2005

Dissonâncias, magia e simpatia cósmica [Shakespeare]

por Carlos Antônio Leite Brandão

Resumo

Os Sonetos de Shakespeare, escritos entre 1593 e 1599, costumam ser divididos em duas partes, uma tendo por objeto um amigo misterioso, a outra, uma infiel Dark Lady. Eles não têm um desenvolvimento claro e são difíceis de decifrar. Mas o tema constante é o amor com seus conflitos e metamorfoses (influência de Ovídio), tratado de forma sensual e segundo o princípio da semelhança e da magia que vê o todo em cada parte da natureza (influência de Giordano Bruno). Não se explica esse todo, ele é apenas mostrado como uma pintura (a exemplo da Gioconda de Leonardo da Vinci cujo rosto reflete o sfumato da paisagem). Exposto ao efêmero, o amor desperta um anseio de imortalidade e permanência só possível nas palavras dos versos que ficam (como os filhos). Pois, se o amor é rosa, ele é também “o verme da rosa”, diz o soneto 95. Simpatia e antipatia, Eros e Tânatos juntos. Shakespeare situa-se na saída de um tempo pré-moderno em que a linguagem era teatro da vida ou espelho do mundo, e que vai desaparecer com o Cogito de Descartes. Seus sonetos são um meio de reconciliar-se consigo mesmo apesar da solidão e da dúvida, quando o ser pleno já não pode mais ser adivinhado no universo mas somente na literatura. E a pergunta que ele faz no final (como fará Próspero em A Tempestade, sua última peça de teatro) é se ainda é possível reintroduzir o espírito mágico de Ariel no mundo pragmático da Ciência que então começava.


That time of year thou mayst in me behold 

When yellow leaves, or none, or few, do hang

Upon those boughs which shake against the cold,

Bare ruin’d choirs, where late the sweet birds sang.

In me thou see’st the twilight of such day

As after sunset fadeth in the west;

Which by and by black night doth take away,

Death’s second self, that seals up all in rest.

In me thou see’st the glowing of such fire,

That on the ashes of his youth doth lie, 

As the death-bed whereon it must expire,

Consum’d with that which it was nourish’d by.

This thou perceiv’st, which makes thy love more strong,

To love that well which thou must leave ere long.

 

Sonnet LXXIV

But be contented: when that fell arrest

Without all bail shall carry me away,

My life hath in this line some interest,

Which for memorial still with thee shall stay.

When thou reviewest this, thou dost review

The very part was consecrate to thee:

The earth can have but earth, which is his due;

My spirit is thine, the better part of me:

So, then, thou hast but lost the dregs of life,

The prey of worms, my body being dead;

The coward conquest of a wretch’s knife,

Too base of thee to be remembered.

The worth of that, is that which it contains,

And that is this, and this with thee remains

Soneto LXXIII

Em mim tu podes ver a quadra fria

Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,

Pendem do ramo trêmulo onde havia

Outrora ninhos e gorjeio e plumas.

Em mim contemplas essa luz que apaga

Quando no poente o dia se faz mudo

E pouco a pouco a negra noite o traga,

Gêmea da morte, que cancela tudo.

Em mim tu sentes resplender o fogo

Que ardia sob as cinzas do passado

E num leito de morte expira logo

Do quanto que o nutriu ora esgotado.

Sabê-lo faz o teu amor mais forte

Por quem em breve há de levar a morte.

Soneto LXXIV

Não fiques triste, amigo, à hora em que, sem caução,

Vier deter-me um dia esse cruel arresto,

Pois terá minha vida interesse em meus versos

Que devem junto a ti defender-me a lembrança.

O que podes rever, se estes versos revires,

É esta parte de mim que te foi consagrada:

De mim mesmo o melhor, minha alma, a ti pertence,

Se este barro que sou deve ao barro voltar.

E do meu ser assim perdes a lia apenas,

Aos vermes dada em presa à hora em que o corpo morre,

Conquista sem honor da faca de um vilão,

Indigno de encontrar recordação em ti:

Minha alma o preço faz que nele está incluso,

E jaz junto de ti, nestes versos, minha alma.

Sonnet CXVI

Let me not to the marriage of true minds

Admit impediments. Love is not love

Which alters when it alteration finds,

Or bends with the remover to remove:

O, no! it is an ever-fixed mark,

That looks on tempests, and is never shaken;

It is the star to every wandering bark,

Whose worth’s unknow, although his height be taken.

Love’s not Time’s fool, though rosy lips and cheeks

Within his bending sickle’s compass come;

Love alters not with his brief hours and weeks,

But bears it out even to the edge of doom.

If this be error, and upon me prov’d,

I never writ, nor no man ever lov’d.

Soneto CXVI

Que eu não veja empecilhos na sincera

União de duas almas. Não amor

É o que encontrando alterações se altera

Ou diminui se o atinge o desamor.

Oh, não! amor é ponto assaz constante

Que ileso os bravos temporais defronta.

É a estrela guia do baixel errante,

De brilho certo, mas valor sem conta.

O Amor não é jogral do Tempo, embora

Em seu declínio os lábios nos entorte.

O Amor não muda com o dia e a hora,

Mas persevera ao limiar da Morte.

E, se se prova que num erro estou,

Nunca fiz versos nem jamais se amou.

William Shakespeare, em Howard Staunton (ed.), The Globe

Illustrated Shakespeare. The Complete Works, Nova York, Greenwich House, Crown Publishers, 1986, pp. 2297, 2303-4.

Obra completa, trad. Oscar Mendes, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995.

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Os “versos” dos sonetos: o mundo suspenso[1]

“Há mais lendas e teorias fantásticas em torno dos sonetos de William Shakespeare do que poderia cogitar a nossa vã literatura”, escreve Nehemias Gueiros.[2] Cada verso, palavra, sílaba ou letra pode conter problemas, sentidos e segredos que tornam impossível a tarefa de decifrá-los de forma definitiva. Toda leitura e interpretação, como a que aqui pretendemos para descortinar o mundo revelado neles, é, portanto, uma entre várias outras possíveis com as quais deve conviver.

Escritos provavelmente entre 1593 e 1599, a maioria em 1595 e 1596, o conjunto dos sonetos de Shakespeare (1564-1616) aparece numa edição fac-similar da lírica shakespeariana em 1604-1605 feita por Sidney Lee e circula mais amplamente a partir de 1609, numa edição in-quarto de Thomas Thorpe.[3] Em 1780, Malone fixou a organização apresentada nessa edição e a legou à tradição posterior. Não há um desenvolvimento sistemático claro nos 154 sonetos. Em geral, eles tratam do amor, com seus conflitos, esperanças, traições e angústias, em duas partes. A primeira vai até o soneto 126 e tem como objeto um amigo misterioso cuja beleza exemplar é disputada pelo poeta e por um terceiro. O encantamento e o sofrimento despertados por essa beleza são a tônica dos sentimentos que movem o autor. A segunda parte vai até o soneto 152, tem como objeto amoroso a infiel senhora de “beleza negra” — “the Dark Lady” — e como tônica a luxúria e a resistência a ela, tendo sido escrita provavelmente em 1598 e 1599. Os dois últimos sonetos, 153 e 154, constituem variações isoladas de um mesmo epigrama constante da obra Antologia grega, sem relação aparente com os anteriores.

Baldwin, aprofundando a análise dos sonetos e comparando-os com a vida e as outras obras do Bardo, estabelece uma estrutura e uma periodização hipotética para eles. Segundo ele, os sonetos se dividiriam em seis séries, distribuídas em maços de 24 folhas, apresentados anualmente no mês de maio a um público restrito e especialmente ao conde de Southampton, a quem talvez fossem dedicados os poemas.[4] Cada série contém 25 sonetos aproximadamente e um argumento específico. A primeira dessas séries engloba os sonetos 1 a 26, traz uma introdução e teria sido escrita em 1593 e 1594. A segunda série, escrita em 1594 e 1595, contém os sonetos 27 a 52. Os sonetos 53 a 77 formam a terceira série e teriam sido escritos em 1595 e 1596. Posteriores a estes, mas com datação indefinida, os sonetos 77 a 99 formam a quarta série, e os sonetos 100 a 125, a quinta. A última série, a dedicada à Dark Lady, contém os poemas escritos nos dois últimos anos do século XVI.[5]  Trata-se apenas de uma hipótese sugerida por Baldwin e a que nos referimos aqui tanto para o leitor esboçar uma organização mínima desses sonetos quanto para apontar uma questão metodológica fundamental: cada soneto se insere num subconjunto temático, o qual, por sua vez, se insere no conjunto maior em que adquire sentido. Não são poemas isolados e esparsos, mas articulados em uma totalidade orgânica na qual ocupam um lugar apropriado, como uma palavra em uma frase, e a cuja ordem obscura se submetem.

Sendo assim, nossa estratégia de leitura considera cada poema em si e inserido no todo. Se há um sentido em cada um em particular, há outro que se depreende quando esse poema é tomado em meio ao conjunto a que pertence. A visão de mundo do poeta se revela a partir do conjunto dos poemas, como uma lei cósmica que anima cada verso e palavra, o que nos exige examinar todos os sonetos e compreender cada um dentro do círculo hermenêutico onde o sentido dele só se dá dentro do todo e o sentido do todo só se dá a partir das unidades que o compõem.[6]

O poeta aborda o amor não como uma ideia transcendente, supraindividual e platônica como no Banquete de Platão ou nos poemas de Michelangelo. Shakespeare trata-o de forma pessoal e sensual, paixão avessa a racionalizações e que domina o amante por inteiro, submetendo-o às vagas do mar amoroso. Ele fala em termos de memória, imaginação e sentimento e não em termos filosóficos ou ideais. Não diz o que é o amor, mas o que ele significa para o amante e nele provoca. Quase todos os seus versos são ou estão em vias de tornarem-se metáforas e alusões.[7] Ao contrário de Michelangelo, Dante ou Platão, eles nada demonstram ou provam.[8] Enquanto estes desenvolvem argumentos lógicos e dedutivos a regular o amor pelo espírito e orientam-se para a filosofia, Shakespeare fornece imagens que potencializam ainda mais a indisciplina e o caráter indômito da paixão que lhe captura a alma. Na abordagem filosófica e espiritual, verdade e beleza, dever e prazer, realidade e imaginação, o que somos e o que deveríamos ser se separam pelo cutelo da ideia. A abordagem anímica e sensual do Bardo é mais “desavergonhada”, não separa alma e corpo, nem sentimentos da razão. Nele, o amor é abordado aquém da ideia, no mundo pré-reflexivo das paixões, e seus sabor e fel se perderiam se a razão lógica conseguisse compreendê-lo. Em Shakespeare, o amor é violento e selvagem, pulsão erótica que recusa ser dominada por ideias filosóficas.

Basta-nos isso para introduzir o espaço e o tempo, categorias constituintes do que podemos chamar de “mundo”, revelados pelo poeta ao tratar do amor em seus sonetos e de que nos serviremos para organizar a nossa exposição. Num primeiro momento, colheremos um espaço cujos alicerces não são construídos com fundamentos ideais ou científicos e onde a filosofia não consegue penetrar ou, se o faz, comporta-se como uma intrusa incapaz de compreender a linguagem, o mistério e a festa dos amantes. Um espaço primário, quase bestial, que repercute em nosso interior e que Shakespeare faz vir à tona como contraponto às normas que regulam a superfície de nossa existência e com as quais pretendemos controlar o nosso devir. Esse espaço recusa-se a ser sistematizado e fixado em princípios compreensíveis e previsíveis, é feito de mudanças, metabolismos e dúvidas. Sua matéria é incerta, metamórfica e camaleônica. Nele, nossa identidade torna-se estranhamento, dilui-se o caráter, e a palavra e a alma do poeta, como um pincel surrealista, voam entre os vários corpos, seres e lugares para convidá-los a perder sua forma original e ingressar no universo de Eros. Não é uma palavra que descreve os entes do universo mas que os aproxima e transforma, despojando-os de sua forma e substância habituais e próprias para concebê-los como matérias plásticas a plasmarem-se e reconfigurarem-se  incessantemente  em  fusões  estabelecidas   por simpatia e antipatia, philia e neikos.

Os versos do Cisne de Avon, mais que o cinzel de Michelangelo, esculpem com o barro do amor uma physis de formas metamórficas fecundando-se reciprocamente segundo o comando de Eros. Essa physis a ciência não pode descrever, prever ou dominar. Suas leis se escrevem nos livros de magia lidos por Próspero em A tempestade (1612) para corrigir os rumos da comunidade humana, reparar o passado e fecundar no futuro um mundo melhor a deixar como herança para sua filha, Miranda. Não é à toa que Shakespeare renova o vocabulário da Inglaterra elizabetana e cria milhares de novos termos e expressões. Mais do que dos dicionários ou dos sonetistas que o precederam, suas palavras são retiradas da combustão da água, da terra, do fogo, do ar, das leis, das contingências, da história e das paixões humanas, misturadas e dissociadas pelo Amor e pelo Ódio.

Do ponto de vista da forma da linguagem, o conjunto dos sonetos shakespearianos nos revela um espaço ancestral e mágico conduzido por Eros. Do ponto de vista do conteúdo, o motivo dominante, mais que o amor, é o tempo e o conflito trágico, como no teatro shakespeariano, entre o caráter transitório e efêmero das coisas mortais e nosso anseio de imortalidade e permanência. Pois tanto o tempo da tragédia é incompatível com verdades inabaláveis quanto o seu herói é constituído pelo choque dilacerante e irreconciliável entre a porção mortal e a porção imortal que conduzem toda a sua existência.

