1996

Contingência e necessidade

por Marilena Chaui

Resumo

O que está e o que não está em nosso poder? A questão se coloca no campo da ética e da política desde Aristóteles. Ele dizia que o necessário é o que não pode ser objeto de deliberação nem de escolha, mas que o oposto à necessidade, a contingência, também não está em nosso poder. É o que os antigos chamavam de Fortuna, símbolo da adversidade e da felicidade imprevistas. Os combates da Razão com a Fortuna no Ocidente levaram à ideia da natureza como campo da necessidade ordenada dos fenômenos, e à ideia do tempo como o que permite levar à deliberação e à decisão. Mas esses referenciais se tornaram ilusórios com a ideia de finitude em filosofia, com a consciência da linguagem, com o advento da ciência como construção matemática da realidade e da tecnologia como promessa de controle racional das ações humanas. Os fenômenos da Fortuna são agora tratados estatisticamente. Na sociedade capitalista contemporânea, o referencial é o consumo, não mais o trabalho. Retornam o pensamento mágico e o fundamentalismo religioso. O probabilismo, a engenharia política, a velocidade da informação e a proliferação de imagens se articulam para determinar uma crise da razão. Mas essa razão que os filósofos, com exceção de Spinoza, mantinham cindida entre pares de opostos (sujeito-objeto, necessidade-liberdade), é relação de um sujeito com o tempo, e o tempo, segundo Merleau-Ponty, é inquietação que exige um trabalho intelectual e afetivo para dar um sentido possível aos fatos brutos, contingentes, sem o qual o ser humano é arrastado para o mito, a ideologia e a servidão.


De Aristóteles a Descartes, uma pergunta tem sido constante, vindo a constituir-se como centro e vetor principal no campo da ética e da política: o que está e o que não está em nosso poder?

O erro mais comumente cometido no tocante aos desejos é o de não distinguirmos suficientemente as coisas que dependem inteiramente de nós das que não dependem de modo algum: pois, quanto às que dependem tão-somente de nós, isto é, de nosso livre-arbítrio, basta saber que são boas, para não poder desejá-las com demasiado ardor, porque é seguir a virtude fazer as coisas boas […] porquanto só de nós é que depende, recebemos sempre a satisfação que daí esperávamos. [Descartes, Traité des passions de l’âme, artigo 144]

É essa pergunta que se encontra na base da distinção aristotélica (Metafísica, E, 1; K, 7) entre ciência teorética, prática e poética: a primeira trata dos seres que possuem em si mesmos o princípio de suas essências e existências, enquanto a ação tem seu princípio no agente (as escolhas deliberadas) e a fabricação encontra seu princípio no artista (a arte); a distinção entre o ser necessário ou verdadeiro e o acidente ou o não-ser (Metafísica, E, 2; K, 8); e a distinção entre ciência, arte e prudência (Ética a Nicômaco, VI, 5).

Por “não estar em nosso poder”, os filósofos entenderam, primeiro, a necessidade natural, e, depois que a cisão entre natureza e cultura fez seu percurso no pensamento ocidental, a necessidade histórica. Como dissera Aristóteles, o necessário é o que não pode ser objeto de deliberação nem de escolha. No entanto, também “não está em nosso poder” o oposto à necessidade (natural ou histórica), isto é, a contingência — tyche, “fortuna”, “sorte”, “acaso”.

O agente ético e político encontra-se, portanto, encravado entre dois poderes exteriores que o determinam de maneira exatamente oposta: a necessidade o obriga a seguir leis (naturais) e regras (históricas) sobre as quais nada pode; a contingência o força em direções contrárias imprevisíveis, dando peso ao verso de Ovídio nas Metamorfoses: “Video meliora proboque, deteriora sequor” — “Vejo o melhor e o aprovo, sigo o pior”.

Dos gregos ao século XVII, a contingência ético-política recebeu um nome: Fortuna. Personificada como deusa, na mitologia greco-romana, na literatura e na pintura, a Fortuna é representada emblematicamente como uma jovem nua, com o zodíaco como cinta, um manto branco esvoaçante ao vento, seus pés sobre um globo, numa das mãos a cornucópia e noutra a roda que faz girar sem cessar. Inconstante, caprichosa, cruel, meretriz, volúvel, inconsequente, a Fortuna é o signo e o símbolo da adversidade e da felicidade imprevistas, da relação do homem com a exterioridade e com o tempo. Todo o esforço da razão ocidental, até nossos dias, foi empregado para compreendê-la, dar-lhe sentido e, sobretudo, dominá-la. É assim que, no momento inaugural da razão moderna ou do Grande Racionalismo, Descartes escreve:

É mister, portanto, rejeitar inteiramente a opinião vulgar de que há fora de nós uma fortuna que faz com que as coisas sobrevenham ou não sobrevenham, a seu bel-prazer, e saber que tudo é conduzido pela providência divina, cujo decreto eterno é de tal modo infalível e imutável que, excetuando-se as coisas que este mesmo decreto quis pôr na dependência de nosso livre-arbítrio, devemos pensar que, com respeito a nós, nada acontece que não seja necessário e como que fatal, de sorte que não podemos sem erro desejar que aconteça de uma outra forma. Mas como a maioria de nossos desejos se estendem a coisas que não dependem todas de nós nem todas de outrem, devemos exatamente distinguir nelas o que depende apenas de nós, a fim de estender nosso desejo tão-somente a isso […] É certo que, quando nos exercitamos em distinguir assim a fatalidade da fortuna, habituamo-nos facilmente a regrar de tal modo nossos desejos, na medida em que sua realização não depende senão de nós, que eles podem sempre proporcionar-nos inteira satisfação. [Descartes, Traité des passions de l’âme, artigo 146]

Nos múltiplos enfrentamentos e combates da razão com a fortuna, ergueu-se aquilo que, no Ocidente, chama-se de teoria: um olho intelectual bastante disciplinado e treinado ou instruído para discernir, sob a aparente desordem das coisas naturais e humanas, uma ordem necessária e invisível. O que chamamos de razão ocidental foi o trabalho gigantesco para determinar o lugar do real, nele definindo a ordem da natureza e a posição do homem como indivíduo e membro da sociedade política. A teoria chegou, por um lado, a uma elaboração da ideia de natureza como campo da necessidade ordenada dos fenômenos, isto é, à ideia de leis naturais, e, por outro lado, a uma elaboração da ideia do tempo e da ação humana que permitia aos humanos determinar um campo de deliberação e decisão no interior do qual se definiam a liberdade e a virtude, a ética e a política como aquilo que está em nosso poder.

Hoje, porém, vemos o reaparecimento — sem que seja nomeada — da Fortuna, sem as referências antigas: fora do campo da relação com o tempo e da ação, fora do campo clássico do Infinito Positivo, fora das leis naturais, fora do campo da razão e do “lugar” do real, fora do campo da finitude situada e fora do campo da história como teleologia da emancipação. Todos os antigos re ferenciais de que dispunha a filosofia para imaginar e conceituar a Fortuna foram declarados ilusórios, exatamente no momento em que fatalismos e fundamentalismos, de um lado, e o clamor pelo “retorno à ética”, de outro, surgem na superfície histórica sem que pareçamos capazes de pensá-los.

Entre o momento inaugural do processo em que se constitui a racionalidade moderna, o que Merleau-Ponty designa como o Grande Racionalismo do século XVII, isto é, uma filosofia fundada na ideia do Infinito Positivo, e o momento final desse processo, quando, após a “descoberta” da finitude irremediável do homem e da separação natureza-civilização, natureza-cultura e natureza-história, a filosofia declara a morte do mito da necessidade e de todos os conceitos que o amparavam, passando a afirmar como realidade única e última a contingência nua e bruta. A filosofia parece haver capitulado em relação à sua pretensão racionalista. Capitulação paradoxal porque a reaparição da fortuna coincide com o instante em que a biofísica, a bioquímica e a biogenética pareceriam lançar-nos de volta às malhas da necessidade natural absoluta, enquanto a tecnologia, permitindo o aparecimento de práticas como as da engenharia social, engenharia política e engenharia genética, pareceria prometer-nos o máximo de controle racional sobre as ações humanas, que, agora, estariam totalmente em nosso poder.

Não nos parece… fortuito (sic) que a palavra de ordem filosófica dos últimos anos tenha sido “retorno à ética”, mas agora sob a égide da expressão celebrada: “after virtue and after justice”. Portanto, posta como deontologia, na medida em que já não pode haver a “ilusão da universalidade”, esta substituída pelo papel conferido ao desejo, à intimidade, à alteridade e à diferença (entendida desde a diferença étnica e de gênero até a diferença profissional).

Na medida em que a contingência e a dispersão dos acontecimentos surgem como nossa única via de acesso ao real e à ação, parece-nos que a Fortuna reassume a direção de nossas vidas, seja em sua túnica cingida pelo cinto zodiacal — isto é, pela mania astrológica contemporânea —, seja com sua roda caprichosa — isto é, pela imagem de uma história desprovida de sentido —, seja, enfim, em sua nudez agarrada na vela enfunada pelas tempestades — isto é, como crise da razão, ou, como otimistamente julgam alguns, porque tudo não passa de “jogos de linguagem”.

Ora, o que é essa crise da razão que, em nosso caso, exprime-se pela aceitação da perda dos referenciais clássicos da razão: universalidade, necessidade, inteligibilidade do real e da ação humana? A história da racionalidade ocidental pode ser lida como um trabalho para alcançar a determinação completa dos fenômenos naturais e humanos, oferecendo a definição dos seres e as leis necessárias de suas relações, isto é, aquilo que no século XVII chamava-se ordem natural, no final do século XIX chamava-se processo e, nos meados de nosso século, chamava-se estrutura. A racionalidade trabalhava no sentido de eliminar o acaso na natureza, a contingência na história e a fortuna na ética e na política.

