1996

Cidades desmedidas

por Nelson Brissac Peixoto

Resumo

Qual é a situação atual da arquitetura e do urbanismo? Partindo de uma reflexão sobre a metrópole contemporânea, seus vazios e suas arritmias, constata-se a oposição entre a arquitetura clássica – homogênea, contínua, adequada à ideia de projeto que busca criar simpatia- e a arquitetura contemporânea – heterogênea, plural, atravessada por vazios e que evidencia conflitos.

A essência da arquitetura é locar, prover abrigo. Como então a arquitetura, que não tem projeto, dá lugar? Para Derrida, na medida em que não tenha ainda nem lugar nem forma arquitetônica que lhe seja própria. Uma arquitetura que evita a finalidade que lhe é atribuída: a habitação.

Boulée, no final do século XVIII, propõe uma arquitetura imaterial, feita de sombras. Arquitetura feita do que não é arquitetura, a anti-arquitetura.

As metrópoles de hoje são exemplos da perda de controle do espaço, da medida, do senso de proporção e da própria ideia de razão. A sucessão frenética de estilos provoca o desmoronamento do arquitetônico, o pós-arquitetônico, do estrutural ao visual, do matemático ao pictório.

A cidade pode ser paisagem somente para aqueles que são passantes, que têm o olhar deslocado, pois paisagem é o lugar daqueles que não têm lugar. Para Kant, se tem paisagem “toda vez que o espiríto se desprende de uma matéria sensível para outra”. A cidade planejada, pré-concebida é uma impossibilidade. O projeto não é mais possível e a atuação do arquiteto deve se dar nessa trama complexa, nessas cidades polifônicas.


A arquitetura e o urbanismo contemporâneos possuem uma aeração. A cidade, armada por uma nova trama de vetores, acelera, se desloca. Um espaço complexo é instaurado pela justaposição desses dispositivos. Esse impulso provoca sucessivas defasagens e arritmias, coisas rateiam e param, outras são submetidas a uma força desagregadora. O tecido se esgarça, fraturas rasgam a cidade. Um estilhaçamento que converte a nebulosa urbana num amálgama de áreas desconectadas.

Esses vazios constituem a cidade. Intervalos e desmaterialização são mecanismos da expansão urbana. Ao avançar, a cidade deixa um vácuo atrás de si. O desenho urbano tradicional — dotado de um centro e limites externos — é subvertido: o que está à margem torna-se central. Situação oposta às zonas de extremo adensamento, aos espaços saturados constituídos pela sobreposição de inscrições e pelo acúmulo de coisas e detritos. Em vez do muro, o vazio; em vez da inércia, a aceleração.

Hiatos na narrativa urbana, interrupções no seu contínuo histórico, esses espaços intermediários não são simplesmente passivos, zonas mortas. Eles provocam rearticulações no desenho urbano, pela conexão de elementos afastados. A cidade se constrói entre suas áreas de assentamento, entre suas zonas de ocupação, no meio. O terreno vago é um paradigma da cidade.

A aceleração vai aumentando o empobrecimento dos lugares, reduzidos a pistas e arquiteturas da viagem. A antiga função dos espaços desaparece na supressão geográfica das distâncias. O espaço do passageiro escapa a toda localização: seu meio é o não-lugar do movimento. A desurbanização deve-se a esse domínio do movimento, à aceleração dos deslocamentos, lançando as pessoas no não-lugar do transporte contínuo. A moradia só subsiste como apêndice da errância acelerada.

Pode-se ainda falar aí de arquitetura? Imensas zonas abandonadas coexistem com áreas de ocupação intensa e desordenada: desaparição da arquitetura. Hoje todo retrato de cidade mostra não o estado dos lugares, mas a rapidez do seu desaparecimento. Há uma aceleração da imagem urbana. Os vários períodos estilísticos sucedem-se tão depressa que se convertem em sequências do desmoronamento geral do arquitetônico.

Uma arquitetura corresponderia a esse nomadismo, guardando o mesmo caráter desassentado e instável. Formas fragmentadas e perdidas em reflexos espelhados, espaços simulando transparência, estruturas variáveis ou móveis que provocam inquietação e estranhamento. Construções que refletem as mudanças contínuas e os deslocamentos abruptos da urbe contemporânea.[1] Aparente paradoxo: o deslocamento suprime as fundações, princípio básico de toda arquitetura. Ela agora se constrói nesse espaço de trânsito. Uma arquitetura em movimento, do não-lugar. Essa tentativa de mapear as novas reverberações da cidade faz com que a territorialidade perca seus pontos fixos e torne-se ambulante, ambientes vagabundos que recusam os princípios do lugar e da morada em favor da deriva. O que pode ser construído nessa terra de ninguém, nesses corredores onde nada fica em pé?

Entramos numa era pós-arquitetônica. A capacidade tradicional de organizar o espaço e o tempo entra em conflito com o poder dos meios de comunicação. A delimitação das superficies é substituída pelo contato instantâneo da interface. No vórtice desse processo, a crise da noção de dimensão, engendrando outro espaço: a tela tornou-se o lugar. As três dimensões do espaço construído são transferidas para as duas dimensões da tela. A arquitetura torna-se superficial.

Uma nova disposição territorial — negativa, em permanente tensão — conforma-se aí: um espaço crítico.[2] Os meios de comunicação anulam a diferença entre o próximo e o longínquo. Privado de limites objetivos, o elemento arquitetônico se põe então a derivar, a flutuar num éter eletrônico sem dimensões espaciais.

O próprio espaço urbano perde sua realidade topogeográfica em benefício desses sistemas de deportação instantânea. A intercambialidade dos lugares produz uma desertificação generalizada. Os espaços do arquiteto são desdobrados pelos planos-sequência ininterruptos das telecomunicações. O cinematismo propaga a imagem de uma cidade sem urbanismo. A metrópole se converte numa nebulosa dilacerada, desprovida de localização, distribuída em torno das vias de transporte em alta velocidade que a atravessam de ponta a ponta.[3]

Uma arquitetura da luz surge daí: a luz de uma emissão cinematográfica ou televisiva. A representação arquitetônica diz agora respeito a todos os pontos de vista e espectadores do espaço construído. Ela se converteu em imagem arquitetônica. Venturi[4] detecta — com Las Vegas e suas fachadas decoradas — a transformação da estrutura arquitetônica em representação da arquitetura, num outdoor. Agora vai-se ainda mais longe: essa representação é apenas um espectro cinético-eletrônico projetado no ar.

