1996

Caos, acaso, tempo

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

Longe de ser inteiramente compreendido, o paradigma quântico-relativístico-complexo tem suas referências presentes no âmbito da física e é decorrente da cosmovisão moderna pós-newtoniana. As consequências sobre a interpretação do mundo vigente colocam em questão o próprio entendimento sobre o significado de existir. É necessário discutir a importância adquirida pelos saberes da ciência na elaboração dos planos que fundamentam a concepção de mundo das sociedades contemporâneas e suas práticas técnicas, sociais e ambientais.

Totalidade, complexidade e individuação. Essas três contribuições oferecidas pela ciência atual parecem ter grande importância, atravessam grande parte dos saberes das ciências naturais e produzem uma nova noção de objeto do conhecimento — o objeto complexo. Tais campos associados à temática do objeto complexo privilegiam a pluralização de potencialidades conectivas e expõem as interseções significativas de diferentes campos específicos de saber com os planos referentes à tríade totalidade-complexidade-individuação.

A metaestabilidade, por exemplo, permitirá conceber a proliferação de assimetrias temporais como propriedades coletivas de sistemas, desdobrando-se a partir de operações transdutivas, integrações díspares que têm por motor um acaso estruturante. A imanência dessa aleatoriedade conduz a uma inteligibilidade paradoxal — todavia, apta a traduzir o engendramento de novas composições formais a partir da defasagem de uma multiplicidade pré-individual metaestável ou caos, correspondente em última análise ao próprio reino da complexidade. Da unitariedade substancialista à complexidade multifária: múltiplas temporalidades, caos cosmógeno, individuação interminável. Elementos de um materialismo renovado conduzindo a um novo problema, o da matéria pensante. Complementar à aparição do objeto complexo, assiste-se à emergência de um sujeito acentrado, praticante de uma razão transdutora da qual não estão ausentes a corporeidade, a paradoxalidade e o ímpeto artístico. A imagem de uma natureza inacabada: eis o novo âmbito no qual se poderá refletir sobre a constituição da matéria, o comportamento dos seres vivos, as formações psíquicas pessoais e coletivas, e a elaboração de uma ética da — ou melhor, para a — complexidade.

 

 


De forma brevíssima, poder-se-ia dizer que a imagem tradicional da operação de conhecimento apoia-se, no Ocidente, sobre a tríade clássica Eu — Mundo — Deus: o procedimento de conhecer envolve um sujeito conhecedor que, legitimado por um Deus verossimilhante, apreende um objeto a ser conhecido; vale dizer, um observador cognoscente, sancionado por um princípio de ordem, que representa — faz presente uma segunda vez, em seu interior — as substâncias do mundo, como em Descartes. O campo da representação constituiria assim o domínio em que o mundo objetivo se submete ao ato de conhecimento; na separação entre sujeito e objeto repousaria o âmago do paradigma maior, o paradigma-Ocidente. Pensar, então, identifica-se a representar.

Todavia, a passagem da modernidade para a contemporaneidade seria assinalada, precisamente, pela infirmação dessas três figuras do pensamento clássico. A ruptura com o esquema cartesiano se daria de maneira particularmente enfática no âmbito das ciências naturais, a partir da apreciação de que os saberes contemporâneos produziram um novo tipo de objeto do conhecimento — o objeto complexo. Sua aparição implicaria a destituição de certos resíduos da representação, noções tardias tais como as de tempo global, indivíduo finalizado e eu unívoco — que teriam como traço em comum uma aspiração à unitariedade, atributo de sistemas encerrados em si mesmos. Do ponto de vista da constituição de uma visão de mundo renovada, trata-se da substituição de todo um plexo de categorias usualmente empregadas na elaboração e operação do que concebemos por realidade, colocando simultaneamente em questão o entendimento cotidiano sobre o significado de existir.[1]

Para investigar o percurso dessa conjetura, é conveniente remetê-la à profunda renovação da cosmovisão moderna sucedida a partir do começo de nosso século, quando foram superados diversos operadores conceituais associados à física clássica ou newtoniana, fundamento da concepção termomecanicista até então vigente. Procuraremos assim explorar um campo de problemas propriamente pertinente à filosofia natural contemporânea — mas que afeta variados domínios da cultura e das práticas — em que têm importância decisiva as transformações experimentadas, dentre outras, pelas noções de caos, acaso e tempo.

