2013

Chorar as mortes que virão – Por um catastrofismo ilustrado

por Jean-Pierre Dupuy

Resumo

Hoje sabemos que o orgulhoso humanismo que dá ao mundo moderno seu dinamismo põe em perigo a própria continuação da aventura humana. Vivemos sob a sombra de catástrofes futuras que talvez venham a provocar o desaparecimento da espécie. Nossa responsabilidade é enorme, já que somos a única causa do que está nos acontecendo. Mas o sentimento de nossa responsabilidade tem todas as chances de aumentar de forma desmesurada o orgulho do início. Ao nos persuadirmos de que a salvação do mundo está nas nossas mãos e de que a humanidade deve a si mesma ser sua própria salvadora, corremos o risco de acelerarmos cada vez mais essa fuga para frente, esse grande movimento de pânico a que se assemelha cada vez mais a história mundial.

O filósofo alemão Günther Anders (1902 – 1992) foi o mais profundo e radical pensador das grandes catástrofes do século XX. Mais de uma vez terá ele contado, à sua maneira, a história do dilúvio. Na história contada por Gunthers, Noé, “cansado do papel de profeta da desgraça sempre a anunciar uma catástrofe que não vinha e que ninguém levava a sério,” decidiu “encenar o luto de mortes que ainda não aconteceram” só então conseguindo, assim, que alguns compreendessem a gravidade da mensagem.

O profeta da desgraça não é ouvido porque, mesmo contendo um saber ou uma informação, sua palavra não entra no sistema de crenças daqueles a quem é dirigida. Não basta saber para aceitar o que se sabe e agir em consequência. Pois mesmo sabendo de fonte segura não conseguimos acreditar no que sabemos. Há mais de um quarto de século que os cientistas sabem e divulgam a existência e as consequências dramáticas do aquecimento climático. Estão pregando no deserto.

Ao encenar o luto de mortes que ainda não aconteceram, a parábola de Noé segundo Günther Anders, inverte o tempo. Esse golpe metafísico é o preço a pagar para enfrentar as ameaças que se acumulam (mudanças climáticas e catástrofes ambientais; possibilidade sempre presente de uma grande guerra nuclear; riscos ligados às tecnologias avançadas ; pânicos financeiros, etc). Disto resulta uma atitude filosófica denominada “catastrofismo esclarecido”.


A SORTE MORAL

Na conclusão de seu filme Uma verdade inconveniente, Al Gore faz proposições que um espectador desatento tende a tomar como lugar-comum quando, na verdade, essas proposições colocam um problema considerável: ”As gerações futuras terão, sem dúvida, de se colocar a seguinte questão”, conjectura o antigo vice-presidente americano, depois de ter mostrado as consequências dramáticas que a mudança climática em curso produzirá caso a humanidade não se mobilize a tempo, ‘”Em que pensavam então nossos pais? Por que não acordaram enquanto ainda podiam fazê-lo?’ Esta é a questão colocada por eles, agora é o momento de ouvi-la”. Mas como, surgirá a pergunta, poderíamos receber uma mensagem que vem do futuro? Se isto não é uma simples licença poética, o que pode significar, de fato, esta inversão inconcebível da flecha do tempo?

Os responsáveis pelo Greenpeace encontraram um meio surpreendente e eficaz de colocar a mesma questão, até mesmo de resolvê-la, em dezembro de 2009, por ocasião da reunião de cúpula de Copenhague sobre a mudança climática. Em cartazes gigantes eles envelheceram dez anos os principais chefes de governo da época para fazê-los dizer: “Desculpem-nos. Era possível evitar a catástrofe climática. Mas nós nada fizemos”. Seguia-se a injunção: ”Aja agora e mude o futuro”. Eu tenho minhas dúvidas de que os participantes do encontro, lendo esta fórmula, tenham visto outra coisa além de uma maneira banal de falar. Suponho que apenas alguns intelectuais excêntricos, amantes talvez de ficção científica, tenham percebido o enorme paradoxo metafísico que encerra a expressão “mudar o futuro”. Porque, das duas, uma: ou bem o futuro já é hoje o que será quando ele se realizar, inscrito em algum lugar – no grande rolo da história, digamos, como supôs Diderot em seu romance Jacques le Fataliste -, mas neste caso é impossível mudá-lo; ou bem não é o caso, e o futuro só existirá quando se apresentar, quer dizer, quando se tornar presente, mas neste caso não tem sentido querer mudá-lo agora. E, entretanto, esta fórmula parece dizer alguma coisa, e parece mesmo dizer alguma coisa de profundo. Mas o quê?

Poderíamos multiplicar os exemplos. Que significa esta predileção por acrobacias metafísicas? Sem dúvida que, diante de desafios tão gigantescos como estes que pesam sobre o futuro da humanidade, não é possível deixarmos de nos colocar mais uma vez as grandes questões que o abalam desde a aurora dos tempos. Essas formas de jogar com o tempo igualmente nos obrigam a dar ao futuro um peso suficiente de realidade. Porque, para dar sentido à ideia de que o futuro nos contempla e nos julga agora, é preciso que, de um modo que devemos determinar, o futuro seja, desde agora, o que ele será. Isto implicaria fatalismo? Deve-se deduzir que tudo já estaria escrito antes? A resposta é negativa, mas é preciso muito trabalho teórico para nos convencer disso[1].
Um conceito controverso da filosofia moral pode nos ajudar: o conceito de sorte moral. Quando as consequências de uma ação que se pretenda realizar estão marcadas por uma incerteza tamanha cuja natureza proíba ou torne impossível o cálculo probabilístico das consequências e que também não se possa excluir um resultado catastrófico, então se torna razoável admitir que o julgamento a fazer sobre a ação só pode ser retrospectivo – ou seja, que se deve levar em conta os acontecimentos posteriores à ação que não podiam ser previstos, ainda que como probabilidade, no momento de agir.