O princípio da transparência, que Benjamin já percebe na arquitetura de vidro moderna, é levado ao paroxismo. A eliminação da resistência dos materiais implica uma completa desmaterialização da arquitetura. O automóvel e o monitor de tv tornam autônoma a janela, desintegrando a estrutura arquitetônica tradicional. A parede-tela funde arquitetura e técnica de projeção. A arquitetura de espaços é substituída por uma arquitetura de imagens.

O que o cinema tem em comum com o aparato militar, a arquitetura e o urbanismo? Eles podem ser tomados como mecanismos de mobilização.[5] Deslocam, movimentam, abolem fronteiras, ampliam sem cessar o espaço. O cinema se converte num dispositivo arquitetônico e a arquitetura num dispositivo cinético.

A analogia entre a câmera e o revólver ganha aqui conotação mais radical. Tudo serve para suprimir limites e ampliar o território. Tudo está a serviço do movimento. A definição do fuzil telescópico — mirar e fotografar um objeto se deslocando no espaço — vale não só para o cinema mas, com seus termos invertidos, também para a arquitetura: desde Venturi se entende a construção como algo para ser visto por quem passa em velocidade. Resultado do rompimento da estrutura arquitetônica, transformada em signo, em alvo.

O cinema se liberta da arquitetura pesada e opaca dos cenários através da iluminação e da montagem. As elipses narrativas e o tempo cinemático criam outros espaços. A visão escapa das limitações espaciais e adquire potência veicular: cria-se um cinema do movimento de câmera e do travelling. A arquitetura contemporânea é feita para quem a percorre e observa de todos os ângulos.

Existe uma arquitetura da viagem, embora o viajante pareça não tanto aquele que constrói paisagens — ofício do sedentário — mas aquele que as desmonta e desagrega. Como o barão Von R., de quem diz Hoffmann que andava pelo mundo colecionando panoramas e, para desfrutar uma bela vista, mandava cortar árvores ou nivelar o terreno, se atrapalhavam a pers pectiva. Mas também a destruição é uma arquitetura, uma arte de decompor e recompor: quando uma parede de folhagem caía subitamente, revelando as ruínas de um castelo longínquo na luz do pôr-do-sol, o barão parava por instantes para contemplar o espetáculo que havia encenado e depois tornava a partir às pressas para nunca mais voltar.[6]

Quando então é que se tem paisagem? Kant[7] diz que é toda vez que o espírito se desprende de uma matéria sensível para outra, conservando nesta a organização sensorial conveniente para aquela, ou pelo menos sua lembrança. A Terra vista da Lua pelos habitantes da Terra, o campo para o citadino, a cidade para o agricultor. A montanha vista pelo desenho a vôo de pássaro, mas também pela toupeira, que em vez de horizonte tem a toca. O paisagista é aquele que vê as coisas de outro ponto de vista. Há paisagem sempre que o olhar se desloca, o desenraizamento é sua condição.

A paisagem é o lugar dos que não têm lugar. O contrário do que é ligado à destinação, à domesticidade.[8] Do que é habitável, morada. Privilégio de cidades estrangeiras visitadas pela primeira vez, dos desertos, ruínas, céus pitorescos: serem desorientadores. Não acolhem, desolam o espírito. Interrompem o tempo e o espaço, impõem uma pausa ao pensamento. Sem isso não seriam paisagens, mas lugares — a que se possa pertencer. É por isso que para ser passível da paisagem é preciso ser impassível ao lugar: o lugar é natural, onde tudo se oferece ao saber, ao passo que a paisagem é demasiada presença.

A cidade — até mesmo uma praça circundada por milhares de veículos — pode se fazer paisagem. Mas só para o passante solitário: é preciso impor silêncio à conversa, mesmo interior. A praça convertida num templo, espaço-tempo neutralizado onde algo pode acontecer. Suspensão que dá lugar a uma presença.

O domus é um espaço e um tempo comum. É isso que constitui o lugar. Um espaço-tempo doméstico, compartilhado por todos, onde cada um encontra seu lugar e seu nome. Sob o regime da natureza, dotado de ritmo e rima. Aqui o passado é cultivado, as palavras alimentam as histórias — a narração. A comunidade cultiva a morada, a obra comum é o domus. A cidade, ao contrário, é outra regulagem do espaço e do tempo. Sob o ritmo da informação e dos transportes, ela só conhece o domicílio, a memória do arquivo anônimo.[9]

Como, então, habitar a metrópole? Apenas testemunhando a impossibilidade do domus, a sua perda. Só viveríamos na megalópole ao designá-la inabitável. Caso contrário, só temos domicílio nela. A domesticidade acabou para sempre. O pensamento não pode querer sua casa. O indomável é o que não tem morada, o que não pode ser representado. Colocar-se à margem — o mesmo deslocamento que exige a paisagem: habitar o inabitável.

É através de duas figuras que o sublime se apresenta na paisagem e na arquitetura: a tempestade e a torre de Babel. Poussin — e todo o paisagismo do século XVII — se dedica a representar o que não pode sê-lo: o raio, o trovão, enfim, a tempestade. A alegoria da gênese das cores ali contida (branco-vermelho-preto) conta a história da destruição da pintura pela representação do irredutível da tempestade.[10] Leva a pintura — o paisagismo clássico — ao seu limite, à dissolução. Ao ponto em que, nesse espaço tornado indefinido, algo pode ocorrer.

O equivalente, na arquitetura, à tempestade na paisagem é a torre de Babel. Ler o templo — como ao Livro — é apreendê-lo na forma arquitetônica do arco. Aqui o fim de toda linguagem — tal como a tempestade que apresenta o grito irrepresentável — presentifica o inominável nome. A palavra divina é o arco — enfim, a medida — de toda arquitetura.

A articulação arquitetônica da torre de Babel só pode se fazer pela desarticulação das linguagens particulares. A incomunicabilidade no canteiro de obras — na cidade — é de fato a apresentação do Nome incomunicável. Traduzi-lo seria uma tarefa sem fim, como testemunha a construção interrompida — lugar suspenso, da ocorrência — cujo topo deveria ocupar o espaço infinito e sem forma das nuvens.

