1999

Da inimizade: forma e simbolismo da guerra indígena

por Carlos Fausto

Resumo

O processo colonial alterou rapidamente as condições em que viviam as populações ameríndias. Os sistemas sociais nativos foram afetados pela guerra e pelo escambo, por doenças como a varíola, o sarampo e a gripe, e pela catequese missionária. Para o pensamento político europeu dos séculos XVII e XVIII, era evidente que o belicismo ameríndio manifestava um tipo geral, não apenas de guerra, mas também de sociedade.

No final da década de 1960, a antropologia acreditou ter reencontrado o verdadeiro Selvagem americano: “uma grande tribo de índios da floresta tropical, na fronteira entre Venezuela e Brasil. [….] Eles somam aproximadamente 20 mil pessoas e estão distribuídos em duzentas a 250 aldeias amplamente dispersas. Eles são horticultores, e viveram até recentemente isolados do nosso tipo de cultura. […] O fato notável sobre essa tribo, conhecida como os Yanomamó, é o de terem conseguido reter, graças a seu isolamento, os seus padrões nativos de guerra e integridade política sem a interferência do mundo exterior” (Chagnon).

Tomados como fósseis vivos, os Yanomami passaram a ocupar o lugar reservado no pensamento ocidental ao homem em sua condição natural, abrindo espaço para diversas questões: como explicar essa onipresença da guerra em uma sociedade igualitária? Por que o belicismo seria tão prevalente ali onde a densidade demográfica era tão baixa, a disponibilidade de terras tão grande e a sociedade indivisa: sem classes, propriedade privada, nem dominantes e dominados?

Para Chagnon, esse estado de guerra teria origem na ausência de instituições políticas capazes de regular os conflitos no interior das aldeias e de evitar sua divisão. Esse processo fissional, ao criar um meio social composto de vários grupos locais, vizinhos, independentes e mutuamente hostis, faria da guerra uma necessidade para a preservação da autonomia aldeã.

Contra Chagnon, insurgiram-se os adeptos da ecologia cultural, para os quais a guerra yanomami seria uma resposta adaptativa a uma escassez material, a um recurso crítico limitado que se encontraria no domínio da natureza. Diante desse quadro, levantou-se a hipótese de que o recurso escasso por excelência nas regiões interfluviais da Amazônia seria a proteína animal. A função oculta do belicismo seria limitar o crescimento demográfico e a superexploração da caça, permitindo maximizar as condições de sobrevivência e bem-estar material. Chagnon supõe que as hostilidades entre aldeias seriam o produto da disputa por mulheres ou, mais exatamente, por recursos reprodutivos. Ambos os modelos – ecologia cultural e sociobiologia – recorreram à ordem natural para explicar a guerra indígena em condições, aparentemente, “naturais” e “prístinas”.

Os Yanomami não eram fósseis vivos, nem representavam sobrevivências de um passado perdido quando foram descritos na década de 1960. Mesmo sem contato permanente com a sociedade nacional, eles não estiveram fora da história colonial. Há uma variabilidade muito maior do que aquela capturada pelas dicotomias primitivo/moderno, sem Estado/com Estado, extra-ocidental/ocidental, e assim por diante. Ademais, todas as observações sobre os grupos indígenas deste continente foram feitas, obviamente, após o início da Conquista, portanto não mais em uma situação “tradicional”.

Alguns antropólogos afirmam que não é possível separar o que é autóctone do que é adventício, o que é característico dos sistemas indígenas daquilo que é produto do processo colonial. Em certa medida, eles têm razão, mas apenas em certa medida.


O tema que me coube nesta série de conferências, parte das Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil, é a guerra nativa, ou, mais especificamente, seus aspectos simbólicos e políticos. Dada a escolha do tema, sinto-me à vontade para começar por uma nota política com possível efeito simbólico.

Ao contrário de outros países da América, aqui ainda não nos causa espanto falar em “comemoração” ou “descobrimento”. Desde o século XVII (i. e., desde pelo menos a História do Brasil de frei Vicente do Salvador), narramos uma mesma história sobre uma terra virgem que foi desbravada e povoada por seus descobridores. Esses motivos – virgem, desbravada, descoberta, povoada -, tão recorrentes na historiografia, expressam um modo de relação da sociedade colonial, e depois nacional, com os habitantes originais deste país. Os povos indígenas não são jamais vistos como sujeitos, mas sempre como parte da paisagem que cumpre dominar. Da perspectiva da descoberta, o Brasil era um vazio feito de rochas, rios, plantas, animais e índios.

A palavra descobrimento ocupa, pois, o lugar de outro termo, mais forte e mais direto, que não costumamos empregar: conquista. As terras que viriam a ser o território do Brasil foram conquistadas aos povos indígenas, sendo primeiro despovoadas e depois repovoadas.[1] A população do Brasil em 1819, às vésperas da independência, era provavelmente menor do que aquela indígena trezentos anos antes.[2] Para sermos fiéis aos fatos, portanto, deveríamos falar em V Centenário do início da conquista, despovoamento e repovoamento do Brasil, uma data a ser comemorada não em seu sentido de festejo, mas de memória e reflexão crítica.

INTRODUÇÃO

Essas observações iniciais não têm apenas um caráter político, pois seus desdobramentos são, digamos, científicos. Quando falamos em guerra indígena na América do Sul tropical, devemos considerar sua variabilidade no tempo e no espaço. Atentar para o contexto e a época em que foi observada e relatada, bem como para a natureza e qualidade das fontes. Isso significa, entre outras coisas, manter presente o fato de que a guerra indígena tal qual a conhecemos historicamente está imersa em um processo de conquista e colonização de proporções monumentais. Monumental não apenas pela extensão de terras envolvidas, mas também pelos seus drásticos efeitos sociodemográficos.

O processo colonial alterou rapidamente as condições em que viviam as populações ameríndias. Os sistemas sociais nativos foram afetados pela guerra e pelo escambo, por doenças como a varíola, o sarampo e a gripe, e pela catequese missionária.[3] Um novo mundo de objetos e relações foi introduzido: objetos de insuspeitável eficácia, como os machados de metal, ou de vasto valor simbólico, como as contas de porcelana; relações tão colonialmente ordinárias quanto desconhecidas pelos índios, como aquelas entre senhor e escravo, padre e fiel, ou administrador e administrado.

Nesse quadro complexo de transformações, falar em guerra indígena no singular é, por certo, arriscado. O impacto da colonização sobre as práticas bélicas nativas foi amplo, difuso, duradouro, mas também variado conforme o local e a época – ora intensificando os conflitos, ora impondo a paz dos mortos, ora levando ao choque pela compressão territorial, ora conduzindo à formação de sistemas inter-étnicos pacíficos. Nesses quinhentos anos, houve guerras de resistência; houve aquelas motivadas pela captura de inimigos a serem trocados por instrumentos de metal com os brancos; houve outras que resultaram do movimento de populações em fuga; ou, ainda, aquelas movidas por valores “tradicionais” que se deram em contextos sociodemográficos não mais “tradicionais”.[4]4 Sobre que guerras, portanto, estaremos falando? É possível conceitualizá-las como um mesmo fenômeno? Há algo de específico que nos permite subsumi-las a uma mesma categoria?

A ILUSÃO ARCAICA

Para o pensamento político europeu dos séculos XVII e XVIII, era evidente que o belicismo ameríndio manifestava um tipo geral, não apenas de guerra, mas também de sociedade: “Pensar-se-á porventura”, escreveu Hobbes no Leviatã, “que nunca houve um tempo, nem estado de guerra como este; e eu creio que nunca foi assim, de modo geral, em todo o mundo. Mas há vários lugares em que assim se vive, atualmente. Pois os povos selvagens em vários lugares da América […] não possuem nenhum governo e vivem, hoje, desta maneira animalesca, a que me referi acima” (Hobbes [1651], 1952, pp. 85-6).

Os selvagens da América, gente “sem fé, sem lei e sem rei”, para retomar a célebre fórmula do cronista quinhentista Pero de Magalhães Gandavo, tornaram-se representantes de uma ante- (e anti-) sociedade civil, modelo de um estado prístino da humanidade, anterior à pólis e ao Estado. Os ameríndios, nossos contemporâneos, não nos seriam jamais coetâneos: compartilhariam conosco um mesmo tempo, mas não o mesmo momento de um processo civilizatório. Toda viagem no espaço, da Europa às Américas, seria também uma viagem no tempo, um retorno ao passado, ao nosso próprio passado, ao passado do homem. Um reencontro se não com o instante de instauração da cultura, ao menos um olhar sobre as formas elementares da vida social.

Lévi-Strauss, leitor de Rousseau, elaborando sua experiência de viagem pelo interior do Brasil, falar-nos-ia da importância desse reencontro: “O estudo desses selvagens nos traz outra coisa que a revelação de um estado de natureza utópico ou a descoberta da sociedade perfeita no coração da floresta; ele nos ajuda a construir um modelo teórico da sociedade humana, que não corresponde a nenhuma realidade observável, mas que nos auxilia a discernir”, e então vem a citação de Rousseau, “aquilo que há de originário e de artificial na natureza atual do homem e a conhecer bem um estado que não existe mais, que talvez nunca existiu, que provavelmente não existirá jamais, e do qual contudo é necessário ter noções justas para que possamos bem julgar nosso estado presente” (Lévi-Strauss 1955, p. 353, citando o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens).

Tanto para Hobbes como para Rousseau tratava-se de julgar o “estado presente” de suas culturas construindo um modelo da sociedade e do homem, despido daquilo que seria da ordem do artifício e da convenção. O homem nu, movendo-se no vácuo, sem fatores de distorção, como os corpos de Galileu. É com essa medida que poderíamos reformar nossos próprios costumes, encarando sem medo a liberdade possível ou o próprio medo, “a vida do homem, solitária, pobre, sórdida, bestial e breve” (Hobbes [1651], 1952, p. 85).

Eis por que a guerra entre os “povos selvagens da América” causará tanto interesse quanto incômodo a gerações de antropólogos. Se são esses povos que nos servem de medida, o que fazer se encontrarmos neles não a figura da liberdade, mas a da violência; não a amizade generalizada, mas a inimizade igualmente geral?