Para compreender bem por que esta posição é escandalosa para toda ética “racional” que se reduz a uma avaliação dos custos e das vantagens, imaginemos uma urna contendo bolas pretas e brancas numa relação de duas pretas para uma branca. Tomamos uma bola ao acaso e, em seguida, a substituímos na urna. Trata-se de apostar na sua cor. Evidentemente é preciso apostar na preta. Na segunda vez é preciso ainda apostar na preta. Será preciso sempre apostar na preta, mesmo que se antecipe que, em média, em um terço dos casos estaremos condenados a errar.

Suponhamos que uma bola branca saia e então descobrimos que nos enganamos. Esta descoberta a posteriori seria capaz de alterar o julgamento que, retrospectivamente, temos sobre a racionalidade da aposta que fizemos? Claro que não! Tivemos razão em escolher a preta, mesmo se foi a branca que saiu. No mundo das apostas, não se pode conceber que haja retroatividade de informação disponível sobre a maneira com que julgamos a racionalidade de uma decisão passada tomada ante um futuro incerto ou arriscado. Esta é uma limitação do julgamento probabilístico para o qual não encontramos nenhum equivalente no caso do julgamento moral.

Em uma noite farta de bebidas, um homem bebe sem moderação. Ele decide, apesar disso, com conhecimento de causa, pegar seu carro para voltar para casa. Chove, a rua está molhada, o sinal fica vermelho, o homem pisa raivosamente no freio, mas demasiadamente tarde, e seu carro só para depois de uma rápida derrapagem em cima da calçada de pedestres. Dois cenários são possíveis: não havia ninguém na calçada. O castigo do homem não vai além dum pavor retrospectivo. Ou, então: o homem atropela uma criança e a mata. O direito, claro, e sobretudo a moral não farão o mesmo julgamento em um e em outro caso. Variante: o homem pegou o carro estando sóbrio. Ele não tem do que se censurar. Mas há uma criança que ele atropela e mata, ou então nada disso acontece. Aqui, ainda, o acontecimento imprevisível retroage sobre o julgamento que fazemos sobre a conduta desse homem e também sobre o julgamento que ele mesmo faz sobre sua própria conduta.

Eis um exemplo que se deve ao filósofo britânico Bernard Williams[2] que eu simplifico bastante. Um pintor – vamos nomeá-lo “Gauguin” por comodidade – decide deixar na pobreza absoluta a mulher e os filhos e partir para o Taiti para viver uma outra vida, que lhe dará a chance, ele espera, de se tornar o gênio da pintura que ele ambiciona ser. Ele tem razão de agir assim? É moral agir assim? Williams defende com muita sensibilidade e de modo sutil a tese de que se há uma justificação possível de seu ato ela só pode ser retrospectiva. Apenas o sucesso ou o fracasso de seu projeto permitirá – permitirá a ele – fazer um julgamento. Ora, o fato de que Gauguin possa tornar-se ou não um pintor genial é em parte uma questão de sorte – a sorte de ser capaz de tornar-se aquilo que se tem esperança de ser. Gauguin, tomando sua decisão dolorosa, não pode saber o que o futuro lhe reserva, como se costuma dizer. Afirmar que ele fez uma aposta seria inacreditavelmente redutor. No seu aspecto paradoxal, o conceito de “sorte moral” vem precisamente nos ajudar a descrever o que está em jogo nesse tipo de decisão diante de um futuro incerto.

Se o conceito de sorte moral nem sempre teve boa fama é porque ele serviu para justificar as piores abominações. O advogado de Eichmann no processo de Jerusalém, Robert Servatius, dizia sobre seu cliente: “Ele cometeu o tipo de crime que vale os mais elevados prêmios para quem ganha e condena à forca os que perdem”. O patrão de Eichmann, ele próprio, Joseph Goebbels, havia prevenido desde 1943: “Nós entraremos na história ou como os maiores homens de Estado de todos os tempos, ou como os maiores criminosos”. O general Curtis LeMay, o fundador e primeiro dirigente do Strategic Air Command, ou seja, das forças aéreas americanas durante a Segunda Guerra Mundial na região do Pacífico, e que, como tal, foi o responsável pela destruição com bombas incendiárias de setenta cidades do Japão Imperial, além de ter sido o encarregado de transmitir a ordem de lançamento das duas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, disse um dia: “Se tivéssemos perdido a guerra, nós teríamos sido julgados e condenados como criminosos de guerra”. O que faz com que uma mesma ação seja moral quando se ganha e imoral quando se perde?

