1996

Descartes: o eu e o outro de si

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

O enigma lançado pelo santuário de Delfos, “conhece-te a ti mesmo” sofreu várias mutações até chegar em Descartes. Para Hegel, mais do que um mandamento absoluto para o autoconhecimento é o conhecimento do verdadeiro do homem, do verdadeiro em si para si. O homem medieval via no autoconhecimento o caminho que leva a Deus. Para Montaigne, o “conhece-te a ti” é o Eu polifônico, incoerente. Um Eu que é um outro.

Entre os dois, o “conhece-te a ti mesmo” cartesiano. Descartes investiga o Eu resíduo da negação do mundo exterior e interior, consciente do eu mais inconsciente de si. No plano pessoal, conduzido ao impasse “quem sou?” que se desliza para “o que sou?”, o espírito é sujeito a fraquezas. O conhecimento falso, porém verossímil tal como no sonho, conduz o filósofo a uma crise metafísica: a dúvida.

Para Descartes, no mundo mecanicista, extenso e geométrico, onde a matemática é o alicerce para a edificação da física, o homem, feito a imagem e semelhança de Deus, representa o pensamento. O homem interior cartesiano é um detalhamento minucioso e exaustivo que decompõe peça por peça os mecanismos da máquina corporal, e torna-se o símbolo do novo panorama interior que coincide com o conhecimento do homem interno analisado segundo procedimentos paralelos tanto anatômica quanto fisiologicamente.

Homem e natureza, disponíveis e manipuláveis, substituíveis pelo número e pela regra. O “conhece-te a ti mesmo” cartesiano envia à ciência e ao conhecimento da máquina do corpo. Conhecer o corpo humano corresponde a alcançar a autonomia enquanto conhecimento e exploração do homem interior.


Amor platônico, amantes maquiavélicos, pensador cartesiano: antes e independentemente da leitura de seus textos, há sempre algo de já conhecido de seus livros, uma representação que o senso comum atesta. Do amor platônico, a assimetria dolorosa. No Fedro e no Banquete, só o amante ama; Sócrates, o amado, não ama a ninguém, pois busca o esplendor do Belo no céu inteligível. Amor platônico, pois: amor contemplativo. Dos maquiavélicos, conhece-se a astúcia, o logro, o ardil; manipulando o amante, o amado conserva o segredo de suas intenções, domina por completo a ação, faz com que o amante se enrede numa trama cujas origens, sentido e desenlace ele desconhece. Amor que se alimenta da servidão e da dependência e, por vezes, induz o seduzido à autodestruição. Do pensador cartesiano, guarda-se algo daquele que procede por ordem em suas reflexões. Ordem, clareza e comunicação de evidências caracterizam o conhecimento e a ação. Para ele, diz-se, a boa ordem é a chave do enigma. Enigma em termos, pois, nos Meteoros, Descartes vangloria-se de a tal ponto desvendar os mecanismos do céu que seu leitor não encontrará mais nele nenhuma matéria de admiração. Admirar-se — olhar com respeito e veneração — é desconhecer a ordem das razões. Que se pense na álgebra, onde a incógnita não existe propriamente, pois o desconhecido é remetido à dimensão do já conhecido. O mundo cartesiano é sem mistério e sem desejo de revelação. Diferença essencial separa o enigma e o segredo. Este nasce do desejo de criar o mistério — motivo pelo qual se desfaz numa conversação. Quanto ao enigma, este se constitui do desejo de protegê-lo e aí reside a força interrogativa que, permanentemente, suscita. Verdade não é exposição que destrói o enigma mas “revelação que lhe faz justiça”.

Enigma arquetípico, o “conhece-te a ti mesmo”. Dele Hegel escreveu: “Conhece-te a ti mesmo — esse mandamento absoluto não tem […] a significação de ser apenas um autoconhecimento, segundo as aptidões, o caráter, inclinações e fraquezas do indivíduo; tem, sim, a significação do conhecimento do verdadeiro do homem, do verdadeiro em si e para si”.[1] Formulação por excelência filosófica, pois, continua Hegel, “o desafio ao autoconhecimento, lançado pelo Apolo délfico, não tem o sentido de um preceito dirigido de fora ao espírito humano por uma potência estranha; antes, o deus que impele ao autoconhecimento não é outra coisa que a própria lei absoluta do Espírito”.[2] O santuário de Delfos revelava ao passante que o homem é um joguete das forças do destino, de cuja fatalidade não pode escapar. Uma dor imerecida abate-se sobre o homem sem que ele saiba nem como nem por quê. Ao absurdo da existência nada pode consolar.

O “conhece-te a ti mesmo”, de Delfos a Descartes, passou por mutações. O mesmo oráculo que revelou ser Sócrates o homem mais sábio de seu tempo significou ao homem ser ele mortal e não Deus, sombra já em vida, efêmero e vulnerável — com o que recomendava a prudência. Já o homem medieval e piedoso reconhecia no exame de consciência — na análise de si — o caminho que leva a Deus. São Jerônimo, dez séculos antes da invenção da imprensa, dá à tradição mais que a história do livro. Com papiros, schedulae, pergaminhos — em meio a códices, erratas, variantes e distorções por que passavam as Escrituras Sagradas, o santo e penitente redige a Vulgata. Essa Bíblia latina, redigida entre os séculos III e IV — quando suas diversas versões não passavam “de um roto tecido de fábulas orientais” —, ofereceu à tradição o homem estudioso em seu ambiente recluso no deserto, em martírio, procurando e conhecendo a Deus — com o que “fez um gesto para o Absoluto”.[3] A escrita coincide com a sacralidade e o conhecimento de si e de Deus: “Não poderás dar assentimento a uma schedulae (folha), tu que não aliaste tua fé à palavra viva”.[4] Chegando-se a Montaigne, o “conhece-te a ti mesmo” confronta-se com um eu polifônico, ou melhor, contraditório, em meio ao tumulto das falas — um eu incoerente. O filósofo não retrata o eu mas a passagem, passagem de um estado a outro, de momento a momento. Vário e inconstante, esse eu é um outro.

No espaço que separa o “socratismo cristão” de são Jerônimo daquele que investiga o corpo morto e nu — anatomizado — inscreve-se o “conhece-te a ti mesmo” cartesiano. No limiar da experiência moral do conhecimento do mundo interior do homem e daquela, despersonalizada, do cadáver — as antinomias da modernidade. Recusando tudo o que engana e ilude, o corpo moderno se vê confinado na idéia de extensão por um Eu que imagina não ter mãos, nem corpo ou sangue. Um eu desiludido. Ilusão: do latim illusio, do verbo illudere, sua forma simples é ludere, proveniente de ludus — “jogo”, no sentido de uma ação, diferenciando-se de iocus — “jogo verbal”. Illudere significa “jogar”, “divertir-se com algo”, mas também “enganar-se” — sentido que prevalece hoje. Os dicionários registram a ilusão como engano espontâneo ou provocado; não faltam referências a Descartes, ao Demônio ou à magia, mas também a “certos sonhos ou fantasmas agradáveis ou desagradáveis que turvam a imaginação”. Aqui, ilusão associa-se a decepção e tem o sentido de “quimera”, “desvario”, “sonho”, “delírio”, “ficção”: “erro dos sentidos ou do entendimento que faz tomar aparência por realidade”. Devem-se, agora, considerar os atributos positivos da ilusão, normalmente subestimados: deleitosa, “que faria a felicidade se se realizasse”. Tanto que “perder as ilusões” é “suceder ao encanto e desencanto, olhar com frieza o que antes seduzia, é desiludir-se”. O contrário da desilusão é a ilusão — “alegria ou felicidade que se experimenta com a posse, contemplação ou esperança de algo”.