Babel figura na história da arquitetura aquilo que a tempestade indica na da pintura: a equivalência de projeto e ruína. Numa só construção, o intuito e sua impossibilidade. Como o clarão de um raio, que atenta contra a própria pintura. O efeito babélico da tempestade: apresentar o irrepresentável. Essa construção suspensa é o princípio da arquitetura contemporânea.

A torre de Babel é a mais imaginária das edificações. Indica que o universo é uma construção cujos habitantes são pequenos demais para tomá-lo como uma só forma. Imagens como esta atentam contra o foco do olhar, desestabilizando justamente a posição da qual se olharia a cena. Ocupações excêntricas do espaço, criam desequilíbrios e disjunções, um movimento centrífugo que expele as coisas em diferentes direções. São lugares do impreciso, em que a visão se quebra em partes indistinguíveis. Aqui os grandes panoramas dependem de narrativas passo a passo, como o passeio por um jardim.

A torre simboliza o retorno da Maravilha ao cenário arquitetônico das cidades modernas. Monumentalidade extrema, afirmação da autonomia do edifício isolado, põe em xeque a inscrição do objeto arquitetural no seu contexto. Ela é negação de tudo o que não é ela. Tal como o instante fotográfico é uma interrupção que faz emergir o invisível do filme, a Maravilha destaca a arquitetura. Esse lugar recortado remete ao seminário descrito por Barthes, como um jardim, em paz num mundo em guerra, mas isolado de tudo que o cerca.

Ao inverso da arquitetura contextualizada, a edificação maravilhosa é um objeto desconcertante, que faz com que o princípio de localização seja momentaneamente suspenso. Mais ainda: a surpresa que a construção provoca vai além dela própria. O olhar é desviado para outro espaço, uma distância interna aberta pela construção mas que não pertence propriamente a ela. Algo que não é um objeto, mas que sem ele não se poderia ver: um espaço intensivo.[11] A arquitetura, descreve Gideon, foi criada para confrontar estruturas à imensidão do céu.

Aparição da arquitetura em lugares dos quais nossa atenção foi desviada. Arquitetura é uma disciplina do lugar outro. Ela deve ser surpreendida em lugares em que, propriamente, não teria direito de estar.

Boulée propôs uma arquitetura da ordem do sublime. A obra deixa de depender de proporções humanas e naturais, apoiando-se antes na impressão que pode causar. Os critérios de apreciação passam do estrutural ao visual, do matemático ao pictórico. A arquitetura é levada aos seus limites — o não-arquitetônico, a impressão de mistério, autenticidade ou eternidade que seus elementos possam produzir. Ele chega a amplificar o efeito que buscam seus portais e tumbas piramidais, pintando-as em meio a tempestades, como sombras fantasmáticas aparecendo por trás das nuvens. O mesmo efeito atmosférico que se via em Turner.

Boulée é um fabricante de infinitudes. Ele introduz no espaço uma multitude de detalhes, de modo que o espectador é levado a apreender a eternidade minuto a minuto. O espaço contém mais experiência do que se pode dar conta, numa dimensão tal que imobiliza o eventual frequentador.

O edifício não é relativo ao espaço em que se situa. É uma forma racional confrontada a uma natureza poderosa e diversa. A forma arquitetônica não se insere no espaço mediante um sistema de planos-seções que o organizam e constroem, ela se coloca no espaço natural como um objeto dotado de significação própria.[12]

Essa negatividade leva Boulée a propor uma arquitetura imaterial, não mais feita de pedras mas de sombras. Muito do que concebeu são efeitos de luz, elevados à condição de formas arquitetônicas. Não por acaso quase nada foi construído. A arquitetura passa a ser feita daquilo que não é arquitetura, como se desse outro é que brotasse o seu segredo. Essa antiarquitetura do fim do século XVIII seria o resultado da busca do sublime na arquitetura.[13]

Todo lugar arquitetônico pressupõe que a construção seja localizada numa estrada, num cruzamento, à qual chegar e partir seja possível. A arquitetura está vinculada à criação desse caminho. Esse constante “estar em movimento” — no meio — transforma a estrada num labirinto. Não tem princípio nem fim, não tem saída: nele se está sempre andando.

Uma nova ideia de construção é introduzida, que não pressupõe sua habitabilidade. Eisenman diz que sua arquitetura é para dois tipos de pessoas: os desabrigados — que não têm casa — e os prisioneiros — que não querem o lugar que lhes foi destinado. “Ser um lugar” — a “casa em que se sente em casa” — converte-se numa nova e diversificada trama de referências, que não tem mais o homem como paradigma. Aqui não há pertencimento possível. A paisagem é o lugar dos deslocados. Arquitetura para quem não tem lugar.

Trata-se de uma arquitetura não representativa. Não há mais como enunciá-la de um só modo. É o que nos leva do labirinto à torre de Babel. A arquitetura permanece uma diversidade de pontos de vista possíveis. Se a torre tivesse sido completada não haveria arquitetura.

A contemporaneidade estabelece uma nova relação com o divino, que não se manifesta nas formas das divindades mas concebe a arquitetura através da dimensão do alto — do sublime. Arquitetura não é uma questão de espaço, mas uma experiência — mais antiga — do supremo. O evento é o estabelecimento de um lugar habitável. Diz Mallarmé: o que tem lugar é o lugar. Arquitetura aqui é vontade de uma nova forma. Daí Babel: uma promessa de lugar, ainda que sem arquitetura, ainda que não se possa mantê-la em sua forma visível. Onde o desejo — o desmedido, o que não tem lugar — possa habitar.[14]

As construções representadas nos desenhos de Piranesi não parecem feitas de madeira e pedra. Elas se assemelham mais a um plano divorciado da gravidade. Arquiteturas intrincadas e difíceis, feitas de ideias. Espaços desprovidos de centro, com escadas que se desenrolam infinitamente. Cada planta é uma imagem de uma edificação não sintetizável, inexistente. Um organismo que pretende ter centralidade, mas nunca a alcança. O centro, que presumivelmente deveria atrair — a lógica da rotunda —, na verdade atira para a periferia do edifício, através de um aparato de escadas que força os limites da construção. A edificação é uma justaposição de criptas e corredores que formam um fluxo contínuo, um vazio intrincado e irredutível a qualquer percurso linear.

