1990

Desejo de evidência, desejo de vidência: Walter Benjamin

por Olgária Chain Féres Matos

Resumo

O projeto iluminista de conhecimento do mundo deriva da razão cartesiana, pautada por rigor na ciência e controle da natureza. Para Descartes, trata-se de reduzir o campo do maravilhoso, de despojar o eu de seus conteúdos empíricos (sensibilidade, imaginação) e de construir um sujeito da identidade abstrato e vazio – o Cogito. Mas esse desejo de evidência, que reduz o real a alguns esquemas simples, não é obtido de uma vez por todas. Há metamorfoses e enganos. E o corpo recusado, encapsulado, permanecerá no pensamento moderno como a enigmática confusão do passado (e como a confusão da cidade mal construída). Segundo Walter Benjamin, a modernidade vai se caracterizar como melancolia do sujeito e “doença do olhar”. A estabilidade do mundo refletida nos espelhos se volatiliza nas cidades surrealistas modernas, nas quais imagens inacabadas não cessam de escapar para outras imagens (como mostrará a pintura expressionista de Francis Bacon). Benjamin relaciona a infância a esse mundo sem ponto fixo, infância que é um estado de “desordem produtiva” e o centro da memória histórica. Perceber o que acontece no instante é mais importante que saber antecipar o futuro. Assim ele contrapõe à evidência cartesiana a vidência do Jetztzeit (fulgurância do agora). É preciso despertar para o sonho, para depois despertar do sonho. Só isso permite perscrutar “verdades antigas”, reconciliar a razão com a natureza numa relação que não seja nem linha reta nem descaminho, e que saiba enfrentar o enigma da história.

 


Para Jorge Coli

Na Dialética do Iluminismo (Dialektik der Aufklärung) Adorno e Horkheimer desenvolvem reflexões acerca da Aufklärung, o assim chamado “século das Luzes”. O século XVIII, com sua “Filosofia da Ilustração”, reúne pensadores como John Locke na Inglaterra, Kant na Alemanha, e na França os enciclopedistas Diderot, Voltaire, D’Alembert, Montesquieu, Rousseau e outros — autores envolvidos no empreendimento de uma “Suma Filosófica” que abrangesse com seus verbetes todos os segmentos do saber na filosofia, na ciência, na política e nas artes. O pensamento iluminista traça o projeto de um conhecimento universal, de uma racionalidade capaz de “esclarecer”, “clarificar”, “clarear”, “ilustrar”, “iluminar”:

[…] com a metáfora da claridade (Lumières, Iluminismo, Enlightenment, Ilustracion, Aufkldrung), o pensamento europeu do século XVIII formou sua auto-imagem, caracterizada pela confiança no poder da luz natural, da razão, contra todas as formas de obscurantismo.[1]

Se a força é o principal aliado dos obscurantistas, os iluministas sabem que a luz nasce da discussão. A fé nas forças da razão tem por corolário a liberdade de pensamento:

Ilustração é a saída do homem de sua minoridade, pela qual ele mesmo é culpado. Minoridade é a incapacidade de servir-se de seu entendimento sem a condução de outrem. Auto-inculpável é essa minoridade quando a causa dela não está na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem de servir-se de seu próprio entendimento.[2]

Sapere aude — tenha coragem de servir-se de seu próprio entendimento — é, segundo Kant, o lema da Ilustração. A razão emancipada é emancipadora por romper com a tutela, seja intelectual, política ou religiosa.

Na obra de Adorno e Horkheimer, não se trata somente do Iluminismo, mas de sua Dialética — razão pela qual a Aufklärung não se prende apenas ao século XVIII, mas interroga a própria natureza da Razão. Esta foi prometedora de progresso intelectual, aperfeiçoamento moral e emancipação política. Bacon, em seu Novum Organum, escreve que através do desenvolvimento da Ciência o homem poderá “prever para prover” os fenômenos da natureza. Segundo ele, porém, “só podemos conhecer a natureza, submetendo-nos a ela”. Desse ponto de vista, moderno no sentido forte será Descartes que, no Discurso do método, afirma que graças e através da técnica o homem será “mestre e senhor da natureza”. Não há mais aqui submissão à natureza, mas a intenção de dominá-la fora e dentro de nós.

A cisão corpo e alma funda a modernidade e é dela que somos tributários: para dominar o mundo é preciso transformá-lo em objeto interno ao pensamento, na forma de sua abstração — as ideias claras e distintas. Da experiência do mundo Descartes passa a sua “representação”. Assim a ciência cartesiana poderá dominar intelectualmente, conceitualmente o mundo. Seu desejo é o da evidência; sua utopia, a de uma racionalidade que desvende o mistério do mundo.

Porque as esperanças iluministas foram decepcionadas, cumpre reexaminar as aporias do cartesianismo, o que subjaz ao desejo de evidência e ao modo de produção do Sujeito do conhecimento. O desejo de controle da natureza, de ascender a uma verdade irresistível e inabalável termina por inviabilizar a meta iluminista. A construção da racionalidade iluminista de estilo cartesiano coloca a sensualidade, a sensibilidade, o desejo e a paixão como inimigos do pensamento. Em O drama barroco alemão, de Walter Benjamin, o dualismo corpo e alma impede que a paixão seja a base empírica do desenvolvimento da racionalidade, incompatibilizando a relação entre o homem e seu desejo, entre a razão e o corpo, sua história, sua memória. A “filosofia como ciência do rigor” requer uma racionalidade de cálculo e de exatidão que milimetre o mundo.

DO RIGOR NA CIÊNCIA

Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal Perfeição que o mapa de uma só Província ocupava toda uma Cidade e o mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos apegados ao estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste subsistem despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos. Em todo o País não resta outra relíquia das Disciplinas Geográficas. (Suares Miranda, Viagens de Varões Prudentes, livro IV, cap. XIV, 1658.)[3]

Em As origens da civilização técnica,[4] Maurice Dumas descreve uma história dos mapas, história que se vincula à arte da navegação. A navegação “científica” — aquela que abandona o cálculo aproximativo de uma rota pela precisão —, comportaria dois elementos essenciais: o ponto, retirado da latitude e da longitude, e sua projeção em um mapa no qual se encontra traçado o rumo a ser seguido por um navio. Desde o século XIV se faziam mapas planos em que eram anotados os acidentes da costa, os pontos de referência, as distâncias e outros elementos que permitiam traçar uma rota. Mas foi preciso esperar até o século XVI — Stevin inventar a aritmética decimal, Napier introduzir os logaritmos e Oughtred a régua de cálculo — para que a arte da navegação desse um salto de qualidade. A mensuração da longitude tornou-se possível quando a posição da Lua entre as estrelas pôde ser prevista pela teoria lunar de Newton e, assim, obteve-se o tempo aparente do mesmo fenômeno celeste, medido em dois lugares. A partir daí, os vastos espaços marítimos puderam ser controlados, as projeções nos mapas puderam ser feitas com precisão cada vez maior.

Esse desejo de conhecimento e de controle do espaço exigiu o despojamento da natureza de seus aspectos heterogêneos qualitativos, plurais, a fim de reduzi-la a algo passível de ser medido e apreendido por números:

[…] desde sempre o Iluminismo, no sentido mais amplo de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores […]: o entendimento, que venceu a superstição, deve ter voz de comando sobre a natureza desenfeitiçada […]. Portanto nenhum mistério há de restar e, tampouco, qualquer desejo de revelação.[5]

Foi assim que o pensamento cartesiano se propôs a ser “deciframento de enigmas”. Nos Météores, Descartes se vangloria de ter “a tal ponto desvendado os mecanismos dos céus que seu leitor não encontrará mais matéria para admiração”. Reduzir o campo do espanto, conquistar uma terra firme, tal é a Utopia cartesiana:

[…] minha segunda máxima [a da moral provisória] era a de ser o mais firme e resoluto em minhas ações e de não seguir menos constantemente as opiniões mais duvidosas, quando eu uma vez me tivesse engajado a isso, como se fossem muito seguras. Imitando nisso os viajantes que, vendo-se extraviados nalguma floresta, não devem errar, volteando ora para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se num sítio, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por fracas razões, ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado sua escolha; pois por este meio, se não vão exatamente onde desejam, pelo menos chegarão no fim a alguma parte onde verossimilmente estarão melhor que no meio de alguma floresta.[6]

Nascemos no coração da floresta, em meio a um labirinto. A metafísica cartesiana será o itinerário da consciência que da incerteza e da angústia poderá chegar a um ponto estável e permanente. Para tanto, o seu caminho não está determinado na direção de uma verdade existente fora da floresta. Para encontrar o ponto fixo, estável e seguro, Descartes espelha-se em Arquimedes: “Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia nada mais, exceto um ponto fixo e seguro”.[7] Descartes procura um fundamento, um alicerce que seja absolutamente sólido para construir a ciência moderna, aquela que romperá com a tradição. A mathesis universalis — essa ciência universal da ordem e da medida —, é também um método, um exercício de controle sobre cada passo do conhecimento.

