1996

Crítica da razão cósmica

por José Leite Lopes

Resumo

Ao analisar a revolução por que passa a cosmologia, conclui-se que ela chegou ao seu limite. Trata-se de um engano. Ela não só avança, como propõe, a todo momento, novas questões. A mais formidável delas remete à origem do Universo, cuja dificuldade de apreensão começa pela gigantesca massa factual que a envolve.

Antes de tudo, a seguinte definição: a física estuda as inúmeras formas de matéria e energia. A começar pelas noções de espaço e tempo, sobretudo depois de Newton, para quem elas eram imutáveis. Foram necessários séculos para que tais noções mudassem, e, com elas, a estrutura do Universo. Isso que se deu em três etapas, como seguem.

Primeiro, a criação da cosmologia mesma, por meio da apresentação de seu objeto de trabalho: a totalidade. E ela como outro segmento qualquer da física, a exemplo da mecânica ou da termodinâmica. Tempos difíceis, já que a maioria dos físicos rejeitava a possibilidade de um objeto tão vasto ser operável. Antes, o espaço-tempo. E nisso o argumento da maioria não era de todo absurdo, uma vez que – até então – toda indagação experimental do Universo mostrou-se limitada. Daí o processo finito e limitado por parte do ser-que-experimenta.

Tal visão vigorou até a década de 1940, quando se descobriu que o Universo estava em expansão. Em outras palavras: o assim chamado substrato físico-temporal movia-se. Com isso, parecia que o físico roubaria do filósofo o pressuposto metafísico.

Era o fim da era newtoniana. Ou seja: o começo da segunda etapa, que pode ser assim sintetizada: a Teoria da Relatividade de Einstein sobre o pano de fundo descrito por Friedmann. E o que signica isso? De início que, num momento do passado finito, tudo que havia era um volume quase nulo. Nascia o Universo.

Einstein vigora. E, com ele, o Universo dinâmico, evolutivo, processual. Seu ponto de partida é, contudo, inescrutável. Eis o novo drama cosmológico: mal se tira a venda para percorrer novos mundos apresentados por Einstein, logo foi preciso reconhecer que a origem de tudo é inescrutável.

Eis a terceira fase, que começa sob um signo formidável: a da origem do Universo, constituído de substância (matéria e radiação) e substrato espaço-temporal. A nova cosmologia pretende, enfim, inventariar os modos de criação do Universo. Estabelecer, a partir de princípios que a física construiu para descrever os diversos processos observados no Universo, vínculos com qualquer estrutura formal que pudesse ser projetada na realidade.

A cosmologia, ao pretender estar no coração da ciência, procura, como sempre, sem paixões aparentes, suas razões, seus esquemas fundamentais, seus “apriorismos” escondidos. Para isso, é preciso não se perder em meio a caminhos que levam – como escreveu Heidegger – a lugar nenhum.


Prólogo

A grande evolução da ciência, nas últimas décadas, levou-nos, a nós, físicos, à conclusão de que, ao empreendermos decidida e vigorosamente o exame, na elaboração da cosmologia, da totalidade do que existe, a saber: o espaço, o tempo, a matéria e a energia, estaríamos assim atingindo (mantendo-nos, em conformidade com a tradição da física, no interior da prática científica) as fronteiras mais externas permissíveis a todo conhecimento que se pretende científico.

No entanto, hoje — e por razões e práticas que iremos descrever mais adiante — somos conduzidos a reconhecer, talvez contra uma das mais sólidas crenças em nossa visão racional da natureza, que nós (os físicos) estávamos profundamente enganados. Não somente é possível ir além da cosmologia — enquanto prática científica —, mas uma série de questões geradas naquela atividade assim o exigem. Dentre essas, a mais formidável é precisamente aquela que iremos examinar mais adiante: a criação do universo.