Há, entretanto, casos em que o conceito de sorte moral coloca menos problemas. Na questão que nos ocupa, pode-se raciocinar assim: a humanidade, tomada como sujeito coletivo, fez uma escolha de desenvolvimento das suas capacidades virtuais que a faz ficar sob a jurisdição da sorte moral. Pode ser que sua escolha a conduza a grandes catástrofes irreversíveis; pode ser que ela encontre meios de evitá-las, de contorná-las ou de superá-las. Ninguém pode dizer o que se passará. O julgamento só poderá acontecer retrospectivamente. Entretanto, é possível antecipá-lo, não o próprio julgamento, mas o fato de que este só poderá acontecer a partir do que se saberá quando se levantar o véu que encobre o futuro. Então, ainda há tempo de fazer com que nossos descendentes jamais cheguem a dizer: “é tarde” – um “é tarde” com o significado de que eles se encontrariam em uma situação em que nenhuma vida humana digna deste nome seria possível. “Eis-nos tomados pelo receio desinteressado do que advirá muito tempo depois de nós – ou melhor, pelo remorso antecipado a respeito disto”, escreve o filósofo alemão Hans Jonas[3] a quem devemos os conceitos de princípio de precaução e de ética do futuro: não a ética que prevalecerá num futuro indeterminado, mas sim toda ética que ergue como imperativo absoluto a preservação de um futuro habitável pela humanidade. É a antecipação da retroatividade do julgamento que funda e justifica esta forma de “catastrofismo” que eu denominei, pelo gosto da provocação, catastrofismo esclarecido ou ilustrado. A assinatura formal desse método é este laço notável que torna solidários o futuro e o passado. O gesto fundamental consiste em se projetar para além da catástrofe futura através do pensamento e, desse lugar, julgar nossas ações no presente, as ações, por exemplo, que nos terão levado à catástrofe. Esse tribunal do futuro é claramente uma ficção metafísica, pois que, na verdade, não serão as gerações futuras que nos julgarão – além do que, talvez, essas gerações nem cheguem a existir se explodirmos o planeta antes -, somos nós mesmos que nos julgamos, fazendo-o à custa de um desdobramento temporal a respeito do qual vou tentar analisar a lógica.

O FUTURO NÃO PRECISA DE NÓS, SOMOS NÓS QUE PRECISAMOS DO FUTURO

O filósofo alemão Günther Anders (1902-1992) foi o mais profundo e o mais radical dos pensadores sobre as grandes catástrofes do século XX. Ele é menos conhecido do que seus dois condiscípulos que, com ele, estudaram com Heidegger: Hans Jonas, que foi seu amigo, e Hannah Arendt, da qual ele foi o primeiro marido. Isto se deve provavelmente à sua intransigência e ao caráter fragmentado de sua obra. Aos grandes tratados sistemáticos, Anders preferia o texto de intervenção que, às vezes, tomava a forma de uma parábola. Por mais de uma vez ele contou, de modo muito pessoal, a história do dilúvio nos seguintes termos:

Noé estava cansado de fazer o papel dos profetas da desgraça e de sempre anunciar uma catástrofe que não acontecia e que ninguém levava a sério. Um dia, ele se vestiu com um saco velho e jogou cinzas sobre a cabeça. Este gesto só era permitido àquele que chorava por um filho querido ou pela esposa. Vestido com o traje da verdade, ator da dor, ele voltou para a cidade, decidido a colocar a seu favor a curiosidade, a maldade e a superstição dos habitantes. Logo ele reuniu à sua volta uma pequena multidão curiosa, e as questões começaram a aparecer. Perguntaram a ele se alguém havia morrido e quem era a pessoa morta. Noé lhes respondeu que muitos estavam mortos e, para grande divertimento dos seus ouvintes, ele lhes disse que os mortos eram eles mesmos. E, quando lhe perguntaram quando esta catástrofe tinha acontecido, ele respondeu: amanhã. Aproveitando-se então da atenção e da confusão, Noé ergueu-se em toda sua grandeza e se pôs a falar: depois de amanhã o dilúvio será alguma coisa que terá sido. E quando o dilúvio tiver sido, tudo o que é não terá jamais existido. Quando o dilúvio tiver levado tudo o que é, tudo o que terá sido, será tarde demais para lembrar porque não existirá mais ninguém. Então não haverá mais diferença entre os mortos e os que os choram. Se eu vim diante de todos foi para inverter o tempo, para chorar hoje os mortos de amanhã. Depois de amanhã será tarde demais. Com isso, ele voltou para casa, tirou seus trajes, limpou a cinza que lhe cobria o rosto e foi para a oficina. À noite, um carpinteiro bateu à sua porta e disse: deixe-me ajudá-lo a construir a arca, para que isto não se torne verdadeiro. Mais tarde, um telhador se juntou aos dois dizendo: chove sobre as montanhas, deixem-me ajudá-los para que isto não aconteça[4].

Não só todo o drama daquele que profetiza a catástrofe está colocado nesta magnífica parábola, como ela também descreve o modo genial de sair do impasse em que ele se encontra encerrado.