A ordenação cartesiana do espaço — a ideia de plano e de alicerce — conduz, por sua vez, à geometrização das cidades:

(…) vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins. Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no começo pequenos burgos, tornaram-se no correr do tempo grandes centros, são ordinariamente tão mal compassadas, em comparação com essas praças regulares traçadas por um engenheiro à sua fantasia numa planície, que, embora considerando os seus edifícios cada qual à parte se encontra neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos das outras, todavia, a ver como se acham arranjados, aqui um grande, lá um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais, dir-se-ia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando da razão que assim os dispôs.[8]

A racionalidade cartesiana — para além de afirmar que “Ciência é tarefa inaugural” — “tarefa de um só” —, tem por determinação construir uma razão controladora e autocontroladora. Com isso, Descartes procura menos abolir a mudança, e mais o acaso, o imprevisto. Mas também a mudança que não passa de extravio e erro. Na “2ª Meditação”, Descartes revela o sentimento de perplexidade diante das metamorfoses do sensível:

[…] tomemos por exemplo este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, sua grandeza são patentes, é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo encontram-se neste.

Mas eis que enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele restara de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura se altera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o podemos tocar e, embora nele batamos, nenhum som produzirá. A mesma cera permanece após essa modificação? Cumpre confessar que permanece: e ninguém o pode negar. O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que nela notei por intermédio dos sentidos […]. Talvez fosse como penso atualmente, a saber, que a cera não era nem essa doçura do mel, nem esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me aparecia sob certas formas e que agora se faz notar sob outras.[9]

Descartes relata aqui a experiência de um labirinto sem fim para o qual a dúvida o conduziu, é tomado por uma cilada, pelo infinito jogo de espelhos dos possíveis sem certeza. Evoca o argumento do “pedaço de cera”, com o sentimento de ter perdido para sempre o bom caminho.

A metamorfose do sensível é perigosa, mas ainda pior é a da temporalidade histórica. Que se recorde que a dúvida cartesiana se inicia separando a consciência individual de seus conteúdos culturais históricos, isto é, rompendo com a tradição. Na “1ª Meditação” Descartes escreve:

[…] há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto.[10]

Aqui Descartes reitera o que diz no Discurso do método a respeito da infância e da tradição:

[…] fui nutrido nas letras desde a infância, e por me haver persuadido de que, por meio delas, se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de apreendê-las. Mas logo que terminei todo esse curso de estudos, ao cabo do qual se costuma ser recebido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opinião. Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros […]. Não deixava todavia de estimar os exercícios com os quais se ocupam nas escolas […]; e é bom [ter examinado] todas [as ciências], mesmo as mais supersticiosas e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o justo valor e evitar ser por elas enganado.[11]

A infância bem como a memória histórica são fontes de erros, enganos e ilusão. A filosofia cartesiana é uma luta entre a razão e a memória; a razão, através da qual o homem se torna homem, e a memória, pela qual o homem permanece criança. É preciso despojar o eu de seus conteúdos empíricos — dos ensinamentos dos mestres — como também sensíveis, anulando a sensibilidade e a imaginação como esferas da experiência ligadas ao estado patológico da confusão e do erro:

[…] tudo o que recebi até presentemente como o mais verdadeiro e o mais seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.[12]

Quanto à imaginação — matéria-prima do sonho — é descaminho e confusão:

[…] quantas vezes ocorreu-me sonhar durante a noite, que estava neste lugar, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro do meu leito? […] Lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas por onde possa distinguir nitidamente a vigília do sono que me sinto inteiramente pasmo: e meu pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.[13]

Para distinguir a imaginação vigilante da imaginação sonhadora, a utopia cartesiana irá construir um sujeito da identidade, isto é, um sujeito destituído de todos os resíduos do material, formalizado no sujeito do conhecimento:

[…] pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que (o gênio maligno) se serve para surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos.[14]

Descartes empreenderá reconduzir todo o sensível a alguns esquemas simples, a fim de desembaraçar a consciência do “sentimento do maravilhoso”. Este iluminismo da Razão acredita liberar o homem do medo quando não houver mais nada de desconhecido, quando nada permanecer além da redutibilidade a seu poder. O medo do engano — o medo do desconhecido — é medo da ilusão e do erro; é ele a fonte do aniquilamento ontológico do mundo, da negação da natureza exterior e interior, bem como da substância mesma da vida intelectual. São essas as condições cartesianas para o nascimento do logos, da ordem do discurso e da filosofia. O si — uma vez sublimado no sujeito lógico ou transcendental — constitui-se como ponto de referência da razão. O dessemelhante deve ser convertido em algo possível de ser comparado, uma vez reduzido a quantidades abstratas. A unidade do sujeito racional confronta a unidade da natureza inanimada. Ao mundo desencantado, desenfeitiçado, corresponde o eu abstrato, descarnado. Ao sujeito abstrato corresponde “um mundo sem qualidades”. Opondo a própria consciência ao contexto natural, o sujeito se tolhe da possibilidade de dialogar com a história e desenvolver suas possibilidades latentes. Ele se encerra nos confins do próprio eu e regride a uma consciência vazia. O confronto entre o sujeito intelectual e o sujeito empírico é drástico. A atividade que a consciência solipsisticamente isolada em si mesma promove não conhece nada de exterior ao sujeito, e o interesse do eu vem se colocar como único imperativo moral e autoriza o sujeito a exercitar toda espécie de violência nos confrontos com a natureza e os outros indivíduos. O dualismo corpo e alma — o primado concedido à consciência no processo do conhecimento — legitima a neutralização do real. Objetivação, abstração, categorização constituem a trama jogada sobre o múltiplo para capturá-lo. O de fora é reconduzido à razão e a exterioridade é ilusória. A prepotência torna-se para o sujeito o princípio de tudo aquilo que passa a ser regulado “segundo a lei do mais forte”. A partir do momento em que o sujeito se afirma, que se mostra capaz de utilizar o mundo circundante para seus próprios intentos, torna-se escravo dessa “segunda natureza”.

A dialética do Iluminismo, ou melhor, a dialética da razão é a reviravolta segundo a qual mais a razão ganha em precisão, exatidão e domínio sobre o objeto, mais ela se curva sobre si mesma em um monismo sufocador. O resultado dessa razão controladora e autocontroladora, que procura um ponto fixo, estável e seguro, não é o triunfo sobre a natureza exterior e interior — mas o Cogito — isto é, o vazio. O sujeito racional é uma entidade lógica: “(…) não tem carne, nem sangue, nem desejos, nem sentidos, não tem dor a mitigar, nem esperanças a realizar”.[15] A dessensibilização da consciência através da dúvida permitirá a separação radical entre a consciência intelectual e os conteúdos sensíveis da experiência, dada a angústia do contato vital com a realidade sensorial e sensível, fonte de incerteza. Essa dessensibilização e dessensualização irão criar as condições para uma nova estrutura da experiência na qual os dados da sensibilidade serão restituídos sob a categoria intelectual da extensão, a materialidade sob a de matéria. Escreve Descartes:

[…] a natureza da matéria ou do corpo tomado em geral não consiste em ser uma coisa dura, ou dotada de peso, ou colorida, ou que toca nossos sentidos de alguma maneira, mas apenas em que é uma substância extensa em comprimento, largura e profundidade.[16]

Tal é o corpo — substância das coisas materiais. A extensão é algo “infinitamente divisível” (§ 20), não é constituída de elementos simples (átomos), não contém nenhum vazio (§§ 16-8), é homogênea, é contínua. A matéria cartesiana — como o próprio corpo — é um conceito, é a extensão perfeitamente transparente ao pensamento geométrico-algébrico, para o qual não há incógnita nem mistério, porque o desconhecido se resolve na dimensão do já conhecido. Diante disso, o corpo é um locutor confuso: “mole”, ”tépido”, “azul”, “pesado”, em vez de falar por retas, curvas, choques e relações.