Sabíamos, de longa data, que toda tentativa de organização de uma estrutura coerente do universo, para além de sua dificuldade factual, que pretenda coordenar sequências de mundos, esbarra inevitavelmente numa selva linguística. Trata-se aí, preliminarmente, de uma análise verbal. Por exemplo, os infinitos tempos que se repetem, os possíveis  ciclos de universos que antecederam e que seguirão eventualmente este nosso cosmos, os diferentes universos-filhotes, suas interconexões ou sequências existenciais não podem constituir uma cosmologia, mas tratam de outra coisa, têm outro objetivo: tratam de estruturas que estão e estarão, talvez para sempre, no domínio da imaginação, do ultrassensível, dentro de um programa teórico, fora de nosso controle observacional.

No entanto os físicos de hoje, e de sempre, não escapam dessa tentação e, mais do que isso, não podem resistir a ela. Infelizmente (ou não) parece não existir alternativa fora dessa fórmula: metacosmologia é onde todos nós, físicos, cedo ou tarde, consciente ou inconscientemente, em nossa prática e sem sair dela devemos penetrar. A menos que por algum sortilégio fantasioso, e sem estarmos em seu controle, se encontrem em face de uma tentação dogmática como vez por outra já nos ocorreu no passado. Aí, e somente aí, podemos parar nossa investigação e encerrar nossa pesquisa nos escondendo dentro de um dogma, venha ele travestido de qualquer forma. A partir de então termina nossa caminhada enquanto cientistas: começa, assim, o tempo da narração.

Crítica da Física Newtoniana ou Refundação da Física

A ciência da física trata da matéria, da energia em suas múltiplas aparências e de seus modos de transformação. Para realizar essa tarefa empreendeu-se um longo caminho apoiado em certas estruturas, conceitos e ideias básicas apriorísticas, algumas delas sem nenhum suporte observacional, mas sem as quais o esquema convencional de descrição dessa ciência não apresentaria o perfil extremamente eficaz que ostenta e que lhe permitiu consolidar seu discurso sobre a natureza como verdadeiro,  em detrimento de saberes  rivais vencidos.

Em verdade, toda ciência requer, na infância de sua fundação, algumas  ideias apriorísticas sobre as quais ela se apoia para  erguer aquilo que constituirá seu sistema. Mais do que isso, ela necessita dessas considerações primárias para dar sentido ao seu discurso, bem como para fornecer as condições  gerais de aplicabilidade das verdades que ela supostamente pretende fornecer; em suma, para estabelecer seu território. Essas  ideias ou esquemas de fundação de uma ciência constituíram-se em geral de sistemas extremamente simples, e causa o mais das vezes uma certa estranheza reconhecermos, em um estágio ulterior, que as condições mesmas que permitiram estabelecer suas leis e seu programa de ação possam ter sido dependentes, no momento inicial de sua história, de uma base tão ingênua, e cujas origens, o mais das vezes, vamos encontrar em  ideias balizadas em desejos e vontades irracionais.

Esperar que a tarefa de nettoyage daqueles fundamentos fosse consciente e explicitamente deixada para uma etapa ulterior seria, talvez, conceder aos pais fundadores de uma dada ciência uma visão extremamente ampla que certamente eles não possuíam. Para comprovar essa afirmativa basta lembrar que, ao longo da história, tal reexame foi, quase sempre, precedido por uma crise interna, algumas vezes de dimensões avassaladoras.

Como nosso propósito aqui é bastante limitado e dirigido a uma questão particular, não nos deteremos no exame geral das ciências, mas sim iremos somente fazer alguns comentários sobre como essa elaboração, acima mencionada, ocorreu em alguns fundamentos específicos da física.

Iremos concentrar nossa atenção numa estrutura básica particularmente notável (pois ela parecia ser um de seus pilares mais sólidos, sem o qual boa parte desta ciência como um todo perderia até mesmo a sua razão de ser), a saber: a estrutura apriorística do espaço e do tempo, que consolidou uma visão do mundo newtoniano que dominou a física por  vários séculos.