A cosmovisão clássica pode ser resumida a partir da consideração de um cenário básico no qual corpos materiais massivos deslocam-se — no âmbito de um espaço continente absoluto (não afetado pelas vicissitudes que porventura sucedam a seu conteúdo) e identificado a um espaço tridimensional euclidiano (volume) ilimitado — sob a ação mútua de forças, causas eficientes analíticas (expressas por relações de infinitésimos), que modificam o movimento inercial livre, compondo — ao longo de um tempo newtoniano absoluto global, linearizado (geometrizado) e instantaneizado — sucessivas configurações cujo encadeamento encarnaria todo o desenrolar da existência: a biografia do universo.[2] As leis da mecânica prescrevem os movimentos que os corpos — concebidos como conjuntos de pontos materiais — deverão desempenhar (determinismo), relacionando-os de maneira unívoca às forças ali presentes; contudo, essas leis não exigem uma orientação definida do parâmetro identificado ao tempo, ou seja, são intrinsecamente reversíveis. Tal característica engendra um problema curioso: como conciliar a evidente direcionalidade (ou “flecha do tempo”) exibida por uma variedade de fenômenos — por exemplo, as trocas de calor — com a presumida reversibilidade dos processos elementares que constituiriam todo e qualquer sistema físico?

Para lograr a descrição de tais processos irreversíveis, Boltzmann argutamente lançou mão de considerações de caráter estatístico: uma vez que os movimentos reais das moléculas de um gás, digamos, não são na prática acessíveis ao investigador (embora o sejam em princípio), tudo se passaria como se certa aleatoriedade fizesse por se tornar aparente à escala molecular; se, por um lado, essa casualidade microscópica implica a inviabilidade de um conhecimento bem determinado dos comportamentos dos componentes individuais, por outro assegura a validade de uma descrição estatística de propriedades globais — como temperatura, pressão, volume etc. — do sistema. Assim, a equivalência entre ignorância e acaso permitiria compreender o segundo princípio da termodinâmica (todo sistema isolado tende à homogeneidade, isto é, decresce progressivamente seu teor de organização), bem como a flecha do tempo a ele associada, em termos de argumentos probabilísticos.[3]

Deve-se aqui mencionar ainda um importante aspecto pertinente ao esquema newtoniano, a saber, a identificação da pequena parte (partícula) de um corpo com um pequeno corpo (corpúsculo). Desse modo, asseguram-se à partícula os atributos de elementaridade e localizabilidade (individualização) habitualmente concedidos aos corpos macroscópicos, aos quais se acrescentará ainda a sujeição a movimentos instantaneizados, remetidos à mobilidade linear do momento presente (cronalidade). Bem mais que uma vindicação do atomismo (que, desde meados do século XIX, seria já a doutrina dominante na química[4]), afirma-se nessa proposição a crença numa simplicidade essencial da natureza: quer no nível elementar, quer no de sistemas compostos, quer no do Todo, um mesmo esquema explicativo — o mecanicismo — se aplicaria com idêntica eficácia. Em correspondência à constituição de um tal objeto simples, que transpassa as diferentes escalas de ocorrência de fenômenos, o gênero de causalidade analítica conferida ao mundo físíco no âmbito desse determinismo cronal resulta na eliminação cabal do problema da natureza do tempo (duração). Firma-se o reducionismo como doutrina epistemológica, atendendo eficientemente à necessidade, conforme à tradição cartesiana, de introduzir-se na matéria dispersa do mundo a ordenação inequívoca do pensamento matemático. Não admira que haja se instalado e difundido, na cultura do Ocidente, uma cosmovisão qualitativa e reducionista segundo a qual o universo físico seria o análogo de um vasto mecanismo, rigorosamente concatenado, analisável com ilimitada precisão e, por conseguinte, plenamente controlável e predizível, opondo a imagem de um cosmos mecânico à de um caos concebido como limite da desordenação espacial (carência de “forma”). Reflete-se aqui uma ambiciosa aspiração a uma totalização maquínica da realidade fenomenal que, como se sabe, logo virá a encontrar sua hybris.

