2007

Do medo ao terror

por Jacques Rancière

Resumo

O terror não é simplesmente um medo mais forte que responde a uma ameaça mais temerosa e mais difusa. É uma maneira de nomear, de ressentir e de explicar o que causa perturbação na alma de cada um de nós. Nomear “o terror” como o mal que está em torno de nós e nos ameaça é, pouco a pouco, redefinir o conjunto de coordenadas que nos servem para explicar o mundo, para pensar as relações entre causa e efeito, entre bem e mal, e também as relações que ligam os indivíduos em sociedades.

Uma via de acesso que torna possível a compreensão dessa relação é a ficção. A ficção obriga a uma racionalização da apresentação dos fatos e de seus vínculos, a uma decantação de nossos modos de percepção e de explicação das coisas, como num cálculo dos efeitos que essa apresentação deve produzir sobre o sentimento e o pensamento daqueles a quem se dirige.

Comparando no cinema, um filme alemão dos anos 1930 (M, o vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang) e um filme americano do começo do século XXI (Sobre meninos e lobos, de Clint Eastwood) é possível extrair o deslocamento de uma estrutura de o perigo (ou de desordem) para uma outra. As duas ficções estão estruturadas pela relação entre quatro figuras: a criança, o doente mental, o policial e o vigarista. Mas, em M, o vampiro de Düsseldorf, esse jogo das outras figuras serve para conter o terror nos canais do medo; em Sobre meninos e lobos, ao contrário, os encadeamentos do medo são absorvidos e apagados numa lógica da repetição do trauma e de seu violento acerto de contas.

De um filme a outro, nota-se uma modificação do regime de percepção e da ideia de ameaça, que é uma modificação da própria relação entre racionalidade e irracionalidade.

O discurso ético pretende recusar a ingenuidade das cruzadas do bem contra o mal e perturbar a segurança da ordem consensual, remetendo-a a suas origens violentas, e fazendo do terror não mais a arma do inimigo do bem e da democracia, mas uma condição compartilhada. No lugar da oposição do bem e do mal, ele coloca a identidade última do aterrorizador e do aterrorizado, a relação da civilização da violência irredutível e fundadora da relação com uma alteridade incontrolável.

Há, hoje, uma dificuldade de pensar o terror. O terror não é simplesmente um conjunto de atos e de ameaças efetivos. Esse nome designa também um certo estado do mundo. Mas esse estado do mundo define também um modo de percepção e uma grade conceitual: o terror se apresenta muito naturalmente como explicação do terror.


O título desta conferência se refere claramente à atualidade da palavra terror. No entanto, não falarei do terrorismo como prática da relação de forças, mas do terror como modo de percepção. A expressão “War on terror”, com efeito, não indica simplesmente um conjunto de medidas que visam a impedir certos tipos de ações ou a punir seus culpados. Ela implica uma percepção da ameaça que se remete a uma concepção global da relação entre a ordem e a desordem mundial. Uma ideia da ameaça e do que é preciso fazer para responder a isso também são uma maneira específica de perceber e de explicar fatos. O terror não é simplesmente um medo mais forte que responde a uma ameaça mais temerosa e mais difusa. É uma maneira de nomear, de ressentir e de explicar o que causa perturbação na alma de cada um de nós, assim como na ordem mundial. É uma maneira de definir os princípios da ordem e as razões da desordem. É uma maneira de ligar um regime intelectual de pensamento da causalidade a um regime moral de compreensão do bem e do mal. Nomear “o terror” como o mal que está em torno de nós e nos ameaça é, pouco a pouco, redefinir o conjunto de coordenadas que nos servem para explicar o mundo, para pensar as relações entre causa e efeito, entre bem e mal, e também as relações que ligam os indivíduos em sociedades e o próprio vínculo entre a experiência íntima do sujeito e a configuração global do mundo.

Gostaria de analisar essa transformação comparando as figuras contemporâneas de percepção e da ideia do terror com as figuras clássicas do medo. Penso, na verdade, que havia, na concepção e no tratamento do medo, certo nó entre ordem e desordem, razão e paixão, e que essa ordem se encontra precisamente desfeita na configuração atual do terror como modo de percepção de pensamento. Para compreender essa modificação, uma via de acesso que me parece privilegiada é a da ficção. A ficção, dizia Aristóteles, é mais filosófica do que a história. Acontece que a ficção, por conta de sua própria limitação, obriga a uma racionalização da apresentação dos fatos e de seus vínculos, a uma decantação de nossos modos de percepção e de explicação das coisas, como num cálculo dos efeitos que essa apresentação deve produzir sobre o sentimento e o pensamento daqueles a quem se dirige. Compararei, portanto, duas ficções, das quais uma, para mim, exprime o tratamento clássico do medo e a outra, a configuração atual do terror. Essas duas ficções, eu as tomarei emprestadas de uma arte que reúne o poder da apresentação visível dos fatos ameaçadores e terríveis com a estrutura narrativa do encadeamento dos fatos e da explicação de suas razões. Essa arte é o cinema, uma arte privilegiada em que a longa história das formas narrativas se encontra aí concentrada num espaço de um século, que é também o século que produziu a nova configuração das esperanças e dos receios no seio do qual percebemos hoje o terror.