Por seu turno, a ciência moderna pretendeu ser, primeiro, uma representação da necessidade natural e humana e, depois, uma construção matemática da realidade. A técnica, que surgira nas sociedades escravistas como rotina fabricadora de utensílios e estratagemas para que o mais fraco (o homem) vencesse o mais forte (a natureza), tornou-se, na modernidade, tecnologia, isto é, produção de instrumentos de precisão para a teoria, encarnação material do saber científico e meio para o domínio e controle da natureza pelo homem. Ora, hoje vemos as ciências aceitarem sua própria dispersão (donde a presença obsessiva do tema da interdisciplinaridade como compensação para a dispersão e fragmentação dos conhecimentos), e terem consciência de que constroem um mundo virtual no qual os fenômenos são tratados estatisticamente, portanto, na esfera da probabilidade que, dos gregos ao século XIX, definia exatamente o campo da ação humana e não o da natureza. A ciência opera, portanto, com o provável, isto é, com o possível submetido a cálculos.

Por sua vez, a sociedade capitalista contemporânea, sob o domínio do capital financeiro, não opera mais com a materialidade concreta da produção, isto é, do trabalho e dos produtos, mas com o jogo imprevisível do deslocamento veloz do capital e com a fragmentação e dispersão da produção, de sorte que o referencial deixa de ser o trabalho, tanto como força de trabalho quanto como trabalho cristalizado nos produtos, para ser o consumo ou o que Marx chamara de fetichismo da mercadoria.

O provável na ciência e o jogo do acaso na economia, de um lado, e o subjetivismo imaterial do fetichismo do consumo, do outro, acabam levando a filosofia ao elogio da contingência e ao desprezo pela necessidade como forma do real. Ora, é uma necessidade do espírito humano encontrar a ordem na desordem, o sentido no não-senso, a estrutura invisível que explica o visível. Na medida em que a ciência e a filosofia renunciaram à ideia clássica da teoria e da razão, os humanos reencontraram um meio para repor aquilo que a teoria havia substituído ao nascer: os mitos, os fundamentalismos religiosos. Mitologias e religiões ocupam, hoje, o lugar vazio deixado pela razão.

Simultaneamente, ao chegarmos ao máximo de capacidade da razão instrumental ou tecnológica, isto é, ao objeto tecnológico como autômato baseado na ideia de informação e capaz de se auto-alimentar e se autocorrigir, esse objeto, máximo de cristalização do que chamávamos de racionalidade, produz como efeito o retorno ao pensamento mágico. Quais as diferenças entre magia e técnica? A magia é A Arte, enquanto a técnica são as artes. O mago é aquele que conhece as hierarquias secretas do mundo, os laços secretos entre os seres, os vínculos benéficos e maléficos entre as coisas, as simpatias e antipatias secretas entre os seres; sua reflexão se refere à relação entre os princípios e os fins; sua atividade é decifrar o mundo para poder realizar as operações de concórdia e discórdia entre os seres. O técnico, ao contrário, é aquele que resolve problemas e dificuldades práticos nos domínios próprios da atividade humana; sua reflexão se refere aos meios da ação e não aos fins; sua operação visa ao controle de procedimentos regulados pelas próprias operações e instrumentos técnicos; não decifra a natureza, mas a descreve; e não a reverencia, mas age com astúcia sobre ela. Na magia, alguma coisa se produz graças à conformidade entre o modelo espiritual que se encontra na mente do mago e as coisas visíveis que se encontram na natureza, de sorte que a operação mágica depende da cooperação entre os ele mentos naturais e da cooperação entre o visível e o invisível. Na técnica, ao contrário, opera uma lógica da invenção cujo paradigma é a caça: trata-se de penetrar num território desconhecido para nele agarrar a presa; depende, portanto, do engenho do técnico, de sua capacidade, do estágio dos conhe ci mentos científicos e dos instrumentos disponíveis para a invenção de ou tros. Na magia, o conhecimento e as operações são secretos, são um saber penosamente conquistado pelo mago num longo processo de iniciação nos mistérios. Na técnica, o conhecimento e as operações são públicos, visíveis, ao alcance de todos os que têm acesso à ciência. Quais os instrumentos e utensílios mágicos? Talismãs, poções, amuletos, números e figuras místicos, arte da memória, arte dos laços etc. Quais os instrumentos e utensílios técnicos? Instrumentos de precisão e de medida para o trabalho teórico e má quinas resultantes da aplicação da teoria. Ora, o chamado complexo militar-industrial transformou a técnica numa tecnologia secreta, e os objetos tecnológicos que conhecemos hoje, isto é, os autômatos, operam para nós e sem nós, misteriosamente. Sua fabricação é secreta, sua operação é secreta, e nossa relação com eles, mágica. Assim, o ressurgimento da astrologia, dos duendes e das fadas no universo dos autômatos não é um paradoxo inexplicável, mas a reunião, numa nova articulação, do misterioso.

Probabilismo científico, engenharia política, engenharia genética, automação, jogo e acaso financeiros, dispersão e abstração da produção, velocidade da informação e da comunicação, proliferação de imagens: tudo isso se articula para determinar a crise da razão, a afirmação da contingência radical da natureza e das ações humanas, e pede a reorganização do fragmentado e do disperso pelo caminho do mito, da magia, da astrologia e do fundamentalismo religioso.