O “arquiteto perverso” procura ocupar o vazio que não pode ser representado, o lugar onde o projeto sempre acaba, o espaço entre o planejamento e a construção. Uma arquitetura do desejo, na qual o desejo faz o significante parecer heterogêneo. Os desenhos de Piranesi são uma arquitetura de significantes flutuantes, que sanciona o divórcio definitivo entre os signos arquitetônicos e seu significado.[15]

A construção de situações, a modulação da cidade em função de práticas lúdicas e oníricas, visa a um espaço existencial que possibilite a deriva e os encontros. Urbes em perpétuo movimento — transportes contínuos e reconstruções permanentes — engendrando uma nova realidade que só se materializa em acontecimentos. A cidade é convertida num acampamento nômade, onde os habitantes estão em mudança contínua, contra uma pai sagem que troca de hora em hora. A arquitetura deve fazer da vida um jogo de desejos.[16]

Uma crítica da arquitetura urbana fixa, monumental, em favor do móvel e do nômade. A colportage do espaço, na experiência do flâneur, descrita por Benjamin, converte-se numa “arquitetura vagabunda” que transforma a cidade segundo as situações. Processos de mutação, que deslocam e reatribuem significado aos lugares. Uma arquitetura da deriva — cidade em movimento para habitantes-viajantes — baseada em espaços flexíveis e lúdicos.

A mesma distinção entre o espaço nômade e o espaço determinado pelo Estado. Nomos contra polis. Um espaço sedentário, rigorosamente parcelado e cercado pelas instituições do poder, é contrastado pelo espaço do nomadismo, liso e fluido, sem fronteiras. Um espaço produzido pelo movimento — em contínua variação, aberto e turbulento, onde os fluxos se distribuem — em vez de um espaço fechado, feito para coisas lineares e sólidas.[17]

Ao contrário do migrante, o nômade faz da desterritorialização sua relação com a terra, convertida em simples solo, suporte de suas andanças. Ele é que cria o deserto, o mar, as regiões geladas. Converte tudo num espaço liso. É a subordinação do habitat ao percurso, a conformação do espaço interior ao exterior: a tenda, o barco e o iglu. Um espaço de distâncias, não de medidas. Ocupado por intensidades táteis e sonoras, como o vento e os ruídos — o canto da areia e o quebrar do gelo —, enquanto o espaço sedentário tem o céu e suas qualidades visuais como medida.

A questão da descontinuidade foi colocada pelo artista dos espaços despóticos, Kafka.[18] Esses espaços paranoicos, como a muralha da China, apresentam uma insuperável fragmentação: tão logo terminam um bloco, os trabalhadores são enviados para longe dali a fim de fazerem outro, deixando por toda parte brechas que nunca serão preenchidas.

Dois modos arquitetônicos complementares se configuram nessa situação. Primeiro, uma visão de cima, buscando ser abrangente — materializada na torre —, que articula fragmentos que giram, à distância, em torno dela. O espaço disperso requer a torre, símbolo da autoridade transcendente. É o “modelo astronômico”. Embaixo, temos outro tipo de construções, rasteiras, próprias ao nomadismo, que atravessam todo o campo. O inacabado aqui não é mais o fragmentário, mas o ilimitado. O “modelo terrestre” é constituído por passagens ou corredores em que dois pontos diametralmente opostos revelam-se, supreendentemente, em contato: de um lado, portas afastadas, de outro, portas contíguas.

A situação combina o muro e a estrada, a espiral e a linha. Aqui o próximo e o distante, o contíguo e o afastado, fazem parte de duas dimensões: a altura e o comprimento. Tentativa de articular um espaço fragmentado, através das intransponíveis descontinuidades entre suas partes. Intervalo que guarda a marca tanto do passado como do futuro, desdobramento de um volume que produz seu próprio espaço. Um “espaçamento”: produção de uma dimensão dentro dela mesma e não mais organizada a partir de outro lugar ausente, de uma ilocalidade, de um álibi ou de uma utopia.[19] Uma diferença, que não se faz mais entre uma coisa e outra, mas no interior da própria coisa. Configuração de um campo que assimila dentro de si próprio a diferença, o desdobramento em outro. Como um lugar de passagem. Um terreno vago, um deserto urbano.

Uma estética da desaparição surge daí. Podem-se usar figuras militares para descrevê-la: para aqueles que perseguem, trata-se de abolir o intervalo, preencher a diferença. Para os que procuram escapar, suas armas são meios de distanciamento: eles habitam o espaço que os separa dos outros e devem a vida à manutenção desse vazio. A marcha — levada ao paroxismo com os meios atuais de avanço em velocidade — visa preservar esse espaçamento. Eles têm de evitar tudo aquilo que os vincule — estradas, construções — ocultando-se nos desvãos do terreno. Dissimular todos os pontos de referência de vastas extensões. A paisagem urbana passa pelo mesmo processo de esvaziamento que o campo de batalha. A prática da desaparição é uma produção de interstícios.

Essa noção de espaçamento serve para pensar especificamente o urbanismo e a arquitetura. A distância entre elementos é componente fundamental: porta e janela são mantidas à parte, o chão e o teto são afastados. Trata-se de tomar esse espaço não como uma fissura numa unidade, mas como um dado primário da edificação. O espaçamento é parte das múltiplas relações da construção. A distância entre as coisas é fundamental na arquitetura.[20]

A experiência de morar pressupõe a distância. Tradicionalmente vista como impedimento do habitar, a distância, ao contrário, aqui se converte em condição da construção. A distância é experimentada como sempre envolvendo a insuprimível presença do outro. Espaçamento entendido como lugar de uma pluralidade potencial. Distância que é não uma abertura num todo fechado, mas um dado original. A relação entre a construção e o que não é construído, esse espaçamento, é constitutivo dela.

A arquitetura tradicionalmente é remetida à escala humana. Desejo humano de presença, de origem. O scaling de Eisenman procura desestabilizar essa “metafísica de escala”. Suprime a medida do homem. Introduz uma estrutura descontínua, relações sem hierarquia, nem medida. A preservação ou a fixação de pontos significativos de referência são excluídas. Em vez disso, um outro tipo de intervenção (scaling): superposição, em escalas diferentes, do plano da região, de modo a misturar todas as referências fixas, anulando as marcas tradicionais da cidade. Um projeto de dessemantização da cidade.