De fato, o século XX testemunhou a realização de uma série de experimentos decisivos e teorizações audaciosas que acabaram por demonstrar a inadequação das abordagens clássicas no que tange tanto à escala dos componentes microscópicos como à do universo astronômico. Para que se pudesse lograr uma correta descrição dessas classes de fenômenos inabituais, alheios à percepção costumeira, verificou-se ser necessário proceder a uma revisão radical dos próprios princípios que haviam fundamentado a elaboração do paradigma termomecanicista, delimitando-se portanto seu domínio de validade observacional. Com efeito, a cosmologia relativística nos revela um universo dinâmico, histórico e ativo; a microfísica quântica delineia uma matéria dessubstancializada, elusiva, eivada de indeterminação, configurando-se uma realidade não “objetiva”, fundamentalmente incerta, em relação à qual o observador se torna um participador; e, ainda, o estudo dos sistemas dinâmicos longe do equilíbrio conduz à concepção de estados caóticos marcados pela imprevisibilidade, mas aptos a engendrar hierarquias sofisticadas de organização bem como comportamentos ricos em potenciais de evolução. A revolução científica contemporânea — para usar a bem conhecida denominação de Kuhn[5] — veio assim motivar toda uma nova compreensão acerca da realidade física básica, que contribuiu de modo decisivo para a instalação de imagens de mundo profundamente originais.[6] Poder-se-ia talvez resumir as consequências de tal inovação sobre a moldagem do panorama epistemológico vigente na atualidade associando-as à introdução de uma nova concepção de objeto de conhecimento — o objeto complexo. Para explorar essa hipótese é conveniente problematizar, em particular, os campos ideativos pertinentes às noções de substância, de totalidade e de temporalidade.

A descoberta do caráter quântico do mundo microfísico, para muitos a mais bem verificada observação produzida pela Ciência, refere-se à dupla descontinuidade que se manifesta entre os componentes microscópicos da matéria: matéria e energia, corpo e movimento, são ambos atomizados, ou seja, têm por elementos números inteiros de unidades discretas (no caso de trocas energéticas, os quanta de ação). Uma vez que a perturbação mínima que se pode exercer sobre um dado sistema corresponderá à absorção ou emissão de uma unidade de ação — um quantum —, deverá doravante ser levada em conta a inevitável intervenção exercida sobre o sistema durante o processo de conhecimento, abandonando a pressuposição de que o ato experimental possibilitaria a descrição simultânea, com precisão ilimitada, de todas as suas variáveis fisicamente relevantes. Mesmo o mais sofisticado dos aparatos de medida não poderia extrair senão uma parcela limitada da informação necessária para determinar, à maneira clássica, a evolução do sistema.[7] A introdução dessa indeterminação — ou, mais exatamente, incerteza — na instância, assaz fundamental para nossa apreensão do mundo natural, dos micro-objetos, resulta equivalente (ou poderíamos dizer expressa?) à aparição de uma aleatoriedade básica inerente a todos os eventos em escala microscópica. Esse aspecto de indeterminação — bem como a consequente previsibilidade limitada, tão-somente estatística — do comportamento dos sistemas quânticos são “fatos da natureza” na medida em que constituem características essenciais e incontornáveis de nosso conhecimento da natureza.[8]

Na perspectiva quântica, portanto, os objetos elementares sob consideração — quer sejam moléculas, átomos, núcleos ou outros componentes — não possuirão propriedades definidas senão a posteriori, depois do procedimento experimental; só se poderá prever a probabilidade de que uma dada configuração, dentre uma variedade de potencialidades ou estados virtuais, se atualize ao cabo da medição.[9] A “realidade” quântica não exibe objetos com atributos continuamente estáveis e definidos; por exemplo, de acordo com a pergunta (isto é, o tipo escolhido de aparato de medida) que um observador dirigir a um elétron, este se apresentará ora como um corpúsculo (evento localizado), ora como uma onda (padrão extenso).[10] A partícula quântica não se reduz a um corpúsculo. Não há sentido em procurar conceber o que seria o elétron em si, independentemente da perturbação ocasionada pela observação; as formas tornam-se precárias, as essências, imprecisas — assim, convém aposentar o conceito, venerandamente aristotélico, de substância como o substrato básico de que são compostas as coisas do mundo (hilemorfismo).[11]

O que chamamos “mundo objetivo” seria então a expressão macroscópica de uma trama de relações microscópicas quânticas que não padecem, elas mesmas, de “objetividade”.[12] Uma vez que as leis quânticas incidem sobre as possibilidades de uma dada configuração vir a ser efetivada, verifica-se como que um espessamento do presente, pois a passagem da potência ao ato não será imediata nem autônoma com respeito ao observador. Segundo Heisenberg, a concepção aristotélica de potentia sofrerá um deslocamento, de idéia qualitativa para ideia quantitativa:[13] a teoria quântica procurará explicar a variedade qualitativa em termos de variações de quantidades; generalizações abstratas cederão lugar a morfologias empíricas; e sobretudo, graças à noção quântica de metaestabilidade, o foco da pesquisa do princípio de individuação se transferirá do indivíduo terminado, característico do esquema hilemórfico, para o processo de individuação.[14] Doravante, para as ciências físicas a noção de real se desdobrará em duas modalidades, a saber, uma referente à realidade existente, outra à pré-realidade potencial. Por detrás — ou aquém — da realidade atual, efetiva, regras matemáticas governam o possível.[15] Extingue-se, no domínio quântico — repita-se, a mais bem testada teoria física já elaborada —, a utilidade de certas metáforas tradicionais; a contradição entre ser e não-ser não mais poderá ser representada pela oposição entre cheio e vazio… O vazio quântico, com efeito, se identificará menos com uma nulificação por carência de acontecimentos, por privação de ser, do que com uma matriz labiríntica em que subexistem todos os possíveis mundos — virtualidades singulares pré-individuais que um lance de dados converterá em atualidades necessárias.[16]