Preterido o significado de auto-satisfação e deleite, a ilusão é erro. O eu desiludido sabe, de agora em diante, que “o azul do céu não é azul nem é céu”. O resíduo dessa negação do mundo exterior e interior é um Eu sobre o qual Descartes reflete, escrevendo: “Não conheço ainda muito claramente o que sou, eu que estou certo de que sou”.[5]

Consciente do eu mas inconsciente de si, a luz natural encontra-se como em embriaguez, aquela do despertar. No entremeio, vigília e sono não revelam identidade fixa, a desarmonia questiona a clareza e a distinção, o “conhece-te a ti mesmo” recua: “Há diversas coisas”, anota Descartes, “que tornamos mais obscuras quando procuramos defini-las, pois, sendo muito simples e claras, é impossível sabê-las e compreendê-las melhor do que por elas mesmas […]. Não se devem definir as que só se devem conceber por si mesmas”.[6] De pouco serve ao filósofo representar a alma “alojada no corpo como um piloto em seu navio”. Ela não está indissoluvelmente nele; ao contrário, é na condição de intruso que o corpo induz a alma a legislar sobre o que esta não pode compreender, como por exemplo o que significa o “eu sou”: “Existem palavras algébricas, palavras mecânicas e palavras pneumáticas”, escreveu Fogazzaro em Malombra. “As palavras algébricas descem do cérebro e são sinais de equação entre o sujeito e o objeto. As palavras mecânicas são formadas pela língua como articulações necessárias da linguagem. Mas as palavras pneumáticas vêm mesmo dos pulmões, soam como instrumentos musicais, ninguém sabe o que querem dizer e embriagam os homens.”[7]

Palavras indefiníveis têm funcionamento oracular, são precavidas: “Os oráculos jogam ao mesmo tempo com todos os sentidos das palavras, e evitam dessa maneira que elas lhes preguem alguma peça um dia”. Na indecisão, Descartes observa: “Com respeito ao juízo que faço de mim mesmo, procuro sempre inclinar-me mais do lado da desconfiança do que da presunção”[8] e isso porque o espírito está sujeito à lentidão,[9] à fraqueza e instabilidade da memória,[10] à fraqueza da inteligência que deve, ainda, socorrer outras faculdades,[11] sujeito à inclinação em acreditar no testemunho enganoso dos sentidos[12] e em formular um juízo a partir “de uma imaginação que compõe mal seu objeto”.[13] Poder-se-ia dizer que Descartes, aqui, é pré-cartesiano. É o filósofo que narra “a história de seu Espírito” de tal forma que a interrogação “quem sou?” que desliza ao “o que sou?” conduz a um impasse. Nas Meditações escreve:

Assim como um escravo que desfrutasse no sono de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar que sua liberdade é só um sonho, teme ser despertado, e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado; assim, também, eu recaio, insensivelmente por mim mesmo, em minhas antigas opiniões, e fico apreensivo em despertar deste torpor, com medo que as vigílias laboriosas que sucederiam à tranqüilidade desse repouso, ao invés de trazerem alguma luz no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer a treva das dificuldades que acabam de ser mencionadas.[14]

O despertar do sono reconfortante ameaça a verdade. Que se recorde que rêver provém do antigo francês esver, que significa “vadiar”, mas, também, “delirar”, “divagar”. Desver, no dialeto endêver, é “perder o sentido”, o mesmo que se encontra no latim exvagus. O sonhador noturno é o desvé, o vadio que se torna louco, tendo perdido o centro e a periferia da razão. O paradoxo de um conhecimento falso, porém verossímil, verdadeiro mas incoerente, produz, no filósofo, uma “crise metafísica”: a dúvida. Eis por que o procedimento autobiográfico não procura ordem na desordem, apesar do esforço em converter a desordem em ordem:

Descartes sabe que aquele que narra sua vida no Discurso do método é já diverso daquele que a viveu: é dessa diferença que se propõe tomar consciência […]. Procura a fórmula dessa mudança, pois conferirá sentido a seu presente […]. O Discurso é a confidência de um homem que se pôs a caminho na busca de seu pensamento, onde se engajou em uma aventura sem volta.[15]

Não por acaso, Descartes propõe que suas memórias sejam lidas como uma fábula, dado o descompasso entre o projeto científico e sua realização discursiva. A fábula é um gênero literário indexado no imaginário que revela, por vezes, o pouco êxito na denúncia à ilusão. Não é outro o caminho de Proust na procura da verdade através do itinerarium mentis. Em À sombra das raparigas em flor, faz-nos ver as quaresmeiras vizinhas de papoulas, descrevendo menos um lugar preciso e uma época datada e mais a lembrança preservada; não um ramo perfumado de espinheiros, mas o sentimento que evocam; não antigos objetos na perspectiva da objetividade controlável e de fatos estabelecidos, mas a presença atual de uma lembrança viva: papoulas e espinheiros renascem juntos, floridos na memória apaixonada, onde Proust reencontra o tempo perdido; o erro é, aqui, o verdadeiro, e a exatidão seria mentirosa, assim como Proust não teria amado Gilberte por seus olhos azuis, a menos que os tivesse negros. A história é uma fábula que não parte da realidade mas chega a ela e lhe confere dignidade.

Procurando distinguir a verdade do erro, a ficção será afastada. Para a obtenção da ciência uma única atitude: ou a ignorância total ou a certeza absoluta. Ignorância total: “É bem possível que me engane e que não seja senão um pouco de cobre e de vidro o que eu tomo por ouro e diamantes”,[16] assim como “os insensatos asseguram, constantemente, que são reis quando são muito pobres, que estão vestidos com ouro e púrpura quando estão inteiramente nus ou imaginam ser cântaros ou ter o corpo de vidro”. Se tomo ouro e diamantes por cobre e vidro, também a ciência pode ser erro com aparência de verdade — o outro nome da ilusão. Esta, sabe-se, conjuga semelhança com alteridade. Os homens sempre se enganam. Na realidade, na moral: tomam por “palácios muito soberbos e magníficos […] o que é erigido apenas sobre a areia e sobre a lama. Erguem muito alto as virtudes […] mas não ensinam bastante a conhecê-las, e amiúde o que chamam com um nome tão belo não é senão insensibilidade, ou orgulho, ou desespero ou parricídio”.[17] O que comumente se toma por virtude talvez seja um crime.