Compararei, então, um filme alemão dos anos 1930 e um filme americano do começo do nosso século, um filme um pouco anterior à Alemanha dominada pelo nazismo e com um filme justamente posterior ao trauma americano de 11 de setembro. Esses filmes são M, o vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, e Sobre meninos e lobos, de Clint Eastwood. É possível daí extrair o deslocamento de uma estrutura de perigo — ou de desordem — para uma outra, já que eles têm, para além da diferença de roteiros, certo parentesco estrutural. As duas ficções estão estruturadas pela relação entre quatro figuras: a criança, o doente mental, o policial e o vigarista. Mas, em M, o vampiro de Düsseldorf, esse jogo das outras figuras serve para conter o terror nos canais do medo; em Sobre meninos e lobos, ao contrário, os encadeamentos do medo são absorvidos e apagados numa lógica da repetição do trauma e de seu violento acerto de contas.

Evoco aqui brevemente um dado sobre M, o vampiro de Düsseldorf: a ameaça que pesa sobre uma cidade por causa da presença de um maníaco infanticida. É, portanto, uma obra que nos fala de terror. Em uma das cenas iniciais do filme, há um pátio onde crianças cantam uma sombria canção que fala de um homem sinistro e, em seguida, a sombra negra do assassino passa na frente do cartaz que avisa a população do perigo. Toda a arte do filme é o encadeamento desse terror produzido por essa sombra que passa pela multidão, portadora de um impulso ao qual não se pode resistir, nem o próprio assassino. O princípio desse encadeamento é simples: ele consiste em deslocar o medo. No começo do filme, o espectador se identifica com o ponto de vista da mãe que espera, à mesa, diante do prato já feito, a criança que, segundo o pressentimento da mãe, nunca mais voltará da escola. Em outro momento, é como se esse espectador fosse transportado para o ponto de vista dos habitantes da cidade que se precipitam na rua por causa de qualquer suspeita decorrida de uma simples coincidência. Já no meio do filme, o medo vai mudar de lado: o assassino, que está levando consigo outra menininha, encontrar-se-á encurralado pela polícia que o identificou e pela ralé que quer acabar com esse louco que incomoda seus negócios. A lógica narrativa da caça ao homem conduzida por vigaristas leva o espectador a compartilhar outro medo: o do homem acossado. Ela o induz a abraçar a causa do assassino ante o tribunal dos bandidos, que imita o tribunal da opinião púbica e que se prepara para executar, ele mesmo, sua própria sentença quando a intervenção in extremis da polícia o salva, entregando-o à verdadeira justiça.

Lang certamente não tinha uma extrema confiança nas virtudes dessa “verdadeira” justiça. O que conta, de fato, aquilo que acerta as contas na relação entre o verdadeiro e o falso tribunal é essa intermediação específica entre o verdadeiro e o falso, a que podemos chamar de “justiça da ficção”. Compreendo nisso a maneira pela qual a ficção ajusta o efeito do medo: reduzindo-o. Existem ao menos quatro medos no filme. Há o medo dos indivíduos e da coletividade diante da ameaça que pesa sobre as crianças; há o medo daquele que está acossado; há, em seguida, aquilo que este último conta ao falso tribunal: o terror íntimo que lhe pede tais crimes, que depois lhe causam horror; há, enfim, o medo que nos faz provar a ameaça que representa a justiça feita às pressas, por esses vigaristas que sabem tão bem imitar a justiça espontânea das pessoas honestas. O que o roteiro da dupla perseguição e do duplo tribunal produz é aquilo que Aristóteles chamava de purificação do temor: a sensação de temor que fazia de todo espectador um justiceiro sumário em potencial é transformada pela narrativa: ela se torna um investimento interno no jogo ficcional, uma maneira de participar das expectativas que esse jogo define. O justiceiro em potencial torna-se novamente um espectador, quer dizer, outro tipo de personagem público. O tratamento ficcional que reduz o medo suprime dele a capacidade de ser afetado pela ameaça que pesa sobre seus semelhantes e a vontade de resolver esse medo, livrando a sociedade das doenças e dos parasitas que, a fazem apodrecer. Se o filme pode ser considerado antinazista não é, como se diz às vezes, porque a história de M seria uma fábula anunciadora do nazismo. É, de maneira mais circunscrita, pelo modo como ele encadeia o terror social difuso no jogo das expectativas e dos temores da ficção. O que mudou na estrutura ficcional que nos apresenta Clint Eastwood seguindo a trama do romance de Dennis Lehane? Eu dizia há pouco: se a trama ficcional de Sobre meninos e lobos está muito distante da de M, ela é, no entanto, possível de ser comparada por causa do jogo entre as quatro figuras: a criança, o doente, o tira e o vigarista. O que faz a diferença é que a criança é aqui a figura nuclear que se transforma nas três figuras do doente, do vigarista e do policial. E é em torno das figuras da criança e da infância que as estruturas ficcionais do jogo com o medo mudam de posição na configuração do trauma e do terror.