Nesse conflito move-se a alma do poeta e percorre-se o espaço mágico introduzido anteriormente. Da díade tempo/eternidade também ergue-se o mundo de Shakespeare e encontramos nela o seu outro alicerce, segundo momento de nosso estudo.[9] Para escapar do sofrimento vivido na paixão, o amante intui o eterno e tenta construí-lo em terra, seja casando e gerando filhos, seja sublimando-o na poesia. Para enfrentar a corrosão da idade e da velhice, ele renova constantemente sua alma e sobrepõe no seu rosto as cores de um amor sempre reinaugurado e reafirmado. Para transcender à morte que tudo consome, o poeta clama aos seus futuros leitores, como nos sonetos 73 e 74, pelo reconhecimento dos seus versos, nos quais transmite para os pósteros a fidelidade de seu amor, a beleza grandiosa de seu objeto amoroso e, sobretudo, a memória do seu autor. Em cada verso vibra a tensão entre a brevidade e a eternidade, entre o tempo histórico e o tempo cósmico, entre o metabolismo e as peripécias que revolvem nossa vida e nossas cidades e a imutabilidade e companhia duradoura dos astros para os quais se voltam também Romeu e Julieta, entre os fogos-fátuos que brilham em Verona e o destino inexorável que se evidencia nos mausoléus.

Nossa convivência com o tempo, revela-nos o conjunto dos sonetos, é a mais tormentosa de todas, apesar de nos passar despercebida. O amor só se dá na fugacidade e no transitório, o amado sempre pode nos escapar. Daí o seu encantamento e prazer, daí também o sofrimento que nos faz intuir e desejar o eterno e libertar-nos daquilo que nos angustia. Para subtrair-se à corrupção do tempo e da história, pega-se da pena, desafia-se a mortalidade que se abate sobre tudo e elabora-se um lugar onde a permanência e a coesão possam ainda ter lugar: a eternidade instala-se no devir. Essa eternidade e completude em Shakespeare não é vista num passado arquetípico e perdido, como na Antiguidade grega. Ela também não se encontra em Deus  ou  numa  ordem  transcendente  post  mortem, como no Medievo. E também não é divisada no futuro libertador e redentor a que nos levaria necessariamente o progresso que a modernidade nos deu para operar o tempo, a partir do século XVIII. Shakespeare não é nem nostálgico, nem místico, nem messiânico. Sua eternidade é construída com as matérias de nossa precariedade e de nossa finitude, tal como gerando filhos ou escrevendo poemas. Não está nem antes nem depois de nosso presente, mas nas suas dobras. Por ter consciência da inscrição do homem e das coisas na caducidade do tempo e da história, o Bardo nos oferece uma eternidade laica e um efêmero deificado. Pensar o ser do tempo pela filosofia é tarefa inglória, pois o tempo é justamente aquilo que corrói o Ser e ameaça, por exemplo, a preservação do amor. O amante recusa as leis do tempo e insiste em desafiá-lo. Por isso, recorre às asas da poesia: ela nos transporta para fora do tempo em vez de pretender dominá-lo e configurá-lo, como na cronologia ou no relógio. Assim como o casal de Verona exilou-se de sua cidade e da vida para salvar a si e ao seu amor, o autor dos sonetos não encontra formas de reconciliar-se com o tempo e dele desterra-se repetidamente. Como Próspero, ele faz seu mundo nesse desterro em que habita. Um mundo onde as leis da filosofia e da ciência não mais vigoram e onde as distâncias espaciais e temporais são abolidas. Um mundo suspenso, aéreo e mágico em que é de Ariel o melhor espírito para se transitar.

O espaço do metabolismo e das metáforas

Quase um século antes dos sonetos de Shakespeare, Giorgione pinta A tempestade (c. 1505) e nela apresenta uma mulher amamentando inserida na paisagem natural que a circunda e abriga, mas dela destacada, sem esposá-la e sem prolongá-la em si. Essa “cigana”, como foi entendida na época por alguns venezianos, não habita propriamente um lugar físico ou categoria social. É uma outsider, cujo corpo quieto, indiferente e desligado do tempo e do raio que cai no centro da tela flutua em outro espaço, alheio e distante do mundo temporal e da tempestade que a ela parece inexistente. Provavelmente ilustrando o epicurismo de Lucrécio no De rerum natura, a  figura de Giorgione traz uma serenidade algo alienada e superior às turbulências da sociedade e da natureza, contemplando-as mas sem se deixar afetar por elas, como se entre o mundo e a alma humana se entreabrisse um abismo intransponível. A mesma atitude se confirma no jovem que a observa à esquerda da tela. Ele veste um traje urbano e parece ter saído da cidade, cujos muros se veem atrás dele, para investigar a natureza e a mulher com uma espécie de soberba intelectual que o faz imune à tempestade e à nudez. Essa contraposição entre natureza e cultura urbana intelectual comparece também no Concerto campestre (depois de 1508), obra atribuída a Giorgione e/ou Ticiano, entre o tocador de alaúde — personagem da corte ou da cidade — e o cantor camponês ao seu lado. A experiência da natureza, assim, só é possível pelo viés intelectual ou filosófico obtido por aquele que sai da cultura urbana para inquiri-la. Colocada no camerino ou studiolo de Gabriel Vendramin, A tempestade tem um papel pedagógico que vai além da mera exibição do gosto e do refinamento do seu proprietário: formá-lo culturalmente, introduzir o nobre colecionador veneziano nos valores e atitudes da vida contemplativa e aliviá-lo, neste lugar privado e dedicado a cultivar o espírito, das turbulências civis e militares da época.[10]

Na  mesma época, Leonardo pinta A Gioconda (1503-1506),  em que o movimento e a luz da natureza continuam no rosto da protagonista por meio do sfumato. Observemos o fundo da tela: nele, como em A virgem das rochas (1483-1484), o pintor nos apresenta um universo de mistérios, alquímico e de grutas semelhantes àquela onde Próspero reside com Miranda na peça em que o dramaturgo parece despedir-se. Em Leonardo, a experiência direta da natureza, mais livre de pressupostos intelectuais e filosóficos, distingue-se da abordagem de Giorgione. Rochas, cursos de água e uma atmosfera saturada de vapores se transmutam entre os estados sólido, líquido e gasoso na dinâmica e revolta fábrica da natureza, cujos mistério e energia afloram nos lábios da modelo, em perfeita consonância com a química universal e com a combustão recíproca dos elementos. A comunhão da subjetividade com esse universo, o prolongamento e a simpatia entre ambos, é o que está cifrado no enigmático sorriso da Gioconda. Aquilo que mistura os vapores e estados no fundo do quadro é também o que move o sangue e anima a face retratada, e é essa simpatia capturada pelo pintor o que escapa à filosofia. Indistinto do universo, o homem é, para Leonardo, “um mundo menor pois que é composto de terra, de água, de ar e de fogo, como o corpo terrestre, e  parece-se,  portanto,  com  ele”.[11]  Apesar  da  semelhança  de título entre o drama A tempestade e a tela de Giorgione, é o fundo das pinturas de Leonardo a imagem que melhor apresenta o espaço metamórfico inscrito nas metáforas compostas nos sonetos de Shakespeare.

O que possibilita o uso das metáforas é ver os elementos da natureza em relação constante entre si, fecundando-se reciprocamente, e em estreito concubinato com a alma do poeta, da mesma forma que Da Vinci vê a alma de sua modelo. É nos mistérios da natureza que o poeta encontra refletidas as leis do amor e a face do objeto amado e onde ele se refugia quando dos desassossegos e angústias trazidos pela paixão. Diz-nos o soneto 20: “Teu rosto é de mulher, que a Natura pintou,/ […]/ No começo, mulher, a Natura te fez,/ mas sua obra ao fazer, dela se apaixonou”.

Explorando a relação entre o mundo e o amor, as metáforas se multiplicam em vários níveis e com vários propósitos, não apenas “decorando” os poemas, mas constituindo-lhes o próprio conteúdo e  objeto  principal.[12]  Elas  são  retiradas  da  medicina,  do  casamento, das navegações, da corte, da pintura, da música, do direito, do comércio, da alquimia, da vida militar, do teatro, das estações, da astronomia,  da  física  e  da  matemática,  entre  outros  campos.[13]  Nos céus e astros, por exemplo, o poeta reconhece os olhos do amado, como no soneto 14:

Se bem que meu saber não tire dos astros,

Creio poder dizer-me astrônomo contudo,

Não para predizer males, felicidades,

pestes, flagelos, chuvas ou talvez o bom tempo;

[…]

Por que dos olhos teus vem todo o meu saber

E posso descobrir nesses astros constantes

Que com ser-se leal tem-se beleza próspera

E dos céus também emanam as leis secretas que governam as coisas terrenas e nossa vida, sem que saibamos dominá-las, como encontramos no soneto 15, cujos versos bem descrevem o mistério que rege as coisas em seu palco terreno: “Que sobre cada peça em palco tão imenso/ A influência do céu age secretamente;/ Quando os humanos vejo a crescer como plantas,/ Por imutável céu freados e incitados”.

São os elementos da natureza, com sua diversidade, suas mudanças e suas estações a língua pela qual o amado e o amor são descritos no soneto 18:

Posso te comparar a um belo dia estivo?

Bem mais suave e amena é a tua natureza; Crestam ventos brutais de maio ou tenros brotos E o baile do verão tem curta duração.

Às vezes, por demais ardente é a luz do sol, Muitas vezes, porém, sua áurea tez te ofusca: Toda beleza perde o seu fulgor um dia, Quando a despoja a Sorte ou dos anos o curso. Mas não murchará nunca o teu verão eterno, Nem perderá jamais essa beleza tua;

Nem de em seu negror ver-te a Morte há de gabar-se, Ao cresceres no tempo em meus versos eternos: Enquanto vida houver e o olhar puder ver,

Meus versos viverão e te farão viver.[14]

Esse universo vasto e de encantos breves é o espelho do sentimento amoroso, com suas metamorfoses constantes e sua sede de verão e beleza eternos. O estado conflituoso das paixões é figurado no conflito entre a noite e o dia, como no soneto 28:

Como hei de restaurar-me na bonança

Se órfão da graça do repouso vi-me,

Pois a opressão do dia a noite alcança,

Da noite o dia, e dia e noite oprime;

Que ambos, embora em natureza opostos,

Deram-se as mãos para me dar tortura:

Um dá-me a dura pena, outros desgostos,

Que este penar longe de ti mais dura.

Digo que és luz para agradar ao dia,

E, se há nuvens, que podes removê-las;

Louvo também da noite a tez sombria:

Douras o céu se não houver estrelas.

Mas cada dia, o dia a dor aumenta

E cada noite, a noite inda a acrescenta.[15]

O amado e sua beleza é um sol terreno que às vezes se oculta atrás de uma nuvem, como compara o soneto 33, ensombrecendo a terra e a alma do poeta: “Não me és menos caro: o astro do céu se ofusca/ Terrestres sóis também podem ensombrecer”.

Uma das chaves que servem a Baldwin para datar os sonetos são o eclipse da Lua de 8 de maio de 1594 e o eclipse do Sol que ocorre doze dias depois. Neles, o poeta vê também as metamorfoses e lutas da paixão descritas no soneto 35 e a compreensão de sua dinâmica e suas antinomias, próprias também ao reino natural e às guerras:

Cessa de te afligir com teus erros diversos: 

A fonte tem seu limo e a rosa seus espinhos;

A nuvem, o eclipse obumbram lua e sol;

No mais tenro botão o verme horrível jaz.

[…]

Introduzo o bom senso em teu senso perdido 

(Em teu próprio adversário encontras advogado)

E a mim mesmo então um processo eu intento;

Meu ódio e meu amor travam guerra civil.

Luta incessante e encontro dos termos opostos e paradoxais, como o amor e o ódio, o dia e a noite, residem na natureza e na alma até estabelecerem um conflito insolúvel. No soneto 43, o dia e a noite, a realidade e o sonho se confundem: “Meu olho vê melhor quando fechado está./ […]/ Noite meus dias são, enquanto não te vejo,/ E se contigo sonho, as noites claros dias”.

Ou então, como no soneto 75, o amor é a força erótica que fecunda a vida e torna fértil aquilo que permanecia estéril: “És para o meu pensar como o pão para a vida,/ Ou como para o solo as chuvas fecundantes;/ E para tua paz sustento luta igual/ À do avarento com o seu próprio tesouro”.

No soneto 73, a vida do poeta se reconhece no ciclo da natureza:

Em mim tu podes ver a quadra fria

Em que as folhas, já poucas ou nenhumas,

Pendem do ramo trêmulo onde havia

Outrora ninhos e gorjeio e plumas.

Em mim contemplas essa luz que apaga

Quando no poente o dia se faz mudo

E pouco a pouco a negra noite o traga,

Gêmea da morte, que cancela tudo.

Em mim tu sentes resplender o fogo

Que ardia sob as cinzas do passado

E num leito de morte expira logo

Do quanto que o nutriu ora esgotado.

Sabê-lo faz o teu amor mais forte

Por quem em breve há de levar a morte.[16]

O amor é rosa, mas é também o “verme na rosa” (soneto 95), “um menino a quem se deve deixar crescer sem temor” (soneto 105), o “céu que conduz ao inferno” e do qual é difícil escapar e não querer, como se lê no soneto 129: “Sabe isso o mundo bem, mas ninguém sabe, entanto,/ Evitar esse céu que ao inferno conduz”.

Os paradoxos, além das metáforas, são os alicerces sobre os quais se ergue toda a segunda parte dos sonetos dedicados à Dark Lady: a beleza é a cor do luto que encanta os olhos (soneto 127) e se adequa à alma e seus conflitos (sonetos 131 e 132). Se nos 126 sonetos anteriores a beleza era vista a partir de um cânone e de um modelo exterior, agora ela é admirada por sua adequação ao pathos subjetivo do poeta. Ao interiorizar-se essa beleza, multiplicam-se ainda mais as diásporas e os conflitos entrevistos no mundo e no interior do sujeito. Pelo paradoxo, ambos se harmonizam e um repercute no outro. Define-se então o indivíduo pelo ser totalmente “em-divisão”, em luta inescapável, como deposto no soneto 133: “O teu olhar cruel de mim mesmo alheiou-me/ E do outro eu que em mim vive apossou-se mais fero;/ Por mim, por ti, por ele estou abandonado:/ Tormento triplicado esse que me crucia”.