A esses enganos corresponde, no plano pessoal, a desvalorização de si: “Quanto a mim, jamais presumi que meu espírito fosse em nada mais perfeito que o dos outros”.[18] Não se atribuindo dons que não possui, prefere-se “homem sem qualidades”, com o que se coloca ao abrigo de qualquer ilusão de si mesmo:

Ocorre freqüentemente que andemos sem pensar de forma alguma no que fazemos, e é sem utilizar a razão que rechaçamos as coisas que nos prejudicam, que aparamos um golpe, da mesma forma [que não é] expressamente que colocamos as mãos protegendo a cabeça, quando acontece de cairmos […]: e se diz daqueles que caminham dormindo, que algumas vezes atravessam rios a nado, onde se afogariam se estivessem acordados.[19]

Aqui, não apenas a ação ocorre sem a intervenção do pensamento mas seria totalmente prejudicada por ele. Com o que Descartes estabelece a relação conflituosa entre o corpo que padece e a alma que pensa. As impressões que recebemos, mesmo pelo tato, são falsas: a ferida que o soldado sente não é verdadeira, “era tão-somente uma argola ou uma correia que, tendo-se atado sob suas armas, apertava-se e o incomodava”.[20] O mesmo ocorre com as cócegas e com a pena que arrepia como “se a idéia de cócegas se assemelhasse a algo existente na pena que arrepia”.[21] A ilusão consiste num juízo injustiçado de semelhança, numa analogia entre o espiritual e o sensível. A ciência nova (a de Descartes) refuta o sistema da analogia universal, da simpatia e das correspondências entre microcosmo e macrocosmo. Na ciência dos taumaturgos da Renascença era o olhar que unia o homem à “alma do mundo”:

O que amam os olhos? Rigorosamente a formosura, a forma e a figura do belo. O que olham os olhos? A formosura física, a astral (envoltório delicado e diáfano com que os deuses protegem sua alma para a entrada no corpo), a espiritual (ou angélica), e a divina. Por que podem vê-las? Como aprender a ver a formosura nos vestígios e nas imagens? Aprendendo o segredo que as produziu: os astros de que dependem, as cores que os espelham, os minerais que as retêm, os odores que as exprimem, o elemento e o humor que as temperam. Quem ensina a vê-las? A magia natural, através dos talismãs que mantêm presente a formosura do corpo ausente […]. A magia é iniciação ao mistério do mundo.[22]

Há duas ciências inimigas de Descartes: a da Renascença com seu naturalismo e gosto do oculto, e a dos doutos que exploram as fraquezas humanas, servindo-se de argumentos sutis:[23] “Não resta dúvida de que Descartes desenha o retrato daqueles que não seriam atraídos pela nova ciência mecanista e matemática, a nova ciência da ordem. Nem o maravilhoso, nem o oculto, nem o belo encontram lugar nessa ciência que só admite a ação lúcida da razão metódica”.[24] Descartes inicia por “aquilo que podemos ver com os olhos” quando, por exemplo, a chama “queima a madeira”.[25] Essa descrição abstém-se de levar em conta as qualidades e formas sob as quais o fogo aparece: por medo de enganar-se, Descartes dispõe retirar o que o filósofo reconhece como necessário no fenômeno da combustão, separando-o daquilo que apenas parece lhe pertencer, “diferenciando-se de quem pretenda ver na madeira a forma do fogo, a qualidade do calor, a ação que o queima”.[26]  Com isso, afasta tudo o que constitui a experiência imediata desse corpo — o que sentimos a seu contato —, até o ponto em que a própria palavra fogo — que envolve as idéias do calor e do queimar — parece inadequada. Da lenha que se consome, Descartes começa por suprimir o próprio fogo: “Retirem-se-lhe o fogo, o calor, impeça-se o queimar”. Apenas mediante essa drástica abstração torna-se possível a descrição do fenômeno. Só então pode-se ver com os olhos que a chama “movimenta as pequenas partes da lenha e as separa umas das outras”. Extraindo-se o calor, o queimar, o próprio fogo — que impossibilitariam a abstração —, restam partículas em movimento. Tudo o que não é clara e distintamente percebido são pseudopropriedades dos corpos, são “sentimentos”.[27] Propriedades, pois: figura e movimento. Descartes desacredita “qualidades” e “virtudes” dos corpos, em nome de uma filosofia mecanista. Nesta, a oposição extrema entre o químico e o alquimista: “Enquanto o primeiro só considera para objeto de análise lenha e cinza, o segundo só se interessa pelo enigma da chama”.[28]

Três caminhos abrem-se a Descartes: 1) o das Ciências escolásticas — a Ciência aristotélica, antropomórfica e antropocêntrica, na qual a natureza é teleologicamente compreendida, tudo busca a perfeição. Se a pedra cai, é na procura de seu “lugar natural”; 2) quanto à Ciência do Renascimento, apreende analogias e semelhanças; seu pampsiquismo é o do universo mágico, de naturalistas e alquimistas; 3) quando a semelhança entre o homem e o cosmos e seu pertencimento ao universo são abalados, Kepler, Copérnico, Galileu e Descartes passam a distinguir percepção e realidade. Onde Descartes vê geometria, o homem medieval, como, por razões diversas, o renascentista, reconhecia valores: “[Na ciência anterior à dos modernos,] os deuses manifestaram aos homens sua vontade através da natureza. Daí deriva a física finalística e moralizante de Platão e de Aristóteles […]. Se os deuses não mais transmitem uma mensagem aos homens, a Natureza perde aqueles valores intencionais e tende a tornar-se, como se diz hoje, um jogo de fenômenos mecânicos”.[29] Deusa universal, de agora em diante, em sua espontaneidade indefinida, a natureza será máquina.

O antigo tabu do natural — que pressupõe a diferença essencial entre experiência (de laboratório) e “fenômenos naturais” considerados sagrados até aquele momento — vê-se inteiramente ultrapassado. O homem não mais teme ser fulminado por deuses. Conhecer é construir, graças à engenhosidade técnica; Deus concede ao homem a missão de trabalhar à sua imagem, de constituir o mundo em pensamento como um dia Deus o criou, dando-lhe leis. O físico mecanicista eleva-se a Deus desejando penetrar no segredo do Engenheiro Divino, colocando-se em seu lugar para melhor compreender como o mundo foi criado. Não é outra a atitude de Descartes nos Princípios de filosofia (1644), obra que responde ao Discurso do método. Para que a substituição de Deus pelo filósofo mecanista se tornasse possível, foi preciso que a natureza perdesse a finalidade imanente. Sendo, agora, matemática, a natureza será o alicerce seguro e sólido para a edificação da física. A matemática não é mais humilde auxiliar do artesão ou do astrólogo sonhador. O matemático torna-se, junto ao engenheiro, o protótipo do cientista, o depositário do segredo divino. Reduzindo a matéria à extensão, Descartes faz da física uma geometria aplicada. Ao dessacralizar a natureza de sua magia pitagórica — a dos números harmônicos — a nova geometria desencanta corpo e alma: metaforizado em conceito, o corpo converte-se em fetiche, a alma em sujeito. Considerado segundo uma mecânica fisica lista, a alma será tão inerte quanto inorgânico o corpo extenso, objetos ambos de uma comparação, no sentido que se encontra no alemão GLEICHNIS, figura que desliza para a parábola, isto é, representação por simulação. A palavra indica, a um só tempo, o caráter de artificialismo e convencionalidade da ordem moderna, construída sobre a metáfora da máquina: para Descartes, neste mundo que é, em sua essência, mecanismo, extensão e geometria, Deus colocou o homem, feito à sua imagem, como representante de uma segunda essência, infinitamente mais digna que a primeira: o pensamento. A alma se serve do corpo, como o piloto de seu navio, e nessa nave do mundo, por si mesmo vazio de intenção e finalidade, o homem é o piloto para quem o mundo pode servir ao conhecimento do plano de Deus. Mas, para isso, deve preparar o mundo, a fim de manobrá-lo. A verdadeira ciência, aquela que propicia compreender a obra da criação, permitindo ingressar no segredo divino, torna-se meio de louvar o Criador: “Não apenas consegui algumas noções gerais com respeito à física”, escreve Descartes no Discurso do método, “mas, considerando até onde podia levar-me, acreditei não poder mantê-la escondida sem gravemente pecar contra a lei que obriga a procurar, porquanto esteja em nossa possibilidade, o bem geral de todos os homens”.[30]