É o corpo cartesianamente concebido, isto é, recusado, encapsulado, que permanece presente no pensamento moderno: ele é a enigmática confusão do passado, a confusão da cidade mal construída, da infância ignorante e cega, de tudo o que nos vem “por trás”, de “antes”. A confusão, o preconceito é o outro nome para se dizer a matéria dentro do pensamento. Quanto a ele, sua primordial expressão é o Cogito. É ele o modelo de todo pensamento claro e distinto, verdade primeira e fundamento de si mesma, pois é atual, isto é, sua verdade não depende do tempo. Penso, logo existo é uma proposição verdadeira “todas as vezes que a concebo em meu espírito”, no tempo em que a percebo, quer dizer, o Cogito se caracteriza por sua atualidade. A precipitação e a prevenção diante do conhecimento são a desordem do passado que se instala antes de ser desejado ou concebido, que não sabe o que diz, que é preciso traduzir incessantemente, atualmente e ativamente em intuições claras e distintas, como quando Descartes escreve:

Denomino claro o que é presente e manifesto a um espírito atento (…) e distinto o que é de tal modo preciso e diferente de todos os outros, que compreende em si apenas o que parece manifestamente a quem o considera como se deve.[17]

Desse ponto de vista, o tempo, a infância, o inconsciente, o antigo são a matéria para a razão que pretende resolver as dúvidas no ato e na atualidade da intuição instantânea. Toda a energia se encontra no pensamento abstrato, aquele que diz o que diz, quer o que quer. A matéria é o fracasso do pensamento, sua “massa inerte”, é o mesmo que permanecer na errância, na ambiguidade. Não por acaso as imagens do caminho e do labirinto[18] ocupam lugar preponderante tanto no Discurso do método quanto nas Meditações. No início das Meditações, o caminho aparece como progressão truncada, interrompida, entravada. Trata-se de um caminhar que tateia, tal como se lê na segunda parte do Discurso: “como alguém que caminha só e nas trevas” — trata-se de um caminhar indeciso, que não faz progredir o viajante. Há errância e ambiguidade, isto é, labirinto, este entrecruzamento de caminhos, em que nada é indício da boa direção. Aquele que procura uma saída está constantemente confrontando-se com as bifurcações e a angústia dos possíveis. A metáfora do caminho e do labirinto serve a Descartes para ilustrar o tema da pesquisa científica e moral, bem como as questões de ordem que o método cartesiano coloca no primeiro plano:

[…] as maiores almas são capazes dos maiores vícios, como das maiores virtudes; aqueles que só caminham bem lentamente podem avançar muito mais se seguirem sempre um caminho certo, o que não fazem aqueles que correm e que dele se distanciam.[19]

A dificuldade é, justamente, definir uma direção. Essa ideia é retomada por Descartes em uma carta de 1647 ao abade Picot:

[…] eu sou constrangido a dizer, para o consolo daqueles que não estudaram, que mesmo viajando, enquanto se dá as costas ao lugar onde se quer ir, distanciamo-nos tanto mais quanto mais tempo se anda ou mais depressa, de tal forma que, embora nos ponhamos no caminho justo [droit] não podemos chegar nele se não tivéssemos andado antes; assim, quando se têm maus princípios, quanto mais se os cultiva e que se aplica com mais cuidado a tirar deles diversas consequências, pensando que seja isto o bom filosofar, tanto mais nos afastamos do conhecimento e da sabedoria.[20]

Ideia fixa cartesiana: sair da floresta para emergir à luz da certeza. Floresta: lugar sombrio, obstáculo à luz natural ou razão que se dissipa nas sombras da dúvida. Para sair dela, Descartes fez tabula rasa dos conteúdos da consciência, despojando o sujeito intelectual de quaisquer premissas concebidas anteriormente, obrigando o sujeito à a-historicidade. O eu assim conquistado é um eu desiludido: ao mesmo tempo arrancado das ilusões dos sentidos, da superstição, do passado, mas também desenganado, amargurado, desconsolado. Assim, Descartes não vence completamente e de uma vez por todas a relação entre ciência e sofrimento, entre teoria e empiria. Esforça-se em separar, de um lado o conhecimento, do outro a dor, o desespero, o desânimo:

[…] aconteceu-me quase a mesma coisa que aos astrônomos que, depois de serem convencidos por poderosas razões que o Sol é inúmeras vezes maior do que a Terra, não poderiam, no entanto, se impedir de julgar que ele é menor quando acontece de olharem para ele.[21]

E ainda: “as opiniões mais antigas e habituais voltam amiúde a meu pensamento”.[22] Tanto a recordatio (lembrança) quanto o vestigium (rastro), tanto as memórias intelectuais quanto as corporais, são inerentes à memória e vividas pelo sujeito como presentes: “[…] desde minha juventude [ab infantia] fizera diversos juízos [ judicia tulissem] no que toca às coisas naturais e (…) sempre guardara [retinuissem] as mesmas [eosdemque] opiniões que formara outrora destas coisas”.[23]

O desengano como superação do erro não a impede de estar associada à dor, à desesperança e ao desespero. Desenganos são experiências amargas que contaminam esperanças. Quando a memória recorda desenganos, tampouco esquece a dor que os acompanhou. Assim, o dualismo corpo e alma não pode prescindir das influências do corpo sobre a alma. Escreve Walter Benjamin:

[…] o dualismo não é o único elemento barroco em Descartes (corpo/alma, martírio do corpo, negação do corpo para a metamorfose emblemática); sua teoria das paixões é altamente significativa, como consequência da doutrina das influências entre corpo e alma. Como o espírito é razão pura e fiel a si mesmo, e somente as influências corporais podem pô-lo em contato com o mundo exterior, a dor física constitui uma base imediata para a emergência de afetos fortes mais que os chamados conflitos trágicos.[24]

A separação corpo e alma é o pré-requisito cartesiano para alcançar a evidência no conhecimento. Benjamin não hesita em nomear esse desejo de evidência em Descartes como sendo pura melancolia, na medida em que essa paixão é determinada por uma surpreendente tenacidade da intenção, que entre os sentimentos só se compara seriamente ao amor:

[…] enquanto na esfera da afetividade não raro a relação entre intenção e seu objeto experimenta uma alternância entre a atração e a repulsão, o luto é capaz de intensificar e aprofundar continuamente sua intenção. A meditação é própria do enlutado.[25]

O pensamento que parte de si mesmo, que transforma o exterior em um dado interno a si mesmo, exige o aniquilamento epistemológico dos afetos:

[…] o amortecimento dos afetos e a drenagem para o exterior do fluxo vital responsável pela presença no corpo dos afetos pode transformar a distância entre o sujeito e o mundo numa alienação com relação ao próprio corpo. Na medida em que esse sintoma de despersonalização é visto como um estado de luto extremo, o conceito dessa condição patológica (…) é colocado num contexto incomparavelmente fecundo.[26]

A fecundidade desse procedimento reside na possibilidade de se pensar as aporias da modernidade e o porquê de a razão iluminista ter frustrado suas próprias esperanças. O hiato corpo e alma e a consequente alienação do corpo como garantia contra o erro é luta contra a ameaça à identidade do sujeito. Encruzilhada do cartesianismo, a céntralização do eu é “vaporização do eu”, é descarnamento do sujeito. Esse sujeito sem corpo e sem sentidos tem, no entanto, um olhar: o da evidência. Há em Descartes um jogo entre o Saber e o Ver. Não por acaso, as ideias devem ser claras. E a dignidade eminente da vista se expressa exemplarmente na primeira frase da Dióptrica:

Toda a conduta de nossa vida depende de nossos sentidos, entre os quais o da visão, sendo o mais universal e o mais nobre, não há dúvida que as invenções que servem para aumentar sua potência sejam as mais úteis possíveis.[27]

 

“Evidência”, “ideias claras e distintas”, “luz natural” participam de um campo semântico que tem como antônimas as palavras obscuro, confuso. A confiança cartesiana no olhar, apesar de seus protestos teóricos acerca da incerteza dos sentidos, atesta-se a cada instante.

Ver a ideia, porém, possui, segundo Benjamin, algum parentesco com a melancolia entendida como “doença do olhar”. Na tradição da medicina grega e medieval, de Hipócrates a Galeno, a melancolia é uma doença dos olhos: “(…) quando o olho está esmagado e impede a saída do raio visual, nascem ilusões [phantasma] visuais”. Tal como o olhar melancólico, o olhar cartesiano é voyeur, onividente: para ver tudo, inclusive os fantasmas (como o gênio maligno), para atravessar todos os segredos, é preciso ser pura transparência vazia, sem interior, sem qualidade, despersonalizada. Neste sentido, Benjamin fala de uma “melancolia da ideia”, a do sujeito dessubjetivado. Em lugar do sujeito se perfila sua metáfora, em lugar de ruína e luto, um vazio. Melancolia da ideia é o mesmo que uma ideia fixa. E, ainda em O drama barroco alemão, Benjamin chama a atenção para o “poder narcótico” do pensamento, a fascinação pelo vazio, como uma espécie de “alucinação negativa” (Freud), de vazio alucinatório no qual se extravia a contemplação melancólica.

