldade em trabalhar a relação entre a certeza do que é benéfico e a dúvida sobre os “limites”, sobre o que deve ser controlado e sobre como isso deva se dar. E é precisamente nessa fronteira insegura, que conta com tão pouca iluminação moral, que, com doses generosas de boa vontade, deparamos com a virtude da prudência.

Apesar de alguns críticos radicais (principalmente oriundos do fundamentalismo religioso) considerarem “perigosos” muitos dos avanços da ciência, é impossível imaginar a atual estrutura biológica e societária como eterna e imutável. Como disse o rabino Henry Sobel durante o Encontro Internacional sobre Clonagem e Transgênicos, promovido pelo Senado brasileiro em 1999: “A natureza é imperfeita, cria imperfeições biológicas nos campos vegetal, animal e humano; é papel da ciência, pois, ‘consertar’ essas imperfeições”. Um dos compromissos da ciência, portanto, é gestar o futuro, antecipando-se a ele por meio de descobertas que venham realmente proporcionar benefícios e segurança à espécie humana. A mutabilidade da sociedade e do mundo é uma certeza; a dúvida reside em estabelecer o “limite” ou “ponto” concreto até onde (e em que momento…) os avanços da ciência devam acontecer.

Na “sociedade planetária da tecnologia de alto risco” não pode ser privilegiado o bem-estar deste ou daquele grupo social, mas a sobrevivência, a qualidade de vida e a integridade do gênero humano. “Neste momento histórico o homem está aberto à responsabilidade e ao risco, é chamado a dar-se conta de si e da sua descendência, a mostrar respeito pela totalidade do mundo natural e a tornar-se, por tudo isso — não no idealismo da consciência, mas na escolha do agir —,  guardião
 do próprio ser.”[13]

AVANÇAR, MAS COM CONTROLE…

É prudente que a humanidade reflita com cuidado sobre as sinalizações acima a respeito do princípio da responsabilidade científica e social e da aparente impotência da ética e da filosofia contemporâneas diante do homem tecnológico. Principalmente com relação aos problemas e às contradições que a humanidade se vê hoje obrigada a enfrentar, para Jonas, citado por Portinaro,[14]  é necessário que a racionalidade ética caminhe com a mesma velocidade do progresso científico e tecnológico. Apesar de não usar a expressão “ética prática” ou “aplicada”, manifesta que a filosofia pode dizer várias coisas concretas: que tipos e formas de vida são melhores do que outras, que coisas trazem benefícios ou danos. Segundo ele, o progresso moral coletivo pode ser evidenciado de três formas: a) por meio da legislação dos Estados modernos; b) em certos valores que são incorporados nos códigos das leis; c) nos comportamentos públicos.

Procurando sintetizar um pouco do que foi dito até aqui, sente-se a necessidade de, por um lado, que não deixemos de investir no desenvolvimento científico e tecnológico; e, por outro, que, diante das dúvidas e incertezas, é indispensável que exista um controle prudente sobre essas novidades. A história recente, no entanto, principalmente no que se refere aos campos da pesquisa com seres humanos e do respeito ao equilíbrio ambiental, mostra-nos que a ação humana tem sido, em diversas ocasiões, mais agressiva e degradadora do que construtiva.[15] Nesse sentido, parece que nos encontramos ante a necessidade de mudanças não somente de alguns antigos paradigmas técnico-científicos, como também dos compromissos e responsabilidades sociais, o que não significa obrigatoriamente a dissolução de certos valores já existentes, mas sua transformação. Devemos avançar de uma ciência eticamente livre para outra eticamente responsável, de uma tecnocracia que domina o homem para uma tecnologia que esteja a serviço da humanidade do próprio homem, de uma democracia jurídico-formal a uma democracia real que concilie liberdade e justiça.[16]

Essas transformações, no entanto, são de difícil execução, pois a moral resultante da modernização não tem conseguido articular a agenda moderna da autonomia com o ideário aristotélico da felicidade, colocando em perigo a própria sobrevivência do planeta no seu conjunto, como já foi dito. As consequências da aliança entre ciência, técnica e economia em um contexto de liberalismo político e capitalismo trouxeram progresso, desenvolvimento, riqueza e liberdade política somente em uma parte do mundo, gerando pobreza, subdesenvolvimento e desigualdades nos outros dois terços.[17] Salvat, mesmo traindo seu desencanto com as dificuldades presentes, tentou dimensionar o problema entre “a necessidade e a impossibilidade de fundamentar a ética na era da ciência e da técnica”.[18] Desse diagnóstico sombrio, nascem preocupações éticas como as de Karl Otto Apel, no sentido de que as morais dependentes da racionalidade estratégico-instrumental, do decisionismo, do irracionalismo subjetivista ou do pragmatismo se mostrem incapazes para fazer frente aos desafios, isto é, para fundamentar as bases de uma macroética da responsabilidade solidária.[19]