A própria arquitetura passa a explorar a questão da escala. As casas variam conforme o ponto de vista do observador, entre o desenho e o edifício ou entre o modelo e a construção. São feitas em várias escalas, concebidas de modo a serem vistas ao mesmo tempo como um objeto tridimensional, projeção axonométrica e plano.[21]

Não se trata mais de organizar o espaço como uma função — tendo em vista considerações econômicas, utilitárias ou estéticas. Essas normas são reinscritas num espaço em que não têm mais a última palavra. Ao se levar a arquitetura ao limite, um lugar é aberto para as “folies”,[22] uma trama que distribui um número infinito de elementos num espaço que ela constitui. Contra as regras de ocupação do território e de construção do abrigo, as frivolidades não demandam funções, como vias que não levam a parte alguma ou espaços que nada podem conter. Dois aspectos formais são desnaturados: o eixo e o percurso. O eixo deixa de pretender controlar o território e passa a ligar em sequência não necessariamente significante objetos e vistas. O percurso deixa de pressupor uma narrativa, de dar caráter simbólico aos lugares.

Livrar a arquitetura de suas finalidades — do arco, da morada — não para construir algo que seja inútil ou inabitável, mas para liberá-la de finalidades externas. Não para reconstituir uma arquitetura original mas, ao contrário, para colocá-la em comunicação com outras artes e mídias, para contaminar a arquitetura.[23]

O tecido urbano, tensionado, rasga: espaços periféricos, marginais. A arquitetura vem intervir numa trama de circuitos de comunicações. Malha que encobre desertos urbanos: cidade fraturada. Uma rede esticada e vazada, sempre a ponto de romper, suas diferentes partes ameaçadas de dispersão. Um museu em Berlim[24] sobre a história judaica serve para evidenciar a impossibilidade de ter ali um lugar, o que não está ali. O muro é índice de uma insuperável ruptura. O projeto consiste numa linha tortuosa, mas contínua. Correndo por fora, um terreno arruinado. A fragmentação é constitutiva do projeto: as partes rasgadas nunca pertenceram à cidade nem poderão jamais ser a ela integradas.

Arquitetura em espaços residuais, intersticiais, entreconstruções. Um projeto para uma universidade opera uma sobreposição da planta da antiga biblioteca ao traçado do campus e a um dos eixos da malha urbana. A forma se processa na interface dessas referências. Predileção por figuras de limite, entre o material e o imaterial, a arquitetura e a pintura. Arquitetura que respeita a complexidade e a independência dos vários setores da cidade.

A construção toma lugar entre uma série de edifícios institucionais do campus. A princípio, parece aspirar à mesma monumentalidade, mas essa imagem de estabilidade é abalada em vários níveis: a entrada através da antiga torre fortificada revela não dar para lugar algum, com seu grande arco bloqueado e as paredes de tijolos removidas. O resultado é um comentário sobre a desestabilização.[25]

Mesmo a malha que forma o corpo propriamente dito da edificação parece ser independente da sua estrutura, operando contra todas as demandas de ocupação e uso. A grelha transforma a obra de arte num fragmento, ao estendê-la em todas as direções até o infinito. A obra converte-se numa pequena parte arbitrariamente recortada de um tecido muito mais amplo.[26] O “monumento” é gradualmente dissolvido numa série de fragmentos que se tocam e intersecionam desconfortavelmente, sem nenhuma unidade geral além da ressonância metonímica.

Mas o espaço pode também ser redefinido pelo que o preenche, em vez do vazio. É o caso dos desenhos de Richard Serra. O procedimento é o inverso daquele que vimos até aqui: em vez de abrir intervalos, fechá-los por completo. O muro é o oposto do terreno vago. O desenho então pode ser um modo de intervir na arquitetura: ocupando o espaço. O lugar arquitetônico não é visto como um contexto pré-delimitado, mas como um sítio onde se possam estabelecer espaços contraditórios.

Serra prepara placas negras, em geral grandes retângulos que ele adere a um trecho das paredes ou a um canto. Desenhar contra o contexto arquitetônico. Trata-se de — pelo peso, forma, contorno e locação, elementos característicos da ocupação de um lugar — definir novos espaços no interior de um ambiente arquitetônico dado.

A forma do desenho é um modo de conter peso dentro dos limites de um espaço. Ao defini-lo em relação ao chão, paredes e tetos do local, estamos inserindo um espaço no interior do ambiente existente que se diferencia do seu projeto arquitetônico. Peso e contorno deslocam a arquitetura. Superfícies negras, funcionando como pesos em relação ao volume arquitetônico dado, criam lugares nesse volume, provocam uma experiência disjunta da arquitetura.[27]

Os monumentos, como os jardins e as ruínas, são construções que existem no limite da utilidade e da permanência. Eles flertam com o desaparecimento. As pilhas de pedras feitas por Richard Long nos fazem pensar se não são marcas da desilusão com construções mais acabadas. São formas em colapso, num lugar improvável, para onde não se pode ir. Delas sabemos apenas porque nos foi dito. Marcos de vidas que podem nem sequer ter existido. Memoriais negativos, provocam uma devastação no espaço aberto para sua instalação.[28]

Aqui, porém, trata-se da falta de peso, da leveza. A arquitetura é levada ao extremo da imaterialidade,[29] correspondendo ao aumento da velocidade e à perda de concretude dos objetos, provocados pelos novos sistemas de descentralização e interações múltiplas. O paradigma deixa de ser os dispositivos mecânicos, substituídos pelos circuitos eletrônicos. A arquitetura deixa de ter de resistir à gravidade, de parecer posta de pé. Mapeamento de pontos no espaço, levantamento de indícios, em vez de composição do espaço. A arquitetura vem subtrair, não adicionar. Não construir, mas manter o vazio, conviver com o esgarçamento.

Essa dissolução do espaço leva à questão do lugar da arquitetura. Como os livros, a arquitetura — diz-se — comporta a palavra de Deus. Mas nenhuma língua virá traduzir os livros de pedra. Ler o templo era apreendê-lo na sua forma mais concreta, ainda arquitetônica: o arco. O arco é a última palavra do templo. A catedral, diz Hegel, não foi construída em função de seus usos cotidianos, mas para permitir o recolhimento do espírito. A catedral remete a um problema de lugar: o refúgio do espírito. Um espaço fechado sobre si mesmo e sublime por sua altura, diferente do templo grego, aberto ao exterior. A arquitetura gótica aparece então como aquilo que é capaz de dar lugar.