E também no soneto 134: “Dessa maneira, pois, confessei que ele é teu/ E eu mesmo hipotecado estou ao teu querer./ Mas me libertarei para que meu outro eu/ Libertes e inda possa a mim se confortar”.

As metáforas intermináveis entre o amor, a natureza e os seres revelam um mundo metabólico, paradoxal, onde os opostos convivem em luta e transformação incessantes que impedem qualquer estabilidade, por mais que a deseje o poeta e o amante, seja no espaço cósmico seja no abismo da paixão, a compararem-se e a descreverem-se reciprocamente.

O poeta não pretende dominar tais forças e antinomias ao modo filosófico, mas deslizar entre elas como uma “barca imprudente a navegar no oceano imenso e intrometer-se em vastas ondas” (soneto 80). Trafega o amante entre seus vários estados em permanente transubstanciação, como os vapores ao fundo das telas de Leonardo. A noite se transforma em dia, como o adversário no advogado e o céu no inferno. O mundo é um espaço que desliza entre os opostos imantados nos polos do Amor e do Ódio que associam e dissociam os elementos segundo leis ocultas. Eros e Tanatos andam de mãos juntas a torturar o poeta ávido da trégua e da estabilidade dos astros infensos às coisas da paixão.

Em Shakespeare, encontramos as leis que comandam a fusão dos elementos, vapores e seres de Leonardo, e dão origem à multiplicidade e ao dinamismo do existente: simpatia e antipatia, phylia e neikos, como em Empédocles de Agrigento (nascido aproximadamente em 490 a. C.), reúnem e separam tudo o que há, num processo cíclico que oscila entre estados de máxima fusão e de máxima separação. No início dos sonetos, predomina uma fusão entre amante e amado, um continuando o outro como se uma substância homogênea os constituísse. Depois eles se distanciam, estranham-se, e assistimos ao digladiar de antagonismos em que se reconquistam as individualidades. Enfim, o amante, separado de vez do amado, volta-se para a natureza, nela se espelha e silencia: do um faz-se o múltiplo e volta-se à “solitária” condição original.[17]

O  mesmo  processo  encontramos  em  Romeu  e  Julieta, peça escrita em 1594-1595, portanto no mesmo ano da maioria dos sonetos, com a diferença de que não há volta para este casal. Selado o seu pacto, os dois jovens rompem com a sociedade de Verona e só encontram amparo na natureza e no amor. Romeu, exilado para Mântua, e Julieta, afastada de seu marido, galopam rumo aos astros com seus “fogosos corcéis”, falam com as estrelas e a lua, recorrem às metáforas para compreender e assumir o seu destino. Essa simpatia com a natureza nasce da extrema solidão de quem ama e da antipatia recíproca entre o casal e a cidade dividida entre os Montecchio e os Capuleto. Entre o “canto do rouxinol e o canto da cotovia”, entre a noite e o dia, entre o amor e o veneno, move-se o casal, a precipitar-se num abismo como se subisse aos céus e irmanasse a lua e as estrelas. Não há como evitar esse céu que ao inferno conduz, lemos no soneto 129, ou vice-versa: a encontrar os céus a que o inferno, a tumba, o veneno e o exílio conduzem. O mesmo estranhamento ocorre entre Próspero e sua cidade, levando-o a fazer da natureza sua pátria, a exilar-se numa ilha deserta e a estudar as ciências ocultas: “Fui me tornando estranho a meu Estado, absorto, exilado em meus estudos secretos”, diz Próspero.[18] Diante do desfavor da Sorte e das rudezas da vida hostil, natureza e amor são as companhias e os refúgios em que nos reconhecemos e nos salvamos. No soneto 29 ecoam as solidões e os refúgios de Próspero e do jovem casal veronês:

Quando no desfavor da Sorte e dos humanos,

Solitário, me ponha a chorar meu destino,

Rogando ao surdo céu, com meus gemidos vãos;

Quando, pensando em mim, maldigo o meu destino,

[…]

E pois, pensando assim, quase a mim me desprezo,

Sonho contigo então e tal como a andorinha,

Partindo do chão gris ao romper da manhã,

Um hino vou cantar ante a porta celeste:

Chamado o teu amor, traz-me tesouros tais

Que os desdenho trocar pelo fado dos reis.

As mesmas substâncias e princípios regulam a natureza e os seres humanos, como expressa o sorriso da Gioconda. Ao contrário da pintura de Giorgione, aqui tudo está em tudo, tudo se reflete em tudo e tudo se espelha, como Fernando diz a Miranda em A tempestade: “Pareces feita da pequena parte de perfeição que há em cada criatura”.[19] Numa pequena parte de si, o universo inteiro encontra-se resumido. “Uns em outros se tornam e permanecem continuamente os mesmos”, dizia Empédocles.[20] Também Shakespeare proclama a unidade de tudo o que vive. Os amantes, as plantas, os astros, tudo o que vive é um e tudo se fecunda sob o império de Eros e Afrodite. O amor é o que permite refazer a unidade original e preservá-la, como Shakespeare propondo que seu objeto amado se case e perpetue sua beleza.

Pelo amor, introduzimo-nos na visão de mundo de Shakespeare, que se resume na frase dita por Pistol a Falstaff na Segunda Parte de Henrique IV (ato V, cena 5), escrito em 1597-1598: “’Tis semper idem…’Tis all in every part” (Tudo é sempre o mesmo… tudo está em toda parte).[21] Essa concepção de que o todo se imiscui em cada parte do universo é uma doutrina da alma e de Deus freqüente em outros poetas da Inglaterra elizabetana, na filosofia de Giordano Bruno e recorrente em toda a obra de Shakespeare. Encontramo-la escrita pela primeira vez nas Eneadas de Plotino e, literalmente, a encontramos na exortação aos Coríntios: “O filho se sujeitará àquele que todas  as  coisas  lhe  sujeitou,  para  que  Deus  seja  tudo  em  todos”.[22] Tudo está em tudo e em toda parte: all is all. Platão e Cícero usam também o semper idem para apontar a onipresença do Rei, tal como Pistol na peça de Shakespeare. Utilizada no feminino, semper eadem, a frase tornou-se divisa da rainha Elizabeth no século XVI. Em seus sonetos, o poeta a transpõe para a presença de um mesmo princípio anímico atravessando todas as partes do universo e ligando todos os seres, como a “sombra” do soneto 43 dando claridade a todas as outras sombras: “Then thou, whose shadow shadows doth make bright”.[23]

Tudo está em tudo e cada parte do universo traz em si a lei do todo e o amálgama da simpatia que a une aos demais seres e elementos: “o mel se casa com o mel, a alegria ao prazer” e “uma corda se enamora de outra em acordes harmônicos que cantam num só tom uma ária encantadora”: all in one, tudo em um e um em tudo, diznos o soneto 8. E all is all, naquele que se ama estão as feições de todos os que se amou e “tu que todos és, a mim tens todo inteiro” (soneto 31). Repete-nos o soneto 53:

A tua substância é igual, de que afinal é feito

Que se contém em ti milhões de estranhas sombras? Visto que cada um uma só sombra tem,

Tu que apenas és um todas em ti encarna.

[…]

Se de tua beleza uma o reflexo mostra,

Teus benefícios são pela outra evocados.

Em toda forma feliz és tu reconhecido:

Uma parcela tens de toda graça externa,

Mas restas sem igual como peito fiel.

A essa altura, podemos ver repercutir este tema do all in all já na enigmática dedicatória que abre os sonetos: “Ao único engendrador [begetter]/ destes sonetos que seguem/ Senhor W. H. toda a felicidade/ e essa eternidade”. E na dedicatória de outro poema do Bardo, “A violação de Lucrécia”: “Ao excelentíssimo Henry Wriothesly, Conde de Southampton […] o que fiz é seu, o que fizer é seu, como parte do todo que lhe tenho consagrado”. O lema da família Wriothesly era “um por todos e todos por um, ung par tout, tout par ung”.[24] Literalmente esse lema é citado em “A violação de Lucrecia:”

”That one for all, or all for one we gage”.[25] Estar o todo em cada parte e cada parte refletir-se no todo é a lei maior que preside a construção do espaço social e natural em que a alma do poeta habita.

Dessa reflexão de tudo em tudo nascem as simpatias e analogias que permitem compreender e descrever nossa existência por metáforas pelas quais nos reatamos ao universo e compensamos os tormentos e as discórdias em que vivemos. Os poemas não nos explicam esse todo e essa unidade: mostram-nos, como uma pintura. O segredo do amor é entender pelo que se olha, mais do que pelo que se diz ou escreve, diz-nos o soneto 24. Há em todas as coisas um elemento que as impele a misturar-se, unir-se, acasalar-se, mesmo no nível das palavras, por meio das metáforas dos poemas. Essa é a lei da Natureza, também pronunciada por Helena em Tudo está bem quando bem termina (1604): “Qualquer que seja a distância que separa um de outro os objetos, comumente a natureza os aproxima como se fossem idênticos e num beijo os reúne numa simpatia nativa”.[26]

Mas, além dessa simpatia, há também outra força natural e igualmente poderosa que impede o repouso definitivo em que tudo se resolveria, uma razão que dissocia os seres, “divorcia o amor único” e “força os amantes a viverem separados”, como aponta o soneto 39. Quando isso acontece o ambiente se torna estranho, como ao jovem casal de Verona, e o amante se põe em conflito com um mundo que não mais conhece e em que não se reconhece, até exilar-se dele. Vejamos os versos do soneto 137:

Que, louco e cego amor, fizeste dos meus olhos

Que olham mas não veem o que ver deveriam?

Conhecem a beleza e onde ela existe sabem,

Contudo, o que é melhor por pior é tomado.

[…]

Ou terão de negar meus olhos o que veem,

Pondo em tão feia face o belo da verdade?

Olhos e coração erraram no que é certo,

Presos agora estão a este falso flagelo.

Também o soneto 138 se faz da justaposição entre contrários e do “engano do mundo”: “Quando ela, o meu amor, jura-me ser fiel,/ Acredito o que diz, sabendo que ela mente./ Para que pense sou inexperto rapaz/ Que os enganos sutis do mundo não conhece”.[27]

E os sonetos 46 e 141 se fazem da contraposição entre o que vai no coração e o que se dá aos sentidos:

Travam guerra mortal, meu coração e os olhos,

Querendo repartir de teu olhar a posse;

Estes ao coração vetam a imagem tua,

E priva o coração de seu direito: os olhos.

[…]

Aos olhos cabe o teu aspecto exterior,

E o amor do coração cabe ao meu coração. (soneto 46)

Não são, por minha fé, meus olhos que te querem, Porque podem em ti mil defeitos notar:

Mas é meu coração que ama o que eles desprezam

E apesar do que vê se apraz em te adorar:

[…]

Sentidos ou razões, nada pode impedir

Que um louco coração seja teu servidor. (soneto 141)

Os dois princípios estão sempre em luta, como na “guerra civil” do soneto 35, e no soneto 142: “É meu pecado o amor, tua virtude o ódio,/ Ódio ao pecado meu, fruto de amor culpado”. Ou ainda no soneto 145: “Lábios que a mão do próprio Amor moldou/ Um som lançaram que dizia ‘odeio’,/ […]/ ‘Odeio’, mas do ódio se livrando,/ ‘Não a ti’, ela disse e me salvou”.

Também em A tempestade, os opostos exibem seus vínculos, como fala Miranda: “Devo ser louca, pois choro ante o que me alegra”.[28] Da luta entre os dois princípios do Amor e do Ódio originam-se a poesia e o cosmos do Bardo. Não há repouso nesse cosmos pois tudo nele se movimenta a partir de forças inacessíveis à razão ou à lógica explicativa da ciência moderna.

Para se compreender a physis desse espaço, a cosmogonia de Shakespeare requer mais magia do que ciência, mais metáfora do que explicação, mais poesia do que demonstração, pois, como se lê no soneto 151: “o amor não sabe o que é consciência”. A episteme exigida para se compreender a dinâmica do espaço metabólico e metafórico de Shakespeare foi aquela que a modernidade interditou e que só a compreensão do amor entre as coisas e entre nós e o universo que nos cerca pode restaurar, como instrui o soneto 78: “E com tua beleza embeleza sua arte;/ És tu toda a minha arte e fazes elevar/ Minha rude ignorância à altura do saber”.

Estando tudo em tudo, aquilo que se canta e se descreve nada mais é do que a variação do Mesmo, visto de vários ângulos e em vários momentos distintos, como numa pintura cubista. Atrás das aparências e das mudanças, tudo se repete no tempo e no espaço e os poemas nada mais são que os ecos da mesma poesia original que atravessa o cosmos, como lemos nos sonetos 76 e 108:

Por que de nova pompa o meu verso se priva

Rebelde a variações ou rápidas mudanças?