Sabemos que todo o sistema da física clássica (isto é, aquela que se estruturou ao começo da era newtoniana) se organiza tendo como cenário de fundo o espaço e o tempo. Essa estrutura consistia em uma configuração ideal, estável, estática, impossível de ser atuada, isto é, inatingível, para além de nossa intervenção, e cuja organização se encontrava fora da descrição então conhecida, ou até mesmo, poderíamos dizer, permitida nesta ciência. Em verdade, a sistematização de ideias sobre as características do pano de fundo da física não empreendeu nenhuma forma de crítica aos sistemas de sustentação do discurso desta ciência sobre o mundo sensível. Era então a época da fundação da física e, como ocorre em  outras ciências, o solo onde ela estava sendo construída não permitia ainda uma auto crítica maior.

Foi somente no final do século XIX e no começo deste século que uma crítica de seus fundamentos começou a ser empreendida.

Veremos que esse reexame dos fundamentos da estrutura do espaço e do tempo trouxe em seu bojo uma reestruturação da própria ideia do universo, da cosmologia. Para entendermos como isso foi possível vamos fazer um breve histórico da evolução da cosmologia neste século.

Cosmologia

A história da cosmologia passou neste século por três momentos distintos bastante característicos da recente evolução científica da ideia de universo. Vamos aqui, brevemente, revê-los.

Numa primeira fase tratava-se de criar essa ciência, exibir seu objeto de trabalho (isto é, a totalidade) e assegurar aos  demais cientistas que ela poderia constituir uma estrutura convencional dentro da física: nada mais do que qualquer outra seção dessa ciência, tal como a mecânica ou a termodinâmica. Foi uma etapa dura. A grande maioria dos físicos parecia rejeitar a ideia de que seria possível tornar um conceito tão vago quanto o de totalidade em uma estrutura operacional. Aceitava-se mais facilmente a ideia de um espaço-tempo absoluto, ao qual não teríamos acesso imediato, do que pensar a possibilidade de que a ciência poderia experimentar o todo. Embora a física anterior a este nosso século, e que chamamos de física pré-relativista, utilizasse como um de seus conceitos mais fundamentais a ideia do substrato global espaço-tempo, ela não examinava a possibilidade de acesso formal a uma descrição analítica dessa estrutura. A fundação da física requeria a existência de um território de sustentação do drama da realidade descrito pela ciência; mas não se cogitava analisar esse território; ou  melhor, não se conheciam instrumentos teóricos para uma crítica ao apriorismo de sua fundamentação. Era o período dessa ciência que deveríamos chamar, usando uma nomenclatura emprestada de Kant, de não crítico.

Ademais, a impossibilidade de realizar observações que não tratassem de uma  região do espaço e do tempo limitada parecia ser um limite natural imposto ao homem para sempre.

O argumento está longe de ser desprezível e pode, de um modo simplista, ser recolocado do seguinte modo: toda experimentação, toda nossa indagação experimental do mundo, é limitada. Observo e controlo somente um processo finito e limitado, tanto no espaço como no tempo. Esta é, sem dúvida, a própria essência do homem limitado, do ser-que-experimenta. Consequentemente, parecia seguir dessa constatação que o homem não pode pretender observar a totalidade do universo, mas somente exemplos particulares, configurações localizadas no espaço e no tempo, o que poderíamos chamar, simplificadamente, de verdadeiros exemplos localizados: átomos do que existe. E se assim é, se não podemos em nenhuma circunstância observar o universo inteiro, como podemos pretender tornar o exame desse substrato global espaço-tempo uma atividade normal da ciência?