O que a contingência ou a fortuna põem em jogo? Se deixarmos de lado, por um momento, a questão do acaso e da indeterminação na natureza e as questões metafísicas aí envolvidas, podemos dizer que o campo preferencial da contingência e da fortuna é a ação humana, seja na ética e na política, seja na arte e na técnica. É assim que Aristóteles deixa para o pensamento ocidental o vínculo com o tempo da deliberação, escolha e decisão: “O passado jamais pode ser objeto de escolha: ninguém escolhe ter havido o saque de Tróia; com efeito, a deliberação não se refere ao passado mas ao futuro e ao contingente, pois o passado não pode não ter sido. Agatão está certo ao escrever: ‘Pois há uma única coisa de que o próprio Deus está privado:/ fazer com que o que foi não tenha sido’” (Ética a Nicômaco, VI, 2).

E ainda:

Quanto ao outro ser, digo, o ser por acidente, não é necessário, mas indeterminado, e suas causas são inordenadas e em número infinito. Há finalidade no que devém por natureza ou provém do pensamento. Há fortuna [tyche] quando um desses acontecimentos se produz por acidente […] A fortuna é uma causa por acidente daquilo que escolhe normalmente, segundo uma escolha refletida em vista de um fim. Assim, fortuna e pensamento relacionam-se com as mesmas coisas, pois a escolha não existe separada do pensamento. Mas as causas que produzem o que pode vir da fortuna são indeterminadas, donde se segue que a fortuna é impenetrável ao cálculo do homem. [Metafísica, K, 8, grifos meus]

Através da figura da Fortuna podemos acompanhar o modo de constituição filosófica dos pares necessidade-contingência, fatalidade-acaso, fatalidade-providência e, a seguir, o movimento de separação natureza-ação humana, com a constituição do par fortuna-virtude. Esse conjunto de pares de opostos gradualmente realiza a determinação recíproca da fortuna e da virtude, à medida que vão deixando de ser tomadas como essências para serem pensadas como relação. Essa mudança é inseparável do momento em que se inicia a construção de uma subjetividade pré-cartesio-kantiana, pois trata-se de um sujeito que é relação com o tempo e com o mundo através da ação. É o momento da Renascença: a relação com o tempo determina a maneira como Maquiavel, Bacon e Montaigne dessubstancializam a fortuna para pensá-la como relação do homem consigo mesmo diante da adversidade e sua capacidade para dominá-la, operando por isso com o par deixado pelos gregos e romanos, o par virtude-fortuna.

A dessubstancialização e desessencialização do par fortuna-virtude contrapõe-se, porém, à permanência da oposição essencialista, tal como se configura no agostinismo da Reforma Magisterial, isto é, no pensamento de Lutero e Calvino e na discussão, pelo primeiro, do conceito de liberdade cristã (polêmica com Erasmo sobre o livre e o servo-arbítrio) e, pelo segundo, do conceito de predestinação (polêmica com Serveto).

O movimento seguinte, no quadro da Contrarreforma e da Reforma Radical (os iluminados “cristãos sem Igreja”, na expressão de Kolakowski), e do surgimento da mecânica clássica, é o da aparição da razão moderna como conhecimento que se realiza no interior da experiência para colocar-se fora e acima dela, propondo-se a dominá-la. É o momento de constituição das dicotomias: sujeito-objeto, consciência-coisa, ideia-fato, verdade aparência, essência-existência, natureza-homem, vontade-intelecto, cau sa lidade-finalidade, razão-experiência, necessidade-liberdade. A preocupação filosófica volta-se para a busca de um lugar que seja o lugar do real, obtido por supressão ou absorção de um dos termos da dicotomia. A fortuna, isto é, a experiência, o acaso, a contingência, a temporalidade nua é suprimida ou absorvida pelo polo onde se localiza o real e no qual se define “o que está em nosso poder”.

A cisão necessidade-liberdade — recusada apenas por Spinoza — deixa aberta a exigência de definir ainda uma vez o campo da contingência, nome que doravante recobrirá o da fortuna. A separação natureza-civilização (na Ilustração), natureza-cultura (no idealismo alemão) e natureza-história (a partir da filosofia hegeliana) desenha a nova figura da subjetividade que, abandonando pouco a pouco o solo do Infinito Positivo, descobre-se como finitude, seja esta a “vontade de potência” ou o “ente para a morte” ou “o nada condenado à liberdade”. Nesse movimento, a noção de finalidade (a finalidade sem fim kantiana e suas variantes) supre a de necessidade e captura a contingência no campo da transcendência mundana: a virtude é nosso poder para transcender as condições dadas, oferecendo-lhes novo sentido, mudando-lhes o rumo e os fins, como dirá Merleau-Ponty.

Em A estrutura do comportamento, Merleau-Ponty distingue três ordens de realidades ou três estruturações: a física, regida pela necessidade das leis naturais, a biológica, regida pela busca do equilíbrio adaptativo realizado pelo comportamento, e a humana, regida pela presença do simbólico, isto é, pelo fato de o homem ser o único ente que se relaciona com o ausente por meio da linguagem e do tempo. O homem é o ser voltado para o possível, e a liberdade é a capacidade humana para determinar o que é apenas possí vel. Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty faz a descrição fenomenológica do tempo criticando sua concepção tradicional como sucessão espacializada de instantes, como idealidade constituída pela consciência e como movimento objetivo da contradição, isto é, da negação da negação. O tempo, diz ele, é inquietação, pura diferença consigo mesmo, diferenciação que dá ou retira relevo de si mesmo. Em lugar de uma dialética, surge a noção de uma filosofia da diferença imanente como o ser do tempo. A liberdade surge, assim, como capacidade do sujeito para dar um sentido possível aos fatos brutos de sua situação, uma relação com o indeterminado e com a diferenciação de si consigo mesmo.