Mas pode-se pensar a interioridade antes da construção, a vida antes daquilo que a acolhe? Repensar a arquitetura implicaria, assim, colocar em questão a ideia clássica de habitação.[30] Localizar a arquitetura não deveria apresentar problema: arquitetura, como se diz comumente, é moradia. Mas como a arquitetura abriga a tradição, quando as fronteiras por ela estabelecidas não estão mais no lugar?

Trata-se da questão da ausência — este antiarquitetônico. A essência da arquitetura é locar: ela opera contra a gravidade, provê abrigo. Como então conceber uma arquitetura que, em vez de locar, desloque? Este é, devido ao imperativo de presença, o paradoxo da arquitetura. A coluna e a viga, o arco e as arcadas, o capitel e a base, foram todos pensados como naturais à arquitetura. É possível propor uma arquitetura que inclua a instabilidade e o deslocamento? Obras que assumam sua pluralidade e heterogeneidade, sua descontinuidade com relação à tradição, podem determinar o lugar da arquitetura hoje: o lugar da tensão. O ausente, lembra Olgária Matos, não se encontra no céu nem na terra — habita a estranheza de um lugar que é um entre-dois.

Uma arquitetura que crie vazios, o não-lugar. Ela dispensa o contexto. Em vez do lugar determinar o edifício, ao contrário é o edifício que inventa o lugar. A arquitetura passa a incluir o inacabado. A consideração do entorno não visa propor um diálogo amigável com ela. A intervenção não busca captar a simpatia do lugar, mas evidenciar os conflitos, transformar a desordem no próprio fundamento da proposta arquitetônica. Fundada no vazio, o que está dado jamais lhe serve de referência. Arquitetura para Eisenman vincula a prática da localização ao deslocamento. O percurso é mais importante que os objetos que eventualmente possam dele resultar. Suas casas são antes momentos dessa trajetória, buscando explorar o potencial dessa “localização do deslocamento”.

Houses of cards já sugere uma estrutura em dominó, um jogo de armar: sistemas de agregação. Uma metafisica da arquitetura, pela sua capacidade de deslocar, de romper as relações estabelecidas entre as diferentes partes de uma construção, de fazer com que essas “formas inapropriadas” alterem as experiências que essas peças arquitetônicas normalmente proporcionam.[31] Áreas com chão e tetos transparentes e paredes opacas. O plano em que se têm aberturas é transposto para planos visualmente sólidos. O espaço construído é experimentado como uma articulação de termos opostos — em parte semelhante às dobras da casa barroca. Cada peça da construção é assim menos uma entidade do que uma parte de um sistema de diferenças.

Um espaço fragmentário, do qual não se podem fixar os contornos, as passagens e portas, as proximidades, as hierarquias. A dissolução dessas oposições se manifesta pela emergência de um espaço de limite. Perda da leitura do lugar, abrindo para um espaço do qual não se conhecem as correspondências com os espaços vizinhos, pois não há mais fronteiras legíveis. Campo de todas as entradas e saídas, o espaço não é nominável, não pode ser demarcado.

Por que o tema da visão nunca foi problematizado pela arquitetura?[32] Enquanto a pintura, a fotografia e mesmo a escultura contemporâneas põem em questão o conceito tradicional de visão — pelo deslocamento e pela multiplicação dos pontos de vista, pela passagem do primado do ótico ao tátil —, a arquitetura permanece dominada pelos dispositivos do olhar.

Seria possível uma arquitetura que escape à mecânica da visão — a perspectiva — que constitui o espaço arquitetônico convencional? Eliminação do ponto de vista central, o olhar de um sujeito, que vem determinando o discurso arquitetônico. Já se mostrou como o barroco produziu uma experiência visual com forte qualidade tátil ou palpável, que a impede de se reduzir à perspectiva cartesiana.[33] Exatamente como fazem hoje a pintura, a escultura e o vídeo.

A arquitetura — conservando a estrutura espacial do interior e exterior — materializou a visão. Portas, janelas, vigas e colunas reforçaram o dispositivo do olhar. O deslocamento da visão exigiria uma continuidade ininterrupta entre interior e exterior — tal como colocada na ideia da dobra.[34] Os espaços dobrados estabelecem uma nova relação entre horizontal e vertical, figura e fundo, dentro e fora. A ideia de espaço articulado impede o enquadramento — fundamento do olhar tradicional —, em prol de uma modulação temporal. A dobra contém o ainda não visto. A dobradura é uma estratégia para deslocar a visão – alterando a hierarquia entre interior e exterior que estabelece o regime ótico. Tal como a deambulação pitoresca exigida pelas esculturas de Serra.

A dobra dá tempo para um evento em que o ambiente se volte para o sujeito, condição do olhar. Possibilidade de ver o que permanece oculto para a visão, a luz adormecida no escuro. A arquitetura, com suas tradicionais quatro paredes, pode então abrir-se para o que tem sido reprimido pela visão: o som, o toque e aquela luz oculta na escuridão.

Dissolução das tradicionais oposições entre forma e função, estrutura e ornamento. A arquitetura passa a explorar o entre as coisas — as passagens. Estar não num extremo ou noutro, mas no meio. Contra a tradição do monumental — do eterno e do estático —, assimilar a fluidez dos sistemas de comunicação. Uma “arquitetura do entre”.[35] Se a arquitetura tradicionalmente localiza — determina o lugar, o topos —, então “estar entre” significa estar entre algum lugar e nenhum lugar. “Estar entre” implica buscar um “atopos”, a utopia dentro do topos.[36]

Intervalo: a palavra resulta da conjunção de inter (“entre”) e vallum (“parede”, “muro”). Uma arquitetura do intervalo é, literalmente, “entre paredes”. O que sugere um lugar entre muros, um labirinto, lugar de perambulação. O espaço entre fronteiras, o lugar onde os limites das coisas quase se tocam. Este é o lugar da arquitetura, quando ela extrapola seus limites e escorre pelos interstícios, dissolvendo-se em tudo aquilo que ela não é, em filosofia, ciência e literatura.[37]

Arquitetura de um lugar — uma paisagem — a que não fomos destinados. Onde se está sempre no meio — de passagem, em trânsito. Postula um pensamento do deslocamento, do desenraizamento. Da falta de lugar como condição contemporânea. Um tipo de arquitetura que — ao contrário de Loos — não precise mais localizar-se em relação ao monumento e ao túmulo.