A teoria quântica implica uma transformação radical da teoria da observação (operação de medida), e foi motivada por uma inconsistência entre as teorias clássicas sobre a estrutura da matéria e a natureza da luz — que recebeu a poética denominação de catástrofe ultravioleta da radiação do corpo negro.[17] Todavia, não seria este o único eixo segundo o qual a revolução científica contemporânea veio a suceder. Após considerar longamente certas incongruências entre as prescrições da mecânica e do eletromagnetismo, no anno mirabili de 1905 Einstein apresentou uma nova fundação conceitual para regular a comparação de medidas obtidas por diferentes observadores, centrada não mais na invariância galileana dos intervalos temporais (o que permitia a absolutização da noção de simultaneidade de eventos) e sim no caráter invariante agora conferido a uma razão entre medidas de espaço e de tempo — a velocidade de propagação da radiação luminosa.[18] Essa nova teoria da relação entre observadores resultou no que Szamosi chama de “ruptura da fundação mamífera” da apreensão da estrutura geométrica do mundo físico.[19] Com efeito, o cenário clássico de um espaço tridimensional euclidiano no qual corpos maciços, estáveis e impassíveis coordenam-se pela ação instantânea, à distância, de forças mecânicas ao longo do transcurso de um tempo universal e absoluto cede lugar, no âmbito da teoria da relatividade einsteiniana, ao continuum espaço-tempo quadridimensional de Minkowski, inaugurando do mesmo modo a possibilidade de conversão mútua entre massa e energia: as distinções entre tempo e espaço e entre corpo e movimento tornam-se fisicamente irrelevantes.[20]

Já em 1917 Einstein, a partir exclusivamente de princípios primeiros e independentemente de quaisquer evidências ou dados sugestivos, completou a elaboração da teoria da relatividade geral — para Max Born, “o maior feito do pensamento humano sobre a natureza, a mais impressionante combinação de penetração filosófica, intuição física e habilidade matemática”.[21] Procurando generalizar, para observadores em estado arbitrário de movimento, uma forma operacional do princípio de invariância das leis físicas (ou seja, tais leis devem ser expressas por relações matemáticas que manifestamente exibam independência com respeito ao procedimento de etiquetação particular dos eventos físicos, por meio de um dado sistema de réguas e relógios, adotado por um observador especificado[22]), Einstein termina por promover uma imprevista e fecunda combinação entre as características de observadores sob aceleração (não inerciais), a interação gravitacional (a força universal de atração entre as massas, descoberta por Newton) e a estrutura geométrica do espaço-tempo (que agora constitui, como vimos, o cenário básico global para a descrição dos eventos físicos).[23] Desse modo, os campos gravitacionais gerados por uma dada distribuição de matéria-energia serão associados, de maneira não linear, a tensões elásticas do tecido espaço-temporal, deformações da estrutura geométrica. A gravidade (força) se identifica à curvatura do espaço-tempo (geometria).[24] A caracterização da estrutura do espaço-tempo como uma geometria não euclidiana dos espaços curvos de Riemann permitirá conferir um conteúdo operacional à noção fundamental de intervalo entre dois eventos quaisquer.[25] Os notáveis sucessos da teoria no que tange a fenômenos na escala do sistema solar garantiram-lhe o estatuto de quadro conceitual de fundo para a investigação do cosmos, do universo astronômico; coube-lhe sobretudo assimilar a extraordinária observação de Hubble acerca do afastamento uniforme das galáxias[26] (ou seja, que o universo encontra-se num estado dinâmico de expansão global), que assinala o nascimento da atual cosmologia relativística.[27]