Lembrando a problemática do filme, ele começa com uma cena primitiva: o sequestro do pequeno Dave, diante de seus colegas, Sean e Jimmy, pelos falsos policiais e verdadeiros pedófilos que o levarão e o violentarão. Essa cena inicial irá afetar toda a sequência da narrativa que nos mostra as três crianças adultas encarnadas nas três figuras: do policial Sean, do vigarista meio convertido em bom americano classe média (Jimmy) e do doente sombrio vítima das consequências do trauma (Dave). Essa sequência se estrutura sozinha em torno de três grandes cenas de pesadelo. São elas, primeiramente, a visão diurna de um corpo jogado em um barranco: a filha de Jimmy assassinada, em segundo lugar, a visão noturna de Dave (que aparece coberto de sangue e com expressão alucinada), contando à sua mulher que talvez ele tenha matado um homem, em terceiro lugar, a execução sumária de Dave por Jimmy, ladeado de dois capangas, chamados de irmãos Savage. A relação dessas três cenas compõe um silogismo visual do crime e do castigo. E é este último que se impõe em detrimento da paciente enquete de Sean para encontrar o verdadeiro culpado. A falsa justiça ganha da verdadeira na cena final. O filme acaba no júbilo de um desfile de Columbus Day durante o qual o policial, que tudo sabe e nada dirá, finge apontar um revólver para Jimmy, que levanta os braços. É que a falsa justiça tem por verdade o poder do trauma, mais forte do que qualquer encadeamento racional de causas. O que acontece não passa da repetição diferenciada da cena original. Dave, o doente, é executado pelo crime que não cometeu, enquanto cometeu outro, o de ter assassinado um pedófilo, que é a consequência direta do trauma. Jimmy, o vigarista honesto, repete, matando Dave impunemente, um crime anterior escondido — o assassinato de sua filha serve, na verdade, como castigo. Sean, o policial, repete, em face da execução sumária de Dave, a passividade que havia manifestado diante de seu sequestro.

Uma só justiça, portanto, triunfa aqui: a justiça privada, a justiça secreta, para a qual ser justo e se enganar de culpado tem pouca importância, uma vez que não se trata do caso de um crime a ser punido ou da garantia de um julgamento imparcial, mas de um caso de doença que não tem começo nem fim. Ao encadeamento do medo se opõe a lógica do trauma que suprime a diferença entre inocente e culpado, como entre a vítima e o justiceiro. O medo não se desloca, a perseguição nunca muda de sentido. No lugar do encadeamento narrativo baseado na mudança de papéis há a repetição de uma confusão fundamental: Dave é culpado porque é vítima. É lícito imaginar que aqueles que o violentaram eram eles mesmos vítimas de outro trauma infantil, vítimas do próprio trauma infantil: o fato de terem nascido muito cedo, atirados para fora da quietude do ventre materno e postos nas agressões do mundo. É também por que o segredo fica enterrado com o corpo de Dave no fundo do rio: não há outro castigo a não ser o de retornar às águas originais, que também significa cicatrizar a ferida. Não existe justiça da ficção, nem catarse que desloque o medo: há a ordem tranquila da periferia americana orgulhosa e a segurança que se ganha com o duplo gesto de exibir a ferida secreta e de apagar suas marcas.

É nisso que esse filme, apesar de interpretado por dois atores conhecidos por seu engajamento anti-Bush, está em harmonia com a retórica bushista do eixo do mal, da “guerra ao terror”, e da “justiça infinda”. A “justiça” sofrida por Dave é aparentada da justiça infinda prometida em resposta ao mal também infindo do terror: uma justiça para além de qualquer regra ordinária de justiça, uma justiça cujos “fracassados”, do mesmo modo, fazem eles próprios parte da segurança comum. Dave é testemunha de um terror que não é mais a consciência de nenhuma ameaça externa, mas apenas a consciência da perturbação que habita a sociedade civilizada e igualmente cada um de nós. Nesse terror, a diferença entre objetivo e subjetivo desaparece, assim como entre o inocente e o culpado, entre causa e efeito ou entre ficção e realidade. Essa doença não se deixa curar como nos roteiros hollywoodianos de outrora, que nos mostravam o doente ou o violento curados pela revelação de algum soterrado segredo de infância. A causa não traz mais a cura, ela se repete e volta a seu próprio segredo. Não nos curamos, diz-nos o filme, da infelicidade de ter nascido num mundo civilizado baseado na violência. O que podemos fazer é proteger uma parte dos indivíduos das consequências desse infortúnio. É garantir, contra o inimigo da civilização que está alojado no âmago dela mesma, uma segurança que nunca funcionará sem alguns erros que se refletem na repressão e numa obrigação de silêncio a respeito de seus fracassados. O espectador de Lang era conduzido a dissociar os medos, ele era levado de uma posição virtual de linchador a uma posição exterior de um mundo que era, aliás, livre para ser interpretado a partir de referências diversas. Certamente o espectador de Clint Eastwood não é convidado a participar da cura do doente. Mas também não é deixado apenas na sua liberdade de espectador. Nem verdadeiramente dentro, nem verdadeiramente fora, ele fica mais preso num tipo de cumplicidade a meia distância entre as duas posições. Ele é convidado a certa suspensão do julgamento, chamado a reconhecer a aflição subjetiva comum na imagem dessas crianças incuráveis e a julgar que a segurança resultante dessa justiça imperfeita talvez seja ao que mais indivíduos e sociedades presas no trauma civilizacional possam aspirar.