O Drama barroco do século XVIII vale também para o nosso mundo — mundo onde tudo é cenário e ruínas, “cenário petrificado do mundo”, mundo paralisado e sem história, mundo naturalizado. Segundo Adorno e Horkheimer, há um resíduo mitológico de angústia em todo pensamento que a sublima no sujeito abstrato, angústia diante dos dados não-organizados dos sentidos, diante da multiplicidade (Mannigfältigkeit) incontrolada. O medo da decomposição da lei que submete o mundo encontra seu correlato subjetivo no medo da perda da identidade. É a angústia diante da falta de unidade, coerência e consistência do eu que equivale à angústia diante da perda de suas funções de dominação sobre a própria realidade empírica e sobre o mundo objetivo. A separação entre o eu e a natureza inviabiliza qualquer possibilidade de uma relação classicista ou romântica com a natureza. Como não há diálogo comunicativo, mas tensão e luta, prevalece o hermetismo da natureza exterior e interior. Esta é a única maneira pela qual o pensamento dualista concebe o conhecimento. Benjamin considera uma continuidade desse hermetismo entre nossa cultura e a do século XVII. Somos nós espectadores de um cenário barroco, mas espectadores inseguros, subsumidos ao movimento das mercadorias, quer dizer, do trabalho vivo coagulado em um produto, convertido em trabalho morto, e ao mercado mundial, em um mundo sem ponto de referência estável e permanente.

O sucessor do “palco barroco” — com seu cenário de coisas mortas — é, para Benjamin, o poeta-alegorista e a cidade surrealista. O alegorista escreve como o melancólico olha: com a mesma paixão exclusiva de si. Quanto à cidade: “não há semblante mais surrealista do que o de uma cidade” — acúmulo de objetos, estátuas, passagens, publicidades, becos sem saída — a rua é o microcosmo da realidade social. O poeta-alegorista contempla essa paisagem e estabelece pactos secretos com a “cidade subterrânea”, a que prolifera nos detalhes, dissonâncias, nos elementos heterogêneos, inassimiláveis, inacabados, qualitativos. Na alegoria não existe a utopia da significação imediata e da evidência como no símbolo. Nela se encontram e se anulam, sem hierarquia, os contrários. A cidade surrealista, como o palco, barroco, é um lugar dialeticamente dilacerado, transformado em espaço interno do sentimento.

Benjamin faz do sujeito da história a história de um sujeito, escolhendo Paris — a capital do século XIX, com suas passagens — a fim de falar dos labirintos da história, os do século XX: “um aspecto de ambiguidade das passagens: sua riqueza em espelhos, que amplia os espaços como nos contos e torna a orientação difícil”. Os espelhos têm toda uma outra função no universo de uma racionalidade cartesiana. Esta “visão de mundo” que radiografa, esquadrinha, geometriza e matematiza o mundo se expressa na função dos espelhos. Que se pense nos quadros de Van Eyck. Aqui o espelho garante a permanência do mundo: num reflexo magistral, todo o quarto dos Arnolfini vinha se ancorar, se perpetuar, se resolver para sempre na certeza da estabilidade do mundo. Essa pintura captava na órbita de seus espelhos o duplo dos espetáculos e a imagem do inteligível:

[…] na pintura holandesa, era tradição que os espelhos desempenhassem um papel de duplicação: eles repetiam o que era dado uma primeira vez no quadro, mas no interior de um espaço irreal, modificado, encolhido, recurvado. Via-se a mesma coisa que na primeira instância do quadro, mas decomposta e recomposta segundo uma outra lei.[28]

Ora, é essa estabilidade do mundo refletida no espelho que se volatiliza na nossa modernidade. Os espelhos medem, como mostra Benjamin, o arbitrário de uma representação que se pretende objetiva, integrando o parâmetro do aleatório, “este elemento evasivo que procede de nossa própria contingência e da relação aventurosa com o mundo exterior, mundo que deixou de ser legível como no passado, pela virtude dos princípios da racionalidade abstrata como o de não contradição e o de razão suficiente”. O sentido de desorientação no espaço apontado por Benjamin também está presente nas pinturas de Francis Bacon (expressionista inglês contemporâneo). Nele o espelho radicaliza a impossibilidade de o espelho refletir, duplicar. O espelho não é mais um espaço dócil, reflete imagens inacabadas que escapam para outra imagem. Em O retrato de George Dyer num espelho, de 1968, Bacon traduz o fortuito, a dispersão, a dúvida. O real se dá em reflexos desconexos — é o real em sua desordem anatômica. O espelho não ga – rante a identidade, mas oferece imagens e ilusões. A contemporaneidade desconstrói o valor de ordem e medida do espaço construído pelo cartesianismo. Tem fim a experiência de ,um mundo estável e permanente. Se uma comparação é possível entre a Pala de Montefeltre, de Piero della Francesca, e Pintura, de 1946, de Bacon, será possível compreender o que se passou no espaço de alguns séculos entre a construção de uma ordem e sua destruição, entre o triunfo da lei de perspectiva que assegurava ao homem seu lugar no coração do espaço e que hoje é um edifício que habitamos como que por acidente, como “viajantes expulsos de todo lugar verdadeiro”. Lá, o arbitrário do ponto de vista humano se fundava em um ponto absoluto — a subjetividade do olhar que encontrara sua objetivação na matematização do sensível:

[…] a morada estável e permanente do homem se designava aqui: pilastras, faixas, arquitraves desenhavam uma rede de relações determinadas, regulando as distâncias entre os seres, assegurando as conjunções e disjunções dos corpos segundo um protocolo universalmente válido e matematicamente fundado. Melhor dizendo, esta morada se construía visivelmente como coisa fixa e inalterável […]. É assim que cilindro e hemisfério delimitam um nicho.[29]

Se as linhas ortogonais limitavam os movimentos dos seres, ao mesmo tempo lhes asseguravam um centro de permanência. Quanto ao espaço da pintura de Francis Bacon, tem alguma afinidade com o de Benjamin: nele as coisas flutuam, como que decompostas, em desordem, aglutinando-se ao acaso dos encontros, não segundo distâncias regradas por um tabuleiro de base, mas puramente acidentais. O universo sem centro nem simetria encerra personagens ao acaso. Nem mesmo a física cartesiana, com seu mecanismo matematizado oferecia uma garantia total:

[…] eis por que, talvez, daí nós não concluamos mal se dissermos que a Física, a Astronomia, a Medicina e todas as outras ciências dependentes da consideração das coisas compostas são muito duvidosas e incertas, mas que a Aritmética, a Geometria e as outras ciências desta natureza, que não tratam senão de coisas muito simples e muito gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou não na natureza, contêm alguma coisa de certo e indubitável. Pois quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três formarão sempre o número cinco e o quadrado nunca terá mais do que quatro lados.[30]

À ciência com um ponto fixo sucede um “princípio de razão insuficiente”. O sujeito não é apenas sujeito epistemológico, mas é a um só tempo lógico, empírico e histórico, e nós, seres precários, expostos e vulneráveis sem a garantia de um ponto arquimediano, de uma razão suficiente. Tal concepção do sujeito nega as certezas das “filosofias do progresso”: razão, sujeito, tempo linear, ciência de uma realidade transparente se desfazem diante da existência labiríntica.