A investigação do objeto físico peculiar que denominamos cosmos é rea lizada, no escopo da relatividade geral, através da elaboração de modelos matemáticos presumivelmente capazes de representar a estrutura geométrico-gravitacional riemanniana, que, de acordo com as equações de Einstein, estaria associada ao conteúdo material do universo em larga escala. Esse conteúdo, segundo a astronomia profunda nos revela hoje, se assemelharia a um fluido ou gás (composto de superaglomerados de galáxias) notavelmente homogêneo e submetido a um processo expansivo — características que induziram a adoção da geometria espacialmente homogênea e isotrópica de Friedman-Robertson-Walker como o modelo cosmológico padrão.[28] Em conjunção com as teorias de unificação da física de altas energias, o modelo frw permitiu a elaboração de uma história térmica do material cósmico, desde uma explosão primordial, um prodigioso instante cosmogônico (Big bang) que assinalaria o início da existência do próprio universo.[29]

O que nos interessa aqui é a aparição no domínio das ciências físicas, graças aos modelos cosmológicos relativísticos, de uma nova figura de totalidade: o espaço-tempo riemanniano da relatividade geral, que pelas equações geometrodinâmicas de Einstein se articularia não linearmente com a distribuição de matéria-energia em escala cósmica. O caráter universal (ou seja, o alcance infinito) da atração gravitacional lhe assegura a função de organizar essa totalidade de modo a constituir um cosmos (quase que em seu sentido grego original de todo ordenado). Espaço-tempo-matéria-energia: eis a nova face do todo, de tudo-o-que-existe. Particularmente notável é o fato de dispormos de evidências acerca de características globais dessa entidade, como sua homogeneidade e sua mutabilidade, seu estado dinâmico de expansão friedmaniana; a totalidade pode ser observada. Todavia, ainda que legítimo do ponto de vista epistemológico, o todo evolutivo, foco do estudo da cosmologia, será um objeto físico deveras peculiar.

De fato, desde os trabalhos pioneiros de Einstein, Lemaître, Eddington e outros, o projeto cosmológico contemporâneo de construção de uma racionalidade matematizada para o universo físico convergiu para a tentativa de conceitualização de uma totalidade unitária, fechada, autorreferente e (de acordo com o preceito relativista) organizada tão-somente pela gravitação.[30] Tal concepção, contudo, envolve dificuldades técnicas, filosóficas e mesmo lógicas (como indicado pelo teorema de Gödel sobre sistemas formais privados de contexto[31]). Por exemplo, se o cosmos relativístico se identifica à totalidade dos eventos físicos, parece razoável definir-se existir por “acontecer no espaço e no tempo”. Mas a própria teoria prevê a ocorrência de situações paradoxais em que entidades bizarras elidem toda possibilidade de representação espaço-temporal — buracos negros, buracos brancos, horizontes causais, circuitos cronológicos fechados (“viagens no tempo”), torpezas topológicas… Qual é o estatuto de existência dessas configurações peculiares que, embora postas em cena pelas próprias regras do jogo, acabam por se evadir de nosso domínio de representação? Seria talvez necessário invocar uma modalidade ainda mais abrangente de “realidade”, que subsumisse igualmente essas entidades exóticas?[32] Essa crise da representação espaço-temporal sugere um impasse nos próprios fundamentos metacosmológicos em que se apoia a cosmologia clássica, que parece demandar uma profunda crítica da razão cosmológica.[33]

Presentemente, os cosmólogos consideram ultrapassada a versão simplista, muito popular nas últimas décadas, que atribui a origem do universo a uma singularidade inicial clássica, isto é, não quântica (Big bang no sentido estrito), em que todas as grandezas físicas relevantes seriam divergentes, teriam valor infinito. Limite absoluto para o conhecimento do mundo físico, a concepção de tal momento indescritível de criação vem sendo abolida a partir dos esforços recentes de construção de um modelo cosmogônico no qual convergiriam as duas grandes teorias físicas do século XX,  a relatividade e a teoria quântica.[34] Delineia-se aqui uma nova proposta de matriz para o cosmos: o vazio quântico, estado fundamental dos campos físicos que, tendo por motor a aleatoriedade da incerteza, se atualizaria num multiverso do qual a estrutura clássica que hoje identificamos seria apenas uma das possibilidades de expressão. Os esboços até aqui elaborados de tal cosmologia quântica são ainda eivados de dificuldades; por exemplo, a equação de Wheeler-DeWitt, que presidiria o engendramento e aparição de estruturas métricas, parece dispensar inteiramente qualquer parâmetro temporal — levando Penrose a observar que o grande problema que a física deverá proximamente enfrentar seria precisamente o da gênese da temporalidade.[35] De todo modo, a introdução de tal matriz cósmica — estado primordial no qual ainda não se desdobraram as dimensões métricas nem se distinguiram as linhagens de matéria — vem renovar o estudo das características da totalidade: o todo evolutivo, que tem história, tem também uma pré-história, ou seja, um contexto.[36] Dada a incerteza inerente aos processos quânticos, a geração de formas, a produção de ordem, terão aqui um caráter impredizível — mas, ainda assim, dizível. Que esse estado pré-individualizado tenha o caráter de uma complicatio, em que estão em dobradura todas as possíveis dimensões ou fases do ser, e que o disparador da atualização dos mundos seja o puro acaso, são aspectos que apenas dramatizam a entrada em cena do conceito de um universo contextualizado, incorporado a um plexo ulterior de relações que o abrange e ultrapassa — enfim, de uma totalidade aberta. Poder-se-ia especular aqui acerca de uma possível metamorfose a que se submeteria a noção de singularidade, que de anomalia extensa estourando de divergências pareceria se aproximar de um caos intensivo, campo de intensidades pré-individuais.[37]