De um filme a outro, acredito que possamos notar uma modificação do regime de percepção e da ideia de ameaça, que é uma modificação da própria relação entre racionalidade e irracionalidade. O terror secreto que comanda a ficção de Sobre meninos e lobos marca a deserção de uma economia do medo da qual ainda era testemunha a ficção de Lang: uma economia do medo como paixão privilegiada, paixão não apenas racionalizável, mas de alguma forma cúmplice da razão, instituidora de um modo singular de racionalidade. O encadeamento causal, no qual estava presa a ameaça do psicopata, inscrevia-se numa longa tradição de retorno do medo que marcou o pensamento e a narrativa ocidental, desde ao menos a Poética de Aristóteles até a psicanálise freudiana, passando particularmente pelas teorias clássicas da soberania política: uma tradição que dissociava o medo, jogando o temor contra o medo.

Há, com efeito, três grandes maneiras de pensar a relação da razão com o medo. Existe, primeiramente, aquela que constitui a atitude razoável sobre o medo, sobre a apreensão do perigo que há quando nos aventuramos para além daquilo que se sabe, para além do que podemos controlar. É a lógica do antigo coro trágico: a razão está em não passar para o lado do desconhecido. É essa razão que condena Édipo, que quer saber demais, ou Creonte, que quer legislar não só sobre o reino da morte, mas também sobre Antígona, que não sabe mais que Creonte o limite entre o que diz respeito aos deuses de baixo e o que diz respeito aos deuses de cima, limite de que cada parte possa ousar na relação entre as leis da cidade e os deveres da família.

Há, em seguida, a sabedoria que toma por critério a própria rejeição do medo, quer dizer, a rejeição da submissão ao desconhecido. É a sabedoria que Epicuro ou Lucrécio opõem às lamúrias do coro trágico. O disparate é de fornecer princípios de pensamento e de ação pelo desconhecido. Do desconhecido não há nada que aprender. Aprendemos somente quando trazemos o desconhecido para o conhecido. Sobre o desconhecido não há nenhuma conduta para se basear. A única conduta razoável é a que se baseia naquilo que sabemos. O medo só é bom para uma coisa: povoar as regiões ignorantes de criaturas imaginárias pelas quais em compensação se ordena, com sabedoria suprema, que tenham medo e que não procurem saber por quê. Há, enfim, a terceira atitude, aquela que pensa a razão como uma maneira de lidar com as paixões em geral e, em particular, com essa paixão, a do medo, a paixão pelo desconhecido, que ameaça ao mesmo tempo o movimento do presente em direção ao futuro e a relação do semelhante ao semelhante, a conduta das ações em direção a seus fins e a relação entre os membros de uma comunidade. E essa atitude que resume, na Poética de Aristóteles, a análise do temor como paixão trágica. Ele diz que a tragédia é a imitação das coisas assustadoras e piedosas. E essas coisas assim o são, sobretudo, quando advêm contra a esperança, ainda que decorram umas das outras. Toda uma revolução está dita nessas poucas palavras aparentemente anódinas. A tragédia não é a exibição de um terror. Ela não é a apresentação da relação necessariamente infeliz com a alteridade irredutível de uma divindade cuja lei jamais será inteiramente conhecida. A história de Édipo não é trágica porque nos introduz no mundo do terror sagrado, onde se perde o homem que ousa imprudentemente desafiar a divindade. Ela também não é trágica porque traduz a maldição que a divindade faz pesar sobre uma raça inteira. Ela é trágica porque o destino funesto de Édipo chega pela coincidência de dois regimes antagônicos de causalidade. Existe um sistema de expectativa que é um sistema destinado a responder a uma ameaça que é dupla: a ameaça da peste que devasta a cidade; e a ameaça sempre pendente do cumprimento do oráculo que pesa sobre Édipo. E há um sistema de encadeamento dos fatos que se desenrola nesse sistema de expectativa, mas para invertê-lo, para fazer, de cada decisão pela qual Édipo quer afastar o duplo perigo, uma etapa que o aproxima de sua ruína. É essa coincidência do encadeamento desejado e do encadeamento não desejado, e esse jogo da relação entre saber e não saber, que devem “fazer arrepiar” o ouvinte, e não o horror físico, dos olhos perfurados daquele que imprudentemente quis ver. Racionalizar o medo, isso quer dizer racionalizar a relação com o desconhecido. O desconhecido não é mais a prerrogativa divina a ser reverenciada, tampouco a escuridão a ser dissipada pela razão, ele é uma relação a ser construída entre duas séries causais. O que é objeto de temor não é o poder divino ou o mundo obscuro, é o destino daquele que encarna o encontro dessas duas séries. Ao terror sagrado, diante da alteridade incontrolável, opõe-se a tensão estrutural entre o que é esperado e o que não é, o que é sabido e o que não é, o que é querido e o que não é. Há uma conduta ou um desvio do medo que distancia o terror, que faz da tragédia não mais representação religiosa do confronto de duas naturezas — humana e divina —, mas o confronto cúmplice de duas causalidades. Definitivamente, o Édipo trágico revisto e corrigido por Aristóteles encontra-se na posição de ouvinte da palavra da alma, tal qual descrito na Retórica: aquele que compreende que a frase é para ser interpretada no sentido inverso daquele em que parecia ir e cujo prazer se resume nessas palavras: “É verdade; eu havia me enganado”.