Ao apresentar esse quadro muito geral minha intenção é apenas salientar que o que conhecemos como razão ocidental foi um trabalho intelectual e afetivo para dar sentido àquilo que, deixado a si mesmo, nos arrasta para o mito, a ideologia e a servidão. É esse trabalho que, hoje, está posto em questão e constitui uma das faces da crise da razão.

De Aristóteles a Descartes, uma pergunta tem sido constante, vindo a constituir-se como centro e vetor principal no campo da ética e da política: o que está e o que não está em nosso poder?

O erro mais comumente cometido no tocante aos desejos é o de não distinguirmos suficientemente as coisas que dependem inteiramente de nós das que não dependem de modo algum: pois, quanto às que dependem tão-somente de nós, isto é, de nosso livre-arbítrio, basta saber que são boas, para não poder desejá-las com demasiado ardor, porque é seguir a virtude fazer as coisas boas […] porquanto só de nós é que depende, recebemos sempre a satisfação que daí esperávamos. [Descartes, Traité des passions de l’âme, artigo 144]

É essa pergunta que se encontra na base da distinção aristotélica (Metafísica, E, 1; K, 7) entre ciência teorética, prática e poética: a primeira trata dos seres que possuem em si mesmos o princípio de suas essências e existências, enquanto a ação tem seu princípio no agente (as escolhas deliberadas) e a fabricação encontra seu princípio no artista (a arte); a distinção entre o ser necessário ou verdadeiro e o acidente ou o não-ser (Metafísica, E, 2; K, 8); e a distinção entre ciência, arte e prudência (Ética a Nicômaco, VI, 5).

Por “não estar em nosso poder”, os filósofos entenderam, primeiro, a necessidade natural, e, depois que a cisão entre natureza e cultura fez seu percurso no pensamento ocidental, a necessidade histórica. Como dissera Aristóteles, o necessário é o que não pode ser objeto de deliberação nem de escolha. No entanto, também “não está em nosso poder” o oposto à necessidade (natural ou histórica), isto é, a contingência — tyche, “fortuna”, “sorte”, “acaso”.

O agente ético e político encontra-se, portanto, encravado entre dois poderes exteriores que o determinam de maneira exatamente oposta: a necessidade o obriga a seguir leis (naturais) e regras (históricas) sobre as quais nada pode; a contingência o força em direções contrárias imprevisíveis, dando peso ao verso de Ovídio nas Metamorfoses: “Video meliora proboque, deteriora sequor” — “Vejo o melhor e o aprovo, sigo o pior”.

Dos gregos ao século XVII, a contingência ético-política recebeu um nome: Fortuna. Personificada como deusa, na mitologia greco-romana, na literatura e na pintura, a Fortuna é representada emblematicamente como uma jovem nua, com o zodíaco como cinta, um manto branco esvoaçante ao vento, seus pés sobre um globo, numa das mãos a cornucópia e noutra a roda que faz girar sem cessar. Inconstante, caprichosa, cruel, meretriz, volúvel, inconsequente, a Fortuna é o signo e o símbolo da adversidade e da felicidade imprevistas, da relação do homem com a exterioridade e com o tempo. Todo o esforço da razão ocidental, até nossos dias, foi empregado para compreendê-la, dar-lhe sentido e, sobretudo, dominá-la. É assim que, no momento inaugural da razão moderna ou do Grande Racionalismo, Descartes escreve:

É mister, portanto, rejeitar inteiramente a opinião vulgar de que há fora de nós uma fortuna que faz com que as coisas sobrevenham ou não sobrevenham, a seu bel-prazer, e saber que tudo é conduzido pela providência divina, cujo decreto eterno é de tal modo infalível e imutável que, excetuando-se as coisas que este mesmo decreto quis pôr na dependência de nosso livre-arbítrio, devemos pensar que, com respeito a nós, nada acontece que não seja necessário e como que fatal, de sorte que não podemos sem erro desejar que aconteça de uma outra forma. Mas como a maioria de nossos desejos se estendem a coisas que não dependem todas de nós nem todas de outrem, devemos exatamente distinguir nelas o que depende apenas de nós, a fim de estender nosso desejo tão-somente a isso […] É certo que, quando nos exercitamos em distinguir assim a fatalidade da fortuna, habituamo-nos facilmente a regrar de tal modo nossos desejos, na medida em que sua realização não depende senão de nós, que eles podem sempre proporcionar-nos inteira satisfação. [Descartes, Traité des passions de l’âme, artigo 146]

Nos múltiplos enfrentamentos e combates da razão com a fortuna, ergueu-se aquilo que, no Ocidente, chama-se de teoria: um olho intelectual bastante disciplinado e treinado ou instruído para discernir, sob a aparente desordem das coisas naturais e humanas, uma ordem necessária e invisível. O que chamamos de razão ocidental foi o trabalho gigantesco para determinar o lugar do real, nele definindo a ordem da natureza e a posição do homem como indivíduo e membro da sociedade política. A teoria chegou, por um lado, a uma elaboração da ideia de natureza como campo da necessidade ordenada dos fenômenos, isto é, à ideia de leis naturais, e, por outro lado, a uma elaboração da ideia do tempo e da ação humana que permitia aos humanos determinar um campo de deliberação e decisão no interior do qual se definiam a liberdade e a virtude, a ética e a política como aquilo que está em nosso poder.