***

Talvez o legado mais duradouro de Newton seja não uma teoria ou hipótese particular, mas sim a separação do problema da descrição do comportamento de um sistema físico qualquer em dois termos, a saber, a especificação da configuração do sistema numa certa ocasião (fixação de condições iniciais), seguida pelo estabelecimento de relações que governem a sucessão de seus estados (leis de evolução).[38] Por exemplo, a noção de trajetória, na mecânica clássica, remete a um conjunto de posições referidas a uma linha de instantes, de modo a encarnar, através de equações diferenciais infinitesimais, uma forma matemática particular. O caráter estritamente determinista atribuído às equações diferenciais pareceria implicar um poder de previsão limitado tão-somente pela qualidade dos dados iniciais. É 
curioso observar que, embora tenha sido precisamente esta a vertente pela qual veio a se instalar a doutrina mecanicista, a previsibilidade irrestrita não é um atributo necessário dos sistemas dinâmicos; com efeito, deriva menos do caráter explicitamente determinista das leis de evolução que da pressuposição implícita de linearidade das relações dinâmicas.[39] Os processos físicos caracterizados por equações lineares podem ser descritos pela soma simples de partes elementares, onde cada uma guarda sua individualidade inalterada; assim, cada configuração pode ser entendida como consequência da justaposição de outras.[40] Desse modo, estruturas simples só podem exibir comportamentos simples. Processos não lineares, ao contrário, acarretam uma concepção diferente de sistema, envolvendo uma composição recorrente entre o todo e a parte: o todo serve como meio para o elemento agir sobre si mesmo, e vice-versa.[41]

O fato de os sistemas lineares serem muitíssimo menos abundantes que os não lineares não impediu a entronização do dogma clássico, como vimos anteriormente; contudo, o continuado fracasso das abordagens redutivas — que buscavam tratar os fenômenos não lineares como aproximações, pequenos desvios, da estimada simplicidade linear — conduziu enfim à revisão da postura oriunda do mecanodeterminismo. Hoje se sabe que mesmo sistemas mecânicos bastante simples, regidos por leis estritamente deterministas, podem manifestar comportamentos muito complexos — e até mesmo cabalmente impredizíveis —, mercê de uma forte sensibilidade às variações das condições iniciais.[42] A não-linearidade explorada por essas teorias do “caos determinístico” permite que minúsculas flutuações dos dados iniciais acumulem-se e amplifiquem-se até engendrar significativos efeitos globais (como é o caso do famoso “efeito borboleta”[43]). A distinção entre sistemas simples e complexos com base na ocorrência de imprevisibilidades não mais terá validade genérica. Um exemplo de teoria física explicitamente não linear, como já mencionamos, é a relatividade geral, em cujo escopo é admissível a aparição de um notável processo de autocatálise pelo qual a gravitação gera gravitação — ou seja, modelos em que campos gravitacionais (ou deformações da geometria) cosmológicos alteram suas características interagindo consigo próprios. Em consequência, pode-se até mesmo gerar uma configuração não determinista em que a evolução do universo apresentará bifurcações.[44] Outro exemplo de renovação dos fundamentos conceituais da linearidade é oferecido pela moderna termodinâmica, em que os atributos de equilíbrio e reversibilidade — indissoluvelmente ligados ao axioma da simplicidade linear — não mais dispõem do valor de paradigmas para a descrição de processos complexos, aptos a exibir irreversibilidade.[45] A filosofia natural da temporalidade — o estudo do problema da gênese e da constituição das diversas formas de temporalização, cronais e não-cronais, que testemunhamos na natureza — pôde assim ser examinada a partir de pontos de vista originais.[46]