O medo vem substituir o terror, quer dizer, a confusão entre a identificação com um personagem ameaçado e o encontro com o poder do outro. O paradoxo ou o artificio das causas opostas e cúmplices vêm substituir o confronto do divino e do humano que fazia da tragédia uma representação da condição dos espectadores. É isso que quer dizer, definitivamente, a catarse ou a “purgação” do terror: a invenção de uma lógica da ficção que neutraliza o medo porque ela neutraliza a alteridade. O medo trágico então não é a representação de uma condição marcada pelo encontro de uma alteridade irredutível. Ela é a, própria sensação de uma construção ficcional, de uma redução das causalidades e das temporalidades. Esse desvio da tragédia, essa invenção de um novo regime, um regime propriamente ficcional do medo, evidentemente não está sem relação com um outro desvio, com uma outra neutralização da alteridade: a invenção política da democracia. A palavra democracia significa a invenção de um novo modo de governo: um governo paradoxal que não está baseado em nenhuma reverência a uma superioridade, em nenhuma diferença de natureza entre governante e governado. O oposto da democracia é a tirania, que é propriamente o assunto da tragédia, ou seja, a relação com uma alteridade incomensurável. Discutimos para saber se a tragédia grega era o fiador ficcional da democracia ou se ela não era preferencialmente a zona de sombra que vinha, obnubilar suas evidências. Contudo, o que corresponde à invenção democrática não é a tragédia, mas sua ficcionalização: sua passagem do status de ritual religioso comunitário ao status de ficção do medo, de construção de um regime paradoxal de causalidade. É isso que a aproxima não da democracia como regime particular, mas da democracia como ideia da singularidade política: ideia da política como esse modo de governo dos homens que não está baseado em nenhuma superioridade que nomeie seus líderes, mas, ao contrário, sobre o paradoxo que é a própria ausência de superioridade que baseie a “legitimidade” do governo. Aquele que estiver fora da cidade é um monstro ou um deus, diz a Política de Aristóteles. A proposição pode ser lida ao contrário: a política é a eliminação do deus e do monstro, daquele que aterroriza porque ele ou é mais ou é menos do que homem. A política é, como a ficção, a distância tomada com a sabedoria do coro trágico, que articulava sabedoria individual e vida comum, do terror, diante do inumano.

Para estabelecer tal relação entre a racionalização do medo e a política não é necessário ser nem aristotélico nem democrata. Hobbes é testemunha eloquente disso. O temor racional que deve impulsionar os indivíduos a sair do regime de ameaça permanente e a renunciar a seus direitos naturais em beneficio da soberania é, com efeito, bem específico, exatamente oposto ao temor supersticioso que povoa o mundo de falsos deuses e de falsos mandamentos da divindade. É o temor que tem o semelhante como causa. É porque todos os homens são iguais, porque não há nenhuma superioridade de natureza que deva levá-los a reverenciar mais uns do que outros, é por isso que é lógico que todos obedeçam respeitosamente a um mestre.

Opor as boas ficções do temor às reverências supersticiosas do terror é o princípio pelo qual a razão quis se impor, ao mesmo tempo, ao e pelo temor. O próprio Espinosa joga com esse duplo status do temor. Este é uma paixão que inventa quimeras, e nada mais razoável do que fazer o bem por medo do mal, diz o quarto livro da Ética. Mas se pensarmos nessa “utilidade” do medo, em termos estreitos de “utilitarismo”, vamos faltar com o elemento essencial: o medo “racional” não é o medo habilmente utilizado. Ele é o medo não supersticioso, o medo separado da relação com um desconhecido aterrador, que leva a uma ordem de causalidades contraditórias. Essa causalidade contraditória pode ser o jogo teatral das expectativas logicamente contraditas, que buscam o prazer do espectador por meio da dor do temor. Mas é também a lógica política que faz que os homens reunidos devam permitir-se dar governos, precisamente porque são iguais, porque não há mais salvador supremo do que o perigo supremo. Esse paralelismo das lógicas também é o que os mantém a distância, o que faz com que o espectador de uma tragédia não seja o participante de uma representação de si mesmo da comunidade.

Essa lógica tripla de autonomia da ficção, de imanência do princípio da comunidade e de separação das cenas é o que dá sentido à dramaturgia clássica do medo racional. Ela é o elemento comum às figuras políticas e ficcionais muito diferentes, da tragédia vista por Aristóteles às intrigas dos romances policiais ou aos roteiros hollywoodianos, ou da democracia ateniense ao pensamento moderno de emancipação, passando pelas formas clássicas da soberania. É essa lógica que me parece, hoje, desfeita tanto nas ficções do terror como nas políticas de segurança.