O profeta da desgraça não é ouvido porque sua palavra, mesmo se ela traz um saber ou uma informação, não penetra no sistema de crenças daqueles a quem é endereçada. Não é suficiente saber para aceitar o que se sabe e, como consequência, agir. Esta verdade de base não é compreendida por aqueles que pensam que se não agimos diante da catástrofe é porque não estamos seguros do nosso próprio saber. Ora, mesmo quando sabemos de fonte segura, não conseguimos acreditar no que sabemos. Sobre a existência e as consequências dramáticas do aquecimento climático, há mais de um quarto de século que os cientistas sabem o que sustentam e o divulgam. Eles pregam no deserto. Certamente suas previsões estão sujeitas a uma grande incerteza: chegando ao fim do século não se sabe dizer em que ponto se situará o aumento da temperatura média do globo em um intervalo compreendido entre 1,5 e 6 graus centígrados. Mas eles sabem também que metade desta incerteza é resultado da incerteza sobre o tipo de ação que será empreendida para reduzir a emissão de gases de efeito estufa. Será verdade que não agimos porque não sabemos como vamos reagir ao anúncio da catástrofe? Esta sugestão é absurda. Mais ainda: existe algo sobre o qual estamos absolutamente certos: se a China, a Índia e o Brasil continuarem se engajando, como alegremente já o fazem – e quem pode censurá-los por isso?-, no caminho do desenvolvimento seguindo o modelo dos países industrializados, entraremos num mundo paradoxal em que a surpresa (climática) se tornará uma coisa certa, a exceção se tornará regra e nossa capacidade de agir no e sobre o mundo se tornará uma força de destruição.

Para tentar explicar o fato de que numerosos judeus da Europa tenham se recusado até o fim, mesmo já no cais de desembarque de Auschwitz-Birkenau, a acreditar na realidade da exterminação em escala industrial, Primo Levi citava o velho adágio alemão: ”As coisas cuja existência parece moralmente impossível não podem existir”. Nossa capacidade de nos fazer cegos diante da evidência do sofrimento e da atrocidade é o obstáculo principal que o profeta da desgraça deve, se não atravessar, pelo menos contornar.

A parábola de Günther Anders, além disso, põe em xeque a ideia muito facilmente aceita – e que se tornou um clichê – de que será diante das gerações futuras que teremos de responder por nossos atos.

O recurso à linguagem dos direitos, dos deveres e da responsabilidade para tratar de “nossa solidariedade com as gerações futuras” levanta problemas conceituais consideráveis, que a filosofia ocidental revelou-se incapaz, pelo essencial, de esclarecer. Testemunha eloquente disso são as dificuldades do filósofo John Rawls, cuja obra Uma teoria da justiça[5] se apresenta como a síntese de toda a filosofia moral e política moderna. Tendo colocado os fundamentos e estabelecido rigorosamente os princípios de justiça que devem gerir as instituições de base de uma sociedade democrática, Rawls é obrigado a concluir que estes princípios não se aplicam à justiça entre as gerações. Para esta questão ele oferece apenas uma resposta imprecisa e não fundamentada. A fonte da dificuldade é a irreversibilidade do tempo. Uma teoria da justiça que se apoia no contrato encarna o ideal de reciprocidade. Mas não pode haver reciprocidade entre gerações diferentes. Aquela geração que chegou depois recebe alguma coisa daquela que a precedeu, mas não pode lhe dar nada em troca. E mais grave ainda. Na perspectiva de um tempo linear, como é o tempo do Ocidente, na perspectiva de progresso herdada do Iluminismo, havia o pressuposto de que as gerações futuras seriam mais felizes e mais sábias que as gerações precedentes. Ora, a teoria da justiça de Rawls encarna a intuição moral fundamental que nos leva a dar prioridade aos mais fracos. A aporia está, então, colocada: entre as gerações, as primeiras são menos favorecidas e entretanto são as únicas que podem dar às outras gerações[6] Kant, que raciocinava neste quadro, achava inconcebível (riitselhaft) que a marcha da humanidade pudesse assemelhar-se à construção de uma morada que apenas a última geração fosse ter a satisfação de habitar[7].

Nossa situação é atualmente bem diferente, pois nosso problema é evitar a catástrofe maior. Isto quer dizer que devemos substituir o pensamento do progresso por um pensamento de regressão e de declínio? Progresso ou declínio? Este debate não tem a menor importância. Podemos dizer as coisas mais opostas sobre esta época em que vivemos e todas elas serão igualmente verdadeiras. É a mais entusiasmante e é também a mais pavorosa. É preciso pensar, ao mesmo tempo, na eventualidade da catástrofe e na responsabilidade, talvez cósmica, que cabe à humanidade de evitá-la. À mesa do contrato social, segundo Rawls, todas as gerações são iguais. Não existe nenhuma geração cujas reivindicações tenham mais peso que as outras. Mas, não, as gerações não são iguais do ponto de vista moral. A nossa e aquelas que a seguirão têm um estatuto moral consideravelmente mais elevado que as gerações precedentes, das quais podemos dizer hoje, por contraste com a nossa geração, que elas não sabiam o que faziam. Nós vivemos no presente a emergência da humanidade como quase sujeito; a compreensão de que seu destino é a autodestruição; o nascimento de uma exigência absoluta: evitar essa autodestruição.

Não, nossa responsabilidade não se dirige às “gerações futuras”, estes seres anônimos, de existência puramente virtual, e para o bem-estar dos quais ninguém jamais nos fará acreditar que temos qualquer razão para nos interessar. Pensar nossa responsabilidade como exigência de assegurar a justiça distributiva entre gerações leva a um impasse filosófico.

É com relação ao destino da humanidade que temos de prestar contas, ou seja, com relação a nós mesmos, aqui e agora. No canto X do Inferno, Dante escreveu: “Tu compreendes, assim, que nosso conhecimento morrerá a partir do momento em que a porta do futuro for fechada”. Se devêssemos ser a causa de que a porta do amanhã se feche é o sentido de toda a aventura humana que seria, para sempre e retrospectivamente, destruído: “Depois de amanhã o dilúvio será alguma coisa que terá sido. E quando o dilúvio tiver sido, tudo o que é não terá jamais existido”.