A QUERELA YANOMAMI

No final da década de 1960, a antropologia acreditou ter reencontrado o Selvagem americano em carne e osso, que parecia ter desaparecido em sua “condição natural”: “Há uma grande tribo de índios da floresta tropical, na fronteira entre Venezuela e Brasil. Eles somam aproximadamente 20 mil pessoas e estão distribuídos em duzentas a 250 aldeias amplamente dispersas. Eles são horticultores, e viveram até recentemente isolados do nosso tipo de cultura. […] O fato notável sobre essa tribo, conhecida como os Yanomamó, é o de terem conseguido reter, graças a seu isolamento, os seus padrões nativos de guerra e integridade política sem a interferência do mundo exterior” (Chagnon, 1992, p. 1).

Assim começava a etnografia de Napoleon Chagnon, publicada originalmente em 1968, e que se tornaria o mais vendido e mais polêmico livro da etnologia americanista. Trazendo como título Yanomami: o povo feroz, o livro de Chagnon descrevia uma sociedade sem governo, vivendo em um estado crônico de guerra. Imagem que Clastres subscreveria dez anos mais tarde, em um de seus últimos e mais brilhantes textos: “Nesse sentido, a situação dos Yanomami amazônicos é única: seu isolamento secular permitiu a esses índios, sem dúvida a última grande sociedade primitiva, viver até o momento como se a América não tivesse sido descoberta. Assim é que se pode observar entre eles a onipresença da guerra” (Clastres, 1982, p. 173).

Como explicar essa onipresença da guerra em uma sociedade igualitária, vivendo em pequenas aldeias espalhadas sobre uma imensa faixa de floresta? Por que o belicismo seria tão prevalente ali onde a densidade demográfica era tão baixa, a disponibilidade de terras tão grande e a sociedade indivisa: sem classes, propriedade privada, nem dominantes e dominados? Teria Hobbes intuído corretamente ao pensar a América como o palco da guerra de todos contra todos, do estado de Warre, cuja natureza consistiria menos na batalha efetiva do que na disposição constante para a luta?

Não me interessa aqui acompanhar em detalhe as várias respostas que foram dadas a essas questões. Chamarei a atenção apenas para alguns pontos, a começar pelo contexto em que a querela yanomami eclodiu: um simpósio da Associação Americana de Antropologia, realizado em 1967, em plena campanha contra a guerra do Vietnã, como parte do esforço da sociedade americana para pensar seu próprio belicismo. Foi nesse simpósio que Chagnon apresentou seus dados sobre os Yanomami e avançou uma hipótese hobbesiana para o estado de guerra que ele havia observado em sua pesquisa de campo. Segundo o autor, esse estado teria origem na ausência de instituições políticas capazes de regular os conflitos no interior das aldeias e de evitar sua fissão. Esse processo fissional, ao criar um meio social composto de vários grupos locais, vizinhos, independentes e mutuamente hostis, faria da guerra uma necessidade para a preservação da autonomia aldeã: “O aspecto crítico da ecologia cultural”, ele escrevia, “são aldeias vizinhas e hostis. É a adaptação a isso, antes do que à disponibilidade de terra, que dá à sociedade yanomamó seu caráter agressivo” (Chagnon, 1968, p. 113).

Chagnon, porém, não propunha apenas uma explicação para o estado crônico de guerra de um pequeno povo perdido na floresta tropical. Elman Service, ao comentar o trabalho do autor no simpósio, diria que “os Yanomamó parecem […] selvagens prístinos, nossos ancestrais contemporâneos, realizando sem impedimento seu destino hobbesiano” (1968, p. 160). Tomados como fósseis vivos, os Yanomami foram logo catapultados da fronteira entre o Brasil e a Venezuela para ocupar o lugar reservado no pensamento ocidental ao homem em sua condição natural. Por isso, suas guerras não eram apenas um desafio para validar ou infirmar teorias concorrentes: o sibilo das setas yanomami ressoava aos ouvidos daqueles que buscavam uma medida para “bem julgar o estado presente”.

A identificação da situação contemporânea dos Yanomami àquela de selvagens prístinos forneceu a tônica da discussão na academia norte-americana. Reencenou-se o tópos do homem natural por uma redução da sociedade à natureza ou, ainda, das razões sócio-históricas àquelas ecológicas ou biológicas. Contra Chagnon, insurgiram-se os adeptos da ecologia cultural, para os quais a guerra yanomami seria uma resposta adaptativa a uma escassez material, a um recurso crítico limitado que se encontraria no domínio da natureza. No caso em tela, esse fator não poderia ser a disponibilidade de terras ou sua produtividade diferencial, já que a densidade demográfica na região é muito baixa, o meio é razoavelmente homogêneo e os conflitos não envolvem conquista territorial. Diante desse quadro, levantou-se a hipótese de que o recurso escasso por excelência nas regiões interfluviais da Amazônia seria a proteína animal (Gross, 1975), sendo a Warre indígena um mecanismo adaptativo de ajuste populacional a esse recurso. A função oculta do belicismo seria limitar o crescimento demográfico e a superexploração da caça, permitindo maximizar as condições de sobrevivência e bem-estar material (Barris 1979; 1984).[5]

A resposta de Chagnon (1988) ao desafio posto pelo modelo de Barris expressa bem a tendência naturalizante que norteou a discussão. Ao passar da explicação por ausência (de mecanismos políticos de arbitragem) para outra, positiva, o autor transitou do político ao natural, vindo a esposar um modelo sociobiológico. Os conflitos interindividuais, que estão na base dos processos fissionais e, portanto, das hostilidades entre aldeias, seriam o produto da disputa por mulheres ou, mais exatamente, por recursos reprodutivos. O comportamento violento teria sido reforçado na sociedade yanomami por ser um meio para obter sucesso reprodutivo: homens com status de matador teriam maiores chances de transmitir seu pool genético a gerações futuras. O estado de guerra surge, assim, como consequência do mecanismo de seleção natural, operando no nível da herança genética.[6]

Ambos os modelos – ecologia cultural e sociobiologia – recorreram à ordem natural para explicar a guerra indígena em condições, aparente mente, “naturais” e “prístinas”. A partir da década de 1990, porém, começouse a desmontar o mito dos Yanomami como ancestrais contemporâneos, conferindo-lhes uma existência na história ou, mais precisamente, em uma história específica: aquela da conquista e colonização da América. A Warre indígena emerge como subproduto da expansão de sociedades com Estado sobre áreas ocupadas por sociedades sem Estado (Ferguson & Whitehead, 1992). A guerra yanomami seria conseqüência da introdução de ferramentas de metal, que teria alterado substantivamente a economia e a política nativas. Os conflitos armados eclodiriam em função da necessidade de controlar a circulação e o aporte desse recurso crítico, cuja disponibilidade é restrita e a origem, externa (Ferguson, 1990).

Essa hipótese tem uma implicação retroativa; a saber, que antes da entrada dos instrumentos de metal a guerra seria “limitada ou mesmo inexistente entre as comunidades yanomami” (Ferguson, 1995, p. 75). Verdadeira ou não, esta é uma questão de fato, que não pode ser decidida senão com novos dados empíricos. Ela possui, porém, uma implicação político-moral, a de que o estado crônico de guerra não seria “expressão da própria cultura yanomami”, mas o “produto de situações históricas específicas” (Ferguson, 1995, p. 6). Os Yanomami pós-Conquista são historicizados ao preço de se essencializar os Yanomami pré-Conquista, portadores de uma cultura original da qual a guerra está excluída. Esse estado primitivo, que jamais foi objeto de observação e registro, está fora da história, pois a história acontece aos Yanomami após a chegada dos europeus.[7] A hipótese de Ferguson preserva, assim, um lugar naturalizado, que nos permite distinguir, como diria Rousseau, “o que há de originário e de artificial na natureza atual do homem”. E, ao contrário de Chagnon, ele conclui que nesse lugar não há guerra, ou pelo menos não há estado de guerra.

O feitiço da filosofia política contratualista continua a encantar e assombrar a antropologia. Os ameríndios ainda são chamados a representar o estado de natureza de onde todos teríamos partido. As discussões contemporâneas teimam em pendulear entre as imagens da bondade natural e da violência inata como se elas não fossem congêneres, como se uma não implicasse a outra. Embora também enredada nas questões do contratualismo, a reflexão antropológica sobre a guerra não foi, no contexto francês, marcada pela mesma tendência naturalizante que observamos no meio acadêmico norte-americano. Ao contrário, ela se encaminhou em duas direções diferentes: de um lado, para uma repolitização da guerra primitiva e da própria sociedade primitiva; de outro, para um privilégio da dimensão simbólica e ritual da violência. O primeiro movimento se liga ao nome de Pierre Clastres; o segundo, ao de Lévi-Strauss ou, ainda, aos filhos americanistas do estruturalismo.

A POLÍTICA DA GUERRA

Para Clastres, assim como para a ecologia cultural americana ou, enfim, para toda reflexão ocidental sobre os povos ameríndios, o signo irredutível da diferença indígena é a ausência de Estado. É esse grande divisor – sociedades com ou sem Estado – que permite abrigar sob um mesmo conceito processos e formas sociais diversas. “Sem fé, sem lei, sem rei: o que no século XVI o Ocidente dizia dos índios pode estender-se sem dificuldade a toda sociedade primitiva. Este pode mesmo ser o critério da distinção: uma sociedade é primitiva se nela falta o rei, como fonte legítima da lei, isto é, a máquina estatal. Inversamente, toda sociedade não primitiva é uma sociedade de Estado: pouco importa o regime socioeconômico em vigor” (Clastres, 1978, p. 143).