De um lado, as ficções do medo tornaram-se massivamente ficções do terror, quer dizer, da relação a esse outro radical que excluía a racionalização aristotélica da tragédia e da política: o monstro ou o deus, até mesmo o monstro a serviço do deus. Pensemos, por exemplo, nas formas que tomam na ficção contemporânea um tema policial clássico como o do justiceiro criminal. Numerosas ficções contemporâneas retomam esse tema recentemente ilustrado em O caso dos dez negrinhos, de Agatha Christie: o da justiça exercida por um justiceiro criminal com relação àqueles para os quais a justiça dos tribunais faltou. Essa figura habita o romance policial contemporâneo, por exemplo, em O grande deserto, de James Ellroy ou, mais recentemente, em Sidetracked (A falsa pista) de Henning Mankell. Ela mora nos filmes de terror, por exemplo, em Seven (Seven: os sete pecados capitais), de David Fincher. Mas é ao preço de uma transformação radical. Em Agatha Christie, todo o sistema do medo era governado pelo jogo de contrários: a relação do que cada um sabe do outro, o que este ignora; a tensão entre o esperado definido pela “canção” e o inesperado do personagem que vai corresponder a cada “estrofe”, a mudança das posições entre culpado e vítima, o estratagema da falsa morte do justiceiro. O que substitui hoje esse jogo de expectativas é a repetição dos fatos traumáticos advindos de personagens cujas expectativas não compartilhamos: mortes selvagens de indivíduos torturados, mutilados ou esquartejados, vítimas de um justiceiro semelhante ao animal — o assassino com dentes de animal do Grand Nulle Part — ou o Deus vingativo, o justiceiro que castiga com os sete pecados capitais em Seven —, ou vítimas de um justiceiro criança como o adolescente do Guerrier solitaire que mata com tanta selvageria quanto metodologia, todos os responsáveis pelo estupro que fez de sua irmã uma doente mental. Esse adolescente justiceiro é uma figura gêmea do pequeno Dave de Sobre meninos e lobos do qual falei há pouco: a criança que faz justiça da violação da infância. Ela é parente também do tenente Upshaw do Grand Nulle Part, que se suicida quando a lógica da enquete o confronta com seu próprio segredo enterrado da infância. O assassino, o assassinado e o suicida fazem uma só e mesma figura dessa infância traumatizada. Mas o “guerreiro solitário” é também a nova figura do ser “fora da, cidade” de Aristóteles. É o monstro que executa de forma animalesca a vingança divina. O deus animal é, aqui, a criança do trauma: a criança que castiga pela violência selvagem as feridas traumáticas que os seres se infligem uns aos outros, em consequência de um trauma fundamental, o do animal traumatizado pelo simples fato de ter nascido cedo demais.

Aquilo que essas ficções testemunham hoje é um retorno das razões do medo a um terror que é, sem outra razão além da sua própria, causa e efeito de si mesmo. Esse retorno é também um retorno do paradoxo da igualdade do encontro traumático do mais apropriado com o mais estranho. O espectador, nem dentro nem fora dessas ficções do trauma, encontra de algum modo a posição do coro trágico que contempla o horror, e vê aí o signo que o mais sábio está sustentando na segurança da ordem existente, não ainda que, mas porque essa ordem está baseada no anormal, numa monstruosidade irredutível, que só pode estar reprimida. É nisso que essas ficções se comunicam com os discursos sobre a guerra contra o terror. Elas não se comunicam com esses discursos sobre o modo de adesão triunfalista da cruzada do bem contra o mal, ou do mundo livre e democrático contra o terrorismo fanático e sanguinário. Elas se comunicam com eles no modo do coro trágico, naquele da solidariedade no trauma. Pensemos, por exemplo, num filme como Gangues de Nova York, de Martin Scorsese. Ele nos representa uma América do século XIX em que bandos selvagens se atacam a golpes de machados nas ruas de Nova York, sob a égide da cruz. Essa representação parece contradizer o discurso oficial da grande nação multicultural. Mas, na realidade, ela nos instala nesse clima de terror compartilhado, no qual o discurso da “guerra contra o terror” se faz perceber. É porque o terror aí está mais perto de nós que é preciso ir persegui-lo por toda a superfície da Terra.