Essa questão produziu durante longo tempo um certo mal-estar teórico em alguns setores da ciência. Entretanto, um duplo movimento teórico-observacional pôs fim a essa dificuldade. Com efeito, na década de 40, como resultado de observações astronômicas exibindo o afastamento homogêneo das galáxias umas das outras, chegou-se à conclusão de que o universo como um todo estava sofrendo um movimento global de expansão: isto é, estávamos em presença de um fenômeno que não correspondia a um processo localizado no tempo ou no espaço; mas sim de um fenômeno que parecia envolver esta totalidade que vínhamos chamando de universo. Finalmente, pela primeira vez na história da espécie humana, tínhamos acesso a um processo que havia sido tradicionalmente pensado como se estivesse além de toda experimentação possível, transcendendo-a. Chegávamos, enfim, à confirmação de que o homem pode experimentar a totalidade em sua ação. Essa maravilhosa experimentação permitia aos físicos retirar, das mãos dos metafísicos, aquilo que Kant chamaria de cosmologia racional, derrubando de vez aquele argumento limitador a que nos referimos acima. E, mais do que isso: éramos levados à constatação de que aquele substrato espaço-tempo que parecia pairar acima de qualquer exame, como a física newtoniana nos impusera, não somente não era uma estrutura inalcançável — isto é, poderíamos torná-la um tema de investigação no interior da própria ciência e não mais como parte do território da metafísica —, bem como também perdia sua qualidade mais característica — ela não era estática. Isso liquidava com certa imagem da natureza envolvendo a pré-orquestração absoluta e definitiva do mundo newtoniano, posto que o universo possuía uma dinâmica global, uma história; não deveria ser pensado mais como uma unidade congelada, desprovida de qualquer forma de movimento (latu sensu) mas sim como um processo.

Era, afinal, a vitória de certos modos alternativos de representar o mundo que a ciência oficial havia completamente banido. Poder-se-ia, por exemplo, repensar Giordano Bruno e seus mundos mutantes, posto que este nosso próprio mundo fazia parte, agora, de uma estrutura em movimento, em mudança.

O reconhecimento, mais ou menos completo, por parte dos cientistas, desse fenômeno de expansão global do universo teve como consequência mais notável a queda definitiva da ordem cósmica newtoniana, que produzira um universo estático, imutável e absoluto. Este mundo sólido, fechado sobre si, compromissado com uma visão absolutista e dogmática, dominara desde Newton não só o mundo científico, produzindo aí uma fundamentação da física, como também influenciara praticamente todas as atividades do pensamento, que dele extraía sua referência e nele encontrava um paradigma para os diferentes programas filosóficos desde então desenvolvidos.

Surge então, dentro da física, como uma reação ao esquema tradicional, a segunda fase da cosmologia moderna. Tinha ela a função, mais ou menos explícita, de restabelecer uma certa ordem no mundo, em substituição ao antigo projeto newtoniano.

Nessa fase a cosmologia se consubstancia como uma consequência direta das  ideias relativistas propostas por Einstein, dentro de um cenário específico sugerido pelo cientista russo Friedmann, que iremos brevemente descrever. Não estamos interessados aqui nos detalhes técnicos dessa proposta mas tão-somente em algumas de suas propriedades básicas que caracterizam a nova ordem cósmica. Nela, uma estrutura global — o espaço-tempo — possui uma dinâmica gerada, ou melhor, provocada, pela matéria e energia existente.[1] Essa estrutura pode ser associada à evolução da totalidade espacial consubstanciada na dependência temporal do correspondente volume total do universo. A dinâmica desse volume é controlada pela distribuição de matéria no mundo. Segue dessa  descrição simples que o universo é espacialmente homogêneo: suas partes são, pelo menos em escalas cósmicas, indistinguíveis. Tal propriedade teve confirmação observacional ao longo dos anos 60. A variação do volume espacial com o tempo, a observação de que esse volume foi menor no passado, a possibilidade de que esse volume tenha sido incrivelmente pequeno, possivelmente tendo iniciado sua expansão a partir de um volume nulo, separado de nós por um tempo finito, provoca de imediato uma fantástica e ao mesmo tempo terrivelmente atraente ideia: a do começo do mundo. E é precisamente por aí, num sutil movimento de reconquista de território, que a antiga ordem racionalista e determinista irá se infiltrar, construindo seu aggiornamento. O começo do mundo é associado ao tempo em que, no passado, o volume global teria supostamente atingido o valor zero. Esta é uma das várias possibilidades teóricas que aparecem no novo cenário global. Ela se tornará muito rapidamente a dominadora e única, tanto no interior do sistema oficial da ciência como no panorama geral do pensamento moderno. Essa rápida e irresistível generalização da ideia de um começo do mundo se deveu principalmente ao papel desempenhado pela mídia. Esta transformou uma hipótese de trabalho interessante e consequente, formulada, sustentada e significante no interior da cosmologia, em matéria de sensacionalismo a ser consumida, e com avidez, através do sistema internacional de informação. Ao passar para o lado oposto ao da ciência, aquela hipótese se transfigurou em uma verdade, em uma grande, fantástica e certamente excitante verdade: a existência de um momento de criação do universo. Com direito a todas as eventuais consequências que tal verdade, supostamente vinda diretamente da ciência, pode produzir.