Para Benjamin o poeta-alegorista tem seu aliado natural na infância: esta é concebida — não-cartesianamente — como a própria configuração de um sujeito. Nela não há evidências. O flâneur, o forasteiro, a criança fazem a experiência de um mundo sem ponto fixo e não se deixam subjugar pelo totalitarismo do sentido único das coisas: “príncipe é uma palavra com uma estrela em volta, dizia um menino de sete anos. As crianças, quando inventam histórias, são coreógrafos que não se deixam censurar pelo ‘sentido’.[31] O poeta é o alegorista da temporalidade do precário e do fugidio, vivido nas multidões abstratas e quantitativas da metrópole, esse turbilhão panteísta da modernidade: “moi c’est tous, tous c’est moi”, diz Baudelaire. À cidade racionalista, geométrica, a da superfície, subjaz a labiríntica. Aquele que passeia na cidade, tal como a criança, deve decifrar os signos plurais das coisas: “não encontrar seu caminho na grande cidade, isto não significa grande coisa. Mas extraviar-se em uma cidade como nos perdemos em uma floresta, demanda toda uma educação”[32]. A infância não é momento de patologia, mas o centro da memória histórica. Na infância — como no caminhar desordenado — a ausência de coerência torna-se condição para a articulação da “verdade”. É na incompreensão infantil das estruturas do útil e dos fins que se reabre o significado das coisas. Rua de mão única reúne encontros de rua, jogos de azar, não avança conclusões contidas em premissas tranquilizadoras de um discurso objetivo-racional. A rua acolhe a incoerência da vida. Escreve Benjamin:

[…] no grande, no cosmos, tudo se apresenta da mesma forma. Lá também, através da circulação, brilham nas encruzilhadas sinais fantasmáticos; lá também se inscrevem na ordem do dia inimagináveis analogias e o entrelaçar-se de acontecimentos.

São os encontros ao acaso — quando o olhar recai na placa “Ministério do Interior” ou na inquietante advertência “Alemães bebem cerveja alemã” da Rua de mão única, que se revelam analogias entre o presente e o passado.

Com isso, Benjamin analisa o que subjaz a todo pensamento de preguiça do coração que se dispensa de exigência absoluta de captar o agora, cada instante do agora, o agora que é a quintessência da experiência, porque é a surpresa. Tal como Proust — que jamais escolhe o caminho mais curto —, Benjamin reconhece assim a tarefa do historiador: “aprender a que ponto tantas coisas são difíceis de serem aprendidas mas que aparentemente poderiam ser ditas em poucas palavras.”[33] Os caminhos proustianos, desviantes e errantes, não conduzem jamais a um fim. Assim é o despertar histórico: por um instante vive-se entre o sono e a vigília: tudo gira. É esse o modelo benjaminiano: contém o momento de desordem da classificação temporal. É um estado de “desordem produtiva” — como o do colecionador e do alegorista. E esta é a revolução copernicana de Benjamin:

[…] a revolução copernicana no conceito de história é a seguinte: tinha-se o passado por ponto fixo e se considerava o presente que se esforça em reconduzir, tateante, o conhecimento a este solo firme. Agora esta relação deve se voltar para o preSente, e o passado deve tornar-se inversão dialética, invasão/inspiração (Einfall) da consciência desperta.[34]

O instante revolucionário vem bruscamente à consciência: “o momento da graça” é a “chance revolucionária”. Benjamin compara este novo estilo de historiador — aquele que se libera do historicismo da identificação com o passado ou de sua repetição — ao intérprete dos sonhos (songes). Ele é um “vidente”: “o vidente é aquele que diz exatamente do que se trata — é uma iniciação à ‘vidência’ e a cegueira que toca bruscamente o ‘vidente’ seria a marca de sua eleição. A vidência coloca em relação — e não em continuidade — o passado e o presente”. Em História de uma amizade, Scholem menciona uma lenda do Talmud segundo a qual cinquenta portas da sabedoria “ter-se-iam todas abertas diante de Moisés, salvo a última: curiosamente, este relato produziu uma forte impressão em Benjamin”.[35] É aquilo que não se compreende o que faz sentido. Esse enigma o põe em afinidade com a alegoria. Mesmo distinguindo as parábolas de Kafka da alegoria, Walter Benjamin fala delas como de alegorias: “são feitas para serem citadas e contadas […]. Mas poderemos saber as lições que contêm? […] Não são jamais explicitadas”. Benjamin sugere que os elementos do desconhecido do sentido, em vez de nos reenviar a “lições antigas”, “preparam-nos como fazem os precursores”.[36] Assim, Benjamin inverte o passado em futuro, abrindo a alegoria à profecia, o futuro-presentificado do sentido. Tal como os espelhos das passagens de Paris marcam sua ambiguidade pelo efeito de reversibilidade, há certos lugares que têm o dom de profecia:

[…] este pequeno recanto do Zoológico (de Berlim pouco antes da ascensão do nazismo) carregava as marcas do que ia acontecer. Era um recanto profético. Pois à maneira destas plantas de que se fala que têm o poder de fazer ver o futuro, há lugares que têm o dom da profecia.[37]

A profecia é para o materialista histórico um modo de presença no presente, que põe a profecia no presente, é uma contra-vidência, uma percepção do presente: “pois a presença de espírito é como que a quintessência do futuro: perceber exatamente o que acontece no instante mesmo é mais decisivo do que saber antecipadamente o futuro distante”.[38] Se no pensamento cartesiano é central o desejo de segurança, a modernidade não faz essa experiência do sujeito pensante. Perdemos a evidência do Cogito, aquela verdade que uma vez confundida com o sentimento íntimo da certeza, não era mais um alvo exterior ao eu, mas a evidência, o claro, o distinto, o indubitável. Inversamente a Descartes, não é do mundo que duvidamos, mas de nós mesmos: qual é este eu que pensa? O que é que pensa através dele? Não há como formular juízos claros, pois vivemos em um mundo onde “os valores absolutos estão morrendo”.

A crise dos fundamentos não é a dos fundamentos da Razão, mas de todo empreendimento científico que se oponha a seres reais, isto é, dados no espaço e no tempo. Ora, para o sujeito benjaminiano a relação com a memória (individual e coletiva) é central:

[…] corretivo [ao progressismo] reside na convicção de que a história não é apenas uma ciência, mas também uma forma de rememoração. A rememoração pode fazer daquilo que permanece em aberto [a felicidade ] algo de fechado, e do que é fechado [o sofrimento) algo que permanece em aberto.[39]

O eu não é um ser, mas uma história. Enquanto eu, permanece escravo e sempre prisioneiro de si: “a metafísica ocidental fundada no sujeito encarcerou o sujeito para a eternidade em seu próprio eu como punição por sua idolatria”.[40] Isso porque não existe apenas o eu, mas seu corpo, seus fantasmas, suas feridas, sua memória.

É esse ato de rememoração em relação ao sofrimento e às injustiças passadas que constitui para Benjamin uma garantia quase teológica ou o impulso para a revolução. Numa dialética sutil entre o espaço e o tempo, Benjamin considera que o detalhe é para o espaço o que o Jetztzeit[41] é para o tempo: o detalhe pode ter a mesma função profética que o tempo. O Jetztzeit se apresenta ao flâneur na magia dos nomes das ruas. [42] A cidade, pelos nomes de suas ruas, é um “cosmos linguístico” que leva a uma reflexão que culmina no labirinto.[43] Toda experiência labiríntica passa por um sujeito que é sua vida: “nós só penetramos no mistério na medida em que o reencontramos no cotidiano, graças a uma óptica dialética que reconhece o cotidiano como impenetrável, o impenetrável como cotidiano”.[44] Cotidiano como impenetrável, o impenetrável como cotidiano é outra maneira de falar do enigma.

O conceito benjaminiano de “imagens dialéticas” se coloca a igual distância do conceito cartesiano e da contradição hegeliano-marxista. Procura construir uma figura de racionalidade que permita a inserção na história, no domínio da contingência, aproximando-se do pensamento de Freud quando este observa:

[…] o que me distingue de um homem supersticioso é o seguinte […]: eu creio no acaso exterior (real) mas não no acaso interior (psíquico). É o contrário do supersticioso: não sabe nada da motivação de seus atos acidentais e falhos e crê consequentemente no acaso psíquico; em contrapartida, é levado a atribuir ao acaso exterior uma importância que se manifestará na realidade por vir, e a ver no acaso um meio pelo qual se exprimem certas coisas exteriores que lhe são escondidas.[45]

O supersticioso vê no mundo externo sinais anunciadores do futuro, enquanto Freud os vê na interioridade do sujeito. Trata-se, para Benjamin, de reconhecer esses sinais externos e internos e saber quem os reconhece. À distância do constrangedor princípio de identidade que fazia Descartes repetir com frequência “isto é verdadeiro, como é verdade que a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois ângulos retos”, a Escola de Frankfurt e em particular Benjamin fala em “imagens dialéticas”, pois não se reduz o humano a proposições daquela natureza. A experiência da modernidade desafia esta “metafísica do incontrovertido”. Trata-se de pensar a experiência labiríntica no espaço e no tempo que não são mais kantianamente concebidos porque prevalece a categoria da relação do sujeito com o seu passado e o seu presente, com a sua pré- e sua pós-história. Em outras palavras, confrontamo-nos com o risco. Eliminá-lo apelando para o incontrovertido — para uma “racionalidade pura” — não o acolheria, não permitiria escolha, dissolveria a liberdade. Que se recorde o simétrico oposto ao cartesianismo e seu culto pela “clareza”, pela “linha reta”, pelo “ponto fixo”:

[…] não encontrar seu caminho na grande cidade, isto não significa grande coisa. Mas extraviar-se em uma cidade como nos perdemos em uma floresta, demanda toda uma educação. É preciso então que os nomes das ruas falem àquele que se perde a linguagem dos galhos secos que estalam, e ruelas no coração da cidade devem para ele refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um vale na montanha […]. O caminho deste labirinto não carece, porém, de uma Ariane.[46]

Este “caminho” não mostra nem trama regular nem contornos nítidos, nem linha reta nem total descaminho, mas o reconhecimento do acaso, naquilo que ao mesmo tempo é familiar e estranho, evidente e enigmático, tal como Benjamin o concebe no conceito de unheimlich — de estranhamento, sentimento do Nineur, do poeta-alegorista, da criança, do velho, do forasteiro, do proletário — de todos os estrangeiros — os estranhos à cidade e a si mesmos: “é uma experiência muito específica que o proletariado faz na cidade grande. Em muitos aspectos é semelhante à que faz o emigrado”.[47] Não por acaso, essa experiência é a da metrópole moderna, a experiência de que se é estranho no mundo, sob o signo da precariedade e do desamparo. É Freud que explicita esse sentimento, a partir do uso linguístico da unheimlich:

[…] a palavra alemã unheimlich é obviamente o oposto de heimlich [doméstico, familiar, íntimo, amistoso], heimisch [nativo] — o oposto do que é familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é “estranho” é assustador precisamente porque não é conhecido e familiar. Naturalmente, contudo, nem tudo o que é novo e não-familiar é assustador; a relação pode ser invertida. Só podemos dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras, mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não-familiar, para torná-lo estranho […]. No Wörterbuch der Deutschen Sprache, de Daniel Sanders, encontra-se: Heimlich[…]: íntimo, amigavelmente confortável; o desfrutar de um contentamento tranquilo, etc., despertando uma sensação de repouso agradável e de segurança, como a de alguém entre as quatro paredes de sua casa. “Destruir a Heimlichkeit do lar.” “Não conseguir encontrar prontamente outro lugar tão íntimo e heimlich como este.” “O homem que até recentemente fora tão estranho a ele, parecia-lhe agora muito mais heimlich” (cf. 89-90). Mas o vocábulo comporta também o seu oposto: “escondido, oculto da vista, de modo que os outros não consigam saber, sonegado aos outros. Fazer alguma coisa heimlich, isto é, por trás das costas de alguém, roubar heimlich; reuniões e encontros heimlich;[…] comportar-se heimlich, como se houvesse algo a esconder”. “A arte heimlich” (mágica). “Onde a divulgação pública tem de parar, começam as maquinações heimlich.” “Daqui por diante desejo que não mais haja nada heimlich entre nós.” Diga, onde é o lugar do encobrimento… em que lugar da oculta Heimlichkeit? Note-se particularmente o negativo un: misterioso, sobrenatural, que desperta horrível temor. ”As horas unheimlich e terríveis da noite.” […]Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter permanecido… secreto e oculto mas veio à luz” (Schelling) […]

Continua Freud:

O que mais nos interessa nesse longo excerto é descobrir que, entre os seus diferentes matizes de significado, a palavra heimlich exibe um que é idêntico ao seu oposto, “unheimlich” . Assim o que é heimlich vem a ser unheimlich […]. Em geral, somos lembrados de que a palavra heimlich não deixa de ser ambígua, mas pertence a dois conjuntos de ideias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável, e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista […] . Dessa forma, heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich . Unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich.[48]

O sentimento do estranho começa a partir de uma dúvida quanto à “natureza” de um ser qualquer, e o pavor ocorre quando vem subitamente a perder na consciência daquele que observa, a natureza que lhe era implicitamente reconhecida. É o acaso que desencadeia o mecanismo do terror porque nos constrange a reexaminar o conceito de natural e o de familiar. Ameaçado, o homem apela à natureza, isto é, qualquer coisa que desempenhe função de referência. A dissolução da ideia de natural traz consigo a perda de referência. O mais conhecido naufraga no desconhecido, o mais familiar escapa a todo reconhecimento.[49]

Nesse horizonte inscreve-se uma nova figura da racionalidade que deseja se constituir com a força da evidência e que dê acolhida ao acaso, ao corpo e sua memória, a seu enigma.[50] Desse ponto de vista, a tragédia moderna não é a de Édipo rei — a intriga, o assassinato, a incompreensão da fatalidade — mas Édipo em Colona, isto é, quando o destino, tendo se realizado, nada mais ocorre ao herói, nada mais lhe está destinado. A perda do destino é essencial à modernidade e é a origem da busca da origem, a busca de um ponto de pertencimento. O enigma moderno não se aloja mais na natureza, mas está na própria história.[51]

Contracenando com o sujeito sem história cartesiano e a história sem sujeito marxiana, Benjamin fala no Jetztzeit, na esperança de redenção, “aquela que brilha de maneira fugidia”. É na fulgurância do agora (Jetztzeit) que o passado retorna, de improviso, porque o que mais se esquece é o que mais profundamente ficou. Seu “ressurgimento” é o da “memória involuntária”.[52] Não se trata de uma concepção do tempo carregado de nostalgia. O agora é uma das ex-stases da temporalidade, que não tem como ponto de partida a Filosofia da consciência. O Jetztzeit é desconhecido pela consciência e não pode ser constituído por ela. É, antes, o que a desampara, a destitui, o que a consciência não consegue pensar e até mesmo o que ela esquece para se constituir a si mesma. O acontecer chega como ponto de interrogação antes de acontecer como interrogação. O que se chama o pensamento tem de ser desarmado: ao contrário do olhar atento da filosofia cartesiana, o olhar do materialista dialético é oblíquo, só capta o instante olhando proustianamente ao lado do objeto. Nada do passado está perdido para a história. O historiador pode “citar a história”: Robespierre citava a Roma antiga, citação que deve reabrir a revolução. Tal revolução é uma inversão dialética da violência: “a humanidade, reconciliada com seu passado, deve se despedir dele, e uma das formas da reconciliação é a serenidade”.[53] As “imagens dialéticas” reorganizam as imagens dos sonhos na vida desperta, em um contexto estranho e inabitual. Se no sonho “o absurdo é apresentado como se fosse a própria evidência”, ele o faz para despojar a evidência de seus plenos poderes”.[54] As imagens dialéticas reconciliam o sonho e a realidade; o sonho representa o reino do possível, do não-idêntico, contesta a pretensão do “ser-em-si” do princípio de realidade dominante. É o ponto de partida da serenidade, isto é, da construção de um novo princípio de realidade que anuncia a transposição das imagens do sonho na realidade. Eis por que Benjamin fala na tese XVIII b: “Para os judeus o futuro não se torna um tempo homogêneo e vazio. Cada segundo era a estreita porta pela qual o Messias poderia chegar”. Se Benjamin utiliza a metáfora da “estreita porta pela qual passa o Messias”, é porque retoma todas as portas do tempo e da história: “Sabe-se que era proibido aos judeus procurar descobrir o futuro”, diz ainda Benjamin. O futuro está no presente, e só o adivinho consegue captá-lo despedindo-se do passado, deixando “que os mortos enterrem seus mortos”. Se é para seres humanos enlutados que o Trauerspiel (jogo fúnebre) se destina, o Jetztzeit vem para redimir uma tradição de coisas mortas, para “realizar suas esperanças”. É por isso que o pensamento benjaminiano retoma a tradição, porque o enigma do futuro só pode ser resolvido parcialmente com a compreensão de nosso ponto de partida. A racionalidade que se volta para a dominação da natureza, que se autofigura como a forma por excelência do progresso, é alienada e alienante, produz e nos faz conviver duradouramente com fantasmagorias. Para afastarmos os espectros do passado que “vêm importunar o cérebro dos vivos”, é preciso recuperar o que foi deixado para trás, o lugar de onde se veio. Para Benjamin, só podemos compreender o presente se simultaneamente reencontrarmos nosso ponto de partida. A relação com a tradição — diferentemente da visão cartesiana — é essencial porque só reconheceremos os sonhos do século XX, interpretando os do século XIX. Paris não é apenas a capital do Capital. É necessário interpretar seus sonhos para depois despertar. Primeiramente, é preciso despertar para o sonho, para depois despertar do sonho. Compreender quais foram as esperanças irrealizadas dessa tradição é tarefa do historiador benjaminiano.[55] Daí a necessidade, não do rompimento cartesiano com o passado, mas sim de perscrutar “verdades antigas”. É esta a tarefa do colecionador: com sua paixão barroca, tem uma maneira própria de organizar objetos marcados por recordações. Sua paixão nos põe em contato com a desordem das lembranças, com a tensão interior entre a ordem e a desordem. O colecionador agencia objetos que desafiam o espaço e o tempo em que foram produzidos, ascendendo a uma nova significação, descontextualizando-os e articulando-os em uma sintaxe nova que rompe com o dogmatismo da evidência. Seu universo desafia o racionalismo de um mundo dotado de centro e razão suficiente.