Como a cada manhã o velho sol é novo,

O que meu amor disse, ele o rediz ainda. (soneto 76)

[…] No entanto, devo sempre

Dizer a mesma coisa, assim como uma prece:

Tu és meu, eu sou teu; tudo é novo como era

Na vez primeira em que meus versos te sangraram. (soneto 108)

Semper idem: o poema é a revelação do Mesmo que se disfarça dionisicamente em todas as partes. Ele é a constância que se rebela contra a inconstância das coisas. Ele nos descreve um mundo deslizante, movediço, com formas que se fecundam e se separam por vínculos de simpatias e antipatias que só um mágico como Próspero pode reger e controlar. Esse mundo assemelha-se ao de Giordano Bruno, habitando na Inglaterra e lecionando em Oxford entre 1583 e 1585, e que muito provavelmente influenciou nosso poeta.[29] Para trafegar entre essas várias formas, o espírito do poeta tem de ser leve e ágil como Ariel  de  A  tempestade  (1611-1612).   Ariel  frequenta os vários ambientes, do “lodo das profundezas do mar até o vento gelado do norte”, e os vários elementos como o ar, o fogo, a água e as nuvens. Ele se multiplica, se divide e se reúne. Oposto ao peso de Caliban, o invisível “Espírito”, como Próspero o chama, se move mais leve do que o ar de que é feito e atravessa todo o mundo “antes que se possa respirar”.[30] Não há grande diferença entre aquilo que nos faz e a matéria dos sonhos, diz Próspero. E concluindo a peça, ele liberta o seu Espírito: “Ariel, meu passarinho, isso fica por tua conta. Depois retorna em liberdade aos elementos”.[31]

A esse mesmo Espírito leve — que dá asas à ciência e vence a pesada ignorância, como nos mostrou o soneto 78 — apela o poeta nos sonetos 44 e 45 para vencer as distâncias cruéis que separam as simpatias:

Se alma fosse só a minha carne espessa,

A distância cruel jamais a deteria.

[…]

Que importância então que do outro fim do mundo,

Sob meu pé se achasse o solo mais distante,

Se a terra e o mar transpõe o espírito volátil

No tempo que lhe basta a escolher aonde ir?

Mas morro de pensar que não sou pensamento

Pra, quando longe estás, os espaços transpor.[32]

Os outros, o ar ligeiro, o fogo que acrisola,

Estão contigo os dois, não importa onde eu more,

Pois são meu pensamento e meu desejo ardente,

Em rápido mover, rolando, onipresentes.

Elementos sutis, quando partidos forem,

Mensageiros de amor, meu terno afã levando.

São a mobilidade, a rapidez, a leveza e a multiplicidade do “Espírito” que nos são propostas nos sonetos e em A tempestade como contraponto ao pesadume do mundo e à nossa constituição mortal, aprisionada ao corpo. A sensualidade de Shakespeare exige que o espírito e o amor se encarnem, misturem-se à substância que os torna sensíveis e expostos à humanidade. Sem esse amor imprimindo suas marcas nas feições e no visível do corpo, “o mundo inteiro parece morto”, como conclui o soneto 112. Por isso, Shakespeare não é idealista: ele crê no mundo e seu amor em carne exige falar em sensualidade, sentimento, memória e imaginação, pois é nessas regiões, ao contrário do que pensará Descartes, que sua verdade se manifesta. Mas, também por isso, não há repouso. Os dois opostos não se aniquilam mas permanecem em sua diáspora e combate a regerem nossa natureza trágica e conflituosa. Ao se suicidar, Julieta diz consigo: “Barro, este é o teu centro! Volta!”. Também a substância de Caliban é pesada e terrosa, de barro e lama, a aprisonar-nos os pés.[33] E é a ela que o soneto 146 se dirige, resignado: “Do meu pecador barro és tu, pobre alma, o centro”. Somos filhos do ar e da terra, de Ariel e de Caliban, do dia e da noite, do amor e do ódio, da leveza e do peso, do céu e da terra que se combatem em nós e na natureza, sem que se alcancem o repouso e o equilíbrio.

Em cada parte do universo ressoa a alma universal. Na pessoa amada encarnam-se todas as qualidades ou todos os vícios. Estando o todo em cada parte e cada parte se refletindo no todo, as metáforas de Shakespeare movem-se generalizando o particular e particularizando o geral. O espírito impregna as substâncias e as substâncias se espiritualizam.[34]

No mundo moderno, tais polos foram separados, como em Descartes, e a primazia foi dada ao Cogito, ao pensamento, à alma que se desvencilha do corpo e do sensível para validar apenas aquilo que lhe é claro e distinto. Os sonetos de Michelangelo não utilizavam as metáforas.[35] Como nas suas pinturas na capela Sistina, onde todo o espaço natural é abolido para dar curso apenas ao drama humano, os sonetos de Michelangelo revelam uma subjetividade completamente rompida com o mundo que o cerca e incapaz de nele se refletir e encontrar identidade, como na pose da cigana do quadro de Giorgione. Em Shakespeare, portanto, encontramos talvez a última manifestação do mundo e do saber pré-modernos. É hora de revisitar esse tipo de saber, como Calvino parece ter intuído em seu Seis propostas para o próximo milênio.

O mundo metabólico e erótico que se apaga com o final do século XVI foi concebido na “semelhança” entre os seres, a natureza e a linguagem. Essa semelhança é o que permitiu conhecer o visível e o invisível e ditou a linguagem com que compreender o mundo, como mostra Foucault: “a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. […] Teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar”.[36]

Vencendo as distâncias, o espírito de Ariel avizinha as coisas e estas passam a se emularem umas às outras, espelhando-se ou combatendo-se reciprocamente. Assim, Shakespeare as vê e se vê diante do espelho do mundo, compreendendo-lhe as relações ocultas e inventando vínculos e parentescos entre elas. Assim também transita o saber de Giordano Bruno:

De sorte que não é vã esta faculdade do intelecto, que sempre quer e pode juntar espaço a espaço, massa a massa, unidade a unidade, número a número, por meio da ciência que nos liberta das cadeias de um augustíssimo império, para nos promover à liberdade de um império augustíssimo, que nos arranca da pressuposta pobreza e estreiteza para nos dar as inumeráveis riquezas de tanto espaço, de tão digno campo, de tantos mundos cultos, evitando que o círculo do horizonte, falso à vista na terra e imaginado pela fantasia no éter espaço, encarcere o nosso espírito.[37]

Eis o que constitui a invenção na poesia de Shakespeare. O mundo é um espaço de analogias e irradiações que envolve o poeta, ao mesmo tempo que este retransmite as semelhanças que recebe e estabelece o liame entre o amado e a natureza. Seus versos movem as coisas, aproximam a terra do céu, a noite do dia, o amor do ódio. Misturando os elementos, como Próspero, ele confere-lhes novos sentidos e assimila-os uns nos outros e dentro de si, como faz com aquele que ama, trazendo à luz e imbricando tudo o que se assemelha:

Janelas do meu peito, a luz do sol penetra,

Para, extático, olhar, dentro dele o teu rosto. (soneto 24)

Feliz então sou eu, pois que amo e sou amado,

Sem do amor me afastar, nem ser dele afastado. (soneto 25)

Depois, o Um se desfaz. Tudo seria sempre o Mesmo se a discórdia não abalasse as junções que a simpatia promove e impedisse os elementos e seres de caírem na assimilação definitiva que só se encontra na morte ou no ápeiron original de Anaximandro. Assim, os seres preservam sua particularidade e recuperam a sua distância. O soneto 112, entre outros, começa tratando das marcas que se manifestam no visível do rosto e que o distinguem no mundo: “Tua pena, teu amor apagam em minha fronte/ A marca que ali pôs o escândalo vulgar”.

O olhar do poeta vê o mundo prospectando-lhe as marcas e os indícios da semelhança nas coisas: o espaço do mundo torna-se para ele, além de espelho, um livro aberto onde tais marcas estão grafadas e podem ser lidas e decifradas, da mesma forma que pelo pintor ou pelo cientista. Por isso, os astros são os mesmos para o poeta, para o astrônomo e para o astrólogo: nos olhos do amado está escrito o destino. O saber deles “sulca distâncias indo, por um ziguezague indefinido, do  semelhante  ao  que  lhe  é  semelhante”.[38]  É  um  saber movediço que percorre os espaços do mundo perseguindo as marcas que se encontram por todo lugar e que sempre levam ao Mesmo, pois all is all. Nesse saber, “advinhação” (entendida como a decifração na natureza das figuras nela semeadas por Deus), conhecimento, magia e erudição — pesquisada nos antigos como em Ovídio e suas Metamorfoses, referência fundamental dos sonetos aqui analisados — estão no mesmo plano.[39] O texto do mundo e o espaço dos livros são signos que se atravessam e se fazem análogos, como as metáforas do Bardo. Os espaços da natureza e do verbo, o visível e o legível, se entrecruzam ao infinito e formam o grande livro de Próspero. Ao lançar seu livro de ciências ocultas ao mar profundo e dissociar o lido e o visto, “as palavras e as coisas”, Próspero[40] abrirá o espaço para o mundo e o saber modernos, destituídos de divination e magia, e substituirá a semelhança das formas, das coisas e das marcas pela identidade das medidas e pelas explicações, deduções e previsões engendradas pelo pensamento exilado do mundo que o cerca, solipsista, em que o conhecer deixa de comparar e aproximar coisas e passa a analisar e discernir.[41]

O tempo em fusão e divisão

Um mundo constitui-se de espaço e tempo. Fundindo seres e elementos e anulando distâncias, vimos como o espaço de Shakespeare concentra o mundo e imiscui o todo em cada uma de suas partes. De modo análogo, o saber a ele adequado é conciso, oracular e mais dedicado a expor os enigmas e paradoxos da vida do que a explicá-los exaustivamente em suas verdades últimas: afinal, “a concisão é a alma do espírito”.[42] Visto como se constitui a ordenada do espaço em Shakespeare, passemos à segunda, a ordenada do tempo, que lhe é afim.

O veloz espírito de Ariel não apenas abole os espaços, mas também vence as distâncias temporais e procura construir um mundo onde tudo se reúne e se conserva. Vencer as distâncias no tempo é vencer os vãos entre os momentos, épocas e eras — o passado, o presente e o futuro — até instalar a eternidade no devir histórico. Pela simpatia geral, vimos que os elementos trocam suas substâncias e passam a refletirem-se uns aos outros e ao Mesmo que os liga. Essa troca é feita não só entre aquilo que está separado no espaço mas também entre aquilo que está afastado no tempo, superando seus intervalos e a corrupção gerada por ele. A relação do homem com o tempo é, sem dúvida, uma das matérias-primas mais proeminentes em Shakespeare e constitui a base trágica da condição humana e do herói de seus dramas.

O tempo corrói nosso corpo, revela verdades surpreendentes e às vezes terríveis, dá às nossas ações efeitos contrários ao que pretendíamos, revira as coisas e os homens de todas as formas possíveis jogando-os no inesperado das contingências e num indeterminismo que nunca permite-nos ter completa segurança de nossa existência e dos caminhos do mundo. A fortuna, para usarmos o termo caro aos renascentistas, é a lei insondável e indômita que o homem pré-moderno é obrigado a aceitar. Se a ciência moderna dominou processos físicos e providenciou equações que nos dão a previsibilidade dos fenômenos, fê-lo mutilando o tempo e destituindo-o da grandeza, ameaça e poder que ele oferecia ao homem da divinatio. Toda a tragédia de Romeu e Julieta se faz pela desarticulação das pessoas com o tempo, precipitando tudo: possuído pela paixão arrebatadora, o casal não sabe esperar o momento certo para concretizá-la; a contingência leva ao assassinato de Mercúrio e ao exílio de Romeu; o acaso atrasa o mensageiro que segue para Mântua provocando a desgraça fatal e Romeu “morre num beijo” um segundo antes que sua amada desperte da enganosa morte. A urgência do jovem casal e o clima precipitado da história acabam levando-o à eternidade da morte. Pois a ele, uma vez que os amantes exigem a rapidez e a mobilidade do espírito de Ariel, não se coaduna a pesada lentidão do tempo que governa a cidade. É do tempo, passado e futuro, que saem as verdades que enlouquecem o Rei Lear e é do tempo que Hamlet procura escapar meditando sobre o sono e a morte no monólogo do “Ser ou não ser”, a que retornaremos adiante. Em “Vênus e Adônis”, o primeiro poema  escrito  de  Shakespeare  (1593),[43]  já  encontramos  lançado este tema que atravessará toda a sua obra:

Dos produtos da terra esperas nutrição,

Sem a terra nutrir com tua fecundez?

Da natureza a lei te obriga a gerar seres

Que possam viver quando estejas tu morto;

E assim, mau grado a morte, hás de sobreviver,

Pois vivos ficarão os que de ti nascerem.[44]

Também a dedicatória dos sonetos já aponta o tema e torna presente a eternidade pretendida pelo poeta. No espelho dos seus versos, o reflexo do tempo ilumina a “eternidade”, o que permanece e conserva, em combate contra o transitório e os fogos-fátuos de nossa passagem pela terra, como O sonho de uma noite de verão (1595-1596), peça escrita na mesma época dos sonetos. A luta entre o eterno e o transitório constitui o tempo do mundo shakespeariano, tal como aquela entre o Amor e o Ódio determina o seu espaço. Todos os seus sonetos serão uma luta para vencer ou escapar do tempo devorador e consumidor de todas as coisas, tempus edax rerum, como se repete nas Metamorfoses de Ovídio (XV, 234), talvez o autor que mais influenciou os poemas do Bardo.

Os primeiros sonetos, especialmente até o décimo sexto, trazem explicitamente tal tema e poderiam ser vistos como o desdobramento daquilo que se concentra na estrofe já citada de “Vênus e Adônis”. Neles, apela-se ao amado para casar e gerar filhos, perpetuando assim sua beleza, legando-a para os pósteros e tornando-a infensa à passagem do tempo. Depois, serão os versos que cuidarão de instalar essa beleza e o amor do poeta na eternidade, sempre os renovando e os transmitindo às gerações futuras. As leis inexoráveis do tempo governam o mundo em que nos movemos, mas são desafiadas pelos versos do poeta ávido da permanência, da transcendência e da eternidade atribuídas ao amor e à poesia. Por meio dos versos, Shakespeare prolonga sua existência e apela a nós, leitores, como no soneto 74, para preservarmo-lo na memória e na eternidade, vencendo os limites mortais:

Não fiques triste, amigo, à hora em que, sem caução,

Vier deter-me um dia esse cruel arresto,

Pois terá minha vida interesse em meus versos

Que devem junto a ti defender-me a lembrança.