Podemos encontrar fontes conceituais fora da tradição ocidental? É a sabedoria ameríndia que nos legou a belíssima máxima: “A Terra nos foi emprestada por nossos filhos”. Claro, esta máxima se refere a uma concepção do tempo cíclica que não é mais a nossa. Entretanto, eu acho que ela ainda tem mais força na temporalidade linear, com a condição de que um trabalho de reconceitualização se complete. Nossos “filhos” – desta maneira compreendemos os filhos de nossos filhos e assim infinitamente, os que ainda não nasceram – não têm nem existência física nem jurídica e, no entanto, a máxima nos impõe pensar, sob preço de uma inversão temporal, que são eles que nos trazem “a Terra”, isto que nos sustenta. Nós não somos os “proprietários da natureza”, nós usufruímos dela. E de quem nós a recebemos? Do futuro! Que se responda: “mas o futuro não tem realidade!”, e nós apenas apontaremos a pedra de obstáculo de toda filosofia da catástrofe futura: nós não chegamos a dar peso suficiente de realidade ao amanhã.

Ora, a máxima não se limita a inverter o tempo: ela o coloca em um ciclo. Nossos filhos são, efetivamente, nós que os fazemos, biologicamente e, sobretudo, moralmente. A máxima convida, então, a que nos projetemos no futuro e que vejamos nosso presente com a exigência de um olhar que nós mesmos tenhamos engendrado. É através deste desdobramento, que tem a forma de consciência, que talvez possamos estabelecer a reciprocidade entre o presente e o futuro. Pode ser que o futuro não precise de nós, mas nós, nós precisamos do futuro porque é ele que dá sentido a tudo o que fazemos. Sartre dizia que, enquanto existirem homens livres e responsáveis, o sentido da Revolução Francesa estará sempre sustentado. Se, por infelicidade, destruíssemos toda a possibilidade de um futuro viável, seria todo o sentido da aventura humana, desde o começo dos tempos, que reduziríamos a nada. Eu repito: somos nós que precisamos do futuro, e não o futuro que precisa de nós.

Este é o sentido da atitude de Noé na parábola de Günther Anders. Colocando na cena o luto pelas mortes que ainda não se produziram, ela inverte o tempo, ou antes, ela o coloca num ciclo, negando-o assim, transformando-o em presente eterno. Mas as infelicidades do profeta da desgraça não terminaram ainda. Ou bem suas previsões se revelam corretas e a ele não se faz qualquer agradecimento, podendo até mesmo ser acusado como causador da desgraça anunciada. Ou bem suas previsões não se realizam, a catástrofe não se produz e, mais tarde, se zomba de sua atitude de Cassandra. Mas Cassandra tinha sido condenada pelo deus a que suas palavras não fossem ouvidas. Mas nunca se considera que se a catástrofe não se produziu é precisamente porque o anúncio foi feito e foi ouvido. Como escreveu Jonas: “A profecia de desgraça é feita para evitar que ela se realize; e zombar posteriormente dos eventuais sineiros de alarme dizendo a eles que o pior não aconteceu seria o cúmulo da injustiça: pode ser que seus equívocos sejam seus méritos”[8].

O paradoxo da profecia da desgraça assim se apresenta: para tornar crível a perspectiva da catástrofe é preciso aumentar a força de sua inscrição no futuro. Os sofrimentos e as mortes anunciados se produzirão inevitavelmente, este é um destino inexorável. O presente conserva a memória deste futuro catastrófico e o espírito pode se projetar no depois da catástrofe, tratando o acontecimento sob a forma do futuro perfeito. Existe um momento em que se poderá dizer que a catástrofe terá acontecido: “Depois de amanhã, o dilúvio será alguma coisa que terá acontecido”. Mas se nos sairmos demasiado bem nesta tarefa, teremos perdido de vista seu objetivo, que é precisamente motivar uma tomada de consciência e agir para que a catástrofe não se produza – “deixe-me ajudá-lo a construir a arca para que aquilo não se torne verdadeiro”.

Este paradoxo se encontra no coração de uma figura clássica da literatura e da filosofia, a filosofia do juiz assassino. O juiz assassino “neutraliza” (assassina) os criminosos sobre os quais se tem certeza que irão cometer um crime, mas a neutralização em questão faz precisamente com que o crime não seja cometido![9] A intuição nos diz que o paradoxo provém de um laço que se deveria fazer e que não se faz entre a previsão passada e o acontecimento futuro. Mas a ideia mesma deste laço não faz nenhum sentido na nossa metafísica comum, como mostra a estrutura metafísica da prevenção. A prevenção consiste em fazer com que um futuro possível que não queremos que aconteça não se atualize. A catástrofe, ainda que não se tenha realizado, conservará o estatuto de possível, não no sentido de que ainda seria possível que ela se realizasse, mas no sentido de que sempre será verdade que ela poderia ter se realizado. Quando se anuncia que uma catástrofe se aproxima a fim de evitá-la, este anúncio não tem o estatuto de uma previsão, no sentido estrito do termo: ele não pretende dizer o que será o futuro, mas simplesmente dizer o que teria sido o futuro se não se tomasse cuidado. Nenhum laço entre futuro e passado intervém aqui: o futuro anunciado não tem de coincidir com o futuro atual, a antecipação não tem de se realizar, porque o “futuro” anunciado ou antecipado não é, de fato, o futuro, mas um mundo possível, que é e que permanecerá não atual[10]. Esta configuração nos é familiar porque ela corresponde à nossa metafísica “comum”, na qual o tempo se bifurca e toma uma forma arborescente, o mundo atual constituindo um caminho no seio desta. O tempo é “um jardim de caminhos que se bifurcam”, para citar o poeta e metafísico argentino Jorge Luís Borges.