Se a razão cartesiana efetivamente teve êxito no conhecimento e controle da natureza, buscando a exatidão numérica e a precisão técnica, ou, dizendo de outro modo, se navegar é preciso, se a navegação é a arte da precisão, viver não é preciso, é indeterminado. Se há coerência nas leis da natureza, a razão que a constrói não abrange a incoerência da vida. Einbahnstrasse — essa “rua de mão única” é também uma “contramão”, linha reta ou desvios ocasionais, e se constrói no paradoxo da possibilidade do impossível. O destino e o acaso se enfrentam sem prioridade na biografia de cada um e na história de todos porque se apresentam como enigma, razão pela qual “a resolução do enigma significa a descoberta da indissolubilidade do enigma” (Adorno).

Vai-se delineando uma nova figura da racionalidade que dê conta, a um só tempo, da evidência e do desejo de controle cartesiano como também do enigma, uma racionalidade que reconcilie Eros, Logos e Cronos,[56] os desejos, a razão abstrata e o tempo, tornados antagônicos pela hipertrofia da racionalidade controladora. Tal como para a Razão Estética kantiana, que acolhe “o contingente sem nenhuma lei”, a razão frankfurtiana deverá assegurar o “livre jogo das faculdades (sensibilidade, imaginação e razão) que devem se associar sem nenhuma hierarquia”. Só assim o mito recalcado no interior da razão abstrata pode ser dissipado. É ele que retorna e se realiza como razão instrumental, lógica do lucro e logocentrismo. O domínio da natureza e da história que se desenvolve a um grau traumático aparece como a quintessência de uma mutilação vingativa da natureza exterior e interior. Uma razão reconciliada com a natureza pacificadora da destru-tividade e da violência e redentora de suas potencialidades emancipadoras[57] associa e emancipa a sensibilidade, imaginação e razão. E, assim, ela se traduz numa razão histórica que não é nem linha reta nem descaminho, mas enfrenta a encruzilhada entre a evidência (cartesiana) e o enigma da história. Dela Benjamin nos dá um exemplo final em “Madame Ariane, segundo pátio à esquerda”:

Quem pergunta pelo futuro a videntes abre mão, sem saber, de um conhecimento interior que está por vir, que é mil vezes mais preciso do que tudo o que lhe é dado ouvir. Guia-o mais a preguiça do que a curiosidade e nada lhe é dado ouvir lá e nada é menos semelhante ao devotado embotamento com que ele presencia o desvendamento de seu destino que o golpe de mão perigoso, ágil com que o corajoso põe o futuro. Pois presença de espírito é seu extrato; observar com exatidão o que se cumpre em cada segundo é mais decisivo que saber de antemão o mais distante. Signos precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas. Interpretá-los, utilizá-los, eis a questão. Mas ambos são inconciliáveis. Covardia e preguiça aconselham o primeiro, sobriedade e liberdade o outro. Pois, antes que tal profecia ou’aviso se tenha tornado algo mediato, palavra ou imagem, sua melhor força já está morta […] . Se deixamos de fazê-lo, então e só então, [a profecia] se decifra.[58]

QUESTÕES

  1. Como Benjamin poderia afirmar que não existe fato histórico?
  2. Como Benjamin combinava a crítica à repetição histórica de Marx com a crítica ao mecanismo da repetição em Freud?

Primeiro eu afirmei que não existe fato histórico. Vou me explicar a partir do contexto em que essa observação se inscreve. A outra questão é a das relações entre lembrança e esquecimento no universo benjaminiano. Quanto à primeira questão: Walter Benjamin escreve as teses “Sobre o conceito de História” em 1940, sob o efeito do pacto germano-soviético. Mas desde 1928 há reflexões, alguns fragmentos que reencontramos nas “teses”. Nelas, Benjamin está criticando a teoria da história social-democrata porque foi ela que propiciou a ascensão do nazismo na Alemanha e o colaboracionismo do governo Pétain, que se seguiu à derrota do governo da Frente Popular em 1936 e da estratégia social-democrata na França. Benjamin trata do historicismo que, entre outras coisas, postula uma visão eterna do passado, como se o tempo histórico fosse linear, homogêneo, contínuo e vazio. Entre o presente e o passado existe, para Benjamin, uma descontinuidade, uma ruptura, mas não no sentido cartesiano porque nesta ruptura existe uma tradição que permanece. Mas como a história se dá a conhecer? Na forma do fragmento. Existe uma diferença entre monumento e documento. O monumento é algo produzido para ficar, faz parte da memória oficial celebrativa; o documento é aquilo que permaneceu malgrado ele mesmo. O historiador faz a história como a criança, que brinca a partir dos objetos abandonados ou jogados pelos adultos como inúteis, a partir do “lixo da história”. O fragmento é, aqui, o inassimilado, o heterogêneo, algo cujo sentido é nômade e a isso o historiador vai procurar dar sentido. Não há utopia de um sentido único das coisas, a história não está fechada, o historiador reabre o passado para contá-lo de outra maneira. Isso não significa que o faça arbitrariamente, mas em sua relação com o presente. Voltar ao passado só faz sentido se ao mesmo tempo o presente iluminar seu passado e sua pós-história. É esta a crítica ao historicismo e ao positivismo do fato. A catástrofe iminente — o nazismo — poderia se transformar em presságio favorável. Há possíveis históricos e não um curso esperado linearmente dos acontecimentos, continuidade esta que lhe é atribuída pela posteridade do fato, posteridade que lhe confere uma continuidade causal e necessária.

Quanto à segunda questão, Benjamin critica a repetição histórica a partir da conhecida obra de Marx, O dezoito brumário. Se para Marx a repetição é farsesca em Napoleão III, “sobrinho bastardo” de Napoleão I, para Benjamin ocorre algo mais grave: a primeira vez a história acontece como tragédia, a segunda como catástrofe irracional. É preciso compreender o passado, qual o ponto de onde se partir para prevenir que o pior não se repita — a catástrofe nazista. É preciso despedir-se do passado e não recalcá-lo. Benjamin faz menção à melancolia do historiador historicista que não se separa do passado, que se identifica com ele, isto é, com coisas mortas: “poucos adivinharão o quanto foi preciso estar triste para ressuscitar Cartago”, escreve Benjamin, na tese VII, citando Flaubert. A identificação com o passado é sua permanência no presente e a repetição é uma espécie de “blindagem” histórica. Quer dizer, no exato momento que os homens estão implicados num dever criador, que os constrange a tarefas inéditas, é justamente nesses momentos de surpresa, de inesperado e de indeterminação, que os homens temerosamente evocam os espíritos do passado, emprestam sua palavra de ordem, se travestem de romanos. Existe uma relação de identificação com o passado, que é da repetição, e não da recordação. E existe uma relação com o passado que é a de sua reconstrução, que é a do materialista revolucionário, no sentido benjaminiano. Para esquecer, primeiramente é preciso lembrar. Esquecimento sem recordação é recalque e retornará na forma de repetição e da barbárie.

Notas

[1] Rubens Rodrigues Torres Filho, “Respondendo à pergunta: quem é a Ilustração?”, in Revista Discurso, Departamento de Filosofia da FFLCH da USP, Polis, 1983, nº 14.

[2] Idem, ibidem.

[3] Jorge Luis Borges, “Museo”, in El hacedor, in Obras completas, Buenos Aires, Emecé Editores, 1974, p. 847.

[4] Les origines de la civilisation technique, PUF, 1962, t. 1.

[5] Adorno e Horkheimer, “O conceito de Iluminismo”, in Pensadores, Abril Cultural, v. XLVIII, pp. 97-8.

[6] Discurso do método, Abril Cultural, 1973, 3 parte, p. 50.

[7] “2a Meditação”, Abril Cultural, p. 99.

[8] Discurso do método, p. 42.