À diferença da tradição dominante no pensamento político, contudo, Clastres não fará das sociedades sem Estado uma ante-sociedade civil. Não somente porque lhes conferirá um caráter plenamente social (não natural) o que ademais a antropologia já havia feito -, mas sobretudo porque lhes restituirá a dimensão do político. Para ele, a comunidade primitiva é uma politeia em sentido forte, não uma sociedade organizada segundo princípios que estão aquém do político, como seriam o parentesco e o casamento. A ausência de Estado não deve, pois, ser pensada como simples falta, carência, incompletude. Para além da ausência, Clastres quer ver a realização de uma vontade, que é plenamente política e constitutiva da sociedade primitiva. Desejo positivo de manter-se em si mesma, que é ao mesmo tempo desejo negativo: recusa da divisão dominantes e dominados, recusa da alienação e do Estado.

Esse modelo da sociedade primitiva como sociedade contra o Estado, e não como sociedade pré-estatal, ergue-se sobre dois pilares básicos, que levam Clastres a contrapor-se, de um lado, ao marxismo e, de outro, ao estruturalismo. O primeiro pilar é uma determinada concepção da eco nomia primitiva e de sua relação com o político. O segundo, que Clastres começava a desenvolver quando de sua morte prematura, diz respeito ao lugar da guerra e da troca nas sociedades primitivas.

O problema da economia se insere no mesmo registro que o político. Clastres quer substituir o olhar negativo sobre o outro lado do divisor, o das sociedades sem alguma coisa, por uma mirada positiva. E, no campo da economia, isso significa combater a “imagem antiga, sempre eficaz, da miséria dos selvagens” (1978, p. 133) – imagem de povos tecnologicamente atrasados, vivendo permanentemente no limite da fome, lutando diariamente para sobreviver em um ambiente hostil, totalmente incapazes de produzir qualquer excedente; povos, enfim, de simples economia de subsistência.

Clastres substituirá esse tópos da escassez pelo da fartura, estendendo para todas as sociedades primitivas o argumento do célebre artigo de Marshall Sahlins, “A primeira sociedade da abundância” (1968)[8], no qual ele sugeria que a escassez, longe de ser natural e característica das economias de subsistência, era instituída pela economia de mercado, a qual produz infinitamente novas necessidades. Analisando o pouco tempo de trabalho dedicado à subsistência em algumas sociedades caçadoras-coletoras, Sahlins apresentava-as como sociedades afluentes, pois capazes de dedicar mais tempo ao lazer do que ao labor. A afluência aqui não significa riqueza, mas liberdade, liberdade para usar o tempo para outros fins que não o da produção de bens. A positividade da economia primitiva é, portanto, também uma recusa: recusa do trabalho (alienado) e, portanto, da desigualdade.

Ao virar a imagem da escassez primitiva de cabeça para baixo, Sahlins visava libertar-se do determinismo da ecologia cultural norte-americana para afirmar, mais adiante, uma autonomia do cultural ante o econômico. Clastres, por seu turno, fez uso do mesmo argumento para combater o marxismo francês e afirmar a preeminência do político sobre o econômico. É apenas enquanto sociedade afluente e livre, não determinada pela economia, que a politeia selvagem pode afirmar seu télos e recusar a tentação do Um, afirmando-se contra o Leviatã. Clastres só delinearia o mecanismo sociopolítico dessa recusa no final de sua vida, com um retorno a Hobbes (ainda que para subvertê-lo). A guerra aparecerá, assim como no estado pré-social hobbesiano, como fato universal da sociedade primitiva, sem o qual esta última não pode ser pensada. Ela é simultaneamente uma estrutura e uma visada, mecanismo sociológico poderoso e finalidade constitutiva: “As sociedades primitivas”, diz Clastres, “são sociedades violentas, seu ser social é um ser-para-a-guerra” (1982, p. 171).

Ao colocar a guerra no centro da definição de sociedade primitiva, que como vimos era sociedade do lazer e da igualdade, Clastres desestabiliza a oposição constitutiva da reflexão ocidental sobre os povos extra-ocidentais. Afirma ao mesmo tempo a liberdade e a violência, o bom selvagem e o bárbaro canibal. Constrói a imagem positiva de uma sociedade que recusa o trabalho, a desigualdade e a sujeição, mas faz da guerra uma condição necessária para sua existência. “A permanência da sociedade primitiva passa pela permanência do estado de guerra” (Clastres, 1982, p. 200), pois é esse estado que garante a dispersão e a autonomia das unidades sociais, que impede sua unificação, sua redução a um poder centralizado exterior à própria sociedade. A guerra surge, assim, não mais como pura negatividade, como em Hobbes, mas como positividade negativa (ver R. Fausto, 1987), afirmação de uma recusa, um não à alienação do poder.

À pergunta: “O que é a sociedade primitiva?”, Clastres responde:

É uma multiplicidade de comunidades indivisas que obedecem a uma mesma lógica do centrífugo. Que instituição exprime e garante ao mesmo tempo a permanência dessa lógica? É a guerra, como verdade das relações entre as comunidades, como principal meio sociológico de promover a força centrífuga de dispersão contra a força centrípeta da unificação […] Quanto mais guerra houver, menos unificação haverá, e o melhor inimigo do Estado é a guerra. A sociedade primitiva é sociedade contra o Estado na medida em que é sociedade-para-a-guerra. [Clastres, 1982, p. 203]

Ao afirmar a guerra como fundamento da sociedade primitiva, Clastres não apenas aceita Hobbes para combater Hobbes, mas vai de encontro a uma outra tradição que faz da troca o fundamento da sociabilidade pré-moderna. Refiro-me à tradição inaugurada pelo “Ensaio sobre o dom”, de Marcel Mauss, publicado originalmente em 1924.

O CONTRATO-DOM

Estudando as formas arcaicas de contrato, Mauss concentrou-se em atos aparentemente simples e encadeados – dar, receber e retribuir -, que, sob a aparência de serem voluntários, fazem-se obrigatórios e constituem o cerne de toda uma moral e uma economia; economia do dom, na qual as trocas vinculam sujeitos enquanto sujeitos por meio de objetos. No ensaio, Mauss procura compreender onde reside a obrigatoriedade de dar, receber e retribuir. Aqui, só nos interessa o primeiro ato: o que constrange as pessoas nas sociedades arcaicas a oferecer um presente que deve aparecer como voluntário e gratuito? A resposta aparece claramente no final do ensaio: “Em todas as sociedades que nos precederam imediatamente e ainda nos cercam […] não há meio-termo: ou confiar inteiramente ou desconfiar inteiramente; abandonar as armas e renunciar à sua magia, ou dar tudo: desde a hospitalidade fugaz até as mulheres e os bens. Foi em situações desse gênero que os homens renunciaram a seu retraimento e souberam se engajar no dar e no receber” (Mauss [1924], 1960, p. 277). E, logo adiante, Mauss acrescenta: “É opondo a razão ao sentimento, afirmando a vontade de paz contra as loucuras bruscas desse gênero, que os povos conseguiram substituir a guerra, o isolamento e a estagnação pela aliança, o dom e o comércio” (Mauss [1924], 1960, p. 278).

O contrato social por excelência, que substitui o estado de guerra ou o isolamento, não é aquela mútua renúncia fundadora do Leviatã, mas o próprio dom. O outro da guerra não é, pois, o Estado, mas uma forma de troca, que é o fundamento e o cimento de todas as sociedades que nos precederam e ainda nos cercam. A troca-dom é o princípio de constituição e existência das sociedades arcaicas.[9] É contra essa concepção que Clastres afirmará o caráter essencial e constitutivo da guerra nas sociedades primitivas, criticando Lévi-Strauss, herdeiro heterodoxo de Mauss, por pensá-la apenas como o negativo do dom, como fracasso, como troca malsucedida (Clastres, 1982, p. 192). Para Clastres, a lógica do dom é uma lógica da identidade, enquanto a lógica da guerra é uma lógica da diferença, de recusa da identificação do um ao outro. E é essa recusa que garantiria a multiplicidade e a autonomia das comunidades primitivas.

A crítica dirigida a Lévi-Strauss atém-se, contudo, a apenas um dos aspectos da reflexão estruturalista sobre a guerra primitiva, aquele que a faz mera contraface da troca e da sociabilidade, não lhe conferindo nenhum valor positivo. Na verdade, há outro movimento no pensamento lévi-straussiano, talvez mais profundo e com um desenvolvimento empírico mais importante, que consiste justamente na operação inversa: não se trataria de pensar a guerra como negativo da troca, mas sim como troca. Em outras palavras, de puro negativo que era, a guerra é positivada por identificação à troca, por sua subsunção ao princípio da reciprocidade, que tem um valor de verdadeiro princípio transcendental no estruturalismo; i. e., ele enuncia uma condição geral e a priori de toda experiência humana, inclusive da guerra.

Lévi-Strauss, em um artigo chamado “Guerra e comércio entre os índios da América do Sul”, publicado originalmente em português, em 1942, ao falar-nos sobre o “lugar essencial” que os ritos antropofágicos desempenhavam na cultura tupinambá, observa que

uma imagem bem diferente da atividade guerreira se esboça através da leitura das obras antigas: não mais unicamente negativa, mas positiva; não traindo necessariamente um desequilíbrio nas relações entre os grupos e uma crise, mas fornecendo, ao contrário, o meio regular destinado a assegurar o funcionamento das instituições; pondo em oposição, sem dúvida, psicológica e fisicamente, as diversas tribos; mas, ao mesmo tempo, estabelecendo entre elas o vínculo inconsciente da troca, talvez involuntária, mas em todo caso inevitável, dos auxílios recíprocos essenciais à manutenção da cultura. [Lévi-Strauss (1942), 1976, p. 327, grifos meus]

A guerra tupinambá não aparece nessa passagem como o negativo da troca, mas como expressão da troca; não, porém, de qualquer troca, mas da Troca enquanto princípio transcendental, não enquanto instituição empírica. Não importam, pois, as “coisas trocadas”: se corpos mortos ou vivos, se mulheres dadas ou raptadas, se objetos ofertados ou tomados, se palavras de amizade ou inimizade. No fundamento de todos esses atos, encontramos um mesmo princípio de identificação do eu ao outro.