Não é nosso propósito discutir as razões que nos levam a não aceitar essa hipótese como verdade científica. Em outro lugar um de nós já se estendeu longamente sobre isso. Queremos somente levar o leitor a pensar conosco quais as principais consequências que essa situação (isto é, a existência de um momento único de criação do universo, afastado de nós por um tempo longo, mas finito e mensurável), no contexto de nossa discussão anterior, induz.

No universo newtoniano a estrutura do mundo estava fora de nosso controle teórico e observacional. As propriedades de sua principal característica, o palco onde se desenrolaria todo e qualquer drama descrito pela física, deveriam ser postuladas aprioristicamente e restariam inacessíveis a todo exame ulterior.

Embora essa característica tenha sido eliminada pela cosmologia relativista, aquela propriedade fundamental de inacessibilidade reaparece sob uma forma totalmente nova: a singularidade inicial ou, em termos populares, o momento-único-de-criação-do-mundo. Ali se ensaiaria todo o processo ulterior que chamamos universo. Ali se esconderiam todas as informações que funcionariam, caso a elas tivéssemos acesso, como condições iniciais no antigo sistema newtoniano, produzindo a partir daí um mundo previsível e determinista.

Entretanto, nesse segundo momento da cosmologia neste século, aquele instante inicial — também conhecido como Big bang — está, e para todo o sempre, fora de nosso controle observacional. A ele não temos nenhum acesso.

Note que estamos em presença de um movimento interessante de mudança do mundo newtoniano para um particular mundo einsteiniano.

A função de Grande Inobservável não é mais associada a uma estrutura básica como o espaço-tempo na física newtoniana, pois este adquire dentro do programa maior de reformulação relativista da teoria da gravitação uma dinâmica controlada pela matéria. Entretanto, aparece aqui uma forma substitutiva, cuja função no interior da ciência curiosamente parece ser a mesma. A roupagem é distinta: o novo Grande Inobservável não aparece enquanto estrutura teórica maior, mas sim como um particular e relevante exemplo das equações de Einstein acerca da gravitação, a saber, precisamente aquele associado a uma configuração geométrica especial do espaço-tempo, que utilizamos como uma primeira aproximação para descrever nosso universo.

Qual é o equivalente apriorístico com que nos deparamos aqui? É a própria origem deste universo. Expliquemo-nos. Na antiga cosmologia newtoniana o mundo, isto é, suas propriedades mais elementares, tais como a geometria do substrato espaço-tempo, deveria ser entendido como um dado, sem nenhuma possibilidade de análise ulterior. Na cosmologia relativista 
isso é posto em questão; dá-se um grande passo para a frente ao podermos examinar, questionar e propor uma dinâmica para esse contínuo espaço-tempo que passa a fazer parte do drama da física, não tendo mais a simples função anterior de simples palco. Entretanto, num movimento quase imperceptível de reconquista, esse palco-móvel, esse palco-obje to, esse palco-substância, passa a ser determinado a partir de uma configuração inacessível. Mas isso não é fabricado nos fundamentos da teoria, mas sim em um relevante exemplo particular dentre todas as formas com possíveis de geometria. E, supostamente, aquela geometria do nosso mundo.

Dito em outras palavras: o universo é dinâmico, existe uma evolução, um processo; mas as origens desse processo, as causas dessa evolução estão — e para sempre, nesse esquema — fora de nosso controle, impossíveis de serem conhecidas por nós.