Embora a profunda transformação da cosmovisão moderna implicada pela revolução científica pós-newtoniana a que aludimos acima (correspondente, como vimos, à instalação no âmbito da física do paradigma quântico-relativístico-complexo) esteja ainda longe de ser inteiramente compreendida, suas consequências sobre a modelagem da interpretação de mundo vigente são extremamente vívidas, por colocarem em questão o próprio entendimento sobre o significado de existir. Se, como sugere Jorge Luís Borges,[47] a história do conhecimento é a história da produção e reiteração de umas tantas imagens, torna-se imperioso discutir a extraordinária preeminência adquirida pelos saberes da ciência na elaboração dos planos ideativos que fundamentam a concepção de mundo das sociedades contemporâneas e suas práticas técnicas, sociais e ambientais.

Desse ponto de vista, três das contribuições oferecidas pela ciência de nossos dias parecem ser de uma importância indiscutível: referimo-nos aos campos conceituais aqui reunidos sob os títulos de totalidade, complexidade e individuação. Pode-se afirmar que esses campos conceituais atravessam a maior parte dos saberes atuais sobre a natureza, em correspondência à produção de uma nova noção de objeto do conhecimento — o objeto complexo. O engajamento dos conceitos associados à temática do objeto complexo e sua ressonâncias francamente transdisciplinares privilegiaria, precisamente, a pluralização de potencialidades conectivas, atendendo assim ao desafio de identificar e expor as interseções mais significativas de diferentes campos específicos de saber com os planos ideativos referentes à tríade totalidade-complexidade-individuação. A noção quântica de metaestabilidade, por 
exemplo, permitirá conceber a proliferação de assimetrias temporais como propriedades coletivas de sistemas, desdobrando-se a partir de operações transdutivas, integrações díspares que têm por motor um acaso estruturante. A imanência dessa aleatoriedade conduz a uma inteligibilidade paradoxal — todavia, apta a traduzir o engendramento de novas composições formais a partir da defasagem de uma multiplicidade pré-individual metaestável ou caos, correspondente em última análise ao próprio reino da complexidade. Da unitariedade substancialista à complexidade multifária: múltiplas temporalidades, caos cosmógeno, individuação interminável. Elementos de um materialismo renovado, rumo à ultrapassagem do cartesianismo, antecipando um novo problema, o da matéria pensante. Complementar à aparição do objeto complexo, assiste-se à emergência de um sujeito acentrado, praticante de uma razão transdutora da qual não estão ausentes a corporeidade, a paradoxalidade e o ímpeto artístico.[48] A imagem de uma natureza inacabada: eis o novo âmbito no qual se poderá refletir sobre a constituição da matéria, o comportamento dos seres vivos, as formações psíquicas pessoais e coletivas, e a elaboração de uma ética da — ou melhor, para a — complexidade.

Agradecimentos: esta contribuição é devida ao estímulo sempre bem-vindo de Adauto Novaes; tampouco se realizaria sem a longa colaboração com os professores Mario Novello e José Martins Salim, do Grupo de Cosmologia e Gravitação do CBF/CNPQ. Agradecimentos são igualmente devidos aos professores Roberto Moreira Xavier, Cláudio Ulpiano e Márcio Tavares d’Amaral, bem como a muitos outros colegas e alunos. Procurou-se, nas citações bibliográficas, indicar sempre que possível referências desprovidas de caráter técnico, e portanto acessíveis ao leitor não especializado. Enfim, este trabalho é dedicado à memória de Stella Goulart Marinho.

Notas

[1] M. Novello, Cosmos e contexto, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1988, capítulo 6.

[2] G. Szamosi, Tempo e espaço: as dimensões gêmeas, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, Capítulo 6.

[3] P. Coveney & R. Highfield, A flecha do tempo, São Paulo, Siciliano, 1993, capítulo 5.

[4] J. Rosmorduc, Uma história da física e da química, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988, capítulo 5.

[5] T. S. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 1975, capítulo 9.

[6] E. Morin, O método, vol. 1, Lisboa, Publicações Europa-América, 1987, parte I.

[7] H. Pagels, O código cósmico, Lisboa, Gradiva, s. d., parte I.

[8] N. Bohr, Física atômica e conhecimento humano, Rio de Janeiro, Contraponto, 1995, capítulo 4.