Hoje, porém, vemos o reaparecimento — sem que seja nomeada — da Fortuna, sem as referências antigas: fora do campo da relação com o tempo e da ação, fora do campo clássico do Infinito Positivo, fora das leis naturais, fora do campo da razão e do “lugar” do real, fora do campo da finitude situada e fora do campo da história como teleologia da emancipação. Todos os antigos re ferenciais de que dispunha a filosofia para imaginar e conceituar a Fortuna foram declarados ilusórios, exatamente no momento em que fatalismos e fundamentalismos, de um lado, e o clamor pelo “retorno à ética”, de outro, surgem na superfície histórica sem que pareçamos capazes de pensá-los.

Entre o momento inaugural do processo em que se constitui a racionalidade moderna, o que Merleau-Ponty designa como o Grande Racionalismo do século XVII, isto é, uma filosofia fundada na ideia do Infinito Positivo, e o momento final desse processo, quando, após a “descoberta” da finitude irremediável do homem e da separação natureza-civilização, natureza-cultura e natureza-história, a filosofia declara a morte do mito da necessidade e de todos os conceitos que o amparavam, passando a afirmar como realidade única e última a contingência nua e bruta. A filosofia parece haver capitulado em relação à sua pretensão racionalista. Capitulação paradoxal porque a reaparição da fortuna coincide com o instante em que a biofísica, a bioquímica e a biogenética pareceriam lançar-nos de volta às malhas da necessidade natural absoluta, enquanto a tecnologia, permitindo o aparecimento de práticas como as da engenharia social, engenharia política e engenharia genética, pareceria prometer-nos o máximo de controle racional sobre as ações humanas, que, agora, estariam totalmente em nosso poder.

Não nos parece… fortuito (sic) que a palavra de ordem filosófica dos últimos anos tenha sido “retorno à ética”, mas agora sob a égide da expressão celebrada: “after virtue and after justice”. Portanto, posta como deontologia, na medida em que já não pode haver a “ilusão da universalidade”, esta substituída pelo papel conferido ao desejo, à intimidade, à alteridade e à diferença (entendida desde a diferença étnica e de gênero até a diferença profissional).

Na medida em que a contingência e a dispersão dos acontecimentos surgem como nossa única via de acesso ao real e à ação, parece-nos que a Fortuna reassume a direção de nossas vidas, seja em sua túnica cingida pelo cinto zodiacal — isto é, pela mania astrológica contemporânea —, seja com sua roda caprichosa — isto é, pela imagem de uma história desprovida de sentido —, seja, enfim, em sua nudez agarrada na vela enfunada pelas tempestades — isto é, como crise da razão, ou, como otimistamente julgam alguns, porque tudo não passa de “jogos de linguagem”.

Ora, o que é essa crise da razão que, em nosso caso, exprime-se pela aceitação da perda dos referenciais clássicos da razão: universalidade, necessidade, inteligibilidade do real e da ação humana? A história da racionalidade ocidental pode ser lida como um trabalho para alcançar a determinação completa dos fenômenos naturais e humanos, oferecendo a definição dos seres e as leis necessárias de suas relações, isto é, aquilo que no século XVII chamava-se ordem natural, no final do século XIX chamava-se processo e, nos meados de nosso século, chamava-se estrutura. A racionalidade trabalhava no sentido de eliminar o acaso na natureza, a contingência na história e a fortuna na ética e na política.

Por seu turno, a ciência moderna pretendeu ser, primeiro, uma representação da necessidade natural e humana e, depois, uma construção matemática da realidade. A técnica, que surgira nas sociedades escravistas como rotina fabricadora de utensílios e estratagemas para que o mais fraco (o homem) vencesse o mais forte (a natureza), tornou-se, na modernidade, tecnologia, isto é, produção de instrumentos de precisão para a teoria, encarnação material do saber científico e meio para o domínio e controle da natureza pelo homem. Ora, hoje vemos as ciências aceitarem sua própria dispersão (donde a presença obsessiva do tema da interdisciplinaridade como compensação para a dispersão e fragmentação dos conhecimentos), e terem consciência de que constroem um mundo virtual no qual os fenômenos são tratados estatisticamente, portanto, na esfera da probabilidade que, dos gregos ao século XIX, definia exatamente o campo da ação humana e não o da natureza. A ciência opera, portanto, com o provável, isto é, com o possível submetido a cálculos.