Assim como a alma deve testemunhar Deus, também o corpo humano estará numa simetria incomparável com a criação: mesmo o corpo morto pode ser explorado nos admiráveis mecanismos de que foi dotado, ser o veículo da fé e do élan admirativo para seu artífice. Eis o que explicaria como a paixão anatômica e a febre de dissecação se apossaram de laicos e de clérigos no século XVII. O corpo morto e nu torna-se o centro revelador do conhecimento dos segredos do homem, dos mistérios de sua estrutura interna. Medita-se sobre o cadáver, objeto inquietante que, de maneira ambígua, é mortalha inerte sujeita à misteriosa causa que tudo desfaz, mas ainda é corpo e já está morto. O Tratado do homem o revela: a anatomia de Descartes é puramente mecanista, mesmo se o conhecimento do corpo e a prática da medicina são vistos numa perspectiva moral. Seria vão buscar nos textos de Descartes uma interpretação moralizante da anatomia. Moralizá-la resultaria em reconhecer que as desordens do cosmos foram introduzidas pelos “homens de ciência”.[31] A história torna-se physis:

A alegoria mostra ao observador a facies hippocratica da história como paisagem originária petrificada. A história, em tudo o que nela desde o início é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto — não, numa caveira […]. Essa figura, de todas a mais sujeita à natureza, exprime não somente a existência humana em geral […]. É a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação. Mas, se a natureza desde sempre esteve sujeita à morte, desde sempre ela foi alegórica.[32]

Benjamin vê na carne e no esqueleto, isto é, na caveira, o lugar no qual caducidade e o eterno se chocam diretamente. Essa “caveira-máscara” é o “rosto rígido da natureza” e existe, para o século XVII, como uma ofensa humana à decisiva categoria do tempo, oscilando entre a transcendência divina e a efetividade da facies hippocratica, o corpo morto que será descarnado pela anatomia. Trata-se de um culto antropológico àquilo que, na morte, resiste ao trespasso. É esta uma espécie de ressurreição metafísica do corpo que surge, agora, na fixidez inorgânica. Eis por que o corpo anatomizado no Tratado do homem não trata do corpo em decomposição, pois desde logo o corpo é tomado numa metáfora instrumental e mecânica.

Lá onde a fala poética vê um corpo de carne e sangue pulsando, minado a cada instante, um corpo doente, assombrado pela morte, Descartes observa tubos e cordas: o cadáver que ele disseca é um relógio parado, uma máquina quebrada, como no artigo 6 de As paixões da alma: “Que diferença há entre um corpo vivo e um corpo morto”. Descartes escreve:

A fim de evitarmos, portanto, esse erro [de acreditar que a alma dá calor e movimento ao corpo], consideremos que a morte nunca sobrevém por culpa da alma, mas somente porque alguma das principais partes do corpo se corrompe; e julguemos que o corpo de um homem vivo difere do de um morto como um relógio, ou outro autômato (isto é, outra máquina que se mova por si mesma), quando está montado e tem em si o princípio corporal dos movimentos para os quais foi instituído, com tudo o que se requer para a sua ação; e difere do mesmo relógio, ou outra máquina, quando está quebrado e o princípio de seu movimento pára de agir.[33]

No que diz respeito ao homem, a deterioração da máquina não conduz apenas à sua destruição, mas também à separação da alma e do corpo. A doutrina da união das duas substâncias, quando de sua separação, exclui radi calmente todo vitalismo e todo animismo. A lição mais significativa da anatomia prende-se, em Descartes, àquilo que o cadáver desmente: não mais se procura o elo vital que, na Renascença, unia o homem ao universo e, através de seu corpo, ao divino. O animismo e o misticismo que se encontravam no mais duradouro e materialístico dos materiais — o crânio descarnado — significavam um retorno do homem à natureza, mais inquieto, no entanto, com seu destino do que com o conhecimento de uma natureza “objetiva”. Conhecer o interior do corpo humano era descobrir os segredos da alma. Duas direções simultâneas, portanto: as profundezas da carne e aquelas do Eu, para decriptar verdades soterradas, segredos não decifrados. O corpo humano era o horizonte de coisas corporais e incorpóreas. À análise minuciosa do corpo, correspondia a exploração do “homem interior”.

Inúmeros arcanos da natureza seriam, a partir do século XVII, trivializados com a ajuda, por exemplo, do microscópio. O “conhece-te a ti mesmo” saía dos limites prestigiosos antes restritos à mântica moral. O corpo humano é agora convertido em animal-máquina com forma humana. É por antropomorfismo que se vê no corpo nossa humanidade. A nova mecânica abrange, em Descartes, também a alma e suas paixões, pois irá compreendê-las pelos princípios do movimento. Nossas principais reações emotivas não dependem tanto de nossa vontade quanto o movimento das pupilas nos olhos. De nada serve representar-se a alma alojada no corpo “como um piloto em seu navio”, pois é preciso, antes de mais nada, seguir o percurso da força que vai da mão do piloto até o leme, sem o que ignoramos o que se passa no próprio corpo do piloto e que, do cérebro, conduz uma idéia à sua mão. A alma está, pois, unida ao corpo não em sua materialidade mas em sua idealidade. Corpo e alma deverão ser compreendidos sem qualidades, a partir das “naturezas simples”, aquelas que não requerem explicações e não serão, assim, ilusões:

Se achares estranho que, para explicar [essas naturezas simples ou elementos], eu não me sirva das qualidades que se chamam quente, frio, seco e úmido, como o fazem [os filósofos escolásticos ou os doutos da Renascença], eu direi que essas qualidades parecem, elas mesmas, necessitar explicação […] e podem ser explicadas sem que seja preciso supor outra coisa em sua matéria a não ser o movimento, a espessura, a figura e o arranjo de suas partes.[34]

O movimento da matéria, a ordem, o tamanho das partículas irão construir um sistema mecanista no qual tudo será compreendido pela ação das diversas partes dos elementos. E os dados dos sentidos provocam reações automáticas.