[9] N. Herbert, A realidade quântica, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1989, capítulo 8.

[10] M. Paty, A matéria roubada, São Paulo, edusp, 1995, capítulo 5.

[11] W. Heisenberg, Física e filosofia, Brasília, Ed. UnB, 1981, capítulo 5.

[12] J. Gribbin, À procura do gato de Schrödinger, Lisboa, Presença, s. d., prólogo.

[13] W. Heisenberg, “A descoberta de Planck e os problemas filosóficos da física atômica”, in Problemas da física moderna, São Paulo, Perspectiva, 1969.

[14] G. Simondon, L’individu et sa genèse physico-biologique, Paris, puf, 1964, introdução.

[15] W. Heisenberg, op. cit., capítulo 3; “The development of the interpretation of the quantum theory”, in W. Pauli, L. Rosenfeld & V. Weisskopf (eds.), Niels Bohr and the development of physics, Nova York, McGraw-Hill, 1955.

[16] C. Chevalley, “La física cuántica y los griegos”, in B. Cassin (ed.), Nuestros griegos y sus modernos, Madri, Manantial, 1995.

[17] Heisenberg, op. cit., capítulo 2.

[18] A. Einstein, “Sobre a eletrodinâmica dos corpos em movimento”, in H. A. Lorentz, A. Einstein & H. Minkowski, O princípio da relatividade, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983; E. Speyer, Seis caminhos a partir de Newton, Rio de Janeiro, Campus, 1995, capítulo 5.

[19] Q. Szomosi, op. cit., capítulo 7.

[20] H. Minkowski, “Espaço e tempo”, in O princípio da relatividade; R. Rucker, The fourth dimension, Boston, Houghton Mifflin Co., 1984, capítulo 1.

[21] M. Born, Einstein’s theory of relativity, Nova York, Dover , 1965, introdução.

[22] P. C. W. Davies, Space and time in the modern universe, Londres, Cambridge University Press, 1977, capítulo 4.

[23] F. Durham & R. D. Purrington, Frame of the universe, Nova York, Columbia University Press, 1983, capítulo 13.

[24] N. Calder, O universo de Einstein, Brasília, Ed. UnB, 1988, capítulo 16.

[25] Novello, op. cit., Capítulo 2.

[26] T. Ferris, O despertar na Via-Láctea, Rio de Janeiro, Campus, 1990, capítulo 11.

[27] H. Reeves, Um pouco mais de azul, São Paulo, Martins Fontes, 1986, parte I.

[28] F. Durham & R. D. Purrington, op. cit., capítulo 14; J. Ferris, op. cit., capítulo 11.

[29] S. Weinberg, Os primeiros três minutos, Lisboa, Gradiva, 1988, capítulo 5.

[30] A. Wilden, System and structure, Londres, Tavistock Publications, 1984, introdução.

[31] D. R. Hofstadter, Gödel, Escher & Bach, Nova York, Vintage Books, 1980, capítulo 14;  Wilden, op. cit., Capítulo 5.

[32] M. Novello, op. cit., capítulo 6.

[33] Ver o artigo de Mario Novello no presente volume.

[34] Novello, op. cit., Capítulo 7.

[35] R. Penrose, A nova mente do rei, Rio de Janeiro, Campus, 1995, capítulo 7.

[36] Novello, op. cit., capítulo 13.

[37] G. Deleuze, Diferença e repetição, Rio de Janeiro, Graal, 1988, capítulo V.

[38] F. Balibar, Einstein: uma leitura de Galileu e Newton, Lisboa, Edições 70, 1988, capítulo 2.

[39] I. Prigogine & I. Stengers, A nova aliança, Lisboa, Gradiva, 1986, introdução.

[40] Novello, op. cit., capítulo 2; Wilden, op. cit., capítulo 12.

[41] G. Simondon, L’individuation psychique et collective, Paris, Aubier, 1989, introdução.

[42] I. Stewart, Será que Deus joga dados?, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991, capítulo 9.

[43] J. Gleick, Caos, Rio de Janeiro, Campus, 1990, capítulo 1.

[44] Novello, op. cit., capítulo 10.

[45] I. Prigogine & I. Stengers, Entre o tempo e a eternidade, Lisboa, Gradiva, 1990, capítulo 4.

[46] L. A. Oliveira, O tempo e suas imagens.

[47] J. L. Borges, “A esfera de Pascal”, in Nova antologia pessoal, São Paulo, Difel, 1982, parte IV.

[48] G. Deleuze, op. cit., introdução.

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