Este é o novo drama que atinge então a física. Tiramos uma imensa venda de nossos olhos, pudemos penetrar na essência da caracterização do substrato espaço-tempo do mundo newtoniano, percorremos livremente, maravilhados, os diferentes mundos a que nos deu acesso a nova cosmologia einsteiniana; mas esse encantamento não nos conduziu muito longe: logo fomos levados a reconhecer que as origens deste mundo não podem ser investigadas, que os modos de criação de nosso universo não podem ser formulados por nossa ciência, ou, se o forem, reduzir-se-ão a meros exercícios teóricos, selvagem e incontrolavelmente especulativos. Acordamos para um dia maravilhoso, livramo-nos de séculos de opressão sobre nossa imaginação, para descobrirmos, de forma muito mais completa e inexorável, que os fundamentos do mundo são parte de um mistério que a física não pode decifrar. Seguimos afinal um Holzwege, como diria Heidegger, um caminho que não leva a lugar nenhum. Ou melhor, que nos leva somente à antesala da Grande Verdade Procurada. E daí não podemos passar.

Entretanto, os tempos agora são outros. Enquanto foram necessários  alguns séculos para rompermos as barreiras impostas pela física newtoniana, bastaram somente algumas décadas para que uma intensa e eficiente crítica ao novo dogma pudesse aparecer, infiltrar-se no cenário oficial da ciência, desvencilhar-se do preconceito apenas recentemente estabelecido, para por fim promulgar o aparecimento de uma nova fase na cosmologia. É dessa terceira e recente fase que iremos tratar agora.

Não poderíamos ser acusados de cometer um grande exagero de interpretação, se ousarmos afirmar que o mais formidável e atraente problema com que a física jamais se deparou é precisamente aquele de responder à questão: qual a origem de nosso universo? Poderíamos chamar a testemunhar, em favor dessa afirmação, o próprio fato de que essa questão não é unanimemente aceita como pertinente ao território dessa ciência. Aqueles que assim pensam estão seguros de estar longe de cometer um peca do reconhecidamente escandaloso contra a lógica. Com efeito, tivéssemos nós que criticar essa proposta, poderíamos começar por examinar a questão do objeto da nova ciência.

Entretanto, antes de enveredarmos por essa análise, vamos abrir aqui um parêntese: somente para simplificar nossa exposição e evitar repetições desnecessárias e enfadonhas, iremos cunhar um neologismo capaz de fazer referência a essa parte da ciência, chamando de metacosmologia aquela atividade que, no interior da cosmologia, se ocupa da questão central concernente à formação deste universo.

Dito isso, podemos retornar à nossa questão.

O mundo, o que chamamos genericamente de universo, como vimos acima, é constituído de substância (matéria ponderável ou radiação) e certo substrato contínuo (dado a priori, como na versão newtoniana; ou constituindo parte da dinâmica da interação gravitacional, como na relatividade de Einstein) que chamamos de espaço-tempo. Somos levados, talvez pela tradição filosófica contida nos esquemas formais de pensamento aceitos e utilizados pelos cientistas, a procurar elaborar uma cosmogonia. Uma ciência subsidiária da cosmologia, que trataria da origem, formação e propriedades fundamentais de toda substância do mundo. Tal ciência é bem-vista, aceita como tal, e até mesmo possui um elevado status no quadro da física. Diferentes esquemas cosmogônicos são examinados, e alguns deles fazem parte de certo cenário completo do universo de que a física dispõe. Campos fundamentais, que dariam origem a toda matéria existente, são propostos com base nos diferentes esquemas unificadores que a microfísica, que trata das partículas elementares, permite estabelecer. Tais campos se valeriam das dicotomias onda-corpúsculo, campo-partícula, local-global, que a parte da física chamada teoria quântica permite considerar, para gerenciar uma hierarquia que, a partir desses campos, conduziria toda a pré-matéria do mundo a saltar de seus escondidos estados de equilíbrio básicos para estados excitados de existência.

Por outro lado, uma seção correspondente da ciência que trataria, consequente e sistematicamente, da origem, formação e propriedades fundamentais do contínuo espaço-tempo não somente inexistia no quadro da cosmologia, nessa segunda fase acima descrita, como ainda hoje não desfruta de igual prestígio e respeitabilidade quanto a sua correspondente material, a cosmogonia.

Não deixa de ser curioso notar que a nomenclatura acima é ambígua. Se formos ao dicionário, ele nos ensinará que a cosmogonia trata da criação e origem do universo, subentendendo por isso a caracterização da substância material do mundo.