O barroco — pela sua tensão contínua entre o espaço aberto a qualquer fim e a proliferação densa das imagens — tem sido tomado como paradigma desta condição: os objetos deixam de querer se reunir em seu lugar natural, o centro, o baixo, a terra, e passam a aspirar à transcendência do sagrado. A questão do pensamento sublime é essa flutuação entre limiares, o permanecer entre dois infinitos que anulam o sujeito como centro. Alude àquilo que está no meio. Indica uma dúvida acerca do lugar das coisas no mundo. Daí a alegoria fazer seu espólio de coisas deixadas para trás — detritos, ruínas, fragmentos e enigmas.[38]

Também Daniel Libeskind fez um projeto para o Museu Judeu de Berlim.[39] O judaísmo sempre suscitando a questão da errância, do deslocamento e da diferença. Seu título: Entre linhas, por causa da linha reta mas quebrada e da linha tortuosa mas contínua que o constituem. Elas expõem o vazio que atravessa o museu. Localizado num dos antigos cruzamentos da cidade, o lugar é a matriz invisível de conexões apagadas: entre judeus e alemães, entre a história de Berlim e o mundo contemporâneo. Uma construção em parte subterrânea que passa entre os endereços dos que se ausentaram, dos rastros abandonados da arte moderna. Lugar do Holocausto, espaço da aniquilação da cidade, ao qual na verdade não se pode dar uma arquitetura. Aqui o invisível se faz aparente enquanto vazio. A estrutura em ziguezague do museu, atravessada por esse vazio, é organizada em torno de um centro que não está ali. Ausência que é o oposto da redução do museu a um memorial.

Uma arquitetura da passagem, feita para o habitante em trânsito da metrópole. Sucessão de formas, sobreposição espacial, sequência de lugares sem laços aparentes. O tempo substitui o espaço. O tempo do deslocamento é que marca a superfície do espaço, agora da ordem do itinerário.[40] O percurso — sucessivas composições e decomposições — é mais importante que a edificação.

Essas construções são — diz Eisenman — “objetos arquitetônicos descentrados”: nem ordenados nem dinâmicos, mas compósitos, ligados a estruturas instáveis feitas de diferenças em suspensão, objetos a que nem a forma, nem o processo, nem o ordenamento do espaço poderiam mais prescrever um sentido. Trata-se de uma “teoria do objeto decomposto”, em que o espaço inclui sua própria temporalidade, ligando inextricavelmente leitura e percurso da edifícação. Contrariamente ao que se passa na arquitetura clássica, a apreensão do edifício é compreendida como um deslocamento no espaço. O resultado da desmontagem reside no ato de contornar a construção, de entrar e sair dela, ao acaso e de modo inconsciente, registrando as informações na memória.[41]

A experiência do construído é essencial à arquitetura. É por isso que a arquitetura não é uma questão de espaço, mas uma espacialização no tempo. As pirâmides e a catedral — o muito grande na definição do sublime — não se deixam ver de muito perto nem de muito longe. Introduzem tempo na experiência, a possibilidade da fruição só existe depois do deslocamento.[42] O sublime não implica contemplação, mas um movimento do espírito. A construção se revela àquele que a atravessa. A arquitetura é um acontecimento.

Agora, a arquitetura.[43] Agora designa aquilo que acontece pela arquitetura, que acontece a partir de uma experiência do espaço marcada de arquitetura. É possível uma arquitetura do acontecimento? Porém não por construir lugares onde deve acontecer alguma coisa. Aqui nada remete a uma arquitetura do lugar. Ao contrário, o que acontece é por um deslocamento. O evento deve estar contido no próprio dispositivo arquitetônico.

A arquitetura intervém sobre acontecimentos mobilizados numa cenografia da passagem, por transferências de um lugar a outro. Ela não se oferece a um usuário, um habitante, mas convoca para que se invente a ocorrência. Esse acontecimento é aquilo que se dá não num templo ou lugar político, não neles, mas como eles. Ele se dá através da arquitetura.

O evento passa pelo monumental, mas também por uma série de experiências: viagem, trajeto, transferência. O pórtico, a escada, o labirinto, o muro. Espaço do distraído, do errante, do louco. O usuário não se contentaria mais em deambular num lugar, ele transformaria esses movimentos elementares dando-lhes lugar.

Arquitetura do heterogêneo, da interrupção, da não-coincidência. Mas não se pode fazer da obra um simples deslocamento. Ela mantém a disjunção, reúne a diferença. Articulações que são ao mesmo tempo lugares e espaços de movimento, figuras destinadas a acontecimentos, feitas para que eles tenham lugar.

Uma arquitetura em abismo, labiríntica, de espaços incompletos. Mas então o que é projeto, para uma arquitetura que nunca chega a ser, uma construção que não se faz, que não dá lugar? Enquanto parte da arquitetura contemporânea tende a privilegiar a experiência do lugar em detrimento do projeto, aqui é a impossibilidade dessa vivência que o inviabiliza. Tal como um livro de aforismos, um arquipélago, a arquitetura é tomada como um projeto ilegível, em devir.[44] Arquitetura não arquitetônica.

A arquitetura pertence, tradicionalmente, ao universo da mimese: remete a alguma coisa, significa. É por isso que não tolera o aforismo, que não aparece, não se dá a ler, não se deixa atravessar nem habitar. Aqui, ao contrário, visa-se um espaço inabitável.

Como então essa arquitetura, que não tem projeto, dá lugar? Talvez, como diz Derrida, seja justamente na medida em que não tenha ainda nem lugar nem forma arquitetônica que lhe seja própria. Uma arquitetura que evita a finalidade que lhe é atribuída: a habitação. Coloca em causa precisamente o nexo de arquitetura e moradia. É possível construir sem estabelecer um modo de habitar?

O pensamento só pode ser se for lugar, caso espacialize, se explique como lugar. A questão do pensamento é uma questão de lugar. Topologia, não topografia, desenho que determina o que é dentro e o que é fora. Não há pensamento sem uma experiência do lugar que resiste à topografia, que excede todo espaço tranquilizador, onde se reconhecem facilmente o inte rior e o exterior. O pensamento pensa sempre fora dele mesmo.[45]

Uma arquitetura sem projeto é mais propícia a que se dê a ocorrência. Se a arquitetura não é — não dá habitat — ela pode acontecer. Diferente da catedral ou do túmulo, capazes de interromper o caos da história para nos recordarem que algo ali tem lugar. “Ela dá lugar a si própria sem retornar a ele: eis a ocorrência.” Arquitetura que não cria domicílio, para onde sempre se pode voltar, mas um único e irrepetível instante. Nem casa, templo ou tumba. A possibilidade dessa arquitetura está em guardar na interrupção a promessa de dar lugar. A interrupção arquitetônica pode ter lugar na edificação.