Por sua vez, a sociedade capitalista contemporânea, sob o domínio do capital financeiro, não opera mais com a materialidade concreta da produção, isto é, do trabalho e dos produtos, mas com o jogo imprevisível do deslocamento veloz do capital e com a fragmentação e dispersão da produção, de sorte que o referencial deixa de ser o trabalho, tanto como força de trabalho quanto como trabalho cristalizado nos produtos, para ser o consumo ou o que Marx chamara de fetichismo da mercadoria.

O provável na ciência e o jogo do acaso na economia, de um lado, e o subjetivismo imaterial do fetichismo do consumo, do outro, acabam levando a filosofia ao elogio da contingência e ao desprezo pela necessidade como forma do real. Ora, é uma necessidade do espírito humano encontrar a ordem na desordem, o sentido no não-senso, a estrutura invisível que explica o visível. Na medida em que a ciência e a filosofia renunciaram à ideia clássica da teoria e da razão, os humanos reencontraram um meio para repor aquilo que a teoria havia substituído ao nascer: os mitos, os fundamentalismos religiosos. Mitologias e religiões ocupam, hoje, o lugar vazio deixado pela razão.

Simultaneamente, ao chegarmos ao máximo de capacidade da razão instrumental ou tecnológica, isto é, ao objeto tecnológico como autômato baseado na ideia de informação e capaz de se auto-alimentar e se autocorrigir, esse objeto, máximo de cristalização do que chamávamos de racionalidade, produz como efeito o retorno ao pensamento mágico. Quais as diferenças entre magia e técnica? A magia é A Arte, enquanto a técnica são as artes. O mago é aquele que conhece as hierarquias secretas do mundo, os laços secretos entre os seres, os vínculos benéficos e maléficos entre as coisas, as simpatias e antipatias secretas entre os seres; sua reflexão se refere à relação entre os princípios e os fins; sua atividade é decifrar o mundo para poder realizar as operações de concórdia e discórdia entre os seres. O técnico, ao contrário, é aquele que resolve problemas e dificuldades práticos nos domínios próprios da atividade humana; sua reflexão se refere aos meios da ação e não aos fins; sua operação visa ao controle de procedimentos regulados pelas próprias operações e instrumentos técnicos; não decifra a natureza, mas a descreve; e não a reverencia, mas age com astúcia sobre ela. Na magia, alguma coisa se produz graças à conformidade entre o modelo espiritual que se encontra na mente do mago e as coisas visíveis que se encontram na natureza, de sorte que a operação mágica depende da cooperação entre os ele mentos naturais e da cooperação entre o visível e o invisível. Na técnica, ao contrário, opera uma lógica da invenção cujo paradigma é a caça: trata-se de penetrar num território desconhecido para nele agarrar a presa; depende, portanto, do engenho do técnico, de sua capacidade, do estágio dos conhe ci mentos científicos e dos instrumentos disponíveis para a invenção de ou tros. Na magia, o conhecimento e as operações são secretos, são um saber penosamente conquistado pelo mago num longo processo de iniciação nos mistérios. Na técnica, o conhecimento e as operações são públicos, visíveis, ao alcance de todos os que têm acesso à ciência. Quais os instrumentos e utensílios mágicos? Talismãs, poções, amuletos, números e figuras místicos, arte da memória, arte dos laços etc. Quais os instrumentos e utensílios técnicos? Instrumentos de precisão e de medida para o trabalho teórico e má quinas resultantes da aplicação da teoria. Ora, o chamado complexo militar-industrial transformou a técnica numa tecnologia secreta, e os objetos tecnológicos que conhecemos hoje, isto é, os autômatos, operam para nós e sem nós, misteriosamente. Sua fabricação é secreta, sua operação é secreta, e nossa relação com eles, mágica. Assim, o ressurgimento da astrologia, dos duendes e das fadas no universo dos autômatos não é um paradoxo inexplicável, mas a reunião, numa nova articulação, do misterioso.

Probabilismo científico, engenharia política, engenharia genética, automação, jogo e acaso financeiros, dispersão e abstração da produção, velocidade da informação e da comunicação, proliferação de imagens: tudo isso se articula para determinar a crise da razão, a afirmação da contingência radical da natureza e das ações humanas, e pede a reorganização do fragmentado e do disperso pelo caminho do mito, da magia, da astrologia e do fundamentalismo religioso.

O que a contingência ou a fortuna põem em jogo? Se deixarmos de lado, por um momento, a questão do acaso e da indeterminação na natureza e as questões metafísicas aí envolvidas, podemos dizer que o campo preferencial da contingência e da fortuna é a ação humana, seja na ética e na política, seja na arte e na técnica. É assim que Aristóteles deixa para o pensamento ocidental o vínculo com o tempo da deliberação, escolha e decisão: “O passado jamais pode ser objeto de escolha: ninguém escolhe ter havido o saque de Tróia; com efeito, a deliberação não se refere ao passado mas ao futuro e ao contingente, pois o passado não pode não ter sido. Agatão está certo ao escrever: ‘Pois há uma única coisa de que o próprio Deus está privado:/ fazer com que o que foi não tenha sido’” (Ética a Nicômaco, VI, 2).