“Será difícil compreender”, escreve Lévi-Strauss, “que o canibalismo se manifeste com frequência sob uma forma instável e nuançada sem reconhecer um pano de fundo onde a identificação ao outro desempenha um papel. Reencontramo-nos aqui com uma hipótese central de Rousseau sobre a origem da sociabilidade; hipótese mais sólida e mais fecunda do que aquela de etnólogos contemporâneos que, para explicar o canibalismo e outras condutas, recorrem a um instinto de agressão” (Lévi-Strauss, 1984, p. 143). Mas o que significa pensar a guerra indígena como troca, como expressão de um princípio inconsciente que funda a sociabilidade humana? Como essa operação rebate em nossas questões teóricas e ético-políticas? Como ela se manifesta em nossas descrições etnográficas?

Para responder a essas perguntas, permitam-me aguçar o olhar e aproximar-me um pouco mais dos contextos etnográficos do continente.

A GUERRA COMO TROCA

A importância do fenômeno da guerra nas terras baixas da América do Sul não diz respeito somente ao fato de termos utilizado, desde pelo menos Montaigne, uma imagem dos ameríndios para medir a nossa própria sociedade. A guerra é um tema importante porque é fatualmente recorrente, simbolicamente pregnante e sociologicamente estruturante na região. Ali onde não houve completo rompimento das redes de relação mais amplas, fruto do longo processo de conquista e colonização, encontramos sistemas sociais com fronteiras mais ou menos definidas, formados por uma multiplicidade de grupos locais. Em alguns desses sistemas, como é o caso do Alto Xingue do alto rio Negro, as relações pacíficas de troca – econômica, matrimonial, ritual – apresentam-se como articuladoras não apenas de redes de sociabilidade mais amplas, como de grupos, enquanto grupos, entre si. Em outros casos, porém, são as relações de hostilidade que parecem desempenhar ou ter desempenhado esse papel. As práticas guerreiras – envolvendo, com frequência, canibalismo e caça de troféus – surgem como dispositivos de estruturação dessas formações sociais. Coloca-se, então, um problema teórico relevante: como dar conta de sistemas que se estruturam sobre um modo de relação que parece ser a própria negação da relação social?

Vimos qual é a resposta de Clastres a essa questão. Ela difere, porém, daquela esposada pela maioria dos etnólogos americanistas de tradição estruturalista, que tenderam, implícita ou explicitamente, a uma identificação simples entre guerra e troca. Tudo se passaria como se pensar a guerra como forma positiva de relação implicasse, necessariamente, reduzi-la a uma modalidade de troca – “troca de violências”, “troca de corpos”, “troca de vingança”, “troca de energia” – concebida no contexto amazônico, universo da troca simétrica, como reciprocidade equilibrada.

Permitam-me ilustrar esse ponto com um texto escrito por Jacques Lizot para refutar a hipótese sociobiológica de Chagnon sobre a guerra yanomami. Lizot conclui seu texto nos seguintes termos: “A troca e a reciprocidade, sob formas múltiplas, em diferentes níveis, constituem o tecido das relações sociais e políticas yanomami, e um feixe de índices convergentes parece indicar que a reciprocidade equilibrada que funda as relações pacíficas, e a violência e a guerra, constitui duas modalidades complementares, mas inseparáveis, da troca tomada no sentido mais geral” (1989, p. 109). E logo em seguida: “Cremos que a reciprocidade equilibrada em tempo de paz, a violência e a guerra, se situam no interior de uma estrutura única e que a totalidade das trocas (pacíficas ou violentas) se efetua no quadro de um vasto sistema de comunicação onde se regula o conjunto das relações sociais e políticas” (1989, p. 110).

Nessas passagens, a guerra e a troca aparecem como parte de uma mesma estrutura reguladora das relações entre grupos. Ambas são manifestações empíricas complementares da troca, diz Lizot, em seu sentido mais geral, i. e., como princípio transcendental, não como instituição empírica. Não me parece difícil admitir que tanto a guerra como a troca sejam modalidades de relação, e que sejam parte de um sistema de comunicação mais amplo que organiza as redes sociais yanomami (este, aliás, é um dos pontos de partida deste texto). Parece-me, porém, duvidoso que possamos tomar a troca como modelo da relação guerreira, de modo a identificarmos a segunda à primeira, seja no nível do modelo, seja no plano da experiência.

De um ponto de vista estritamente estrutural, esse segundo plano importaria pouco, já que a subjetividade encontra-se de saída excluída da análise. No entanto, não é incomum que as descrições etnográficas transitem de um nível ao outro. Assim, por exemplo, Lizot afirmará em um texto recente que a paz e a guerra “não são percebidas como antitéticas, mas como expressões similares da troca e da reciprocidade: nada mais do que duas modalidades” (Lizot, 1994, p. 232, grifo meu). Embora não esteja em condições de discutir como os Yanomami percebem a guerra – ainda mais com um conhecedor tão profundo daquele povo como Lizot -, parece-me imprudente evacuar, no plano fenomenológico, a contradição entre guerra e paz, por subsunção de ambas à reciprocidade.

Parte do problema reside, mais uma vez, em como devemos lidar com nossos fantasmas e com as conseqüências políticas de nossos escritos. Tudo se passa como se a identificação da guerra à troca equacionasse a questão ético-política posta pela violência armada entre os Yanomami; como se afirmar que a guerra é troca e a troca é uma relação social bastasse para neutralizar o problema. A violência e a destruição são em si temas de difícil representação etnográfica, que tendem, ademais, a reverberar amplamente fora do contexto acadêmico. Por prudência política, os antropólogos costumam evitar enfatizar os conteúdos mais destrutivos presentes na vida social nativa, algo que o discurso da reciprocidade permite fazer em relação à guerra.[10] Porém, ao tratar o fenômeno com certa assepsia – assepsia justificada em nosso contexto colonial -, esse discurso nos traz algumas dificuldades de ordem teórica e etnográfica. A passagem sem mediações da guerra à troca tende a esvaziar a dimensão política da guerra, a obscurecer sua fenomenologia e a anular o campo do sujeito. Explico, ilustrando.

Aceitemos falar da guerra como modalidade de troca e tornemos como exemplo a guerra de vendeta jivaro, um povo que habita a Amazônia peruana e equatoriana. Talvez pudéssemos concebê-la como troca de violências contáveis e equiparáveis. Quando reduzimos, porém, esse fenômeno à fórmula sintética da troca, perdemos de vista a verdade fenomênica da vingança: enquanto na troca de bens aquele que dá quer receber, na vingança, o desejo se inverte, e o matador não quer ser pago, nem está obrigado a receber o pagamento (i. e., sua própria morte). Essa nãoreciprocidade de perspectivas tem consequências políticas relevantes, pois para evitar a vingança os parentes e aliados do ofensor abandonam suas pequenas aldeias para se reunirem em “casas de guerra”, cujo comando cabe a um grande homem. É precisamente no espaço temporal que separa, digamos, a “troca de mortos” que se expressa e se afirma o poder político de um líder (Descola, 1993, pp. 319-20).

A temporalidade resultante da não-reciprocidade de perspectivas produz fenômenos políticos de ordem diversa daqueles que são instaurados pelo fluxo pacífico de bens e pessoas. Ao afirmarmos que ambos se reduzem a um mesmo princípio de reciprocidade, encobrimos não apenas essa dimensão temporal (ver Bourdieu, 1980, pp. 167-89), como também a direcionalidade diferencial dos atos discretos que constituem a troca e a guerra. Tanto o tempo como a direção supõem a presença de sujeitos com perspectivas diversas sobre os processos em curso. E aqui tocamos um problema caro à filosofia contemporânea, o da dissolução do sujeito, que não me cabe – nem seria capaz de – discutir, embora algumas observações se façam necessárias no que tange à construção dos objetos sociológicos.

O estruturalismo é antes de tudo uma teoria relacional, que confere privilégio às relações e não aos termos dessas relações. Daí deriva seu rendimento analítico no caso da etnologia sul-americana, onde encontramos uma grande labilidade das fronteiras entre grupos e um predomínio de estruturas sociais em rede. Tal paisagem é favorável à desconstrução do modelo funcionalista, que tende a tomar cada ponto nodal dessa rede como um indivíduo coletivo, que estabelece relações com outros indivíduos coletivos de igual natureza. A essa substancialização das unidades sociais, o estruturalismo responde com sua “fonemização”, aplicando à sociedade aquilo que a fonologia estrutural fez à linguagem. Assim como os fonemas, os objetos sociológicos deixam de ter valor em si mesmos para adquirir valor no interior de um sistema de relações; deixam de ser pensados como substâncias para ser concebidos como feixes de relações. A única perspectiva legítima passa a ser, portanto, aquela do sistema total, representada – paradoxalmente – pela subjetividade do analista. Nesse plano, a guerra e a troca aparecem como meras modalidades, embora com valências diversas, de uma mesma estrutura relacional.

Embora poderoso, esse modelo de construção dos objetos deixa um resíduo inexplicado. A experiência humana subjetiva, mesmo se ilusória, é parte constituinte do objeto que se quer analisar. Cada um de nós se pensa como sujeito dotado de intenções, participando de determinados grupos, opostos a outros grupos, que podem aparecer como tendo valor em si mesmos. Nesse plano, não é indiferente se meu grupo ocupa em um dado momento a posição de vítima e os nossos adversários, de algozes, a despeito do fato de que essas posições possam se reverter continuamente e pareçam se anular no plano do sistema. Tampouco minha relação com parentes de um inimigo que matei equivale àquela que mantenho com os irmãos de minha esposa, embora em ambos os casos minha posição possa ser a de um devedor. Em outras palavras, não é possível neutralizar os vários pontos de vista internos ao sistema, mesmo em uma estrutura acêntrica, pois o ponto de vista de cada nó da rede nos diz algo sobre as teias de relações que a estruturam.

É preciso, portanto, reintroduzir no próprio modelo a diferença fenomenológica entre troca e guerra, sem no entanto abandonar aquilo que o estruturalismo nos ensinou; a saber, que ambos os fenômenos se inscrevem em um espaço de mediação entre grupos e pessoas, lugar de opera ção de uma complexa dialética entre exterioridade e interioridade, alteridade e identidade. Com esse intuito inovador e conservador, vou sugerir, agora, uma forma alternativa de abordar o problema da guerra indígena. Proponho que passemos a pensá-la como parte de uma economia generalizada, como sugere Almeida, em que os excedentes são materiais e simbólicos, em que o controle dos meios de produção envolve o controle do sobrenatural, e em que a produção concerne não só aos objetos, mas sobretudo a corpos e pessoas (Almeida, 1988, pp. 221-2). Qual seria o lugar da guerra nessa economia?