O que podes rever, se estes versos revires,

É esta parte de mim que te foi consagrada:

De mim mesmo o melhor, minha alma, a ti pertence,

Se este barro que sou deve ao barro voltar.

E do meu ser assim perdes a lia apenas,

Aos vermes dada em presa à hora em que o corpo morre,

Conquista sem honor da faca de um vilão,

Indigno de encontrar recordação em ti:

Minha alma o preço faz que nele está incluso,

E jaz junto de ti, nestes versos, minha alma.

Apenas no soneto 115 o tempo aparece como aliado do amor por deixá-lo crescer até se manifestar plenamente e fazer-se reconhecer: “Um menino é o amor; por que não o disse eu,/ Deixando sem temor crescer quem sempre cresce?”.

Nos demais, o transitório e a corrupção aplicada pelo tempo a todos os seres e coisas são os grandes inimigos do poeta, do amor e da beleza. Contra esse inimigo, o nosso “Will”, nome que significa “vontade e desejo” como às vezes ele joga em alguns de seus sonetos,[45] dirige suas maiores lanças e vibra-as no ar com todo o vigor, como sugerem-lhe o sobrenome Shakespeare e o brasão familiar.

Guerreando contra o Tempo, a poesia repõe o que ele tira: “E, pelo amor de ti, em guerra contra o Tempo,/ De novo, enxerto em ti tudo quando te toma” (soneto 15).[46]

As horas tiranas do Tempo levam tudo à morte e à destruição, como lemos nos sonetos 5 e 60:

Pois o tempo não para e arrastando o verão

Ao horrível inverno, ali vai destruí-lo;

A seiva se congela, as folhas verdes caem,

Tudo o que é belo a neve encobre, esteriliza. (soneto 5)

Como as ondas que vão rolando para a praia,

Também para seu fim se apressam nossas horas,

[…]

A infância, uma vez, no pleno mar da luz,

Para a velhice ascende, aonde ao ser coroada

Contra seu esplendor lutam traidoras trevas,

E o Tempo que a ajudou seus dons ora destrói.

Destrói da mocidade o brilhante ornamento,

Na fronte da beleza abrindo muito sulco;

Da natureza toma os mais ricos tesouros

E à sua foice tudo aqui deve tombar:

Mas aos tempos por vir meus versos desafiam

E hão de te louvar, mau grado a cruel mão. (soneto 60)

Contudo, conclui o soneto 5, algo deve perdurar depois que o Tempo aplica sua foice: “Mas a flor destilada, inda que a toque o inverno,/ Perde o brilho, porém, seu perfume perdura”.

Repete-o o soneto 54: “Morre só: mas a morte odorante das rosas/ Faz perfumes nascer inda mais odorantes./ Quando assim te murchar a bela juventude,/ Distilará [sic] meu verso a essência que conténs”.

Sobre aquilo que a poesia destila, o Tempo não age. Cumpre ao amante e ao poeta não deixar o perfume dessa flor ou “beleza demasiada” ser conquistado pelos vermes e pela morte (soneto 6). Por  isso, seguindo uma concepção comum no Renascimento, essa beleza deve gerar frutos, casar e ter filhos.[47] Esse argumento já encontramos em Platão: a beleza do corpo deve se perpetuar na procriação, pois “é próprio da natureza mortal, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal”.[48] E procriar é uma dessas possibilidades. Apoiado nesse argumento, Shakespeare insiste:

Sozinho morrerás, se um filho não tiveres. (soneto 7)

Um só parece e diz: “Sozinho, serás nada”. (soneto 8)

Torna-te outro tu, pelo amor que me tens;

Para que possa o belo em ti viver, nos teus. (soneto 10)

Emblema seu te fez, desejando por ti

Reproduzido vê-lo e não vê-lo extinguir-se. (soneto 11)

E da foice do Tempo a defender-te apenas

Um filho a o enfrentar, quando vier buscar-te. (soneto 12)

Além desses “filhos e perfumes” gerados, os versos do poeta são os instrumentos fundamentais mediante os quais se faz perdurar aquilo que resiste ao Tempo:

Mas se algum filho teu viver ainda então,

O dobro viverás por ele e por meus versos. (soneto 17)

Enquanto vida houver e o olhar puder ver,

Meus versos viverão e te farão viver. (soneto 18)

O soneto 19, “um dos maiores da língua inglesa com suas violentas linhas iniciais”,[49] retrata bem a luta dos versos contra a voracidade do tempo e o vasto universo de encantos breves e gozos passageiros:

Tempo voraz, ao leão cegas as garras

E à terra fazes devorar seus genes;

Ao tigre as presas hórridas desgarras

E ardes no próprio sangue a eterna fênix.

Pelo caminho vão teus pés ligeiros

Alegres, tristes estações deixando;

Impões-te ao mundo e aos gozos passageiros,

Mas proíbo-te um crime mais nefando:

De meu amor não vinques o semblante

Nem nele imprimas o teu traço duro.

Oh! permite que intacto siga avante

Como padrão do belo no future.

Ou antes, velho Tempo, sê perverso:

Pois jovem sempre há-de o manter meu verso.[50]

E o mesmo ocorre no desafio do soneto 63:

Para esse tempo é, pois, que ora me fortaleço

Contra o ferro cruel da idade que destrói:

Se deve ela cortar de meu amor a vida,

Não lhe arranque a beleza aos corações de todos:

A tinta deste livro a fará ressurgir

E meu amor, assim perene, há de durar.

Mas, além dos filhos e versos, também o próprio amor resiste ao tempo e escapa aos seus efeitos. Como em Romeu e Julieta, “o amor ri de muralhas e barreiras”, não admite entraves e resiste ao que quer arruiná-lo. Se disso ele não for capaz, então ele não é amor, tema do soneto 116:

Que eu não veja empecilhos na sincera

União de duas almas. Não amor

É o que encontrando alterações se altera

Ou diminui se o atinge o desamor.

Oh, não! amor é ponto assaz constante

Que ileso os bravos temporais defronta.

É a estrela guia do baixel errante,

De brilho certo, mas valor sem conta.

O Amor não é jogral do Tempo, embora

Em seu declínio os lábios nos entorte.

O Amor não muda com o dia e a hora,

Mas persevera ao limiar da Morte.

E, se se prova que num erro estou,

Nunca fiz versos nem jamais se amou.[51]

É preciso instalar a eternidade no devir, sem recorrer a uma vida após a morte, ao mundo das ideias ou a um passado mítico. Shakespeare laiciza a eternidade, tal como Alberti o fizera na primeira metade do Quattrocento italiano. Escapando das armadilhas do Tempo, por meio dos filhos, da poesia e do amor, abolem-se os seus efeitos, como a velhice, o esquecimento e a morte, e as categorias passado, presente e futuro. Repete-se o que foi feito com o espaço: com as asas de Ariel voa-se além das distâncias e encontra-se o Mesmo que liga os anos e as épocas. O poema, portanto, encontra aquilo que nunca muda, o eterno que se reparte em cada fragmento do tempo, do instante até as mais vastas eras, tal como o todo do espaço imiscui-se em cada uma de suas partes, elementos e seres.

De fato, atrás das aparências das mudanças nada é novo e o poema nada pode fazer a não ser repetir a mesma coisa sob formas diversas. O trabalho do poeta é assim uma eterna reescritura: nihil dictum quin prius dictum, como disse Terêncio,[52] serve como chave para se compreender a poesia e o mundo de Shakespeare como perpétuas reescrituras do Mesmo. É o que nos confirmam os sonetos 59 e 76:

Se nada novo existe e se as coisas presentes

Vida tiveram já, enganados ficamos

Se, em mal de invenção, geramos sem propósito

Um ser anterior, duas vezes gerado! (soneto 59)

 

Por que de nova pompa o meu verso se priva, rebelde a variações ou rápidas mudanças?

Por que do tempo meu não sigo os novos métodos,

Mas das composições à estranheza refujo?

Por que escrevo inda só, e sempre a mesma coisa, disfarçando a invenção com enfeites banais,

[…]

Basta-me revestir de novo velhos termos,

De novo despendendo o que já despendi:

Como a cada manhã o velho sol é novo,

O que meu amor disse, ele o rediz ainda. (soneto 76)

Impedir a ação da “foice e da curva faca do Tempo” (soneto 100) e verificar com tristeza ser a vida breve — vitae summa brevis, como diz Horácio — e tudo nela tão transitório não conduz o poeta ao carpe diem e ao carpe florem, gozar ao máximo os dias e a juventude, a reconciliar-se com o Tempo ou a salvar-se na morte. A salvação é não estar no Tempo, não aceitar suas leis e permanecer desafiando-o e tentando perpetuar e preservar aquilo que ele ameaça, fazendo versos mais fortes que “as pedras, o mármore e os áureos mausoléus” (sonetos 55 e 107). O Tempo, o passado, o futuro e o presente, são ilusões. Ele só oferece simulacros, transformações e novidades incessantes, a cujo encanto foge o poeta, como no soneto 123:

De me fazer mudar, não te gabes, ó Tempo.

As pirâmides que de novo construíste

Para mim nada têm de novo nem de estranho;

São elas do já visto a imagem disfarçada.

Os dias breves são: o arrebatar deixamo-nos

Por coisas bem senis, mas dadas como novas,

[…]

Desafio a um tempo, a ti e a teus anais:

Não me espanta ou me encanta o presente ou o passado; Falsa a tua lembrança e falso o que se vê,

Que se aumenta ou reduz por tua presa incessante.

Faço este voto ao qual sempre me apegarei:

Fiel sempre, apesar de ti, de tua foice.

As ilusões, os metabolismos e as peripécias que a Fortuna engendra em nossa vida por meio do Tempo impedem que o mundo de Shakespeare se apoie em verdades definitivas e totais. Nele, nada é fixo e imutável e cedo ou tarde toda forma é arruinada e pode dar lugar até mesmo ao que lhe é contrário. Essa é a lei da natureza, como lemos no soneto 126, e também a lei da tragédia e, especialmente, das peças de Shakespeare, como vimos em Romeu e Julieta.

No soneto 60 o Tempo cria as coisas para depois destruí-las num jogo que nos prende e arruína, e do qual o poeta pretende escapar. Como Tempo criador encontramo-lo nas palavras de Proteu em Os dois fidalgos de Verona.[53] Como destruidor e voraz, o Tempo é visto na fala inicial de Trabalhos de amor perdidos.[54] O Duque em Medida por medida busca no bronze uma recordação segura “contra as mordidas do tempo e as rasuras do esquecimento”.[55] Bassânio, em O mercador de Veneza, condena  as novidades  e verdades superficiais que se servem “de um século pérfido para enganar os mais sensatos”.[56] O Rei na Segunda parte de Henrique IV expõe as angústias diante das reviravoltas que o Tempo promove e a ausência de um mundo estável:

Ó Deus, se fosse possível ler o Livro do Destino e ver as revoluções dos tempos, às vezes aplainar as montanhas e dissolver no mar o continente fatigado pela sólida firmeza. […] Se fosse possível ver como as circunstâncias nos ridicularizam e de que licores diferentes as vicissitudes das coisas enchem a taça móvel da Fortuna.[57]

As marcas do Tempo e as verdades que vêm à tona com ele emergem diante do espelho que Hamlet expõe à mãe. Acusa-nos também o espelho do soneto 77:

Ao espelho verás declinar-te a beleza

E na volúvel montra ir-se teu rico tempo;

[…]

As rugas que um sincero espelho mostrará

Far-te-ão relembrar a tumba escancarada;

Na montra, a hora que foge a ti ensinará

Que para a eternidade o tempo a furto avança.

Colocando o espelho diante de nós, Shakespeare não nos mostra apenas os sinais do Tempo em nossa face. Mostra-nos que a descontinuidade temporal e espacial está em nós mesmos. O conflito e o solo movediço que encontra no mundo e nas coisas residem, sobretudo, dentro do homem: um espelha o outro. Nossa natureza, mais do que nossa condição, é intrinsecamente trágica. E à medida que o amante é obrigado a separar-se do amado e reconhece a crueldade do Tempo e o conflito incessante daquilo que nos cerca e nos habita, o poeta vai progressivamente mergulhando dentro de si mesmo e faz dos seus versos sua única salvação, não mais para preservar seu amor ou reconciliar-se com o mundo e o Tempo, mas para reconciliar-se consigo mesmo.

Quando o casal desafia as estrelas e o destino em Romeu e Julieta, “I defy you stars”, culmina sua ruptura com o universo que o cerca, com o tempo e a sociedade à sua volta. Sua solidão, igual à do poeta nos sonetos, é o último abrigo no qual ele encontra simpatia e salvação. Na tragédia moderna, a solidão, a morte e a loucura, como no Rei Lear, não são castigos mas preservação de si diante da inconstância do mundo e da volubilidade da Fortuna. Lemos no soneto 147: “Incurável estou se a razão não tem cura,/ E louco furioso a agitar-me sem fim;/ Tudo o que penso e digo é coisa só de louco,/ Sem nada na verdade expresso no que diz”.