Tal é, com efeito, a singularidade que apresenta a configuração ideológica da “guerra contra o terror”. O discurso oficial põe o terror como seu inimigo. Ele proclama a alteridade radical: a luta do bem contra o mal e da liberdade contra o terror, luta às vezes identificada com o choque das civilizações. Mas esse discurso só é recebido por meio da exploração do sentimento que é aparentemente contrário a isso: o sentimento de uma solidariedade secreta e incontestável entre o bem e o mal, entre a liberdade democrática e a repressão de um terror radical; o sentimento de que o suposto choque entre as civilizações só faz disso o produto de um conflito mais fundamental da civilização com ela mesma. Que pensemos, por exemplo, nos argumentos opostos que se intercambiam cotidianamente a respeito do islamismo radical: uns vêem, no terror que ele exerce, uma volta da repressão, a punição da loucura ocidental que acreditava possível a liberdade absoluta de um assunto libertado de toda dependência da alteridade, querendo até revogar as próprias leis da filiação; os outros vêem aí, ao contrário, a afirmação de uma loucura identitária que nega a alteridade que está no próprio cerne da civilização e da democracia ocidentais. Esses argumentos opostos se reúnem, de fato, naquilo que compõe certa paisagem do terror: os atos terroristas e a psicose da guerra contra o terror aparecem aí como testemunhas em comum de um compartilhamento do terror ou de um terror compartilhado, que aparece como o segredo mal escondido de ordem consensual, a ordem de um mundo que se pensava liberado das desordens da divisão entre classes, nações e sistemas. Esse mundo, que se sonhava pacificado e homogêneo, seria assim castigado por essa arrogância, pego na armadilha de suas ilusões e obrigado a olhar a cara do terror, a relação irredutível do desconhecido e do não desejado, que a condição do sujeito e o agrupamento dos indivíduos pressupõem, igualmente, em comunidades. O consenso a respeito das análises e das palavras de ordem da luta contra o terror opera-se por meio da própria crítica do consenso, por meio do pensamento que opõe às banalidades do consenso social o reconhecimento da parte de alteridade irredutível que significa a palavra terror. Todo terror que afeta as comunidades humanas aparece, então, como a consequência do desconhecimento de um terror primeiro fundador das sociedades humanas.

Um filósofo resumiu exemplarmente essa dialética do terror. Trata-se de Jean-François Lyotard, cujas teses fundamentais eu gostaria, aqui, de lembrar. Essas teses não são simplesmente o pensamento singular de um filósofo, mas cristalizam toda uma lógica argumentativa e toda uma visão de mundo que estão ativas, hoje, na discussão sobre o terror e nessa adesão tortuosa da dissidência intelectual de consenso dominante, que é um dos traços marcantes da discussão desse tema no Ocidente. Penso particularmente no seu livro Heidegger e os judeus ou nos ensaios reunidos em O inumano e em Moralidades pós-modernas. Todos esses ensaios desenvolvem um mesmo pensamento fundamental. Eles vêem nas formas modernas do terrorismo de Estado e, especialmente, é claro, no genocídio nazista, a consequência de um projeto filosófico e político ocidental, que foi o de negar a dependência primeira do espírito em relação a uma alteridade que o sujeito encontra no mais profundo de si mesmo. Lyotard diz que a alma vem à existência sob a dependência do sensível, violentada, humilhada. Aí está o traumatismo primeiro na origem dos males comuns ao pequeno Dave, aos seus estupradores e ao seu assassino. Esse traumatismo é o double bind que obriga o espírito a depender de um choque sensível (o qual não controla) ou absolutamente não existir. Mas essa dependência em relação ao sensível traduz uma outra mais fundamental, uma dependência mais fundamental a respeito da alteridade que o habita: o do poder incontrolável que exprime tão bem a “coisa” freudiana ou a lei mosaica. O terrorismo ocidental consistiria em ignorar esse terror primeiro, em reprimi-lo de acordo com seu projeto de um controle de si e do mundo. É por isso que esse projeto culmina, para Lyotard, no extermínio dos judeus, quer dizer, no extermínio do povo cuja existência e missão históricas são justamente a de testemunhar essa dependência primeira da alma com relação a uma alteridade incontrolável. Mas esse projeto persiste ainda sob formas democráticas amenas de um mundo dedicado à circulação de mercadorias, ao consumo cultural e à transparência comunicacional. A resposta a esse consenso que persegue a negação terrorista do terror: eis aí o trabalho de aprofundamento do terror, o trabalho que dá direito ao reconhecimento desse terror ou dessa inumanidade que está no próprio cerne da subjetivação humana e do agrupamento social, e que não pode ser apagado sem catástrofe. É preciso, então, opor terror ao terror ou desastre ao desastre. Esse trabalho é, mais particularmente para Lyotard, a obra de arte.

Ele opõe, assim, ao consenso cultural, uma tarefa da arte que é se dedicar a inscrever o traço, o choque ou o selo da condição “aterrorizada” do sujeito. Essa visão do dever da arte tem como referência a teoria kantiana do sublime. Sabemos, com efeito, que a experiência do sublime em Kant é a de um desacordo entre a faculdade intelectual e a faculdade sensível. No entanto, a referência ao sublime kantiano não é apropriada para apoiar uma estética do terror. A primeira razão disso é que a desproporção sublime em Kant não está na base de nenhuma arte. A experiência do sublime é a via que nos faz sair do domínio da arte e da experiência estética para entrar no da moralidade. A reivindicação de uma estética do sublime pretende fazer dessa passagem para além da arte a lei da própria arte. Ela transforma a arte em dever e a estética em ética. Mas também o sentido dessa ética está invertido. Em Kant, é a faculdade sensível que fracassa ao cumprir as tarefas que lhe determina a razão. Esse fracasso da faculdade sensível permite à razão tomar consciência de sua autonomia, que a eleva acima das leis da natureza e cria sua legislação no domínio moral. Em Lyotard, o jogo está exatamente invertido. O respeito kantiano torna-se terror. A experiência do sublime é a de uma incapacidade da alma em responder ao choque do sensível. E o que a alma aprende nessa experiência de terror é sua heteronímia, sua subjugação à lei do outro do qual ela é refém.