A metafísica implícita na parábola de Günther Anders é evidentemente de outro tipo. O tempo toma a forma de um laço pelo qual passado e futuro determinam-se reciprocamente. O futuro é tomado como não sendo menos fixo que o passado – “Quando se perguntou a ele quando esta catástrofe tinha acontecido, ele respondeu: amanhã” -, o futuro não é menos necessário que o passado – “Depois de amanhã o dilúvio será alguma coisa que terá sido”-, o futuro é da ordem do destino ou da fatalidade – o que significa que todo acontecimento que não faz parte nem do presente nem do futuro é um acontecimento impossível. Neste tempo a prudência não pode tomar a forma da prevenção. Ainda uma vez, a prevenção supõe que o acontecimento indesejável que se prevê seja um possível que não se realize. É preciso que o acontecimento seja possível para que tenhamos uma razão para agir; mas se nossa ação for eficaz ele não se realizará. Isso é impensável no tempo da profecia da desgraça.

O estatuto metafísico da catástrofe na profecia da desgraça é altamente paradoxal e, entretanto, ele ressoa com figuras familiares da metafísica ocidental. O acontecimento catastrófico está inscrito no futuro como um destino, é certo, mas também como um acidente contingente: podia não se produzir mesmo se, no futuro perfeito, aparecesse como necessário. Esta metafísica é a metafísica espontânea da maior parte das pessoas comuns quando elas são confrontadas com um acontecimento excepcional, por exemplo, uma catástrofe pessoal. Esta metafísica consiste em acreditar que este acontecimento, sendo produzido, não podia não se produzir; e todavia pensando que enquanto ele não estava produzido ele não era inevitável. É então a atualização do acontecimento – o fato de ele se produzir – que cria retrospectivamente a necessidade. A metafísica que deve servir de fundamento a uma prudência adaptada ao tempo das catástrofes consiste em se projetar em um tempo que sucede à catástrofe e a ver nela, retrospectivamente, um acontecimento ao mesmo tempo necessário e improvável. Esta figura é assim tão nova? Quando Édipo mata o pai na encruzilhada fatal, quando Meursault, o Estrangeiro de Camus, mata o Árabe sob o sol da Argélia, estes acontecimentos aparecem na consciência e na filosofia mediterrâneas ao mesmo tempo como acidentes e como fatalidades: o acaso e o destino se confundem. A metafísica da profecia da desgraça, ela mesma subtende a figura do trágico.

EM DIREÇÃO A UM CATASTROFISMO ILUSTRADO

Na nossa metafísica temporal ordinária, concebemos o passado como fixo e o futuro como aberto: existe um conjunto de “futuros possíveis”, mesmo se somente um vá se realizar. Eu denominei “tempo da história” esta metafísica da temporalidade; ela tem a estrutura de uma árvore e o futuro tem a forma de uma arborescência:

Tempo da História

Todo o meu trabalho consistiu em mostrar a coerência de uma metafísica alternativa da temporalidade, adaptada ao obstáculo do caráter não acreditável da catástrofe. Eu a denominei o tempo do projeto, e ela toma a forma de um laço no qual o passado e o futuro se determinam reciprocamente:

Pasado Futuro

Produção causal

Tempo do Projeto

No tempo do projeto o futuro é fixo, o que significa que todo acontecimento que não faz parte nem do presente nem do futuro é um acontecimento impossível. Logo, no tempo do projeto, a prudência nunca pode tomar a forma da prevenção. Ainda uma vez, a prevenção supõe que o acontecimento indesejável que se prevê seja um possível que não se realize. É preciso que o acontecimento seja possível para que tenhamos uma razão para agir; mas se nossa ação for eficaz, ele não se realizará. Isto é impensável no tempo do projeto.

A previsão do futuro no tempo do projeto consiste em determinar um laço entre futuro e passado de tal maneira que se encontrem uma antecipação (do passado a respeito do futuro) e uma produção causal (do futuro pelo passado). Aquele que prediz, sabendo que a predição vai produzir efeitos causais no mundo, deve ter isso em conta se ele quer que o futuro confirme o que ele previu.

Tradicionalmente, ou seja, num mundo dominado pelo religioso, esta figura é a do profeta e, mais especificamente, a figura do profeta bíblico. É um homem extraordinário, frequentemente excêntrico, que não passa despercebido. Suas profecias têm um efeito sobre o mundo e sobre o curso dos acontecimentos por essas razões puramente humanas e sociais, mas também porque os que as escutam acreditam que a palavra do profeta é a palavra de Yahvé e que esta palavra, que não pode ser ouvida diretamente, tem o poder de fazer acontecer aquilo que ela anuncia. Nós diríamos hoje que a palavra do profeta tem um poder performativo: dizendo as coisas, ela as faz vir a existir. Ora, o profeta sabe disso. Poderíamos ser tentados a concluir que o profeta tem o poder de um revolucionário: ele fala para que as coisas mudem no sentido que ele quer imprimir a elas. Isto seria esquecer o aspecto fatalista da profecia: ela diz o que são os acontecimentos que virão tais como eles estão escritos no grande rolo da história, imutáveis, inelutáveis. A profecia revolucionária guardou esta mistura altamente paradoxal de fatalismo e de voluntarismo que caracteriza a profecia bíblica. O marxismo constitui a ilustração mais impressionante disso.