Dessa solidão e loucura nascem o herói, a ciência e o mundo modernos. Trata-se de um mundo vil e estranho: a sociedade é hostil e a natureza não mais espelha o que vai na alma. Para equilibrar-se com esse mundo em que  não mais  nos reconhecemos,  o poeta  se “aliena” e mergulha no próprio pathos, torna-o infinito, como  infinito se torna o universo da ciência moderna submetido ao domínio e ao controle do sujeito mas incapaz de significar e dizer mais nada, ao contrário de quando era lido sob a chave da semelhança e das metáforas. Os sonetos 83, 85 e 86 mostram-nos o mergulho do poeta em sua própria subjetividade e a ruptura com o que lhe é externo, a fim de distinguir-se daquilo que o cerca. Diante de um universo estranho, mudo e banal, o poeta se cala:

De pecado, imputaste a mim esse silêncio,

Quando o saber calar foi minha excelsa glória,

Pois, mudo, dano algum causa à tua beleza. (soneto 83)

Contém-se minha musa e, discreta, se cala

[…]

Mas é na minha mente que o amor por ti,

Bem que tarde a falar, jaz em lugar primeiro.

Estima neles, pois, o ar de suas palavras,

É o amor mudo em mim que diz tudo o que deve. (soneto 85)

Enquanto teu semblante o verso seu enchia,

O meu se esvazia, o meu enfraquecia. (soneto 86)

E, calando-se, os conflitos, antes localizados no universo ou na relação amorosa, passam a ser subjetivados e o amante divide-se por dentro, dilacerado por indissociáveis sentimentos opostos. A partir do soneto 88 o olhar do poeta tematiza uma subjetividade em conflito e a luta contra si mesmo e seus sentimentos, “aplicando golpes em si mesmo com a própria mão”:

Lutando contra mim, tomarei teu partido

A provar teu valor, perjuro que me deixas. (soneto 100)

Por ti contra mim mesmo é preciso bater-me,

Pois amar eu não devo alguém a quem odeias. (soneto 89)

Os sonetos começaram pela simpatia estabelecida entre o universo e o sujeito. Mesmo quando a harmonia foi rompida, sob a metáfora do distanciamento e do conflito amoroso, o universo permaneceu refletindo o sujeito e vice-versa, um ao outro se reconhecendo e amparando. A esta altura, quando estamos concluindo a série de sonetos, o espelho parece se quebrar pois se dissolve o elo que unia o sujeito e sua imagem cósmica. É sob o signo da alienação e do exílio perante um “mundo estranho” que os sonetos vão se concluindo, internalizando no sujeito as leis antinômicas e os paradoxos da natureza.

A série final dedicada à Dark Lady apresentará, em lugar do encantamento que movera o amante até o soneto 126, um amor subjetivado e um poeta entre o vício e a virtude, entre a beleza e o luto, entre o remédio e o veneno, entre o prazer e a dor, entre a verdade e o engano. Sendo o mundo falso e enganador, o tempo uma ilusão, o amado traidor e os homens vis, o único lugar em que alguma verdade e perenidade podem existir é na subjetividade do poeta. Mas, ao interiorizar o amor, crendo dar-lhe o lar calmo e inabalável que o livraria das leis da Fortuna, do acaso, do contingente e das armadilhas e enganos do Tempo, o preço pago é a simultânea introjeção do conflito universal entre o Amor e o Ódio, phylia e neikos, e o cisalhamento do “eu”, como se repete a partir do soneto 127, a constituir-se sempre entre o reconhecimento e o estranhamento de si:

O teu cruel olhar de mim mesmo alheiou-me

E do outro eu que em mim vive apossou-se mais fero;

Por mim, por ti, por ele estou abandonado. (soneto 133)

Mas me libertarei para que meu outro eu

Libertes e inda possa a mim me confortar. (soneto 134)

O soneto que melhor ilustra o cisalhamento do sujeito é o 144, pois trata do cisalhamento do Amor que antes constituía o vínculo das coisas e entre o poeta e o mundo. Um amor dividido já não pode unir mais nada:

Dois amores — de paz e desespero —

Eu tenho que me inspiram noite e dia:

Meu anjo bom é um homem puro e vero;

O mau, uma mulher de tez sombria.

Para levar a tentação a cabo,

O feminino atrai meu anjo e vive

A querer transformá-lo num diabo,

Tentando-lhe a pureza com a lascívia.

Se há de meu anjo corromper-se em demo

Suspeito apenas, sem que dizer que seja;

Mas sendo ambos tão meus, e amigos, temo

Que o anjo no fogo já do outro esteja.

Nunca sabê-lo, embora desconfie,

Até que o mau meu anjo contagie.[58]

Também Otelo se refere ao amor como “encantador demônio” e acredita ser Desdêmona “honesta e desonesta”, “justa e injusta”.[59]

Os sonetos da última série, sob a metáfora da “beleza negra” da Dark Lady e escritos por quem vive na dúvida, tratam do paradoxo e do ambiente conflituoso e incerto intrínseco à natureza humana e do qual talvez só se possa escapar no silêncio definitivo da morte, único momento onde o espírito alcança a liberdade, como nas pietàs de Michelangelo.

Reino da pura objetividade, o mundo externo fica desinteressante, matéria de uma ciência dura, pesada e separada da poesia tal como o poeta é obrigado a divorciar-se do amante e recolher-se na caverna de sua subjetividade. Também nesse momento a ciência separa-se da magia para tornar-se “moderna” e operar a natureza segundo quantidades, causas e efeitos, e não mais segundo phylia e neikos, “simpatias” e “antipatias”. Amor e Ódio, daqui em diante, regularão apenas a matéria das paixões e não servirão para engendrar a physis. Também estranhas entre si, a linguagem separa-se das coisas que antes marcava e passa apenas a indicar os estados delas no novo tempo das equações físico-matemáticas voltadas para estabelecer causas e previsões dentro de uma linha evolutiva que progride rumo a um futuro infinito. Em Shakespeare, o tempo cíclico remetia sempre ao Mesmo. Agora, o tempo moderno do mundo é linear, separa passado, presente e futuro. Enquanto o conhecer shakespeariano comparava as coisas e as unia por analogias, o tempo moderno separa-as entre si e dedica-se a comparar apenas os estados diversos de um fenômeno ou ser dentro de sua régua apontada sempre para o futuro. A episteme da semelhança entre os seres é substituída pela da diferença entre seus diversos estados no tempo, como na “cera” de Descartes ou nas leis do movimento newtoniano, e a simultaneidade espacial é substituída por uma espécie de cronologia. O mundo das horas se abate sobre o mundo de Ariel.

Refletindo a substituição do tempo cíclico pré-moderno pelo tempo linear da modernidade, as palavras divorciam-se das coisas e passam apenas a indicá-las, a referenciá-las. O visto e o lido se separam e o mundo deixa de ser um livro para ser um objeto da experiência laboratorial. Nesse mundo, o belo e a verdade não mais coincidem e torna-se anacrônico o poeta pré-moderno que nos diz no soneto 105:

A verdade, o belo, o bom são todo o meu assunto;

A verdade, o belo, o bom, a outros temas misturo

E em vários os tornar-se esgoto meu talento:

Três temas em um só que abrem campo imenso.

A verdade, o belo, o bom, por vezes só viveram;

Um só formando nunca ainda foram vistos.

Separadas a verdade da ciência e a beleza da arte e da poesia, o mundo moderno conferiu-lhes autonomia ao interditar a fecundação recíproca que entre elas havia no “mundo da similitude”. Do aprisionamento de Eros, construíram-se o progresso e a liberdade científicos e artísticos modernos. Daqui em diante, o ser pleno da linguagem só residirá na literatura, e não mais poderá ser “adivinhado” no universo ou no rosto sem marcas do amado.[60] O livro a ser lido residirá agora na subjetividade exilada do poeta, de modo similar ao universo da nova ciência, que não será mais lido nas coisas mas no Cogito da razão moderna e suas representações em termos de quantidades e equações, a validarem os fenômenos. O homem moderno vive na dúvida e descrê do mundo. Por isso, aquilo que os olhos veem não é mais, agora, o que deveriam ver, como nos sonetos 137 a 150:

Que louco e cego amor, fizeste dos meus olhos

Que olham mas não veem o que ver deveriam?

[…]

Ou terão de negar meus olhos o que veem,

Pondo em tão feia face o belo da verdade? (soneto 137)

E este mundo perverso é agora tão mau

Que orelhas loucas creem nas calúnias mais loucas.   (soneto 140)

 

Ai de mim! Que olhos pôs Amor na minha face

Que não conseguem ver a visão verdadeira?

[…]

De espantar não é o caso o engano dos meus olhos.   (soneto 148)

Tu amas os que veem, eu, porém, cego estou. (soneto 149)

Os sonetos in-versos: da descrença moderna à crença pré-moderna no mundo

O mundo com que nos deparamos ao final dos sonetos não é mais aquele familiar em que o amante encontrava espelho, marcas e semelhanças constitutivas da linguagem com que ler o mundo e a si mesmo. Agora, temos um mundo ilegível, de cifras irreconhecíveis e onde phylia e neikos não operam mais. Trata-se de um mundo vil e ilusório, do qual, como diz Romeu em relação a Verona, o homem se encontra “desterrado”. Nos poemas 66, 71 e 73, centrais no conjunto dos sonetos, o talvez “último poeta pré-moderno” prenuncia essa “habitação desterrada” de nossa era:

Cansado de tudo invoco a paz da Morte,

Cansa-me o valor ver fadado a mendigar,

Que a oca nulidade em luxo refocila, 

Que a pura lealdade é vilmente traída,

A virgínea virtude entregue à corrupção,

De modo vergonhoso as honras repartidas,

Sem razão difamada a própria perfeição,

Que o poder claudicante o mérito mutila,

Que pela autoridade é a arte emudecida,

Que a tolice se gaba e ao talento se impõe,

Que a simples boa-fé de simplória é chamada

E ver que o bem cativo é do mal servidor,

Fatigado de tudo, eu tudo deixaria,

Se não fosse o morrer deixar só o meu amor. (soneto 66)

Esses versos equivalem-se ao mundo adverso denunciado na dúvida de Hamlet no início do terceiro ato:

Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais nobre para o espírito: sofrer os dardos e setas de um ultrajante fado, ou tomar armas contra um mar de calamidades para por-lhes fim, resistindo? […] Porque, senão, quem suportaria os ultrajes e desdéns do tempo, a injúria do opressor, a afronta do soberbo, as angústias do amor desprezado, a morosidade da lei, as insolências do poder e as humilhações que o paciente mérito recebe do homem indigno, quando ele próprio pudesse encontrar quietude com um simples estilete? Quem gostaria de suportar tão duras cargas, gemendo e suando sob o peso de uma vida afanosa, se não fosse o temor de alguma coisa depois da morte, região misteriosa de onde nenhum viajante jamais voltou, confundindo nossa vontade  e impelindo-nos a suportar aqueles males que nos afligirem, ao invés de nos atirarmos a outros que desconhecemos?[61]

No poema e no monólogo, o mundo dos homens é por demais hostil e pesado para que a fragilidade de nossa existência possa enfrentá-lo e para que a perfeição, a virtude e a harmonia possam ter lugar e triunfar. Nada que seja leve, delicado e despretensioso sobrevive nesse mundo. A morte parece uma solução, mas a adiamos por temer o que ela nos reserva ou por deixar só no mundo aquele que se ama. Nenhuma reconciliação à vista: “é impossível alguém sentir-se em casa entre as coisas deste mundo ou fazer as pazes com elas”.[62] “O mundo é vil”, diz-nos o soneto 71. Para salvar-nos, restam-nos a morte, o sonho ou a total ruptura com ele, decretando-se um autoexílio e convertendo em estranhamento e máxima distância as antigas familiaridade e identidade experimentadas quando ele era ainda “pré-moderno”. Minada a confiança no mundo, o saber que se fazia por semelhanças faz-se, agora, por diferença e oposição entre o sujeito e o universo circundante, aquele submetendo este ao império de sua razão. Com Hamlet, alienado do mundo, assistimos a esse conflito depositar-se no interior da própria subjetividade. Ler os 154 sonetos é, portanto, passar de um mundo a outro e encontrar as origens daquele em que viremos a habitar.

Nos sonetos aflora, então, a matéria-prima sobre a qual se constitui o homem maneirista e seu descendente, o homem moderno, ou seja, nós: o sentimento de alienação, impotência e perplexidade diante de um mundo em que não mais nos reconhecemos e do qual pretendemos sempre nos destacar como a “cigana” de A tempestade, de Giorgione. Perguntar-se pelo que se é ou almejar a reconciliação definitiva na morte, na solidão e na loucura ocorre quando o mundo, outrora harmonioso, foi dividido e desumanizado, obrigando o sujeito também a se dividir e mover-se entre planos de realidade diversos em que o real e o sonho se confundem. Ao dirigir seu talento para a dramaturgia, Shakespeare consegue um modo mais adequado de retratar esse conflito em que a ideia e o lírico não mais sobrevivem de forma pura, como na poesia, mas chocam-se com o “mundo estranho e vil” circundante para constituir o drama das tragédias e a melancolia que se disfarça em suas comédias. O dualismo entre o mundo das ideias e o mundo da realidade esteve presente também na Antiguidade e na Idade Média como, por exemplo, ao levar o santo a renunciar ao mundo e a privilegiar a vida contemplativa, e comparece no detachment epicurista da figura principal do quadro de Giorgione. O que é propriamente moderno em Shakespeare é que esse conflito se torna antagonismo do qual não se pode escapar e que acaba por introjetar-se e constituir o pathos individual e o indivíduo moderno, perpétuo “ser-em-divisão”.