Conhecer o corpo humano na dimensão comum do corpóreo e do imaterial corresponde a alcançar a autonomia enquanto conhecimento e exploração das regiões do “homem interior”. A interioridade do Homem terá agora um sentido preciso: não mais será aquela em cuja solidão o homem se encontrava com Deus. Nesta, o “Verbo interior” era luz divina acesa na consciência como luz natural da Graça, na analogia e na correspondência entre o divino e o humano. O “homem interior” encontrava em sua alma vestígios do invisível, na anamnese do Bem — rememoração que era ascese, porque a substância, mesmo matematizada, supunha uma proporção analógica da Alma com sua Causa, na participação do divino por intermédio da luz na tural. O “verbo interior”, retração solitária do Eu, entrava em correspondência com Deus.[35] O homem interior cartesiano é um detalhamento minucioso e exaustivo que decompõe peça por peça os mecanismos da máquina corporal, e torna-se o símbolo do novo panorama interior que coincide com o conhecimento do homem interno analisado segundo procedimentos paralelos tanto anatômica como fisiologicamente. O anatomista, o fisiologista observam, examinam, quantificam os “movimentos do coração”, isto é, a distribuição do sangue, a agilidade dos espíritos, a manutenção do todo. A natureza da alma encontra-se, agora, distante da concepção dos naturalistas gregos que a consideravam pneuma — espírito sutil — fabricado pelo fígado (spiritus naturalis), transportado para o coração e pulmões, transformado em spiritus vitalis ou princípio de vida pela presença do ar, sendo finalmente destilado no cérebro para gerar o spiritus animalis portador do pensamento e da memória. Aristóteles considerava o coração a acrópole da alma: era ele que produzia calor, nutrição, percepção, movimento e pensamento. Esse cardiocentrismo conservou sua dignidade até o século XVII. William Harvey — descobridor da circulação do sangue — assim refere-se ao coração: “The inner room, the shrine, where is the fount of heat, the vital spirit, emotion, the passion and respiration”.[36] Com Descartes, o coração não é um órgão tão nobre: é um simples músculo-víscera, feito de carne e tendões. O próprio cérebro faz parte da “máquina do corpo”, recebendo e transmitindo o fluxo dos espíritos animais, agitados pelo calor do fogo que arde continuamente em seu coração e que tem a mesma natureza de todos os fogos que estão nos corpos inanimados. No Mundo, o corpo é comparado a um autômato hidráulico: “Os espíritos têm a força de mudar a figura dos músculos […] assim como o fazem nas grutas e fontes que estão nos jardins de nossos reis, onde a única força com a qual a água se move, ao sair da fonte, é suficiente para movimentar diversas máquinas, segundo a disposição diversa das tubulações que a conduzem”. O construtor das fontes, como um arquiteto, é assimilado à alma racional. No paradoxo de reconstruir o homem vivo servindo-se da fórmula mecânica da engenharia, o “homem do homem” será análogo àquele criado por Deus. O homem é a imagem de Deus pois sua razão é uma cintilância arrancada desse “fogo central”, mas com a mesma composição e estrutura. Assim também, as “paixões da alma” são “atos do corpo”. O corpo, que é movimento, se oferece, pelas descobertas da anatomia, adaptado aos novos modelos epistemológicos 
apresentados pela filosofia mecanista. O homem é corpo, coração, cérebro: a loucura é vista, pois, como desordenação de um dos componentes mecânicos do organismo, preservando-se de qualquer contaminação a validade do cogito. Mesmo louco, o estatuto do Sujeito é protegido, já que a loucura é um acontecimento de ordem estritamente física.

Algo se passou que iria diferenciar-se da reabilitação renascentista do corpo. Este, aprisionado na dimensão religiosa pela cultura da Contra-Reforma, encontra na anatomia um instrumento sutil a serviço da redescoberta de Deus. No século XVII, ao contrário, o corpo humano torna-se terra de investigação edificante e de piedosa missão, um novo mundo — como o dos descobrimentos e conquistas da América — tangível e imóvel, aberto à modificação e à exploração, no âmago do qual se poderiam lançar olhares perturbados, inquietos e ávidos de conhecimento. Hasteado no cadafalso ou no altar e, em seguida, reconstituído sobre o mármore dos anfiteatros anatômicos, o corpo, antes supliciado na punição exemplar, vê-se, no século XVII, exposto nas ostentações didático-científicas: “Quando a alma racional está nesta máquina” (o corpo), diz Descartes, “ela terá seu lugar principal no cérebro e estará lá como o construtor de fontes deve estar nos olhares que vão ao encontro dos tubos desta máquina, quando o artífice quer excitar, impedir ou mudar de algum modo seus movimentos”.

Aqui, o invisível é, tão-somente, o visível convertido a ínfimas proporções, a tal ponto que o olhar direto não tem acesso a ele: “Eu anatomizo agora”, escreve ainda Descartes, “as cabeças de diversos animais para explicar em que consistem a imaginação e a memória”[37] — com o que, por um caminho reverso, Descartes vai ao segredo pelas vias do visível. O corpo morto e nu torna-se o centro revelador dos segredos do homem, dos mistérios de sua estrutura interna. Medita-se sobre o cadáver, objeto inquietante que, de maneira ambígua, ainda é corpo e já está morto ou, como escreve Benjamin no Drama barroco alemão, o cadáver é o entrecruzamento do efêmero e do eterno, do humano e do inumano: o esqueleto — corpo inorgânico mas ainda humano. Nele sobrevivem minúsculos resíduos de vida, mesmo na matéria em vias de decomposição, sobre a qual pesa o mistério da separação da alma e do corpo. Coisa alarmante, o corpo morto a conservar um pequeno nada de vis vegetalis, cujas anfractuosidades inexploradas ou pouco conhecidas manifestam imprevisíveis vestigia vitae.

Que se recorde, também, a estreita colaboração entre artistas e médicos no século XVII. A aliança entre a pinça e o escalpo do escultor não era estranha ao anatomista. O recurso à anatomia médica significava mais do que a necessidade de novas técnicas figurativas, para as quais procurava conhecer minuciosamente membros, órgãos e a estrutura interna do corpo para o acesso ao “abismo do maravilhoso”. Tratava-se, sim, de penetrar nos laboratórios secretos da vida. Para uma cultura que entretinha com a morte uma intimidade e uma familiaridade hoje dificilmente imagináveis, as anatomias públicas constituíam encontros atraentes onde um espetáculo raro e perturbador não cede diante do desejo de vasculhar com os olhos as mirabilia invisíveis — protegidas pela pele e pelos músculos, defendidas por membranas, cartilagens, caixa craniana —, desejo de desencantar essa extraordinária máquina, esse prodígio do opificium Dei. O que atraía na exploração do homem interior era o cromatismo sinistro, inédito, dos órgãos flácidos, a descoberta lenta e gradual do microcosmo emaranhado de carnes e músculos, a atenção, o desejo de conhecimento. A igreja, primeiro, o anfiteatro, em seguida, transformam-se em teatros científicos. O que parecia à ciência do passado inapreensível ou maravilhoso deve ser revisto. A admiração é paixão; dela homens ciosos de verdade devem se desembaraçar, pois admirar-se é desconhecer a ordem das razões. Para isso concorrem máquinas e autômatos, e a elas convergem o sábio e o engenheiro, o traba lho do pensador e aquele realizado nos laboratórios. Máquinas e autômatos, por sua vez, provocavam um sentimento que não seria outro senão o do maravi lhamento, maravilhamento, no entanto, não mais reservado ao mundo criado por Deus, aos milagres e ao próprio Deus. A natureza não é mais interditada por um tabu venerável e sagrado. Agora profana, ela pertence àquele que conhece, isto é, àquele que sabe — não tanto o que ela é mas como funciona. Que se pense no quadro de Rembrandt A lição de anatomia, no qual a máquina inerte do homem morto — em primeiro plano — é perscrutada por médicos que o examinam com o olhar. Alguns estão atentos, inclinados sobre o corpo, como a extrair dessa inércia branca o velho arcano; outro olha ao longe, acima da mesa de dissecação, dirigindo o olhar a um horizonte cujo mutismo provoca um insólito espanto. Este interroga explicitamente o enigma que seus companheiros se esforçam em resolver, forçando o corpo morto. Lá está Descartes, que coloca questões e enigmas, avidamente debruçado sobre a máquina e, ao mesmo tempo, com o olhar projetado na distância, repetindo “que tudo isso é tão somente fogo, vento, tubos, cordas e véus”.[38]

Descartes rompe com a cultura da curiosidade e do espanto,[39] o que o libera de divisar alma no corpo morto; o olhar atento e concentrado não mora liza o cadáver anatomizado que Descartes via na Universidade de Leiden, oferecido em espetáculo. A ciência moderna não apreende o mundo segundo seu ser, tampouco segundo a , mas o que dele o espírito pode conhecer, simulando sua fabricação. Isso significa: a ciência descreve o mundo não tal qual é mas como poderia ser se a realidade das coisas procedesse do pensamento e das mãos do homem. O novo saber não mais se submete ao ser nem à verdade revelada: “Não é uma ontologia mas uma tecnologia, uma simulação técnica do real […]. O autor da nova física toma o lugar de Deus, ao mesmo tempo em que permanece um arquiteto, um enge nheiro, um técnico, um recriador que, para conceber um objeto, deve simular a construção, a produção, a fabricação”.[40]