A GUERRA COMO CONSUMO PRODUTIVO

Para responder a essa pergunta, vou partir de duas proposições bem estabelecidas na etnografia regional, e propor uma terceira. A primeira delas já está contida na definição de economia generalizada: os sistemas indígenas voltam-se primariamente para a produção de pessoas e grupos, e não de bens; i. e., o foco do sistema não é a fabricação de objetos de valor ou de excedentes materiais, mas a fabricação de pessoas por meio de trabalho simbólico-ritual. Os ritos de nascimento, nominação, casamento, morte, os resguardos da menarca, a couvade, o luto, as reclusões, as cerimônias guerreiras, os interditos pós-homicídios etc. são formas, mais ou menos públicas, de produzir pessoas, de conferir-lhes singularidade, beleza, fertilidade e capacidade de interagir com potências exteriores, como espíritos, divindades, seres da floresta, animais e inimigos.

A segunda proposição refere-se a uma concepção comum nas cosmologias do continente, pela qual identidade e interioridade são associadas à ausência de fertilidade e movimento, justamente aquilo que o trabalho simbólico-ritual visa produzir. O “nós”, delineado pelos atos generosos, pela solidariedade e pela ausência de predação, é uma esfera idealmente segura de sociabilidade, mas, ao mesmo tempo, é um ens incompletum, pois não é concebido como capaz de se auto-reproduzir isoladamente. Cada unidade social, portanto, depende simbolicamente da relação com o que lhe é externo e diverso, para o desenvolvimento das capacidades criativas de seus membros.

Há, porém, mais de uma maneira de definir o que é interno e externo, e de se estabelecer uma dinâmica entre eles. Dessa última observação, retiro minha terceira proposição, que diz respeito às modalidades de relação com essa alteridade constitutiva. Eu diria que há dois esquemas básicos, que não são exclusivos, que se combinam empiricamente de modos variáveis, mas cuja ênfase diferencial dá lugar a formas sociais e cosmológicas distintas. Um desses esquemas é a troca; o outro, a predação. Ali onde a troca é predominante, temos a constituição de sistemas mais amplos e abertos do ponto de vista sociológico, embora mais fechados do ponto de vista cosmológico. Esse seria, por exemplo, o caso da formação multiétnica do Alto Xingu, em que as diferenças internas entre os grupos, relacionados entre si pelo intercâmbio de bens, mulheres e rituais, mantêm o sistema funcionando e dinâmico. Ali, no entanto, onde a predação predomina temos formações sociais mais atomizadas e dispersas, justamente aquelas que Clastres tinha em mente ao escrever sobre a guerra. Nesse caso, a pessoa ideal não é constituída pela transmissão interna e pela confirmação ritual de atributos sociais distintivos (emblemas, nomes de ancestrais, prerrogativas), mas pela aquisição violenta de potência no exterior da sociedade (na forma de nomes, cantos e almas de inimigos). Esse tipo de formação sociocosmológica encontrar-se-ia entre os Yanomami, os Jivaro, os Tupinambá e vários outros grupos amazônicos descritos como predatórios ou guerreiros. Nesse sentido, pode-se dizer com Clastres (1982, p. 192) que a “guerra” é uma estrutura das sociedades ameríndias: uma forma privilegiada de relação com o exterior fundada em certas representações, disposições, formas institucionais e práticas sociais.

Permitam-me, agora, reunir as três proposições acima em uma única formulação, excluindo os sistemas “menos predatórios”. Qual economia, afinal, tenho em mente? Trata-se de economias que produzem pessoas e não objetos, que concebem a relação com o exterior como sendo necessária à reprodução interna e que se articulam com esse exterior primariamente por meio da predação. Ou, dito de outro modo, temos economias que predam e se apropriam de algo fora dos limites do grupo para produzir pessoas dentro dele. Sugiro que essa apropriação violenta, predatória e guerreira não deve ser pensada como uma forma de troca, mas sim como consumo produtivo, um conceito que retiro de Marx.[11] Mas a que nos serve propor um novo conceito? O que ele nos traz de novo? Quais fatos distintivos sobre a guerra indígena ele nos permite colocar em relevo?

Em primeiro lugar, esse conceito torna evidente estarmos diante de uma forma de “consumo”, “gasto”, “perda”, e não simples “transferência”, “circulação”. Chama a atenção para a negatividade necessária da guerra, que é expressa na destruição das pessoas em seus constituintes materiais e imateriais. A ideia de consumo aproxima-nos, ademais, das representações e práticas nativas da guerra, na qual carnes e nomes, crânios e almas são literal ou simbolicamente consumidos e não apenas trocados (não nos esqueçamos de que a metáfora-base da guerra indígena é a manducação). Em segundo lugar, o conceito de consumo produtivo não é apenas negativo, mas também positivo: o consumo não é apenas perda, mas gasto produtivo. A morte do inimigo produz em casa corpos, nomes, identidades, novas possibilidades de existência; enfim, a morte do outro fertiliza a vida do mesmo, ela é life-giving.

Ao articular consumo e produção, nosso conceito coloca em primeiro plano o movimento que une a predação no exterior à produção no interior; i. e., a conversão da destruição do inimigo em produção de parentes, que poderíamos designar como modo de produção de pessoas por meio da destruição de pessoas. Resta-nos, contudo, entender como esse movimento é conceitualizado e esquematizado concretamente. Isto é, o que se passa entre a expedição de guerra e essa produção de pessoas de que estou falando? Como se articula o momento da morte-consumo ao da vida produção?

Para entendermos esse ponto, vou tratar brevemente de dois tópicos: o primeiro diz respeito à relação que se estabelece entre o matador e sua vítima, o segundo versa sobre os rituais guerreiros.

PREDAÇÃO FAMILIARIZANTE

No pensamento indígena, matar um inimigo não é simplesmente acabar com sua vida, produzir seu desaparecimento, mas, ao contrário, é estabelecer um novo tipo de relação com esse mesmo inimigo, agora morto. Após o homicídio o matador passa por um processo de transformação profunda, que deve ser controlada e direcionada por meio de uma série de precauções e prescrições. Após esse período de resguardo, o matador emerge como um novo homem, mais forte e mais criativo, mas ao mesmo tempo mais perigoso, pois passa a conter em si uma nova subjetividade: aquela de sua vítima. Vou ilustrar esse ponto com três exemplos etnográficos.

O primeiro deles refere-se aos Araweté, um grupo tupi-guarani do Pará, que concebe a transformação do matador como resultado da fusão entre seu espírito e o da vítima. O homicídio é uma forma de devoração “ontológica”: o matador captura o espírito do inimigo e aprende a controlá-lo ao longo do resguardo. A operação é delicada, pois, de início, ele é tomado pela perspectiva do morto: assume seu ponto de vista, perde o controle sobre si mesmo, quer matar os próprios parentes, mas acaba domesticando-o e pondo-o a serviço da comunidade. Dele ouvirá novos cantos que moverão a maquinaria ritual e novos nomes que permitirão singularizar seus parentes (ver Viveiros de Castro, 1992). Os Curripaco do alto rio Negro – e esse é meu segundo exemplo – concebem o processo de forma semelhante, mas utilizavam-se de um suporte material para representar essa captura de um princípio vital do inimigo. Traziam o fêmur da vítima e com ele faziam uma flauta, que representava a apropriação do “sopro” do morto pelo matador. A flauta era tocada em ocasiões rituais, na véspera de expedições de guerra e à noite, para afastar os espíritos da floresta (Journet, 1995, pp. 197-9).

Meu terceiro exemplo provém do grupo com o qual trabalhei, os Parakanã (Fausto, 1997), que, ao contrário dos Araweté e dos Curripaco, não estabelecem uma relação direta entre o matador e a vítima, pois não postulam a existência de um “espírito” a ser apropriado. Eles dizem apenas que o homicida é contaminado pelo cheiro de sangue do morto e pela sua “gordura-mágica” (kawahiwa), que o tornam, ao mesmo tempo, um ser votado à violência e capaz de sonhar. E será então por meio dos sonhos que o matador irá domesticar inimigos, humanos e não humanos, que se tornarão seus xerimbabos (i. e., animais de estimação), e que lhe permitirão ter uma vida longa e produtiva. Produtiva porque receberá desses inimigos nomes com os quais nominará as crianças e cantos com os quais moverá o ritual e as curas xamânicas.

O que é importante reter aqui é o tipo de relação que se constitui através do homicídio guerreiro: a relação de inimizade real se converte em uma relação simbólica de controle. O matador passa a controlar simbolicamente sua vítima como se ela fosse seu animal de estimação. E é esse vínculo de controle que o faz uma pessoa criativa e poderosa, mas ao mesmo tempo ambígua e perigosa. Ele contém uma alteridade dentro de si, alteridade necessária para a reprodução social, mas que o torna um ser instável e inclinado à violência. A instabilidade liga-se à ideia de perda de discernimento, de uma alteração potencial de ponto de vista: o matador pode passar a ver os próprios parentes como se fossem inimigos.

Essa relação entre matador e vítima pode ser comparada àquela entre o xamã e seus espíritos auxiliares. A operação de aquisição de poder xamânico é concebida nas cosmologias indígenas como uma “familiarização” de entes não humanos, principalmente espíritos de animais. O xamã domestica, assim como o guerreiro, seres dotados de um excedente de capacidade criativa, tornando-os seus familiares, seus bichos de estimação. Essa familiarização, contudo, é sempre ambivalente: nem xamãs, nem guerreiros são capazes de controlar inteiramente seus auxiliares, e, se o fizessem, perderiam seu próprio poder: um espírito totalmente alienado e controlado de nada serve. Essa dialética de controle entre senhor e xerimbabo faz com que o estatuto de xamãs e matadores nas sociedades indígenas seja ambíguo; de onde talvez se explique por quê, a despeito de todo prestígio, raramente encontremos na Amazônia a cristalização de um lugar do poder moldado sobre a figura do chefe de guerra ou do especialista religioso.[12] Xamãs e guerreiros controlam as relações com a alteridade, que são imprescindíveis à reprodução da vida. No entanto, esse controle dos meios de produção social não funda uma divisão interna entre senhores e súditos.