Retornando mais uma vez a Jonas,[20] vale a pena lembrar a passagem onde ele analisa que a liberdade da pesquisa se apoia exatamente no fato de que a atividade de investigar, juntamente com o conhecimento, deve estar separada da esfera da ação. Porque, ele arremata, “na hora da ação, naturalmente, toda liberdade tem suas barreiras na responsabilidade, nas leis e nas considerações sociais”. Se a ciência como tal não pode ser ética ou moralmente qualificada, pode sê-la, no entanto, a utilização que dela se faça, os interesses a que serve e as consequências sociais de sua aplicação.[21],[22] Está inserido nessa pauta também,o tema da democratização do acesso de todas as pessoas, de forma indistinta e equânime, aos benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico (às descobertas e invenções). Nesse sentido, parece-me indispensável agregar à discussão alguns referenciais que tangenciam as fronteiras do desenvolvimento, sem obrigatoriamente limitá-lo: além da pluralidade dos valores morais, da responsabilidade e da prudência, já mencionada, é conveniente agregar a equidade e a justiça distributiva dos benefícios, além da participação e do controle social no campo da democracia participativa e dos direitos humanos.

EQUIDADE NÃO É SINÔNIMO DE IGUALDADE

O surgimento do debate em torno da equidade é datado, no mundo ocidental, como das últimas três décadas. Os movimentos sociais, especialmente aqueles que lutam contra as discriminações raciais e de gênero, foram seus principais precursores, partindo da premissa de que “diferença” não é sinônimo de “desigualdade”, do fato de que “ser diferente” não significa “ser desigual”. Infelizmente, em um dado momento, o termo experimentou certo desgaste, até mesmo como consequência de alguns abusos conceituais que sofreu. Mais recentemente, no entanto, sob outra roupagem, vem sendo reanimado, particularmente pelas discussões em saúde, haja vista o encontro ocorrido em Genebra, em março de 1997, além de outros encontros similares e posteriores, sobre a revisão das metas da OMS acerca do programa “Saúde para todos no ano 2000”. Nessas oportunidades, o conceito de equidade foi retomado com vigor e passou a constituir-se na palavra-chave em saúde para o início do século XXI. Enfim, é hoje “palavra da moda”, mas com outra interpretação.

Basicamente, equidade significa a disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um a partir de suas diferenças. O pesquisador e jurista estadunidense John Rawls é provavelmente quem mais contribuiu teoricamente para a expansão desse conceito nos últimos anos.[23] O tema, no entanto, não é novo. Em 1921, em discurso para os formandos de direito da Faculdade do Largo São Francisco, USP, o paraninfo Rui Barbosa proferiu as seguintes e históricas palavras:

[…] A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta igualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade […] Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem […][24]

A igualdade é a consequência desejada da equidade, sendo esta o ponto de partida para aquela. Ou seja, é somente por meio do reconhecimento das diferenças e das necessidades diversas dos sujeitos sociais que se pode alcançar a igualdade. A igualdade não é mais o ponto de partida ideológico que tendia a anular as diferenças. A igualdade é o ponto de chegada da justiça social, referencial dos direitos humanos, no qual o próximo passo é o reconhecimento da cidadania.[25] 
A equidade é, então, uma das bases éticas que devem guiar o processo decisório nas discussões sobre a “qualidade da vida”. É somente pela promoção desse paradigma, associado ao tema da responsabilidade (individual e pública) e da justiça, que conseguiremos fazer valer o valor do direito à dignidade e à saúde. A equidade, ou seja, o reconhecimento de necessidades diferentes, de sujeitos também diferentes, para atingir direitos iguais, é o caminho da ética prática ou aplicada em face da realização dos direitos humanos universais, entre eles o do direito à vida.[26] A equidade é a categoria que permite resolver parte razoável das distorções na distribuição da saúde, ao aumentar as possibilidades e a qualidade de vida de importantes parcelas da população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, resta-nos dirigir nosso “fazer” com responsabilidade, equilíbrio e prudência, levando em consideração os conceitos de responsabilidade, controle e equidade aqui apresentados, entre as apertadas fronteiras do necessário e do possível. A rápida e sofisticada intervenção tecnocientífica em um meio não somente natural como também cultural e político, atravessado por atos de vontade e de escolha apaixonados, é tão “humana” quanto a ética, com a qual, neste pé, pode e deve estabelecer diálogo. E, nos casos extremos em que se torne impossível a consagração do diálogo, é necessário, ou até mesmo indispensável, que a referência concreta do agir se paute nos limites mais avançados possíveis da ética e incorpore o tema da tolerância, não esquecendo, ainda, os “limites” da responsabilidade. Como pano de fundo do cenário, a participação e o controle social adquirem importância fundamental, principalmente para que seja contemplada a verdadeira equidade.

Dentro do campo da democracia e do desenvolvimento da ciência, portanto, não se pode deixar de abordar a questão do controle social sobre qualquer atividade ou decisão que seja de interesse público e/ou coletivo. Mesmo nesse complexo tema da busca da equidade e da compreensão da responsabilidade, a pluriparticipação é indispensável, como garantia para que a cidadania seja respeitada. O controle social, por meio do pluralismo participativo, deverá prevenir o difícil problema de um progresso científico e tecnológico que reduz o cidadão a súdito em vez de emancipá-lo. O súdito é o vassalo, aquele que está sempre sob as ordens e vontades de outros, representados nesse debate pelo próprio rei, pelos cientistas, políticos ou empresas. Essa peculiaridade é absolutamente indesejável em um processo no qual se pretende que a participação consciente da sociedade mundial adquira papel de relevo, pela educação e pelo direito de acesso à informação.