O “desencantamento do corpo”, o apagamento de seu caráter simbólico, essa despolitização da natureza (exterior e interior) por uma racionalidade abstrata e formalizadora, é a história originária da dualidade crucial entre o homem e o mundo, o corpo e a alma, e a conseqüente conversão da alteridade da natureza à dimensão do Sujeito, vale dizer, à identidade:

A natureza se revela indefinidamente maleável para a Razão que tem por dogma a afirmação da identidade. A partir do momento em que o indivíduo se afirma, que se mostra capaz de utilizar o mundo circundante para seus próprios intentos, torna-se escravo da natureza […]. Por obra [de Descartes e] das Luzes, o pensamento instrumental se esforçou por superar ficticiamente a separação do Sujeito e do Objeto, concebendo o homem e a natureza como adaptáveis um ao outro, a fim de justificar qualquer tipo de manipulação que o sujeito entendesse efetivar sobre o próprio mundo. O resultado é que o homem e a natureza foram reduzidos a simples objetos e igualados a máquinas.[41]

Já que o filósofo do século XVII acredita ter recebido de Deus a missão de utilizar o esplendor da natureza, o homem se comportará como engenheiro que não deve mais respeitar nela valor algum. Assim, astros harmônicos, perfeitos e incorruptíveis se apresentam num último vestígio da divindade perdida. Dessa passagem, Benjamin escreveu:

Se, como fez uma vez Hillel com a doutrina judaica, se tivesse de enunciar a doutrina dos antigos em toda concisão […], a sentença teria de dizer: “A Terra pertencerá unicamente àqueles que vivem das forças do Cosmos”. Nada distingue tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega a uma experiência cósmica que este último mal conhece. O naufrágio dela anuncia-se já no florescimento da astronomia, no começo da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe certamente não eram movidos unicamente aos impulsos científicos. No entanto, há no acentuar exclusivo de uma vinculação ótica com o universo, ao qual a astronomia muito em breve conduziu, um signo precursor daquilo que tinha de vir.[42]

A Astronomia Nova guardava, ainda, algo da correspondência entre macrocosmo e microcosmo — cuja analogia influenciava os comportamentos da alma. Kepler fala, por exemplo, numa anima motrix que emana do Sol:

Kepler era um matemático neoplatônico ou neopitagórico convencido de que a tarefa do cientista era encontrar as regularidades matemáticas simples que se escondem em todas e cada uma das partes da natureza […], esforçando-se em descobrir as harmonias matemáticas ocultas com as quais o espírito divino impregnou a natureza […]. O Sol é “o único corpo que, em virtude de sua dignidade e poder, parece a propósito mover os planetas em suas órbitas, e digno de converter-se em morada do próprio Deus, para não dizer em primeiro motor”.[43]

Uma vez desdivinizados, o céu estrelado não mais “enche a alma de admiração e respeito”.[44] Trata-se, agora, de desenvolver nas ciências da natureza um mecanismo coerente, estrito e lúcido, evitando deixar-se fascinar, cativar pelo objeto, quer seja ele maravilhoso — como o arco-íris — ou monstruoso — como o cadáver. Kepler, com respeito à ciência mecanista, ainda não é moderno. Para ele, o fenômeno luminoso era a mais evidente manifestação da transcendência, o índice mais seguro do concurso de Deus ,na criação: “Kepler ainda faz da luz, sem nenhuma conotação metafórica, a própria alma do homem e do universo […]. Com a ciência mecanista, a luz perde essa pertinência ontológica e essa excelência teológica. Mecanizada, converte-se em objeto de ciência como outros”.[45] Mecânica e geometria se unem para explicar o fenômeno dos falsos-sóis, vários sóis que vemos no lugar de um só: “Esses sóis parecem incrustrados no círculo branco como diamantes num anel”, diz Descartes nos Meteoros. E uma nuvem congelada pode ser capaz de produzir tais milagres: “Note-se que isso pode fazer aparecer o sol mesmo depois de ele ter se posto, e que ela também pode atrasar ou adiantar a sombra dos relógios e fazê-los marcar uma hora inteiramente diferente da correta”.[46] A nuvem, como os espelhos do óptico taumaturgo e mágico, altera o curso normal das aparências: “É nessas ocasiões, quando a natureza age à maneira do ilusionista, que não se vê em seus lances nada mais de maravilhoso, sobretudo para aquele que conhece seu ‘segredo’, isto é, a técnica da execução”.[47] Os falsos-sóis são apenas jogos de luz nas nuvens, e sua explicação requer a da luz. E esta não é senão a ação da matéria sutil contra o 
olho, o que seria suficiente para fazer ver o Sol mesmo se ausente. O final dos Meteoros se consagra à desilusão do sábio mecanista diante das maravilhas da natureza; a Dióptrica termina celebrando as maravilhas da técnica como tantos outros efeitos da ciência. A geometria é essencial na compreensão da natureza. Descartes a denomina, nos Princípios de filosofia, “geometria natural”, para designar aquela “ação do pensamento que não deixa de envolver em si um raciocínio semelhante ao que fazem aqueles que medem os campos [arpenteurs]”.[48] Como “ação do pensamento”, a geometria é uma representação espontânea, projeção e cálculo de naturezas simples. Eis por que distância, grandeza e figuras dos objetos não são “vistas”, mas “imaginadas” por uma intelecção geométrica. Assim, quando um cego “toca algum corpo com seu bastão”, ele apreende todas as qualidades pelos movimentos diversos que estes corpos transmitem ao bastão e aos “nervos de sua mão” até o cérebro. Os movimentos fazem-no sentir as qualidades dos corpos tocados. O cego vê, por assim dizer, com as mãos. No Mundo, o cego é tomado como o paradigma da avaliação das distâncias pela geometria natural: dois bastões que tocam um objeto terão o mesmo efeito que os olhos, pois não é a vista que apreende a distância, mas o espírito que geometriza os ângulos formados pelos eixos ópticos ou pelos bastões. O movimento cartesiano, diz Koyré, é, paradoxalmente, “parado” e “extenso”, abstraído de qualquer temporalidade: movimento sem velocidade, considerado no instante, movimento geometrizado, reconduzido e reduzido à figura. É, pois, mecânico. Pois a máquina ou o autômato — em cujo aspecto o corpo e a natureza são compreendidos — é, em sua simplicidade, figura em movimento. Também a doutrina dos animais — máquinas — funda-se numa teoria mecanicista da vida. Os animais não são o que sentem: “Poder-se-ia dizer que não agem mas se agitam, e os objetos fazem tal impressão em seus sentidos que são obrigados a segui-la como os ponteiros de um relógio seguem os pesos e a mola que os fazem girar”.[49] Máquina, autômato, número e geometria fazem o homo faber moderno, numa racionalidade abstrata e despersonalizadora, de modo que o advento do conceito de homem coincide com o primado do homem como conceito — aquele que “não tem dor a mitigar, nem esperanças a realizar”. Esse percurso é a realização plena do “processo de desenvolvimento do cogito ergo sum, enquanto autogarantia do homem subtraído do vínculo religioso”.[50] O sujeito da experiência torna-se ratio enquanto lugar de produção de abstração e artefatos. A redução do homem a subjectum, a ponto arquimediano abstrato, transfere definitivamente a experiência para fora do indivíduo encarnado: “Surgiu um mundo de qualidades sem homens, de vivências sem quem as vive […], o ser humano já não vive mais nada pessoalmente […] e se dilui num sistema de fórmulas de significados possíveis”, escreve Musil, em O homem sem qualidades.