O que o conjunto de sonetos nos revela, portanto, é a alteração radical do espaço e do tempo que constituem o mundo, da relação que o poeta tem com ele e do saber requerido ao conhecimento dele, dos homens e de si. O Shakespeare do início dos sonetos crê no mundo, como Leonardo. Trata-se de um “mundo em fusão”, a dominar a maior parte dos sonetos, em três acepções: fundem-se os espaços e os seres, funde-se o Tempo até derretê-lo, funde-se o poeta com o universo que o cerca, e, nessa fusão, ele encontra o sentido do cosmos e funda-se a si próprio. O Shakespeare do final dos sonetos descrê do mundo e inquire-o incessantemente, como o jovem veneziano pintado no quadro de Giorgione. Por meio dos sonetos do Cisne de Avon, passa-se da crença à descrença no mundo do qual se está cindido, da atitude fenomenológica de Leonardo diante dele ao frio detachment de Giorgione, do mundo pré-moderno ao mundo moderno e turbulento com o qual é impossível harmonizar-se. “Todo homem é mau e reina no seu mal” (soneto 121), o tempo é uma ilusão (soneto 123), o mundo é o espaço perverso de paradoxos e enganos sutis e onde “o que é pior torna-se o melhor” (sonetos 137, 138 e 141). Durante os sonetos assistimos à visão do poeta desvelar um mundo estranho nas entranhas daquilo que antes lhe era familiar. Quando esse mundo estranho e fraturado passa a dominar e constituir o real, o poeta cede lugar ao dramaturgo e o trágico superpõe-se ao lírico.[63]

Reler os poemas de Shakespeare reabre a possibilidade de o lírico e o poético contaminarem a razão científica e transformarem o mundo até construir nele espaços, ainda que mínimos, onde se produzam novas semelhanças e identidades, reconfigure-se o tempo dentro da díade com a eternidade, reaproximem-se as distâncias, rearticulem-se saberes e torne-se familiar aquilo que nos parece estranho. Investigar a epistemologia e a metodologia embutidas na escrita do Shakespeare-poeta — a dizer sempre o Mesmo e a desconfiar ser o novo o revestimento enganoso do velho — nos conduz a reinscrevê-las no século XXI para desafiar os encantamentos e ilusões do espaço e do tempo que ele insiste em nos oferecer. Isso significa voltar a crer no mundo, voltar a experimentá-lo como livro cheio de marcas pelas quais fazemos correspondências e leituras as mais surpreendentes, encontrando simpatias em territórios, disciplinas, tempos, espaços, religiões, raças e recantos que antes julgávamos distantes, até refazer o mundo como a casa de todos nós, até religar a ficção ao real, o afeto ao saber, o Belo ao Bem e à Verdade. Esse “campo imenso”, como vimos no soneto 105, abre-se quando fundimos espaços e tempos, como proposto na poesia do Bardo. Em resumo, significa inquirir em que medida ainda é possível reintroduzir Ariel, o “Espírito”, nas letras, nas ideias e nas ações diante de um mundo tão pragmático, dogmático e indomável; em que medida contrapor ao destino que nos abate um projeto de futuro que nos liberte e uma marca que identifique nossa passagem em um território tão inóspito e efêmero. Como avisa o soneto 74, junto de nós jazem os versos de Shakespeare. Eles esperam ser relidos neste momento em que nos cumpre proceder à revisão do mundo onde pretendemos habitar e reconduzi-lo, novamente, de estranho a familiar. Para isso, talvez devêssemos então reler os 154 sonetos de trás para frente, partindo de Giorgione e sua ruptura com o mundo até retornar a Leonardo e sua comunhão com ele.

Notas

[1] Apresentado pela primeira vez e de forma resumida no ciclo de conferências Poetas que pensaram o mundo, promovido pelo Centro Cultural Banco do Brasil em outubro de 2003, este artigo integra nossos estudos desenvolvidos na pesquisa “Arquitetura e humanismo”, apoiada pelo CNPq. Gostaria de dedicá-lo ao amigo e professor José dos Santos Cabral Filho, que me presenteou com a edição do The Globe illustrated Shakespeare aqui utilizada. A ele sou eternamente grato e devedor. Não poderia também deixar de agradecer a confiança em mim depositada por Adauto Novaes e a colaboração amiga do prof. Newton Bignotto com sua revisão e observações preciosas.

[2] Nehemias Gueiros, “Mistério do soneto shakespeariano” em William Shakespeare, 30 sonetos, trad. Ivo Barroso, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991, p. 7.  Nesse mesmo estudo encontra-se um rápido histórico das várias interpretações já realizadas sobre os sonetos que podem ser úteis ao leitor.

[3] Em 1599, os sonetos 138 e 144 apareceram no The passionate pilgrim, volume de sonetos publicados pelo editor William Jaggard, fraudulentamente atribuído a Shakespeare. À edição de 1609, seguem-se a segunda impressão em 1639-1640 (Thomas Thorpe e John Benson), a terceira em 1710 (Gildon) e a quarta em 1725 (Sewell).

[4] A enigmática dedicatória dos poemas tem sido assunto controverso ao longo da história. As iniciais W. H. que nela aparecem já foram atribuídas a várias pessoas mas uma das hipóteses mais pertinentes seria a de que se referem a Henry Wriothesly, conde de Southampton, a quem Shakespeare explicitamente dedicara os poemas “Venus and Adônis” (1593) e “The rape of Lucrece” (1594). A moda dos sonetos na Inglaterra durou de 1580, quando circula o Book of passionate sonnets de Thomas Watson, até a morte da rainha Elizabeth, em 1603; e eles circulavam, via de regra, em manuscritos com destinatários certos. Sobre isso, cf. Nehemias Gueiros, “Mistério do soneto shakespeariano”, cit., pp. 7-45, e, especialmente sobre a dedicatória, cf. pp. 25-32.

[5] Cf.  Thomas  Whitfield  Baldwin,  On  the  literary  genetics  of  Shakespeare’s poems and sonnets, Urbana, University of Illinois, 1950. Sobre as treze possíveis pessoas que poderiam ser a Dark Lady, cf. Nehemias Gueiros, “Mistério do soneto shakespeariano”, cit., p. 37.

[6] Justifica-se por isso termos escolhido trabalhar a única versão acessível em língua portuguesa de todos os poemas de Shakespeare, editada pela Nova Aguilar e com tradução de Oscar Mendes: William Shakespeare, Obras completas, trad. Oscar  Mendes, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995, vol. 3. Mesmo havendo traduções melhores de alguns poemas, como as de Ivo Barroso (William Shakespeare, 30 sonetos, cit.), optamos por referir-nos à anterior pois é ela que permite ao leitor acessar a obra em sua totalidade. Além dela, as únicas outras traduções completas dos 154 sonetos, mas menos acessíveis do que a aqui utilizada, são as de Maria do Céu Saraiva Jorge (Os sonetos de Shakespeare, Lisboa, s. e., 1962) e Jerônimo de Aquino (Obras completas de Shakespeare, São Paulo, Melhoramentos, 1956, vol. XXII). Assim, a não ser havendo indicação contrária em nota, os poemas aqui transcritos seguem a tradução em versos brancos alexandrinos de Oscar Mendes. Sobre o histórico das várias traduções em português dos sonetos de Shakespeare, cf. Nehemias Gueiros, “Mistério do soneto shakespeariano”, cit., pp. 41-5.

[7] “All his statements are metaphors, or in process of becoming metaphors” (J. B. Leishman, Themes and variations in Shakespeare’s sonnets, Londres, Hutchinson,1961,  p.119).

[8] Sobre o “amor transcendentalizado” de Dante por Beatriz, conferir o artigo do prof. Newton Bignotto neste mesmo livro.

[9] Sobre a experiência da temporalidade a partir da díade tempo/eternidade, cf. Ivan Domingues, O fio e a trama (São Paulo, Iluminuras; Belo Horizonte, UFMG, 1996, pp. 17-94).

[10] Sobre a interpretação de A tempestade de Giorgione e o detachment de sua “cigana”, cf. o recente artigo de Stephen J. Campbell, “Giorgione’s Tempest, Studiolo: Culture, and the Renaissance Lucretius”, em Renaissance Quarterly (Nova York, vol. 56, n. 2, pp. 299-332, 2003). Sobre a contraposição entre cultura e natureza, entre o intelectual urbano e o camponês no Concerto campestre, cf. Robert Klein, A forma e o inteligível, trad. Cely Arena (São Paulo, Editora da USP, 1998), pp. 179-87. Sobre a relação entre alma humana e mundo em Giorgione em interpretação diversa da nossa, conferir Giulio Carlo Argan, Storia dell’arte italiana (Firenze, Sansoni, 1998), vol. 3.

[11] Leonardo da Vinci, Traité de la peinture, cap. XII, “De la Figure”, parágrafo 351. Citado e traduzido em José Gil, Metamorfoses do corpo, Lisboa, Relógio d’Água, 1997, pp. 118-9. Sobre corpo e natureza em Leonardo, conferir Carlos Antônio Leite Brandão, “O corpo do Renascimento”, em Adauto Novaes (org.), O homem-máquina: a ciência manipula o corpo (São Paulo, Companhia das Letras, 2003), pp. 275- 97. Ver ainda Lionello Venturi, La pittura del Rinascimento: da Leonardo da Vinci a Dürer (Gênova, Skira, 1989), p. 18.

[12] “The metaphors are no longer decorative; like the conceits of Donne, they are the poem” (George Rylands, “Shakespeare the poet” em Harley Granville-Barker e G.

  1. Harrison, ed., A companion to Shakespeare studies, Cambridge, Cambridge University Press, 1949, p. 110).

[13] Sobre esses vários domínios de que se originam as metáforas, conferir George Rylands, “Shakespeare the poet”, cit., p. 109.

[14] Registre-se a tradução de Ivo Barroso: “Devo igualar-te a um dia de verão?/ Mais afável e belo é o teu semblante:/ O vento esfolha Maio inda em botão,/ Dura o termo estival um breve instante,/ Muitas vezes a luz do céu calcina,/ Mas o áureo tom também perde a clareza:/ De seu belo a beleza enfim declina,/ Ao léu ou pelas leis da Natureza,/ Só teu verão eterno não se acaba/ Nem a posse de tua formosura;/ De impor-te a sombra a Morte não se gaba/ Pois que esta estrofe eterna o Tempo dura./ Enquanto houver viventes nesta lida,/ Há-de viver meu verso e te dar vida” (William Shakespeare, 30 sonetos, cit., p. 61.

[15] Preferimos aqui colocar no corpo do texto a versão de Ivo Barroso em William Shakespeare, 30 sonetos, cit., p. 71. Na tradução de Oscar Mendes lê-se: “Se  em feliz condição, como retornarei,/ Pois me é do repouso a vantagem obstada,/ E se do dia o peso a noite não alivia?/ Mas que são noite e dia um pelo outro oprimidos?/ Embora cada qual do outro odeie o império,/ Ambas as mãos se dão no afã de torturar-me,/ Um, penar me fazendo, o outro a dizer-me impondo/ Que dói-me sempre ir mais longe de ti penar./ Para ao dia agradar, digo que ele recebe/ Do teu esplendor, quando o céu se ensombrece/ E, da noite adulando a sombria figura,/ Que a tarde douras tu, quando astro nenhum brilha./ Mas cada dia o dia torna-me a dor maior/ E a noite cada noite o meu penar mais forte”.

[16] Tradução de Ivo Barroso (William Shakespeare, 30 sonetos, cit., p. 91). Segue tradução bem diferente de Oscar Mendes: “Reconheces em mim essa estação do ano/ Em que folha nenhuma ou poucas, amarelas,/ Pendem dos ramos que ao frio vento tremem,/ Coros nus onde outrora aves meigas cantavam./ Em mim tu vês também a luz crepuscular/ Que declina ao oeste à hora do pôr do sol/ E que mais tarde a noite extingue em seu negror,/ Outra morte que põe selo de sono em tudo./ Ainda vês em mim vermelhar essa flama/ Jacente sobre a cinza em que sua juventude/ Luziu, como em mortal leito em que morrerá/ Pelo que a nutriu consumida a seu turno./ Vendo isto, teu amor, para melhor amar,/ Agrada o que, bem cedo, haverás de deixar”.

[17] Vale a pena citar algumas passagens do Sobre a natureza, de Empédocles, metáfora do mundo visto por Shakespeare: “Duplas coisas direi: pois ora um foi crescido a ser só de muitos, ora de novo partiu-se a ser muitos de um só. […] E estas [coisas] mudando constantemente jamais cessam, ora por Amizade convertidas em um todas elas, ora de novo divergidas em cada por ódio de Neikos. Assim, por onde um de muitos aprenderam a formar-se, e de novo partido o um múltiplos se tornaram, pois aí é que nascem e não lhes é estável a vida” (Empédocles, Sobre a natureza, em Pré-socráticos, trad. José Cavalcante de Souza, São Paulo, Abril Cultural, 1985, p. 223).

[18] William Shakespeare, A tempestade, trad. Geraldo Carneiro, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1991, p. 29.

[19] Ibidem, p. 95.

[20] Empédocles, Sobre a natureza, cit., p. 224. E na página seguinte lemos: “E assim mesmo quantas em mistura melhor se correspondem, umas às outras se amam, semelhadas por Afrodite. […] Em turnos prevalecem no circuito do ciclo, perecem uns nos outros e crescem em seu turno fixado. Pois estes são eles mesmos e correndo uns pelos outros tornam-se homens e espécies de outros animais”.

[21] William Shakespeare, The second part of King Henry IV em Henry Staunton, The Globe illustrated Shakespeare, Nova York, Greenwich House, 1986, p. 622. ’Tis all in every part é traduzido por Oscar Mendes na edição da Nova Aguilar por “Perfeito em todos os sentidos” (William Shakespeare, Segunda parte de Henrique IV, em Obras completas, cit., vol. 3, p. 282). Preferimos a nossa tradução, inserida no corpo do texto, conforme interpretação desenvolvida em Thomas Whitfield Baldwin, On the literary genetics of Shakespeare’s poems and sonnets, cit., pp. 157-80.