Entretanto, uma tal definição, como vimos acima, é insuficiente para descrever as variadas possibilidades com que o novo panorama científico se depara. Assim, poderíamos ser levados a crer que a criação da matéria e do espaço-tempo poderia ser entendida somente dentro de um quadro unificado, no qual ambas apareceriam concomitantemente. Ora, isso não condiz com o que a ciência vem produzindo. Diferentes possibilidades hierárquicas vêm sendo examinadas, embora ainda estejamos longe de poder decidir seguramente entre cenários alternativos onde, por exemplo, a matéria nada mais seria do que um resultado ulterior de processos variados que essa estrutura preliminar, o espaço-tempo primordial, poderia exibir.

Assim, deveríamos poder distinguir entre uma cosmogonia de substância e uma cosmogonia de espaço-tempo. No esquema citado no parágrafo anterior, haveria uma hierarquia entre essas cosmogonias, determinada pelo modelo teórico utilizado em suas elaborações.

A principal razão para essa situação desigual parece ter origem precisamente na crítica implícita que a cosmogonia do espaço-tempo é obrigada a produzir, como pré-requisito à sua própria fundação. Com efeito, a cosmogonia de substância pode, embora hibridamente, coabitar um esquema científico em que exista uma singularidade inicial, um começo do universo. Esse estado inicial conteria o germe de toda substância material. Entretanto, e por razões a serem ulteriormente examinadas, dificilmente uma cosmogonia do espaço-tempo poderia conviver com a redução completa do universo, em algum período de sua história, a um ponto.

Dito isso, podemos enfrentar nossa questão: qual é, enfim, a caracterização dessa terceira fase da cosmologia que vislumbramos acima? E por que nos alongamos tanto na definição do termo cosmogonia?

A resposta é simples: a nova cosmologia pretende inventariar os modos de criação do universo. Ela pretende estabelecer, a partir de princípios que a física construiu para descrever os diferentes processos observados no mundo, alguns vínculos a que qual quer estrutura formal que pudesse ser projetada em nossa realidade deveria naturalmente obedecer. Isto é, estamos procurando descrever uma ciência de totalidades compossíveis, de universos compatíveis. E o único critério que podemos aceitar sem violar regras convencionais da boa ciência conduz-nos a eliminar aqueles processos que não teriam nenhuma probabilidade de ocorrência em nosso mundo. Como podemos tratar essas possibilidades sem que estejamos no limiar de considerar nada mais do que fantasias? A cosmologia, pretendendo estar no coração da ciência, procura, como sempre, sem paixão aparente, as suas razões, os seus esquemas fundamentais, os seus apriorismos escondidos. Para isso, um guia competente é escolhido. Dentre os vários caminhos possíveis, ela deve escolher um único.

Mas a primeira condição para qualquer futura cosmologia consiste em  erguer, sobre bases sólidas, uma cosmogonia completa. E, pelo que vimos acima, isso  requer, preliminarmente, uma teoria da formação dessa estrutura clássica que chamamos espaço-tempo. Isso significa que não somente devemos pensar em um tempo em que não havia o tempo, mas que estamos tentando produzir um cenário formal, com uma linguagem própria e universal, no qual aquela estrutura (tempo e espaço) seria convidada, e nada mais do que isso, a existir.

Isso cria uma dificuldade formal de compatibilização com o resto da física, que não permite uma descrição clássica abstraída de configuração no sistema espaço-tempo. Essa tensão entre a nova face — que chamamos de metacosmologia — que a ciência está produzindo e sua parte convencional e limitada — a física tradicional — provoca, em diferentes contextos, um combate que, em outros tempos, veríamos como constituindo uma ruptura da tradição racional. Entretanto, trata-se de perseguir precisamente um esquema globalizante e racional. Só assim podemos entender mecanismos de formação do espaço-tempo. E, por que podemos eliminar aquela singularidade inicial, transformando o começo do mundo em um mecanismo de formação desse contínuo espaço-temporal, é que se abre diante de nós esta nova trilha: a metacosmologia. Assim estamos realizando a tarefa da fundação crítica da cosmologia capaz de levar-nos além de suas formulações provisórias anteriores.