Já se disse que, sob o domínio das aparências efêmeras, pensar a arquitetura contemporânea é abordá-la nas diversas manifestações em que busca matéria para tomar consistência. Todo um novo universo de lugares de arquitetura redistribui o construído e o intervalo, o desenho e o comentário, numa equivalência generalizada.[46] O lugar é uma possibilidade enunciada na tensão de seus elementos.

Não é mais possível projetar a cidade. A utopia moderna de uma cidade preconcebida parece abandonada. Ela hoje é uma trama muito mais complexa, um pressuposto, a partir do qual o arquiteto tem de atuar. O projeto não existe mais em si, isolado, implantado numa paisagem limpa. A arquitetura é uma intervenção num horizonte congestionado, mais um signo inscrito num intricado campo linguístico. A cidade é polifonia.

Notas

[1] P. Cook & G. Rand, Morphosis: buildings and projects, Rizzoli, 1990; C. Jencks, Heteropolis, St. Martin’s Press, 1993.

[2] P. Virilio, L’espace critique, C. Bourgeois, 1984

[3] P. Virilio, L’horizon négatif, Galilée, 1984.

[4] R. Venturi, Learning from Las Vegas, mit Press, 1977.

[5] P. Virilio, Guerre et cinéma. Logistique de la perception, Éd. Cahiers du Cinéma, 1984.

[6] C. Magris, Danúbio, Rocco, 1992, p. 14.

[7] I. Kant, Anthropologie, §§ 52 e 54, Vrin, 1970.

[8] J.-F. Lyotard, “Scapeland”, in L’inhumain, Galilée, 1988, p. 193.

[9] J.-F. Lyotard, “Domus et la mégalopole, in op. cit., p. 204.

[10] L. Marin, “Sur une tour de Babel”, in Du sublime (vários autores), Berlin, 1988.

[11] B. Goetz, “L’édifice paradoxal”, in Architecture et philosophie, Cahiers du CCI, 1987.

[12] G. C. Argan, História da arte como história da cidade, Martins Fontes, 1992, p. 201.

[13] A. Vidler, “L’architecture allusive. Notes sur la conception postmoderne du sublime”, in  Architecture et philosophie.

[14] J. Derrida, “Architecture ove il desidero púo abitare”, Domus, no 671, abr. 86.

[15] M. Tafuri, The sphere and the labyrinth: avant-gardes and architecture from  Piranesi to the 70’s, mit Press, 1987.

[16] Para esta teoria do “situacionismo”, ver Internationale situacioniste (vários autores), Éd. du Champ Libre, 1975. Ver também revista Óculum, no 4, 1994.

[17] G. Deleuze, “Traité de nomadologie”, in Mille plateaux, Minuit, 1980.

[18] G. Deleuze, Kafka, Minuit, 1975. Ver também A. Guerra et alii, “Projeto para Palmanova”, Óculum, no 4, 1994.

[19] J. Derrida, A escritura e a diferença, Perspectiva,  1971, p. 157, e “A diferença”, in Margens da filosofia, Papirus, 1991.

[20] A. Benjamin, “Spacing and distancing”, in Art, mimesis and the avant-garde, Routledge, 1991.

[21] O. Arantes, O lugar da arquitetura depois dos modernos, edusp, 1993, pp. 80, 138.

[22] A. Benjamin, “Derrida, architecture and philosophy”, in Deconstrution, AD-58, 1988.

[23] J. Derrida, “In discussion with Christopher Norris”, AD-59, 1989.

[24] P. Eisenman, “Entre linhas/Museu de Berlim”, Revista AU, no 36, jun.-jul. 1991.

[25] A. Vidler, The architectural uncanny: essays in the modern unhomely, mit Press, 1992.

[26] R. Krauss, “Grids”, in The originality of the avant-garde and other modernist myths, mit Press, 1986.

[27] R. Serra, “Notes on drawing”, in Serra, Centre Georges Pompidou, 1983.

[28] R. Harbison, The built, the unbuilt and the unbuildable, mit Press, 1991.

[29] J.-F. Lyotard, Les immatériaux, catálogo, Centre Georges Pompidou, 1985. Ver também O. Arantes, “Margens da arquitetura”, in Malhas, escalas, rastros e dobras na obra de P. Eisenman, catálogo, masp, 1993.

[30] S. Agacinski, “Donner lieu”, in Architecture et philosophie.

[31] R. Krauss, “Death of a hermeneutic phantom: materialization of the sign in the work of Peter Eisenman”, in P. Eisenman, Houses of cards, Oxford University Press, 1987.

[32] P. Eisenman, “Visões que se desdobram”, Óculum, no 3, mar. 93.

[33] M. Jay, “Scopic regimes of modernity”, in H. Foster (ed.), Vision and visuality, Bay Press, 1988.

[34] G. Deleuze, Le pli, Minuit, 1988.

[35] A referência é G. Deleuze, “Rhizome”, in Mille plateaux.

[36] P. Eisenman, “Blue line text”, AD-58, 1988.

[37] J. Bloomer, “Toward desiring architecture”, in A. Kahn (ed)., Drawing/building/text: essays in architectural theory, Princeton Architectural Press, 1991.

[38] O. Matos, O Iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant, Brasiliense, 1993, p. 142.

[39] D. Libeskind, Countersign, Academy Editions, 1991.

[40] P. Delis, “Architecture: l’espace-temps autrement”, in Modernes et après? Les immatériaux, Éd. Autrement, 1985.

[41] P. Eisenman, “Futilité des objets: décomposition et différence”, Art Press, juin-août 1983.

[42] A. Benjamin, “Eisenman and the housing of tradition”, in Art, mimesis and the avant-garde.

[43] J. Derrida, “Point de folie — Maintenant l’architecture”, in Psyché, Galilée, 1987.

[44] J. Derrida, “52 aphorismes pour un avant-propos”, in Architecture et philosophie.

[45] J. Derrida, entrevista, in Rogério da Costa (org.), Limiares do contemporâneo, Scritta, 1993.

[46] C. Eveno, “Présentation, représentation, devoilement”, in Architecture et philosophie.

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