A parábola do mundo cartesiano culmina, hoje, na crise do sujeito-centro. Este é alguém que se torna ninguém, num mundo sem centro nem periferia. Se Descartes considerava essa experiência a de um eu abstrato, Hegel, ao contrário, reconhece nisso alucinação ou delírio: “Apenas ao louco é dado pensar-se em estado de absoluta abstração do eu”.[51] Esse eu é indeterminado — o que permite representar quaisquer conteúdos, constituindo a experiência não do contingente mas do arbitrário e do absurdo.

Aqui, consequências intelectuais do desencantamento do espaço e do tempo. Não só laicização, mas também secularização. Para Benjamin, por exemplo, o novo Dasein é marcado pela expropriação da experiência no par Experiência-pobreza. O sujeito como suporte abstrato de representações espaço-temporais mensuráveis estabelece a correlação entre ação e Progresso — divisas do Iluminismo. Seu espaço é absoluto e sua simbolização é idola em sentido baconiano, isto é, fantasma. Que se considere o sentido do empreendimento baconiano — como o duplo do projeto cartesiano. Descartes, na 6a parte do Discurso do método, escreveu que, “ao se conhecer a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam […] poderíamos empregá-los em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornarmos como que senhores e possuidores da natureza”.[52] E o Novum organum, de Bacon, é um empreendimento que não permite discriminar poder científico, econômico e político. Em sentido estrito, o Novum organum pretendia, como o Discurso do método, fundar um novo instrumento do conhecimento em contraposição ao antigo organon aristotélico. Em sentido amplo, porém, esse objetivo continha uma mudança de rumo quanto aos fins últimos da cultura ocidental moderna. A nova concepção da ciência abrangerá todos os domínios da existência dos homens.

Nesse sentido é significativo interpretar o frontispício do Novum organum de 1629.[53] Na gravura da capa encontra-se o nexo entre as viagens européias de conquista e a empresa do conhecimento científico. Trata-se de uma cena transoceânica. Em primeiro plano erguem-se as colunas de Hércules. Símbolo de um limite sagrado ultrapassado, a obra se distancia da concepção clássica do universo. Mas também símbolo de virtudes e potências heróicas, ligadas aos antigos trabalhos fundacionais da civilização clássica. Duas caravelas navegam num oceano sem margens com suas velas infladas. Cena que rememora a volúpia da aventura e da riqueza, uma das provas rompe as águas que separam o limite simbólico entre o Velho Mundo e o oceano. Na gravura, uma inscrição: “Muitos passarão, a Ciência avançará”. O “mais além”, o plus ultra, não é mais o divino ou o céu inteligível, pois o “mais além” está agora liberado desses preconceitos e identificado com o conhecimento crítico. A viagem associa-se com o progresso, identificado com o conhecimento em seu sentido de valor industrial. Nova teoria do conhecimento, novo ideal de civilização. O novo mundo não é pensado em termos de messianismo ou transcendência, como na cristianização. Na Antiguidade, escrevia Bacon, quando a filosofia era somente capaz de conhecimento dedutivo, pouco se conhecia do globo terrestre. As navegações só alcançavam os limites de um mundo doméstico e cotidiano. Não havia possibilidade real de um conhecimento baseado na experiência, isto é, que se confrontasse com o novo e desconhecido. A nova indução tem “alcance universal”. A cientificização do espaço dá-se na conversão do método científico em princípio da nova universalidade dos empreendimentos de conquista tecnocientíficos. Se o nativo é considerado como inferior é em conseqüência de seu desconhecimento do método indutivo como princípio pragmático de dominação da natureza: “A formação de conceitos e princípios mediante uma correta indução é a mais apropriada para a destruição dos ídolos”, lê-se no Novum organum.[54] A racionalidade indutiva e dedutiva opera como um sistema de valoração universal dos ídolos, fantasmas, simulacros do mundo. Eduardo Subirats reconheceu nisso “uma solução de continuidade entre a violência da conquista definida pelo espírito medieval das Cruzadas e a destruição violenta de formas de vida que as acompanham, e a violência epistemológica, crítica e racional, derivada de um conceito de dominação técnica da natureza”. Dominado e comandado como simulacro mecânico, verdadeiro sem o ser, racional mas fictício, o Mundo cartesiano é, também, uma fábula. Mundus est fabula: no retrato de Descartes feito por Jan Baptista Weenix em 1647, o filósofo segura um livro aberto onde se lê essa divisa. Se esse mundo — nosso mundo — é teatro e ficção, é porque, a um só tempo, o mundo é enganador — abusa dos nossos sentidos — mas a técnica permite sua manipulação eficaz. Dela nos fala também Benjamin, quando, ao discorrer sobre a técnica, coloca no centro da luz do projeto iluminista a finitude do cientificismo — que, no clímax da evidência técnica, desertifica o mundo, criando um universo “sem homens e sem deuses”, pois a ciência perde sua destinação humana. Para realizar as promessas iluministas, é preciso abandonar a physis: natureza morta. Não há progresso se este não resultar em aumento de felicidade e perfeição para aqueles a quem foi legado um lote imperfeito. Nas palavras de Benjamin: “Há em Tourgot um limite ao progresso, e nos últimos tempos […] foi preciso retornar [pelo aperfeiçoamento da ciência e da técnica] ao ponto a que os primeiros homens tinham sido conduzidos por instinto cego; não é este o supremo esforço da razão?”.[55] Pois, escreveu Benjamin, “a técnica traiu a humanidade” e transformou a relação do homem com a natureza “em novas, inauditas esponsais” com as potências cósmicas:

O trato antigo com o cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez […]. É o ameaçador descaminho dos modernos considerar essa experiência como irrelevante […] e deixá-la por conta do indivíduo como devaneio místico em belas noites estreladas […]. Nas noites de aniquilamento da última Guerra [Primeira Guerra Mundial], sacudiu a estrutura dos membros da humanidade em sentimento semelhante à felicidade do epilético.[56]

Diante disso, o filósofo retorna aos juízos críticos sobre o progresso técnico: os aviões bombardeiros nos fazem lembrar o que Leonardo da Vinci esperava do vôo do homem, que devia elevar-se “para procurar a neve no cume das montanhas e vir atapetar as ruas da cidade, brilhando tenuemente com o calor solar”. Relação sem nenhuma violência da qual os aviões bombardeiros são a antítese dialética. Comparadas à concepção de natureza desenvolvida pela técnica — a de sua exploração produtiva, científica e genocida —, as fantásticas imaginações de Fourier revelam um surpreendente caminho: “Para ele”, escreveu Benjamin,

o efeito do trabalho social bem organizado deveria ser que as quatro luas iluminem a noite da Terra, que o gelo se retire dos pólos, que a água do mar deixe de ser salgada e que os animais selvagens se coloquem a serviço do homem. Tudo isso ilustra uma noção de trabalho que, longe de explorar a natureza, está apta a despertar as criações virtuais adormecidas no seu seio.[57]

O projeto cartesiano resolveu-se na ciência para a qual homem e natureza são objetos disponíveis e manipuláveis, na qual ambos são substituídos pelo número e pela regra. Mas o próprio Descartes encontrava-se diante de um impasse hoje desfeito. O “conhece-te a ti mesmo” mantinha seu duplo sentido: reenviava à ciência e significava: “Aprende a conhecer como é feita a máquina de teu corpo; estuda anatomia”. E também o que o filósofo anotou no “Album amicorum” de Corneille de Montigny da Biblioteca Real de Haia: “A morte só destrói aqueles que, conhecidos demais por todos, morrem desconhecidos de si mesmos”.[58]

Notas

[1] Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas, III, A filosofia do Espírito, São Paulo, Loyola, 1995, p. 7.