Um dos problemas relacionados com toda a questão aqui debatida não está na utilização ou aplicação de novas tecnologias ou nas propostas apresentadas, mas no CONTROLE, caso a caso e devidamente contextualizado, de cada uma das novidades. E esse controle deve se dar em patamar diferente daquele dos planos científicos e tecnológicos: o controle é ético. É conveniente recordar que a ética sobrevive sem a ciência e a técnica; sua existência não depende delas. A ciência e a técnica, no entanto, não podem prescindir da ética, sob pena de transformarem-se em armas desastrosas para o futuro da humanidade nas mãos de minorias poderosas e/ou mal-intencionadas.

O xis da questão, portanto, está no fato de que, dentro de uma escala hipotética de valores vitais para a humanidade, a ética ocupa posição diferenciada em comparação com a pura ciência e a técnica. Nem anterior, nem superior, mas simplesmente diferenciada. Além de sua importância qualitativa no caso, a ética serve como instrumento preventivo e prudencial contra abusos atuais e futuros que venham trazer lucros abusivos para poucos, em detrimento do alijamento e sofrimento da maioria da sociedade e do próprio desequilíbrio planetário.

Notas

[1] Hans Jonas, Il principio responsabilità; un’ etica per la civiltà tecnologica. Turim: Einaudi, 1990.

[2] Volnei Garrafa, “Bioética e ética profissional: esclarecendo a questão”. Medicina — Conselho Federal. 1998, n. 97, p. 28.

[3] Volnei Garrafa, “Bioética e ciência — até onde avançar sem agredir”, in Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, Volnei Garrafa & Gabriel Oselka (orgs.), Iniciação à bioética. Brasilia: Conselho Federal de Medicina, 1998, pp. 99-110.

[4] Maurizio Mori, “A bioética: sua natureza e história”. Humanidades, n 34, pp. 332-41. Brasília: Editora da UnB, 1994.

[5] Volnei Garrafa, Sérgio Ibiapina Ferreira Costa & Gabriel Oselka, “A bioética no século XXI”, in Volnei Garrafa & Sérgio Ibiapina Ferreira Costa (orgs.). A bioética no século XXI. Brasilia: Editora da UnB, 2000, pp. 13-23.

[6] Volnei Garrafa, “A bioethical radiograph of Brazil”. Acta Bioethica, 6 (1), pp. 177-81, 2000.

[7] Volnei Garrafa, “Una bioética fuerte’ (hard bioethics) para los países periféricos”. Conferência, 3. Congreso de Bioetica de América Latina y del Caribe. Panamá, maio 2000, 7 pp. (mimeo).

[8] Edgar Morin, Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.

[9] Hans Jonas, op. cit.

[10] J. M. E. CasaIs, “Una ética para la era tecnológica”. Cuadernos del Programa Regional de Bioética, n. 5, pp. 65-84. ons/oms, 1997.

[11] Lucien Sfesz, A saúde perfeita; crítica de uma nova utopia. São Paulo: Loyola, 1996.

[12] Hans Jonas, Ética, medicina e técnica. Lisboa: Passagens, 1994.

[13] Hans Jonas, Il principio responsabilità; un’etica per la civiltà tecnologica, op. cit.

[14] Pier Paolo Portinaro, “Etica della responsabilità”. L’Unità (Italia), 6 fev. 1993, p. 18.

[15] Volnei Garrafa & M. M. Prado, “Mudanças da Declaração de Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social”. Cadernos de Saúde Pública. Fiocruz (no prelo).

[16] Hans Küng, Projeto de ética mundial; uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. São Paulo: Ed. Paulinas, 1993, pp. 39-40.

[17] Hans-Martin Sass, “La bioética: fundamentos y aplicación”, in Organización Panamericana de la Salud, Bioética; temas y perspectivas. Washington, 1991, pp. 18-24.

[18] P. Salvat, Karl Otto Apel, “o la pretensión de fundamentar la ética en tiempos de desencanto (notas sobre la ética del discurso)”. Persona Soc. 8(1/2): 211-44, 1994.

[19] Karl Otto Apel, Estudios eticos. Barcelona: Alfa, 1986, p. 94.

[20] Hans Jonas, op. cit.

[21] Volnei Garrafa, “Transgênicos, ética e controle social”. Mundo da Saúde, 23 (5), pp. 286-9, 1999.

[22] Volnei Garrafa, “A hora e a vez da bioética”. Agroanalysis, 19 (8), pp. 33-5. FGV, 1999.

[23] John Rawls, Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[24] Rui Barbosa, “Oração aos moços”, in Escritos e discursos seletos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

[25] Volnei Garrafa, Gabriel Oselka & Débora Diniz, “Saúde pública, bioética e equidade”. Bioética, n. 5, pp. 27-33. Conselho Federal de Medicina, 1997.

[26] Ibid.

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