Quando associo as posições de xamã e guerreiro, estou sugerindo que as operações de “domesticação” no xamanismo e na guerra são de mesma natureza, e que ambas são parte de uma economia generalizada de produção de pessoas, centrada na apropriação de capacidades no exterior do socius. Cunhei um termo para falar dessas operações: predação familiarizante, conversão da predação em familiarização, processo pelo qual sujeitos ferozes e outros são consumidos e controlados para se produzirem novos sujeitos no interior do grupo. A relação modelar de controle nas cosmologias indígenas não é aquela entre Senhor e Escravo – já que o sistema não se baseia na apropriação de trabalho para produzir bens-, mas aquela entre Senhor e Xerimbabo, que é exercida praticamente na familiarização de animais e no rapto de crianças estrangeiras, e simbolicamente na familiarização do princípio vital da vítima na guerra e de espíritos de animais no xamanismo.

Essa noção depredação familiarizante, portanto, procura articular em um só movimento as relações assimétricas de controle simbólico, constituídas por meio da guerra e do xamanismo. Minha hipótese é que ela funciona como esquema geral de reprodução das sociedades indígenas, pelo menos daquelas que Clastres tinha em mente ao escrever sobre a guerra. Mas, para ser um esquema geral, ela não pode se restringir à relação privada e particular entre matador e vítima, ou xamã e espírito auxiliar. É pre ciso que a predação familiarizante tenha uma inscrição pública e coletiva, algo que só se realiza por meio do ritual.

RITUAIS DE GUERRA

Há inúmeros rituais que poderiam ser aqui analisados. Escolhi apenas alguns mais conhecidos, nos quais as vítimas de guerra são representadas por meio de um suporte físico. O mais célebre deles é o festim canibal tupinambá, que povoa o imaginário cultural brasileiro desde o século XVI. Este é um caso extremo de captura de troféus, pois, ao invés de pedaços inertes, traziam-se pessoas inteiras com vida, tornando literal o que, em outros casos, era apenas simbólico. Para aqueles que não conhecem o ritual, permitam-me relembrar alguns fatos.

Os Tupinambá que viviam na costa brasileira no século XVI foram descritos pelos cronistas como praticando uma guerra endêmica de vingança, que não visava a nenhum ganho material, e cujo objetivo central era capturar inimigos para serem executados e comidos em praça pública. O litoral, escrevia Anchieta, é povoado “por índios que usam todos comer em seus banquetes carne humana, no que mostram achar tanto prazer e doçura, de modo que comumente caminham mais de trezentas milhas para a guerra; se reduzem ao cativeiro quatro ou cinco dos inimigos, voltam sem mais outro motivo e os comem com grande festa de cantares, e copiosíssima libação de vinhos […]” (Anchieta [1554-94], 1988, p. 55).

A execução ritual do cativo, porém, não era imediata, podendo tardar vários meses. Primeiro ele era adotado pela família de seu captor, que o alimentava e protegia, cedendo-lhe uma irmã ou filha como esposa. Sua condição era a de um tomador de mulher em regime uxorilocal: um homem sob controle estrito do sogro e dos cunhados – situação frequentemente comparada à de um xerimbabo (ver Viveiros de Castro, 1992, p. 280). Hans Staden conta que, na viagem de retorno após sua captura, os guerreiros diziam-lhe justamente: xe remimbaba in dé, “tu és meu xerimbabo” (Staden [1557], 1974, p. 84). A condição social do cativo, contudo, alterava-se às vésperas da execução, quando era reinimizado. Prendiam no, separavam-no de sua “família de adoção”, faziam-no assumir a posição de inimigo e o submetiam a um rito de captura. Por fim, era morto e devorado. Esse movimento depredação e familiarização só se completava na saída do resguardo, quando o executor proferia seu novo nome. Sabemos, porém, que não era apenas o matador que adquiria nomes. Suas mulheres também o faziam, assim como aqueles que sujeitavam o inimigo no calor do combate ou aqueles que o capturavam na encenação prémassacre (Staden [1557], 1974, p. 170; Abbeville [1614], 1975, p. 231).

A maquinaria ritual visava tornar público e socializar o homicídio, transferindo o ato isolado no campo de batalha para a esfera coletiva. Mas para quê? Segundo os cronistas, a execução ligava-se à nominação, ao casamento e ao destino póstumo; i. e., à singularização de pessoas, sua reprodução e permanência. Estes são aspectos recorrentes dos sistemas guerreiros ameríndios e vinculam-se a um tema que, embora pouco desenvolvido na antropofagia tupi-guarani, não deve ser esquecido: o poder genésico do homicídio, sua função fertilizadora. Vários dos rituais, envolvendo ou não antropofagia e caça de troféus, são generativas em sentido amplo, i. e., são life-giving, à maneira dos ritos para garantir a abundância da caça ou o crescimento das plantas cultivadas. Seu objeto, porém, não é a produção de alimentos, mas de pessoas. Esse caráter expressa-se como desenvolvimento das capacidades criativas dos matadores, como produção de novos sujeitos por meio da nominação, ou mes mo como reprodução física, pois se supõe que alguns desses ritos atuem diretamente sobre a fertilidade feminina.

A simbologia genésica aparece, por exemplo, no ciclo das cabeças munduruku. O ritual era composto por três partes. Na primeira, a cabeça era introduzida no clã do matador, que deveria adornar o troféu com os atributos específicos de seu segmento agnático. O rito marcava o início do resguardo do dono da cabeça e sua condição de “Mãe do Queixada”, i. e., propiciador da caça. Na estação chuvosa, tinha lugar a segunda parte do ritual no qual a cabeça era cozida e esfolada. No ano seguinte, completava-se o ciclo, quando os dentes extraídos do troféu eram enfileirados em um cinto de algodão. Na festa, encenava-se o tema da reinimização e recaptura, como ocorria entre os Tupinambá: jovens pintados e tonsurados corriam para a mata para serem presos e reconduzidos por adultos da metade oposta. Após essa encenação, tinha início a celebração que encerrava o resguardo do homicida (Murphy, 1958, pp. 53-8). Os poderes da cabeça e do matador não se restringiam à fertilização da caça: o troféu estava associado à reprodução física do próprio grupo (i. e., à obtenção de filhos) e à renovação do movimento guerreiro, uma vez que se supunha que o cinturão de dentes aumentava as chances de o portador conseguir novas vítimas (Menget, 1993, pp. 314, 320). O ritual tinha duas saídas – novas vidas e novas mortes -, sendo que a última inaugurava um novo ciclo.

Esse mesmo conjunto de significações pode ser encontrado nos rituais da caça de cabeças jivaro, cujo ciclo era composto de duas partes principais. A primeira ocorria logo após o retorno da expedição, e chamava-se significativamente numpenk (“seu sangue mesmo”). Na festa, aspergia-se sangue de ave na parte interna das coxas dos homicidas, enquanto as mulheres entoavam cantos tematizando essa ficção de menstruação (Taylor, 1994, p. 82). O ritual, que inaugurava o resguardo do matador e introduzia a cabeça no grupo, equivalia a uma menarca masculina, marcando o desenvolvimento das capacidades reprodutivas dos cortadores de cabeça. Representava também a familiarização da cabeça a seu novo espaço social, à sua “terra de adoção” (Descola, 1993, p. 305). Um ano depois, realizava-se a segunda parte do ciclo cerimonial, que encerrava o processo de transformação-maturação do matador e da cabeça, que se iniciara após o homicídio. O processo de familiarização do troféu resultava em sua transformação em “filho” do grupo do matador – seu destino final era o de feto, “um rosto colado no ventre da mulher” (Taylor, 1994, p. 96). O processo que começara com a figuração de uma menarca masculina completava-se com a produção de novas vidas.

Não são apenas o matador e o troféu que se transformam entre as partes inicial e final desses rituais guerreiros. O trabalho simbólico estende se para a própria coletividade.[13] O objeto-troféu é apropriado pelo grupo, coletivizando os efeitos da destruição do inimigo. No ritual, o movimento da guerra ganha um caráter eminentemente público, e é esse caráter que nos permite falar que a predação familiarizante é um esquema geral de produção de pessoas e de unidades sociopolíticas. Daí o caráter multicomunitário da parte final dos ritos guerreiros, normalmente glosada como a “grande festa”, momento máximo de reunião e constituição das redes de amizade e inimizade que estruturam o universo total de relações sociais de um grupo. O trabalho do rito permite não apenas que os atos homicidas adquiram máxima produtividade – socializando-os e multiplicandoos -, mas, sobretudo, com que deixem de ser uma série justaposta de atos isolados, de ações individuais, para se tornarem um modo de reprodução social generalizado, fundado na apropriação e familiarização de subjetivi dades alheias.

UMA LÓGICA DA QUALIDADE

Até aqui procurei sugerir um modo para falar sobre determinadas formações sociais, nas quais a guerra ocupa um lugar prático-conceitual central. Resvalando ao incesto e fechando-se matrimonialmente, os grupos locais amazônicos são concebidos como ilhas (ainda que historicamente instáveis) de uma sociabilidade ao mesmo tempo segura e estéril. Entre si produzem-se apenas corpos, mas não pessoas; objetos, mas não significados. A representação de uma esterilidade interior subjaz à abertura para o exterior no plano do xamanismo e da guerra, por meio dos quais se instauram relações de predação e familiarização com inimigos, animais e espíritos. Procurei mostrar que esse esquema pode ser generalizado e compreendido como parte de uma economia de produção social de pessoas e grupos. Resta-me, agora, falar sobre alguns elementos distintivos da guerra indígena que podemos extrair desse modelo.