[2] Idem, ibidem, p. 8.

[3] Antônio Medina, “Nota de apresentação”, in D. Paulo Evaristo, A técnica do livro em são Jerônimo, Imago, 1993.

[4] Contra vigilantium, apud D. Paulo Evaristo, op. cit.

[5] Descartes, “Segunda meditação”, in Oeuvres de Descartes; org. Charles Adam & Paul Tannery, 11 vols., Paris, Vrin-cnrs, 1964-74, IX, 19. Tradução brasileira de Bento Prado Jr. (São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 100). (A edição de Adam e Tannery é adotada como referência para a obra de Descartes e é conhecida como at.)

[6] “Recherche de la vérité”, at, X, 524.

[7] Antonio Fogazzaro, Malombra, Verona, Arnaldo Mondadori, 1917, p. 44.

[8] at, VI, 3.

[9] Regulae ad directionem ingenii, regra XI.

[10] Regras VII e XVI.

[11] Regra XII.

[12] Regras III e XII.

[13] Regra III, 43.

[14] “Primeira meditação”, at, IX, 18.

[15] Samuel de Sacy, Descartes, Paris, Seuil, 1985, p. 94.

[16] Discurso do método, 1a parte, Paris, Pléiade, 1953, p. 127.

[17] Discurso do método, 1a parte, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 40.

[18] Discurso do método, 1a parte.

[19] Carta ao marquês de Newcastle, 23/11/1646.

[20] Monde, I, 6, Paris, Pléiade.

[21] Idem, ibidem.

[22] Marilena Chauí, “Janela da alma, espelho do mundo”, in Adauto Novaes (org.), O 
olhar, São Paulo, Companhia das Letras, p. 152.

[23] Cf. regra XIV.

[24] Sylvie Romanowski, L’illusion chez Descartes; la structure du discours cartésien, Paris, Klincksieck, 1974, p. 49.

[25] Regra XI, 7.

[26] Ibidem.

[27] Regra I, 69-71.

[28] Walter Benjamin, “As afinidades eletivas de Goethe”, in Illuminationen, Frankfurt, Suhrkamp, 1980, p. 64.

[29] R. Lenoble, Storia dell’idea di natura, Nápoles, Guida, 1974, p. 304.

[30] Discurso do método, 6a parte.

[31] Se a transcendência foi perdida, o mundo secularizado e o homem dessacralizado, este não foi “devolvido” à natureza, mas abandonado a si mesmo, sem ponto fixo, seja na dimensão mítica ou na teológica. À desdivinização da natureza seguiu-se uma atividade estritamente mundana que não mais coincide com a satisfação do homem com seu mundo. Ao contrário, ocorre a alienação com respeito ao cosmos e um conseqüente enfrentamento do próprio eu que não sabe o que ele é. Quanto à natureza, esta passa a ser vista como “rigidez petrificada” — é a natureza inerte, physis, como também o será a história naturalizada. Cf. W. Benjamin, O drama barroco alemão, São Paulo, Brasiliense, 1984.

[32] Idem, ibidem, p. 188.

[33] As paixões da alma, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 228.

[34] Monde,  at, V,  24.

[35] Cf. J. A. Hansen, “Práticas letradas seiscentistas”, Discurso, no  25, Departamento de Filosofia da usp, 1995.

[36] Citado por M. Critchley, Harveian Oration; the divine meaning of the brain, Nova York, Raven Press, 1979.

[37] Carta a Mersenne, novembro de 1633.

[38] Tratado do homem. Sobre a freqüentação ao curso de anatomia por Descartes em Leide, cf. G. Cohen, Écrivains français en Hollande au XVIIème siècle, Paris/La Haye, 1921; 
W. S. Heckscher, Rembrandt’s anatomy of  dr. Nicolaas Tulp, Nova York, 1958; P. A. Cahné, Un autre Descartes, Paris, Vrin, 1980.

[39] Na 2ª parte do Discurso do método, Descartes rompe com o período de sua juventude, época em que ainda está ligado à “nouvelle vague” filosófica, ao universo rosa-cruz e seu ideário de tolerância e liberdade de pensamento que o haviam atraído. Recusa também as ciências esotéricas, “curiosas e vãs”, às quais se dedicara: astrologia, alquimia — as ciências ocultas. Que se recorde: na tradição neoplatônica da Renascença, o horóscopo é auxiliar da medicina dos temperamentos, de tal forma que céu e terra se assemelham por correspondências. O tempo, começando a secularizar-se, desmagiciza a natureza. Em sentido ético-político, a secularização significou o abandono ou a perda de modelos tradicionais de valores e da autoridade do passado. Trata-se de um fenômeno sociocultural amplo que, a partir da Reforma protestante, consiste na ruptura do monopólio da interpretação religiosa. No plano filosófico, secularização é sinônimo da progressiva dissolução dos fundamentos teológico-metafísicos e de abertura ao contingente, com o conseqüente advento da dimensão da escolha, da responsabilidade e da intervenção humana no mundo.

[40] J. P. Cavaillé, Descartes: la fable du monde, Paris, Vrin, 1991, p. 274.

[41] M. Horkheimer, Eclipse da razão, Rio de Janeiro, Labor, 1976.

[42] W. Benjamin, “A caminho do planetário”, in Obras escolhidas, II, Rua de mão única, São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 68.

[43] T. Kuhn, La Revolución Copernicana, Barcelona, Ariel, 1985, pp. 282-5, 279.

[44] Para Kant, respeito significa “o reconhecimento de um valor que não tem preço, enquanto o desrespeito significa o ajuizamento do não-valor de uma coisa, ou seja, o tratamento do outro como simples coisa” (“Sociabilidade legal: uma ligação entre direito e humanidade na 3a Crítica de Kant”, Revista Analytica, vol. 1, no 2, 1994, p. 97). Cf. ainda Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, Abril Cultural, 1973.

[45] J. P. Cavaillé, op. cit., p. 46.

[46] Meteoros, at, VI.

[47] J. P. Cavaillé, op. cit., p. 51.

[48] Dioptrique, at, VI, 131.

[49] Mersenne, Harmonie universelle.

[50] Kosellec, Le règne de la critique, Minuit.

[51] Hegel, Fenomenologia do Espírito.

[52] Discurso do método, 6a parte, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 71.

[53] Cf. Eduardo Subirats, América o la memoria histórica, Caracas, Monte Avila, 1994.

[54] Os ídolos eram quatro: os da tribo compreendiam a natureza humana; os da caverna reuniam as formas de vida individualmente consideradas. Os ídolos do comércio definiam a linguagem como feito comunitário, não como instrumento de conhecimento e dominação. Os do teatro resumiam as formas do conhecimento historicamente transmitidas.

[55] W. Benjamin, “Reflexões sobre o conhecimento — Teoria do progresso”, in Passagen Werk, vol. I, Frankfurt, Suhrkamp, 1983, p. 597.

[56] W. Benjamin, “A caminho do planetário”, p. 69.

[57] W. Benjamin, “Sobre o conceito de História”, tese XI, in Obras escolhidas, I, Mito e magia, arte e técnica, São Paulo, Brasiliense.

[58] at, 10/10/1644.

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