[9] “2a Meditação”, Abril Cultural, pp. 104-5.

[10] “1a Meditação”, Abril Cultural, p. 93.

[11] Discurso do método, p. 38-9.

[12] “1a Meditação”, Abril Cultural, pp. 93-4.

[13] Idem, p. 94.

[14] Idem, p. 95.

[15] Eduardo Subirats, in Paisagens da soliddo, Duas Cidades, p. 101.

[16] Principes de la philosophie,v. II, p. 4.

[17] Idem, v. I, p. 45.

[18] Cf. G. Mador, “Métaphores de chemin et de labyrinthe chez Descartes”, in Revue d’Histoire de la Philosophie, 1962, CLII, pp. 37-51, e T. Hensch, Uber den Still in Descartes “Discours de la méthode”, Zurich, Schwarzembach, 1949, “Dissertation”.

[19] Discurso do método.

[20] Descartes, Oevures philosophiques, ed. F. Alquié, v. III, Gamier, p. 775.

[21] “Réponses aux VIèmes objections”, v. II, p. 440.

[22] “1a Meditação”

[23] “Réponses aux VIèmes objections”, v. II, p. 441.

[24] “O cadáver como emblema”, in O drama barroco alemão, Brasiliense, p. 242.

[25] Idem, p. 163.

[26] Idem, p. 164.

[27] Oeuvres , v. VI, p. 81.

[28] Foucault, “Les suivantes”, in Les mots et les choses, Gallimard, p. 23.

[29] Bacon, Revue L’ Arc, n° 73, p. 14.

[30] Descartes, “1a Meditação”, p. 95.

[31] Benjamin, Infância berlinense, G. S., vol. IV, 1, p. 47.

[32] Benjamin, Infância berlinense, G. S., vol. IV, 1, p. 238.

[33] Benjamin, G. S., II, 1, p. 316.

[34] Passagenwerk, p. 450.

[35] Calmann-Levy, 1981, p. 26.

[36] Poésie et révolution, p. 86.

[37] Sens unique, p. 64.

[38] “Madame Ariane, deuxième cours à gauche”, in Sens unique, p. 233.

[39] Passagenwerk, p. 496.

[40] Adorno, Negative Dialektik, Suhrkamp, 1980, p. 66.

[41] Haroldo de Campos, in Deus e o diabo no Fausto de Goethe, Duas Cidades, traduz, benjaminianamente, Jetztzeit por “agoridade”: manutenção em permanência dos fragmentos do passado no presente, isto é, no “tempo do agora”.

[42] Passagenwerk, p. 650.

[43] Idem, p.647.

[44] “Le Surréalisme”, in Mythe et violence, p. 311.

[45] Psicopatologia da vida cotidiana, cap. XII.

[46] Infância berlinense, G. S., IV, 1, p. 238.

[47] Passagenwerk.

[48] Wörterbuch der Deutschen Sprache, p. 93.

[49] “Assim, o autômato dos Contos de Hoffmann é inquietante na medida em que o tomavam a princípio por um ser vivo; o demente, na medida em que parecia a princípio razoável; o criminoso, na medida em que nada o designava a priori como tal quando vai ao encontro daquele que projetava assassinar.” Pierre Clément, in A filosofia do pior, p. 105.

[50] Também aqui, uma aproximação com a pintura de Bacon. O Édipo e a Esfinge de Ingres, de Bacon, é uma transformação da perspectiva do Édipo “clássico”, em que Ingres contrapõe a natureza à cultura, o enigma e a Esfinge inscrevendo-se na natureza. O Édipo de Bacon é um atleta com a perna enfaixada. De calção e camiseta, o Édipo de Bacon se apresenta como um viajante nos labirintos da história. Tem o pé inchado pela caminhada. Não há aqui qualquer menção a uma natureza, senão a esfinge pálida e esgarçada. Édipo está à procura da origem e da identidade, mas ao sabor dos espaços abertos e labirínticos da história.

[51] Cf. Freud, Interpretação dos sonhos, na qual mostra que é só à primeira vista que o sonho é um enigma, mas na sequência da análise o sentido vai se explicitando. O enigma não se encontra no sonho, mas na própria vida. O enigma não se apresenta mais do lado da natureza inerte que, uma vez desencantada, tem seu enigma resolvido e apreendido através da razão geométrico-algébrica. (Cf., ainda, Osmyr Gabbi, “A leitura freudiana das teorias pré-psicanalíticas sobre o sonho”, Cadernos de História e Filosofia da Ciência [Unicampl, série II, vol. I, no 2, jul.-dez. de 1989.)

[52] Cf. Benjamin, “Para uma imagem de Proust”, in Magia e mito, arte e técnica, Brasiliense.

[53] Passagenwerk, p. 583.

[54] Adorno, Sobre Walter Benjamin, Frankfurt, 1970, P. 54.

[55] Para Benjamin, bem como para Marcuse, Adorno e Horkheimer, a história não é atividade de memorialista que vive da sequência temporal e de sua linearidade tranquilizadora. A tripartição do tempo em presente, passado e futuro recalca o mito — o remanescente irracional das origens da razão — porque lida com o previsível e o controle do tempo histórico. A destrutividade retorna porque o mito não foi ultrapassado pela razão, mas esquecido, melhor dizendo, recalcado no interior da razão abstrata. Se, na senda freudiana, o processo do recalque é o do esquecimento (“esquece-se para repetir melhor”), o verdadeiro esquecimento supõe recordação: primeiro é preciso lembrar, para depois esquecer, para não haver recalcamento. É o recalque do mito, da angústia que retorna na forma do eclipse da razão , no nazismo, no totalitarismo e na relação predatória com a natureza.

[56] Para Adorno e Horkheimer, bem como Benjamin e Marcuse, não se trata de excluir nenhuma dessas expressões da razão, mas reconduzi-las a uma reunião, a uma reconciliação de Eros — o amor em sua corporeidade, sensualidade e sensibilidade; Cronos enquanto dimensão corporal que se espacializou pela cientificização da razão e Logos enquanto razão de controle conceitual e intelectual do mundo. Essa reerotização da razão, sua ressensibilização ou ressensualização permitiria redimensionar as relações do homem com a natureza, reconciliando-o com o passado, com a tradição que habita o presente (cf. Marcuse, “A dimensão estética”, “A nova ideia da razão: racionalidade da gratificação” e “A luta contra o fluxo do tempo”, in Eros e civilizaçdo, Zahar, e A dimensão estética, Martins Fontes; cf. ainda Benjamin, “As afinidades eletivas de Goethe”, in Illuminationen, Suhrkamp, 1980; cf. também, Horkheimer, “Sur le concept de philosophie” e “Raison et conservation de soi”, in Eclipse de la raison, Payot, 1974, e Adorno e Horkheimer, “Odisseu ou mito e Iluminismo”, in Dialektik der Aufkliirung, Fischer Verlag).

[57] Cf. Tese no XI, “Sobre o conceito de História”: “O conformismo, desde o começo vício secreto da social-democracia, não afeta apenas sua tática política, mas também suas ideias econômicas […]. Nada foi mais corruptor para o movimento operário alemão que a convicção de que nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, a direção na qual acreditava nadar. Daí só havia um passo a dar para se imaginar que o trabalho industrial representava uma performance política. A antiga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava sua ressurreição com os operários alemães. […] Esse conceito de trabalho [o de Joseph Dietzgen], típico de um marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que dele não podem dispor. Ele só tem interesse no progresso do domínio sobre a natureza e não nas regressões da sociedade. Prefigura já os traços desta tecnocracia que se encontrará mais tarde no fascismo. Entre eles, uma noção de natureza que rompe de maneira sinistra com as utopias socialistas de antes de março de 1848. Tal como se o concebe agora, o trabalho visa a exploração da natureza que com inocente suficiência se opõe à do proletariado. Comparadas a esta concepção positivista, as imaginações fantásticas de um Fourier […] revelam um surpreendente bom senso. Para ele, o trabalho social bem ordenado teria como efetivo que quatro luas iluminariam a noite da Terra [irdische], que o gelo se retiraria dos pólos, que a água do mar deixaria de ser salgada e que os animais ferozes [Raubtiere] se poriam a serviço do homem. Tudo isto ilustra um trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações virtuais que dormitam (schlummern.) em seu seio. Ao conceito corrompido do trabalho corresponde o conceito complementar de uma natureza que, segundo a fórmula de Dietzgen, ‘está aí, grátis’ “. (In Illuminationen, p. 284.)

[58] Sens unique, p. 233.

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