Entretanto, aqui eu falo de profecia num sentido puramente laico e técnico. O profeta é aquele que, mais prosaicamente, procura o que um matemático chamaria o ponto fixo do problema, o ponto em que o voluntarismo realiza exatamente o que dita a fatalidade. A profecia se inclui no seu próprio discurso, ela se vê realizar o que ela própria anuncia como destino. Neste sentido, os profetas são inúmeros nas nossas sociedades modernas, democráticas, fundadas na ciência e na técnica. A experiência do tempo do projeto é facilitada, encorajada, organizada, de fato imposta por muitos traços de nossas instituições. Por toda parte, vozes mais ou menos autorizadas proclamam o que será o futuro mais ou menos próximo: o tráfego rodoviário do fim de semana próximo, o resultado das eleições por vir, as taxas de crescimento e de inflação do ano próximo, a evolução das emissões de gás de efeito estufa etc. Estes profetas que denominamos previsionistas sabem muito bem, e nós também, que esse futuro, que eles nos anunciam como se estivesse escrito nos astros, somos nós que o faremos. Nós não nos rebelamos diante do que poderia passar por um escândalo metafísico (exceto, por vezes, como eleitores). É a coerência desse modo de coordenação a respeito do futuro que eu me dispus a explicitar.

O melhor exemplo que eu conheço da previsão do futuro no tempo do projeto é o da planificação francesa como a havia concebido nos anos 1950 o economista Pierre Massé. Ele sintetizava esse espírito na seguinte fórmula fulgurante: ”A planificação visa obter pelo debate democrático uma imagem do futuro suficientemente otimista para ser desejável e suficientemente verossímil para desencadear as ações que resultarão na sua própria realização”. Esta fórmula só pode encontrar sentido na metafísica do tempo do projeto, no qual ela descreve perfeitamente o laço que liga o passado e o futuro. A coordenação aí se realiza sobre uma imagem do futuro capaz de assegurar o fechamento do laço entre uma produção causal do futuro e sua antecipação autorrealizadora.

O paradoxo da solução catastrófica para o problema das ameaças que pesam sobre o futuro da humanidade está agora colocado. Trata-se de dirigir-se por um projeto negativo que toma a forma de um futuro fixo, de um destino, que não queremos. Poderíamos pensar em transpor a fórmula de Pierre Massé assim: “Obter pela futurologia científica e pela meditação sobre os fins do homem uma imagem de futuro suficientemente catastrófica para ser repulsiva e suficientemente verossímil para desencadear as ações que impedirão sua realização”, mas esta formulação é evidentemente autocontraditória. Se conseguimos evitar o futuro indesejável, como podemos dizer que nos coordenamos tomando como ponto fixo o futuro em questão? Não se trata de futuro se impedimos sua realização.

É sempre o mesmo paradoxo.

Para dizer qual foi minha solução para este paradoxo, seria necessário entrar na tecnicidade de um desenvolvimento lógico e metafísico, e este não é o lugar de fazê-lo[11]. Eu me contentarei em dar uma ideia intuitiva da minha solução. Ela consiste em contar com o incerto – mas um incerto cuja natureza e estrutura escapam às categorias tradicionais do cálculo de probabilidades.

Trata-se de ver sobre que tipo de ponto fixo se fecha, neste caso, o laço que liga o futuro ao passado no tempo do projeto. O futuro catastrófico não pode ser este ponto fixo, nós o sabemos: os sinais que ele enviaria para o passado desencadeariam ações que impediriam que este futuro catastrófico se realizasse. Se o efeito dissuasivo da catástrofe funcionas ­ se perfeitamente, ele se autoaniquilaria. Para que os sinais provenientes do futuro atinjam o passado sem desencadear aquilo mesmo que vai aniquilar sua fonte – o futuro em questão -, é preciso que subsista, inscrita no futuro, uma imperfeição do fechamento do laço. Eu propus acima transformar a fórmula pela qual Pierre Massé descreveu a ambição antiga da planificação francesa, para dizer o que poderia ser a máxima de um catastrofismo racional. Eu acrescentei que, imediatamente expressa, esta máxima tombaria na autorrefutação. Vemos agora como poderíamos corrigi-la para evitar-lhe esta sorte indesejável. Isso seria: “Obter[…] uma imagem do futuro suficientemente catastrófica para ser repulsiva e suficiente verossímil para desencadear as ações que impedirão sua realização, salvo em um acidente”[12].

Nós reencontramos através de um caminho lógico-metafísico o ponto para o qual a análise filosófica e literária nos conduziu. O tempo do projeto permite pensar rigorosamente esta dialética do destino e do acidente que identificamos no coração do trágico. A catástrofe é nosso destino, mas, para que ela aconteça, é preciso a intervenção do acidente. O acidente, que procede da contingência, é o contrário do destino, que procede da necessidade. Mas, sem este contrário, o destino não poderia se realizar.