Uma primeira tentativa nessa direção partiu da conciliação da física da gravitação com a teoria quântica. Outro procedimento, menos ambicioso mas igualmente engenhoso, permitia distinguir não somente um único universo mas  vários universos-filhotes gerados a partir de uma estrutura particular, que não poderiam trocar nenhum tipo de informação. Cada um desses exemplos de universo, digamos assim, estaria separado de todos os outros por uma membrana, por um horizonte de informação intransponível. Sabemos de suas existências por que possuímos um mecanismo de sua formação baseados em esquemas tradicionais e conhecidos da física. Devemos nos contentar com isso? Estamos seguros de que esses nossos “companheiros de existência” estão realmente na antesala ao lado? Podemos encontrar alguma pegada, algum vestígio, por menos material que seja, de suas existências? Enquanto desesperadamente seguimos nessa procura, devemos esperar que esse esquema nos reconcilie com a unificação perdida, ao aceitarmos a extensão de nossa ciência que nos levou a considerar a realidade desses universos?

Entretanto, devemos ter em mente que não é suficiente, para avançarmos nessa trilha, que olhemos para além de nosso horizonte: é indispensável que eliminemos esse horizonte. A condição do horizonte. Essa tarefa traz consequências inesperadas: diferentes universos-ilhas que não trocariam informações e que, no esquema anterior tradicional, poderiam conviver, devem ser repensados e suas realidades reexaminadas. Não em nome de um antropocentrismo científico. Nem em nome de uma objetividade que elegeria a observação continuada como critério de realidade. Isso porque não se trata agora de esconder as informações relevantes do mundo, mas de codificá-las diferentemente. Não mais procurar nos nossos corpos o paradigma da representação do mundo mas ir além, produzindo esta nova realidade não representável em termos de espaço-tempo: o pré-universo.

Essa tentativa da cosmologia parece colocar-nos numa fronteira cujo outro lado é um abismo.

Teremos coragem para dar ainda um passo para a frente? Saímos assim da atividade científica para penetrar em um território que não está sob sua jurisdição? O objeto da metacosmologia, esses pré-universos, talvez sem lei e sem ordem, estaria esperando por nós para que lhe permitíssemos o acesso à realidade? Ou devemos, obedientemente, voltar nossas costas para esse canto de sereia com que essa metamorfose da cosmologia, essa meta cosmologia, girando sobre nossa razão, pretende nos enlevar, atraindo-nos para além do território seguro de nossa observação, aquilo que constitui nossa herança racional, a história de nossas descobertas?

Esta é a tarefa que temos pela frente: decidir qual o caminho que devemos escolher para seguirmos com nossa análise do mundo.

Como nos questionamos no prólogo acima, onde interromper nossa pesquisa? Em que nível de generalidade a resposta a essa questão deve ser procurada? Devemos providenciar, como sempre o fizemos, uma saída coletiva? O que fazer com essas teorias de formação do universo? Atirá-las ao jogo filosófico de encantamento? Ou produzir uma teoria do homem? E deveríamos, assim, abandonar aquela herança impessoal de que tanto nos orgulhamos, ao inventarmos a ciência?

O simples fato de que fomos levados a formular essas questões, tão atípicas na física, não daria razão àqueles que, ainda na primeira fase da cosmologia deste século, se recusavam a considerá-la como uma ciência convencional?

A resposta é não. Atacar essas questões é o preço que devemos pagar para produzirmos uma refundamentação da física.

Pois, afinal, este é o objetivo desta crítica da razão cósmica que estamos construindo.

Notas

[1] Seria talvez desnecessário acrescentar que a palavra existente tem aqui um sentido maior do que no linguajar corriqueiro. Em outro lugar (ver, por exemplo, o artigo “Modos de criação do universo”, de M. Novello) comentou-se a influência de quantidades (como, por exemplo, o vácuo da física moderna) que não seriam catalogadas como tais e que, entretanto, agem sobre a estrutura do universo.

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