[22] Plotino, Ennéades, IV, 2. Conferir também I Coríntios 15:28 (grifos nossos). A presença dessa concepção em santo Agostinho (“Anima, in quocunque corpore, & in toto est, & in qualibet parte tota est”), em são Tomás de Aquino (“Anima est tota in toto, & tota in qualibet parte”) e nos meios eclesiásticos e intelectuais da Inglaterra durante todo o século XVI é demonstrada em  Thomas Whitfield Baldwin, On the literary genetics of Shakespeare’s poems and sonnets, cit., pp. 157-80.

[23] “The sonnets show that Shakspeare himself had gradually developed this connection of constancy with the doctrine of the soul, or at least that the connection had developed for Shakspeare as he wrote the sonnets” (Thomas Whitfield Baldwin, On the literary genetics of Shakespeare’s poems and sonnets, cit., p. 165). As citações originais em inglês dos sonetos de Shakespeare também foram retiradas de Henry Staunton, The Globe illustrated Shakespeare, cit. No caso do verso citado, conferir p. 2292. Oscar Mendes o traduz: “Tu, cujas sombras dá às sombras claridade”.

[24] J. E. Doyle, The official baronage of England (1886), vol. III, p. 376, citado por Thomas Whitfield Baldwin, On the literary genetics of Shakespeare’s poems and sonnets, cit., p. 175.

[25] Henry Staunton, The Globe illustrated Shakespeare, cit., p. 2265. Na tradução de Oscar Mendes: “Que todo bem por um se empenha ou um por todos” (William Shakespeare, “A violação de Lucrécia”, em Obras completas, cit., vol. 3, p. 773).

[26] William Shakespeare, Tudo está bem quando bem termina em Obras completas, cit., vol. 2, p. 640.

[27] Lê-se na versão de Ivo Barroso: “Quando jura ser feita de verdades,/ Em minha amada creio, e sei que mente,/ E passo assim por moço inexperiente,/ Não versado em mundanas falsidades” (William Shakespeare, 30 sonetos, cit., p. 105).

[28] William Shakespeare, A tempestade, cit., p. 97.

[29] Por exemplo, em Sobre o infinito, o universo e os mundos, escrito em 1584, lemos que “o movimento é infinito e o móvel tende para o infinito e para inumeráveis  composições”;  “nada  diminui  substancialmente,  mas  tudo,  deslizando  pelo espaço infinito, muda de aparência” (Giordano Bruno, Sobre o infinito, o universo e os mundos, trad. Helda Barraco e Nestor Deola, São Paulo, Abril Cultural, 1983, pp. 10 e 12, Coleção “Os pensadores”).

[30] Ariel voa, nada, mergulha no fogo e cavalga as nuvens encrespadas. Ele está em todas as partes e detalhes: “Assaltei o navio do Rei, ora na proa, ora nos flancos, no convés, em cada camarote espalhei o espanto. Às vezes me dividia para flamejar em lugares diversos: no mastro superior, nas vertas, no mastro de proa. Reparti-me em várias chamas, depois me reuni numa só. Os raios de Júpiter, precursores dos terríveis trovões, não eram mais rápidos nem fulgurantes. […] Onde a abelha vai eu vou. No sino da vaca estou. Pia a coruja e me deito. Morcego eu cavalgo a jeito” (William Shakespeare, A tempestade, cit., pp. 37 e 141).

[31] Ibidem, p. 157.

[32] Assim aparece o soneto 44 completo na versão rimada de Ivo Barroso: “Se a rude carne fora pensamento,/ A distância infamante não vingara,/ Pois vencendo os espaços, num momento,/ Na amplidão mais remota te encontrara;/ Pouco importava então meu passo fora/ Longe de ti nas vastidões da esfera,/ Que o pensamento terra e mar devora/ Só de pensar onde chegar quisera./ Mortal pensar que não sou pensamento,/ Para saltar as léguas de onde andares;/ Mas sendo de água e argila me atormento/ A queixar-me do Tempo e seus vagares:/ Que os tardos elementos me condenam/ Às lágrimas, emblemas do que penam” (William Shakespeare, 30 sonetos, cit., p. 81).

[33] William Shakespeare, A tempestade, cit., p. 131.

[34] “All those qualities which make a person lovable, all those, perhaps, which for Shakespeare made life itself lovable and livable, are particularised, incarnated, in an individual, and that individual is generalised into their unique but alas! so transient incarnation. It is as though Shakespeare could only apprehend the meaningfulness of life when it was, for him, incarnated in a person, and as though he could only really love a person as the incarnation of that meaningfulness” (J. B. Leishman, Themes and variations in Shakespeare’s sonnets, cit., p. 51).

[35] Cf. ibidem, pp. 122-33.

[36] Michel  Foucaul,  As  palavras e  as  coisas,  trad. Salma Tannus Muchail, São Paulo, Martins Fontes, 1981, p. 33.

[37] Giordano Bruno, Sobre o infinito, o universo e os mundos, cit., p. 13.

[38] Michel Foucault, As palavras e as coisas, cit., p. 46.

[39] “A forma mágica era inerente à maneira de conhecer” (ibidem, p. 49). Sobre as fontes de Shakespeare, cf. A. L. Attwater, “Shakespeare’s Source” em Harley Granville-Barker; G. B. Harrison, A companion to Shakespeare studies, cit., pp. 219-41,  e, principalmente, Thomas Whitfield Baldwin, On the literary genetics of Shakespeare’s poems and sonnets, cit. Sobre o “conhecimento mágico” em Giordano Bruno, conferir Carlos Antônio Leite Brandão, “Transdisciplinaridade e Humanismo: aquém e além das disciplinas”, Interpretar Arquitetura, Belo Horizonte, vol. 3, n. 5, pp. 7-14, mar. 2003 (disponível em www.arq.ufmg.br/ia). Sobre a magia no Renascimento, conferir Ioan Petru Couliano, Éros et magie à la Renaissance (Paris, Flammarion, 1984).

[40] “Mas agora renuncio à minha magia. Depois quebrarei minha vara e a enterrarei nas entranhas do chão. E lançarei meu livro ao mar profundo, lá onde nada possa penetrar” (William Shakespeare, A tempestade, cit., p. 139).

[41] “A atividade do espírito não mais consistirá, pois, em aproximar as coisas entre si, em partir em busca de tudo o que nelas possa revelar como que um parentesco, uma atração ou uma natureza secretamente partilhada, mas, ao contrário, em discernir: isto é, em estabelecer as identidades, depois a necessidade da passagem a todos os graus que delas se afastam” (Michel Foucault, As palavras e as coisas, cit., p. 70, grifos do autor).

[42] “Brevity is the soul of wit” (Henry Staunton, The Globe illustrated Shakespeare, cit., p. 1875).

[43] Na dedicatória ao conde de Southampton, Shakespeare afirma ser este poema “the first heir of my invention” (Henry Staunton, The Globe illustrated Shakespeare, cit., p. 2246).

[44] William Shakespeare, “Vênus e Adonis”, em William Shakespeare, Obras completas, cit., vol. 3, p. 743.

[45] Como nos sonetos 135 e 136: “[…] eu era o teu Desejo. […] Ama o meu nome, pois, ama-o, sim, para sempre,/ Porque então me amarás, pois meu nome é Desejo”.

[46]  “E crua guerra contra o Tempo enfrento,/ Pois tudo que te toma eu te acrescento” (William Shakespeare, 30 sonetos, cit., p. 57).

[47] “For we must always remember that this theme of immortality by nature’s law procriation is a favorite with Shakespeare, as it was with the Renaissance generally” (Thomas Whitfield Baldwin, On the literary genetics of Shakespeare’s poems and sonnets, cit., p. 183).

[48] O argumento de Diotima no Banquete desenvolve-se afinando-se com o de Shakespeare: “E ela [a natureza mortal] só pode assim, através da geração, porque sempre deixa um outro ser novo em lugar do velho. […] É desse modo que tudo o que é  mortal se conserva, e não pelo fato de absolutamente ser sempre o mesmo, como o que é divino, mas pelo fato de deixar o que parte e envelhece um outro ser novo,tal qual ele mesmo era” (Platão, O banquete, trad. José Cavalcante de Souza, São Paulo, Nova Cultural, 1991, p. 39).

[49] Edith Stiwell, A notebook on William Shakespeare, Londres, Macmillan, 1963, p. 226.

[50] Tradução de Ivo Barroso. Conferir William Shakespeare, 30 sonetos, cit., p. 63. Deste belo poema temos também a valiosa leitura de Oscar Mendes: “A garra do leão, Tempo voraz, apara,/ E da fauce do tigre arranca os feros dentes./ Que sua geração devore a própria Terra,/ Que a fênix eternal se consuma em seu sangue./ Faze horas, ao passar, de alegria e de dor,/ O que quiseres faz, ó levípede Tempo,/ Deste vasto universo e seus encantos breves./ Mas devo-te impedir um odioso crime: Não grave o teu passar do meu amor a fronte,/ E poupa-lhe as feições de tua pena os traços;/ Permite que sem mancha em teu percurso fique/ Modelo de beleza aos homens do futuro./ Mas podes, velho Tempo, encarniçar-te, embora!/ Nos versos meu amor viverá sempre jovem”.

[51] Tradução de Ivo Barroso. Conferir William Shakespeare, 30 sonetos, cit., p. 99. A tradução de Oscar Mendes deste maravilhoso soneto merece ser colocada aqui, a modo de comparação: “A sagrada união de almas duas, fiéis,/ Entraves não admito: amor não é amor/ Que se altera se encontra alguma alteração,/ Ou se inclina a mudar ao ver o que é mutável./ Oh! Não, é sempre um marco eternamente erguido;/ Imóvel, testemunha, o furor da tormenta;/ Astro a que toda nau errante se reporta,/ De incógnito valor, se bem que mensurável./ Não é do Tempo o bobo, embora venha a sua/ Curva foice atingir faces e lábios rubros/ Não lhe abalam o curso horas breves, semanas;/ Até a hora da morte ele fica imutável./ Se puderem provar que me tenha enganado,/ Eu jamais escrevi, ninguém jamais amou”.

[52]  “Não há nada a ser dito que já não o tenha sido antes.” Essa frase de Terêncio (Eunuchus, 41) já nos serviu como guia para investigar Leon Battista Alberti e compreendermos o Renascimento. É o próprio Alberti quem a recupera no seu Profugiorum ab erumna libri. Cf. Carlos Antônio Leite Brandão, Quid Tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti, Belo Horizonte, UFMG, 2000, pp. 63-5. Cf. ainda Roberto Cardini, Mosaici: Il “nemico” dell’Alberti, Roma, Bulzoni, 1990, p. 4.

[53] “O tempo é o criador e benfeitor de todo bem” (William Shakespeare, Os dois fidalgos de Verona em Obras completas, cit., vol. 2, p. 44).

[54] “Deixem que a fama, que todos buscam na vida, viva registrada em nossas tumbas de bronze e nos empreste então sua graça na desgraça da morte, quando, a despeito desse voraz devorador, o Tempo, adquirirmos pelo esforço da vida presente aquela hora que consiga tirar o acerado gume de sua foice e nos converta em herdeiros da eternidade” (William Shakespeare, Trabalhos de amor perdidos em Obras completas, cit., vol. 2, p. 321).

[55] William Shakespeare, Medida por medida em Obras completas, cit., vol. 2, p. 189.

[56] William Shakespeare, O mercador de Veneza em Obras completas, cit., vol. 2, p. 470.

[57] William Shakespeare, Segunda parte de Henrique IV em Obras completas, cit., vol. 3, p. 249. Sobre a afinidade entre essa peça e os sonetos em torno do tema do tempo e da caducidade das coisas, cf. L. C. Knights, Some shakespearean themes (Londres, Chatto & Windus, 1964), pp. 45-64.

[58] Tradução de Ivo Barroso. Cf. William Shakespeare, 30 sonetos, cit., p. 107. Na versão de Oscar Mendes lê-se: “Dois amores eu tenho, um, conforto, outro angústia,/ Que, a fantasmas iguais, não cessam de assombrar-me:/ O bom anjo homem é de beleza sem par,/ O mau anjo, mulher de cara mal pintada./ Para em breve levar-me ao oro esse demônio/ Feminino, afastar tenta meu anjo bom,/ Querendo converter meu santo num demônio,/ Com orgulho infernal a tentar-lhe a pureza./ Que já meu anjo bom demônio se tornou,/ Poderei suspeitar, mas não posso afirmar;/ Mas de mim longe estando e sendo os dois, amigos,/ Acho que esse anjo bom do outro no inferno está:/ Mas nunca hei de saber e viverei na dúvida,/ Até que esse anjo mau meu anjo bom expulse”.

[59]  William Shakespeare, Otelo, o mouro de Veneza em Obra completes, cit., vol 1, pp. 750 e 752.

[60] “A profunda interdependência da linguagem e do mundo se acha desfeita. O primado da escrita está suspenso. Desaparece então essa camada uniforme onde se entrecruzam indefinidamente o visto e o lido, o visível e o enunciável. As coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvido somente a ouvir. O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não sera mais que o que ele diz”(Michel Foucault, As palavras e as coisas, cit., pp. 59-60)

[61] William Shakespeare, Hamlet, príncipe da Dinamarca em Obras completas, cit., vol. 1, p. 568.

[62] Arnold Hauser, O maneirismo, trad. J. Guinsburg e Magda França, São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1976, p. 90. Essa obra é fundamental para a compreensão da alienação como a chave do Maneirismo e do século XVI. Sobre o Maneirismo em Shakespeare, ver ainda, do mesmo autor, História social da literatura e da arte, trad. Walter H. Geenen (São Paulo, Mestre Jou, 1982), vol. 1, pp. 531-54.

[63] Sobre a passagem do Shakespeare-poeta ao Shakespeare-dramaturgo, cf. ainda George Rylands, “Shakespeare the poet”, cit., pp. 89-115.

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