Aí reside nossa possível salvação. Porque podemos usar de astúcia com o destino catastrófico, afastando-o do nosso caminho, retardando, em todo caso, o seu prazo de vencimento, cortejando a deusa Fortuna para que o acidente não se realize. Pensemos na dissuasão nuclear durante a guerra fria. Não foi a intenção manifesta de destruir o inimigo com um segundo ataque de retaliação que o dissuadiu de atacar primeiro. Houve uma parte enorme de acaso. Dezenas de vezes nós escapamos “por um triz” da guerra nuclear. Este flerte permanente com o acidente que teria permitido ao destino apocalíptico se realizar foi o que deu aos governantes a sabedoria de fazer tudo para evitá-lo. A sabedoria consiste aqui em jogar com fogo: não nos aproximarmos demais dele porque corremos o perigo de nos queimar; tampouco nos afastarmos demais porque ele nos protege, lembrando-nos sem cessar o perigo ao qual ele nos expõe.

Em outros termos, como dizia o poeta Hölderlin, o que pode nos salvar é o mesmo que nos ameaça: “Lá onde cresce o perigo cresce também o que salva”[13].

Tradução de Ana Szapiro.

Notas

  1. Por exemplo, o que eu tentei fazer no meu Pour un catastrophisme éclairé, Paris: Seuil, 2002, 2009 (Coll. Points), trad. brasileira: O tempo das catástrofes. Quando o impossível é uma certeza, São Paulo: É Realizaões, 2011. 
  2. Bernard Williams, Moral luck, Londres: Cambridge University Press, 1981. 
  3. Hans Jonas, Pour une éthique du futur, Paris: Rivages Poche, 1998, p. 103. 
  4. Citação encontrada às pp. 84 e 85 (grifo meu) do livro de Thierry Simonelli, Günther Anders. De la désuétude de l’homme, Paris: Éditions du Jasmin, 2004. Simonelli seguiu o texto alemão do primeiro capítulo do livro de Anders, Endzeit und Zeitende [Tempo do fim fim dos tempos], Munique: C. H. Beck, 1972. Anders contou, em outros lugares e sob outras formas, a história do dilúvio, especialmente em Hiroshima est partout, Paris: Seuil, 2005. 
  5. John Rawls, A theory of Justice, Cambridge: Harvard University Press, 1971. Obra traduzida para a língua portuguesa: Uma teoria da justiça, São Paulo: Martins Fontes, 1997. 
  6. John Rawls, op. cit., seção 44, “O problema da justiça entre as gerações”. 
  7. Immanuel Kant, Ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, São Paulo: Brasiliense, 1986. 
  8. Hans Jonas, Le principe responsabilité. Une éthique pour la civilisation technologique, Paris: Flammarion,1995, p. 233 (Coll. Champs). 
  9. Pensamos em um episódio do Zadig de Voltaire. O tema foi objeto de uma sutil variação pelo escritor americano de ficção científica Philip K. Dick, em “Minority report”. Steven Spielberg fez um filme sobre este conto em que uma polícia do futuro é capaz de prever os crimes e de impedi-los de se produzirem, frequentemente em um quarto de segundo antes que sejam cometidos. Um dos policiais tem escrúpulos: “Mas nós prendemos pessoas que não fizeram nada”. “Mas elas iam fazer”, responde outro policial. “Nossas previsões nunca são falsas.” Um terceiro diz então: “Mas não é o futuro, se o impedimos de acontecer. Isto não é um paradoxo insustentável?”. É precisamente este paradoxo que eu tento esclarecer. 
  10. Pensemos nas previsões sobre o tráfego de automóveis quando anunciam a condição do tráfego nas estradas nos dias de movimento intenso, com o objetivo – evidente, mas não confessado – de desencorajar os condutores a pegar a estrada. 
  11. Eu me permito enviar o leitor interessado para a bibliografia da nota 159 de Pour un catastrophisme éclairé, op. cit. 
  12. Pode-se querer quantificar o “peso” deste acidente. Digamos que é um E, por definição, fraco ou muito fraco. A explicação que precede pode-se então dizer de maneira condensada: é porque a dissuasão não funciona com um peso E que ela funciona com um peso 1-E. O que poderia passar por urna tautologia (seria evidentemente o caso na metafísica do tempo da história) não o é absolutamente aqui, pois que a proposição precedente não é verdadeira para E = 0. O fato de que a dissuasão não funciona com um peso E estritamente positivo é o que permite a inscrição da catástrofe no futuro, e é esta inscrição que torna a dissuasão eficaz, com um peso 1-E. Notemos que seria incorreto dizer que é a possibilidade do erro, com o peso E que salva a eficácia da dissuasão – como se o erro e a ausência de erro constituíssem os dois ramos de urna bifurcação. Não existem trilhas que bifurquem no tempo do projeto. O erro não é apenas possível, ele é atual, inscrito no tempo – de algum modo semelhante a urna falha da pena. A descontinuidade para E = o sugere que há aqui em operação algo corno um princípio da incerteza, ou antes, de indeterminação. Os pesos E e 1-E se comportam como probabilidades em mecânica quântica. O ponto fixo deve, além disso, se pensar aqui como a superposição de dois estados, um que é a ocorrência acidental e fatal da catástrofe, e outro que é sua não ocorrência. 
  13. Friedrich Hölderlin, “Patmos”, 1808. 

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