Acabamos de ver que o ritual é um aspecto básico do sistema produtivo das economias depredação familiarizante. Ele permite que o trabalho simbólico de produção social de pessoas adquira caráter público e coletivo. Essa amplificação dos efeitos da destruição do inimigo não é, porém, específica do ritual, manifestando-se em vários momentos do complexo bélico. E aqui começam a aparecer as características próprias à forma de guerra que vimos analisando.

A primeira delas é que se na guerra, digamos, “moderna” os inimigos são coisificados ou animalizados, na guerra indígena, ao contrário, eles têm necessariamente o estatuto de sujeitos: a predação é uma relação social entre sujeitos (Viveiros de Castro, 1993, p. 186). Para que o consumo seja produtivo, ele não pode ser pura negação do outro: o inimigo não pode ser reduzido à condição de objeto ou de insumo. Isso significa que o movimento bélico respeita antes uma lógica da qualidade do que da quantidade. As operações guerreiras visam não apenas reconhecer a subjetividade do inimigo, mas qualificá-la, resgatá-la da indiferença para consumir sua diferença.

Os espaços e as modalidades de guerra são diferenciados qualitativamente. No caso da caça de troféu jivaro, por exemplo, só se cortavam cabeças de quem falava a mesma língua, mas não o mesmo dialeto. Na caça de dentes praticada pelos Yagua só se retirava a dentadura de etnias que participavam de um sistema interétnico de trocas. Talvez fosse também este o caso dos Munduruku, cujas cabeças provinham predominantemente de povos como os Mawé, os Apiaká e os Parintintin, mas não dos brancos, nem do próprio grupo (Menget, 1993, p. 314). Há sociedades, porém, em que essa determinação de distância era substituída por um esforço maior de qualificação do inimigo, independentemente de sua origem étnica. É o caso dos Tupinambá, que, embora mostrassem preferência por vítimas de língua tupi, não se recusavam a matar e comer cativos tapuia ou mesmo europeus. A longa permanência do prisioneiro na aldeia permitia conferir significado a uma diferença eventualmente pouco determinada.

Existe, pois, uma lógica qualitativa que determina uma distância ótima entre o mesmo idêntico e o outro indiferente (Taylor, 1985), que é condição para a captura de identidades e qualidades no exterior. Não se trata, contudo, apenas de capturar algo unitário que pertence à vítima – sua alma, seu nome, sua cabeça. Com frequência, o inimigo é suporte para uma operação produtiva em escala ampliada. Eis, pois, a segunda característica distintiva da guerra indígena: sua lógica não é a de transferências de unidades iguais de uma parte a outra, mas a da multiplicação dos efeitos a partir de uma única causa. Essa lógica se expressa em três aspectos do complexo da guerra. Primeiro, no campo de batalha, com a socialização do ato homicida, que permite ampliar o número de matadores. Entre os Parakanã, por exemplo, aqueles que não haviam flechado um inimigo durante um ataque procuravam os cadáveres dos adversários para trespassá-los com suas setas e assim também se submeterem às restrições pós-homicídio. Do mesmo modo, os Yanomami praticam essa perfuração múltipla do inimigo mesmo depois que este está morto (Lizot, 1989, p. 109), e todos aqueles que provocam algum tipo deferimento submetem-se ao resguardo (Albert, 1990, p. 559). Já os guerreiros kayapó atacavam o adversário ferido, golpeando-o várias vezes com a borduna, de tal modo que o assassínio era raramente uma empresa individual (Verswijver, 1992, p. 179).[14] O segundo aspecto que expressa essa lógica multiplicatória é o grande número de atributos exteriores que os homicidas se tornam capazes de obter e de transmitir, para si ou para o grupo: novos nomes, novas canções, novos filhos. Para os Tupi-Guarani, por exemplo, a hiperprodutividade do matador se expressa na sua função de nominador e doador de cantos. Como vimos, entre os Araweté, é a própria “alma” da vítima que enuncia as canções (que põem em movimento a dança ritual) e os nomes (que conferem existência singular e determinada aos bebês).[15] Já entre os Parakanã, essa associação é indireta: o homicídio e o resguardo conduzem ao desenvolvimento da capacidade de sonhar, que é o meio pelo qual se capturam nomes e cantos de contrários. Finalmente, e este é o tópico que abordamos mais extensamente, a lógica multiplicatória se concretiza na passagem do trabalho simbólico sobre o homicida para o ritual público, quando todos, inclusive as mulheres, se beneficiam da destruição dos inimigos.

Em suma, o que vimos chamando de “guerra indígena” respeitaria antes uma lógica qualitativa do que quantitativa. Seu movimento consistiria menos em matar o maior número de inimigos do que em extrair muito de uma só morte. As sociedades indígenas parecem ter posto menor esforço intelectual no aumento da eficiência bélica do que na expansão de sua eficácia simbólica; o trabalho da guerra voltou-se menos para a multiplicação das vítimas do que para a multiplicação dos seus efeitos simbólicos. Isso não significa que devemos reduzir a guerra ameríndia a uma mera operação cognitiva, de consumo e produção de significados. Esse não é apenas um teatro de ideias, mas de corpos destruídos e fabricados, dilacerados e edificados. Ao contrário, porém, da guerra de conquista em que temos apropriação de corpos como força de trabalho abstrato e de riquezas cujo valor preexiste à sua apropriação, na guerra ameríndia os corpos de inimigos são antes suportes para um trabalho de produção social de pessoas (e não meios para produção de bens), e os objetos adquirem valor no próprio processo de sua absorção. O “idealismo” de que se reveste a guerra indígena parece vincular-se ao valor restrito dos objetos materiais, que não se prestam, senão de modo enfraquecido, a mediar relações sociais. Ao contrário dos sistemas melanésios, em que a circula ção de objetos de valor – conchas e porcos – permitem mediar relações entre grupos e pessoas, nas terras baixas da América do Sul essa mediação era realizada predominantemente pelo inimigo e seus atributos: o cativo tupinambá, a cabeça-troféu jivaro, os cantos-inimigos parakanã articulam ou articulavam relações mais amplas do que o parentesco, congregando aldeias, grupos locais, bandos aliados. Na Amazônia indígena, predominam economias de produção social de pessoas por meio de pessoas, em que a destruição-consumo do inimigo tem papel central e fecundante, embora este não tenha sido igualmente elaborado por todas as sociedades da região, nem possua o mesmo peso simbólico em cada uma delas.

CONCLUSÃO

Qual a conclusão que podemos tirar de tudo isso? Ao falar de uma lógica da qualidade, estaria eu querendo dizer que, no fundo, a guerra indígena não era tão ruim assim? Que afinal de contas era algo mais ritual do que efetivo? Que devemos aceitar o estado de guerra hobbesiano, mas esmaecer suas conotações mais negativas? Que é preciso admitir que há mais barbarismo em “coisificar” um homem do que em dilacerar seu corpo e comer sua carne, desde que se continue a pensá-lo como sujeito?

Postas assim, não há como responder a essas questões. No entanto, nosso olhar sobre a guerra indígena sempre esteve assaltado por tais indagações, sempre esteve à procura de uma medida ética transcultural, que nos permitisse fazer juízos de valor sobre nós e sobre os outros. Enquanto cevávamos nossas próprias dúvidas, as sociedades que nos eram estranhas foram conquistadas e colonizadas. Muitas delas desapareceram, outras modificaram-se e recriaram-se. Hoje, não podemos mais observar, senão episodicamente, as guerras de que vimos falando.

A continuidade de sistemas guerreiros como os descritos aqui, em uma situação de ausência de guerra, não é difícil de se conceber. Todos eles possuem um maior ou menor grau de flexibilidade, que permite reproduzi-los na falta de vítimas humanas. Reproduzi-los não significa que permaneçam idênticos a si mesmos, mas que as transformações se fazem dentro de certo limite; limite que, se ultrapassado, determina a morte dessas formações e o surgimento de uma nova. O problema da ultrapassagem parece se pôr de modo forte quando essas economias se vêem definitivamente inseridas em um sistema cuja ontologia, estrutura e modo de operação são radicalmente distintos. É o que ocorre, hoje, com os Yanomami e as demais sociedades ameríndias, colocando-nos novas questões sobre como conceitualizar os sistemas que descrevi e suas transformações.

Essas transformações, porém, não começaram neste século. Elas mesmas têm uma longa história. Os Yanomami não eram fósseis vivos, nem representavam sobrevivências de um passado perdido quando foram descritos na década de 1960. Mesmo sem contato permanente com a sociedade nacional, eles não estiveram fora da história colonial. Por isso, hoje, costuma-se ver com maus olhos as generalizações a que estávamos acostumados, tais como falar em “a guerra indígena”, “a guerra primitiva” ou qualquer coisa do gênero (como fiz até aqui, aliás). Há uma variabilidade muito maior do que aquela capturada pelas dicotomias primitivo/moderno, sem Estado/com Estado, extra-ocidental/ocidental, e assim por diante. Ademais, todas as nossas observações sobre os grupos indígenas deste continente foram feitas, obviamente, após o início da Conquista; portanto, não mais em uma situação, digamos, “tradicional”. Alguns antropólogos levam esse fato às últimas consequências e afirmam que não é possível separar o que é autóctone do que é adventício, o que é característico dos sistemas indígenas daquilo que é produto do processo colonial. Em certa medida, eles têm razão, mas apenas em certa medida.

Há uma recorrência muito grande de práticas e representações, em áreas tão afastadas quanto as florestas tropicais equatorianas e a costa brasileira, em tempos tão distantes quanto o século XX e o século XVI, em grupos tão diversos quanto os Yanomami e os Munduruku. Em todos esses contextos, temporalidades e sociedades, vemos o comportamento bélico articulado a um conjunto de assunções bastante sistemáticas, que dizem respeito à relação com o exterior e à produção do interior. O erro do historicismo é crer que não há formas apenas pelo fato de que as formas existem na história. O que procurei sugerir aqui foi um modo novo para falar sobre tais formas, através dos conceitos de consumo produtivo e predação familiarizante. Se meu modelo mostrar-se capaz de explicar um conjunto significativo de fatos etnográficos, poderemos tomá-lo como um modelo geral, e então será o momento, como afirma Nicholas Thomas, de “fraturá-lo[. ..] através das nuances da prática e da história” (1991, p. 27).