E ainda:

Quanto ao outro ser, digo, o ser por acidente, não é necessário, mas indeterminado, e suas causas são inordenadas e em número infinito. Há finalidade no que devém por natureza ou provém do pensamento. Há fortuna [tyche] quando um desses acontecimentos se produz por acidente […] A fortuna é uma causa por acidente daquilo que escolhe normalmente, segundo uma escolha refletida em vista de um fim. Assim, fortuna e pensamento relacionam-se com as mesmas coisas, pois a escolha não existe separada do pensamento. Mas as causas que produzem o que pode vir da fortuna são indeterminadas, donde se segue que a fortuna é impenetrável ao cálculo do homem. [Metafísica, K, 8, grifos meus]

Através da figura da Fortuna podemos acompanhar o modo de constituição filosófica dos pares necessidade-contingência, fatalidade-acaso, fatalidade-providência e, a seguir, o movimento de separação natureza-ação humana, com a constituição do par fortuna-virtude. Esse conjunto de pares de opostos gradualmente realiza a determinação recíproca da fortuna e da virtude, à medida que vão deixando de ser tomadas como essências para serem pensadas como relação. Essa mudança é inseparável do momento em que se inicia a construção de uma subjetividade pré-cartesio-kantiana, pois trata-se de um sujeito que é relação com o tempo e com o mundo através da ação. É o momento da Renascença: a relação com o tempo determina a maneira como Maquiavel, Bacon e Montaigne dessubstancializam a fortuna para pensá-la como relação do homem consigo mesmo diante da adversidade e sua capacidade para dominá-la, operando por isso com o par deixado pelos gregos e romanos, o par virtude-fortuna.

A dessubstancialização e desessencialização do par fortuna-virtude contrapõe-se, porém, à permanência da oposição essencialista, tal como se configura no agostinismo da Reforma Magisterial, isto é, no pensamento de Lutero e Calvino e na discussão, pelo primeiro, do conceito de liberdade cristã (polêmica com Erasmo sobre o livre e o servo-arbítrio) e, pelo segundo, do conceito de predestinação (polêmica com Serveto).

O movimento seguinte, no quadro da Contrarreforma e da Reforma Radical (os iluminados “cristãos sem Igreja”, na expressão de Kolakowski), e do surgimento da mecânica clássica, é o da aparição da razão moderna como conhecimento que se realiza no interior da experiência para colocar-se fora e acima dela, propondo-se a dominá-la. É o momento de constituição das dicotomias: sujeito-objeto, consciência-coisa, ideia-fato, verdade aparência, essência-existência, natureza-homem, vontade-intelecto, cau sa lidade-finalidade, razão-experiência, necessidade-liberdade. A preocupação filosófica volta-se para a busca de um lugar que seja o lugar do real, obtido por supressão ou absorção de um dos termos da dicotomia. A fortuna, isto é, a experiência, o acaso, a contingência, a temporalidade nua é suprimida ou absorvida pelo polo onde se localiza o real e no qual se define “o que está em nosso poder”.

A cisão necessidade-liberdade — recusada apenas por Spinoza — deixa aberta a exigência de definir ainda uma vez o campo da contingência, nome que doravante recobrirá o da fortuna. A separação natureza-civilização (na Ilustração), natureza-cultura (no idealismo alemão) e natureza-história (a partir da filosofia hegeliana) desenha a nova figura da subjetividade que, abandonando pouco a pouco o solo do Infinito Positivo, descobre-se como finitude, seja esta a “vontade de potência” ou o “ente para a morte” ou “o nada condenado à liberdade”. Nesse movimento, a noção de finalidade (a finalidade sem fim kantiana e suas variantes) supre a de necessidade e captura a contingência no campo da transcendência mundana: a virtude é nosso poder para transcender as condições dadas, oferecendo-lhes novo sentido, mudando-lhes o rumo e os fins, como dirá Merleau-Ponty.

Em A estrutura do comportamento, Merleau-Ponty distingue três ordens de realidades ou três estruturações: a física, regida pela necessidade das leis naturais, a biológica, regida pela busca do equilíbrio adaptativo realizado pelo comportamento, e a humana, regida pela presença do simbólico, isto é, pelo fato de o homem ser o único ente que se relaciona com o ausente por meio da linguagem e do tempo. O homem é o ser voltado para o possível, e a liberdade é a capacidade humana para determinar o que é apenas possí vel. Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty faz a descrição fenomenológica do tempo criticando sua concepção tradicional como sucessão espacializada de instantes, como idealidade constituída pela consciência e como movimento objetivo da contradição, isto é, da negação da negação. O tempo, diz ele, é inquietação, pura diferença consigo mesmo, diferenciação que dá ou retira relevo de si mesmo. Em lugar de uma dialética, surge a noção de uma filosofia da diferença imanente como o ser do tempo. A liberdade surge, assim, como capacidade do sujeito para dar um sentido possível aos fatos brutos de sua situação, uma relação com o indeterminado e com a diferenciação de si consigo mesmo.

Ao apresentar esse quadro muito geral minha intenção é apenas salientar que o que conhecemos como razão ocidental foi um trabalho intelectual e afetivo para dar sentido àquilo que, deixado a si mesmo, nos arrasta para o mito, a ideologia e a servidão. É esse trabalho que, hoje, está posto em questão e constitui uma das faces da crise da razão.

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