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Notas

  1. O tema do despovoamento inverte o tópos do povoamento que domina nossa história colonial e o imaginário do bandeirantismo. Sobre o tema, ver John Monteiro 0992).
  2. Não existem números seguros sobre a população do Brasil na Colônia. As contagens realizadas pela Coroa são pouco confiáveis, e com frequência excluíam índios, crianças e até escravos (ver B. Fausto, 1994, p. 135). Ainda assim, estima-se que no final do período colonial a população total no Brasil era de cerca de 3,5 milhões de pessoas (Marcílio, 1990, p. 60). No caso da demografia indígena, as incertezas são ainda maiores, pois não se conta sequer com censos parciais. As avaliações mais recentes, porém, indicam populações bastante expressivas vivendo no território brasileiro no momento da Conquista. Denevan (1992), por exemplo, estima que cerca de 950 mil índios viviam na costa atlântica, desde a foz do Amazonas até o Rio de Janeiro, que em torno de 1 milhão encontravam-se nas savanas centrais brasileiras e 1,5 milhão distribuíam-se ao longo da calha do rio Amazonas. Clastres (1978, pp. 56-70), por sua vez, sugere que cerca de 1,5 milhão de índios Guarani habitavam a região Sul, entre a costa brasileira e a bacia dos rios Paraná-Paraguai.
  3. Embora não se possa desprezar a virulência das guerras de Conquista, foram as epidemias as principais responsáveis pelo colapso demográfico dos povos nativos das Américas. Os relatos dos cronistas da época não deixam dúvidas sobre esse fato, e vale a pena consultá-los para se dar conta da dimensão e dramaticidade do fenômeno. Para a costa brasileira no século XVI, sugiro a leitura das cartas jesuíticas e do capítulo sobre epidemias em Hemming (1987). Para o Maranhão e o Pará no século seguinte, há inúmeros dados em Betendorf ([1698] 1910), e um apanhado geral no primeiro capítulo de minha tese (Fausto, 1997). Para um debate mais amplo sobre o fenômeno em toda a América, ver Dobyns (1993) e Ramenofsky (1987).
  4. Entre as guerras de resistência, conta-se uma particularmente bem-sucedida: o levante dos Aruak da selva central peruana, que culminou com a expulsão dos espanhóis em 1752. A área só foi reaberta à colonização cerca de cem anos depois. Nesse intervalo, os índios não apenas tomaram controle das ferrarias instaladas pelos colonizadores, como fundaram novos centros de produção e descobriram jazidas de ferro, antes desconhecidas na floresta tropical, passando a produzir autonomamente instrumentos de metal. Sobre essa fascinante experiência, ver Santos Granero (1993a).
  5. A indagação sobre o “baixo” desenvolvimento das culturas da floresta tropical sulamericana é congênito à descoberta da América. Ela nasce de uma dupla comparação: de um lado, entre a sociedade colonizadora e aquela colonizada; de outro, entre as sociedades do altiplano andino e aquelas das terras baixas. A partir da década de 1940, essa indagação ganha um quadro teórico definido, o da ecologia cultural, e uma formulação precisa: qual o fator ambiental que teria limitado o crescimento populacional na região e o desenvolvimento de estruturas sociopolíticas complexas? Para uma análise das respostas dadas a essa questão, ver Roosevelt (1980) e Carneiro (1995). Para uma crítica desse modelo determinista, ver Descola (1986) e Balée (1989).
  6. Mas, assim como Hobbes, Chagnon crê que os fatos da natureza podem ser contra-arrestados pelas forças do Estado. Seu famoso artigo de 1988, publicado em Science, termina com uma pequena parábola: “Uma percepção particularmente aguda sobre os poderes da lei para evitar mortes por vingança foi-me fornecida por um jovem yanomami em 1987. Ele aprendera espanhol com missionários e fora enviado para a capital para ser treinado como atendente de enfermagem. Lá, ele descobriu a polícia e as leis. Ele me contou entusiasmado que visitara o maior pata da cidade (o governador local) e instou-o a tornar a lei e a polícia disponível para seu povo, de modo que eles não tivessem mais que se engajar em suas guerras de vingança, nem viver em constante medo” (1988, p. 990).
  7. Ver as críticas da antropologia à teoria do Sistema Mundial, em especial a dois de seus pressupostos: primeiro, que as sociedades pré-Conquista não dispõem de uma historicidade própria (Comaroff, 1987, p. 64) e, segundo, que as sociedades pós-Conquista não possuem uma estrutura própria (Sahlins, 1988). No contexto sul-americano, esses pressupostos se expressam por uma convergência entre razão histórica e natural: “Presas entre História Europeia (ou mundial) e Natureza Americana (ou humana), as sociedades indígenas são reduzidas a um mero reflexo de uma contingência e uma necessidade que são igualmente extrínsecas” (Viveiros de Castro, 1996, p. 193).
  8. Republicado em uma versão mais extensa no livro Stone Age economics (1972), com o título “The original affluent society”.
  9. Beneficio-me aqui da análise de Sahlins 0972, pp. 168-83) sobre a filosofia política do “Ensaio sobre o dom”.
  10. Como nota Knauft (1990, p. 261), no contexto dos estudos melanésios, para o funcionalismo “a guerra indígena era racional e com propósito, limitada em sua dirupção e, na verdade, terapêutica no gerenciamento ordenado das disputas e na integração da sociedade. Em contraposição, o sangue, a emoção e a destruição da guerra eram bem pouco enfatizados”.
  11. Em seu estudo sobre a economia melanésia, Gregory 0982) repõe o problema da relação entre produção e consumo, retomando conceitos da introdução à Contribuição à crítica da economia política (Marx [18571, 1973), excluída do texto publicado em 1859. Nela, encontramos um contraste entre duas formas em que consumo e produção constituem uma unidade dual: consumo produtivo (o gasto de material e energia para a produção de objetos) e produção consumptiva (o consumo alimentar por meio do qual os seres humanos produzem seu próprio corpo). Gregory refere-se ao conjunto produção-consumo produtivo como “processo de objetificação” e ao conjunto consumo-produção consumptiva como “processo de personificação”. Nas economias do dom, diz ele, “a produção e a troca de objetos como dons devem ser explicados com referência ao controle sobre nascimentos, casamentos e mortes” (Gregory, 1982, p. 101). Quando aplico a noção de consumo produtivo à guerra ameríndia, não estou sugerindo que devemos entendê-la como “processo de objetificação”. O ponto é que trato a produção de pessoas por meio de pessoas como um fenômeno da esfera produtiva, e não do consumo. A ingestão simbólica do inimigo, que provoca transformações corporais e “espirituais” no matador, não deve ser comparada ao consumo do alimento para desenvolvimento físico da força de trabalho, pois ocupa lugar equivalente ao gasto produtivo nas sociedades capitalistas.
  12. A ideia da ausência de um lugar do poder nas sociedades amazônicas, que ganhou difusão para além da etnologia com a obra de Clastres, deve ser analisada com cautela. Há maior variabilidade no espaço e no tempo do que antes se admitia: é provável que no passado, isto é, antes da desestruturação dos sistemas sociais indígenas causada pela Conquista, encontrássemos maior centralização política em algumas regiões da Amazônia, em particular ao longo da calha de seu curso d’água mais importante (Roosevelt, 1993). Sabemos também que isso se aplica a outras regiões das terras baixas, como o Chaco, as planícies inundáveis da Bolívia e a costa das Guianas. Heckenberger (1997) sustenta posições semelhantes para a região dos formadores do rio Xingu, estendendo seu argumento até o presente. De qualquer modo, a questão de se determinar com maior precisão a realidade dessas estruturas políticas e sua relação com aquelas das sociedades amazônicas descritas como acéfalas ou com lideranças fracas e transitórias permanece em aberto. Para críticas a Clastres, ver Descola (1988) e Santos Granero (1993).
  13. Entre os Nivacle do Chaco, por exemplo, o escalpo e o matador eram “inaugurados” com uma festividade inicial, logo após a chegada da expedição guerreira, quando as mulheres dançavam com o troféu ainda ensangüentado para que “um pouco da alma-espírito da vítima” passasse para elas (Sterpin, 1993, p. 42). Só as velhas sem sangue (i. e., sem capacidade reprodutiva) podiam participar da dança, que lhes permitia adquirir “fertilidade canora” ou, mais exatamente, novos cantos para inaugurar novos escalpos. A potência genésica do troféu manifestava-se na sua transferência (parcial) para as mulheres já não mais férteis, assim como entre os Jivaro ela se explicitava como menstruação masculina.
  14. Essa ampliação do número de matadores no campo de batalha parece ligar-se à inexistência de uma hierarquização rígida e bem definida dos homens em função do mérito bélico. Já em sociedades nas quais encontramos tal hierarquia, podem-se observar restrições à multiplicação dos envolvidos na morte ou captura de um inimigo. Nas “sociedades de guerreiros” do Chaco, por exemplo, só ascendiam à condição de caanvacle aqueles que não apenas matassem, mas também escalpelassem o inimigo e trouxessem o troféu (Clastres, 1982, p. 222; Sterpin, 1993). Aqueles, no entanto, que não quisessem adquirir esse status não estavam obrigados a tomar o escalpo, podendo ceder sua vítima a um companheiro. Já no sistema Azteca, muito mais rígido e hierarquizado, ceder um cativo para outro guerreiro era crime punido com a morte (Clendinnen, 1991, p. 116). Em ambos os casos, porém, o ritual continuava a socializar e ampliar os efeitos do homicídio, ainda que sob o controle de uma elite guerreira e/ou sacerdotal.
  15. Não é, contudo, apenas o matador que recebe esses cantos: “Um único inimigo ensina vários cantos para seu matador, e mesmo para outras pessoas: todos os que tiveram algum tipo de contato próximo com o inimigo (trocando flechadas, ferindo ou sendo ferido) recebem cantos, de tal modo que o festival de dança pirahe envolve a enunciação coletiva e unânime de diversas melodias unidas seqüencialmente” (Viveiros de Castro, 1992, p. 241).

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