Não é, portanto, em Kant que esse pensamento do terror pode se apoiar. Podemos pensar que ele opera, de fato, uma colagem conceitual singular entre a lei kantiana e seu contrário, a saber, a lei da heteronímia do inconsciente freudiano. Mas essa visão de Freud, ela mesma é duvidosa. Assim como Kant, que separa o respeito do terror, Freud permanece fiel ao esquema aristotélico de redução dos medos e da contrariedade das razões. A tragédia de Édipo-rei parece-se com uma cura psicanalítica, diz-nos a Ciência dos sonhos. Podemos voltar à fórmula: Freud pensa a cura com base no modelo aristotélico da tragédia; trata-se de contrariar os efeitos do fato traumático, fechando-o numa nova intriga causal, numa outra conduta do tempo, num outro tratamento da relação entre o sabido e o não sabido. E então, mesmo se ele se distancia do otimismo primeiro de uma ciência apta a curar as doenças da alma, Freud não cessa de manter o princípio de redução dos medos. Ele sempre faz de um medo a proteção contra os efeitos de um outro. Ele proíbe que levemos a somente uma primeira e mesma aflição o traumatismo do nascimento, a angústia da castração e o impulso da morte. O impulso da morte não é o que se faz dele, hoje, prazerosamente para explicar todas as infelicidades do mundo: ele não é o terror secreto do ser aterrorizante/aterrorizado, que mora em seu mais profundo íntimo pelo poder incontrolável do Unheimlich. Ela é apenas o movimento insignificante que leva a vida na direção contrária de onde ela saiu.

Para transformar a economia freudiana dos medos e das proteções em terror íntimo da criatura confrontada com o Unheimlich são necessários alguns passos a mais. É preciso identificá-la na aflição pauliniana da criatura na batalha com o poder gêmeo da lei e do erro. Talvez seja preciso ainda identificar essa aflição na condição do Dasein heideggeiriano jogado no mundo, confrontado com a necessidade da relação incontrolável entre os poderes luminosos da abertura e os poderes terrestres da retirada. É preciso identificar o unheimlichkeit freudiano com a “terribilidade” do homem, tal como Heidegger a conceitualiza, comentando o célebre coro de Antígona, que proclama que o homem é mais terrível ainda que todas as coisas terríveis. É preciso retornar, para além da ruptura aristotélica, à sabedoria do coro trágico que diz que existe perigo em avançar longe demais no controle da terra e da cidade, em perturbar a divisão à revelia dos poderes da luz e dos poderes da retirada. A essa sabedoria do coro antigo, Heidegger soma apenas a máxima hölderliana: lá onde cresce o perigo, cresce também o que salva. Ele funda, assim, algo novo, que supera a sabedoria medrosa do coro. Essa superação não é mais a redução dos medos, das causas e dos tempos, mas o heroísmo do pensamento que enfrenta o terror na sua raiz, enfrentando o perigo da suprema proximidade com os deuses ou de sua ausência, para roubar a arma apropriada para nos salvar do perigo ordinário: o anonimato e a falação consensuais. É bem esse pensamento que retoma Lyotard, opondo ao mundo comunicacional e consensual da “megalópole” o terror íntimo da casa, lugar do enigma trágico do nascimento e da filiação, e dedicando a arte e o pensamento à consideração e à inscrição desse terror íntimo.

Eu disse: o que me interessa aqui não é a crítica de um pensador ou a genealogia de seu pensamento. É evidenciar uma configuração contemporânea do pensamento e a percepção que acompanha a distância as grandes cruzadas do bem contra o mal. Essa configuração acompanha essas cruzadas, levando a figura do medo racionalizado àquela do terror primeiro da relação entre o humano e o inumamo. Ela os acompanha, contribuindo para apagar os desvios, as invenções singulares pelas quais a arte da ficção e a arte da política se haviam separado da confusão inicial. Essa confusão tem um nome. Ela se chama ética.

A ética não é o nome sábio ou elegante da moral. A ética é, primeiro, o pensamento que restabelece as diferenças da moral, da política e da arte com relação à indistinção do ethos. Ethos é uma palavra estranha que significa a conjunção de duas coisas. Ethos quer dizer, originalmente, a permanência, a habitação, e também quer dizer a maneira de ser que convém a essa permanência. A palavra quer dizer, definitivamente, a identidade entre um sistema de valores e a maneira de habitar um lugar. Podemos compreender essa identificação da maneira mais simples, a dos conselheiros de George W. Bush. Identifica-se, então, a luta mundial do bem contra o mal e a defesa da segurança dos indivíduos que constituem a nação americana. E identifica-se a vitória do bem numa remodelagem do mapa-múndi, impondo, em um único e mesmo gesto, as exigências da segurança americana e o modo de vida democrático nos territórios reféns da violência obscura. Essa visão não é simplesmente uma ingenuidade da qual podemos rir. Ela expressa, de fato, um certo estado da política e do mundo. Ela marca o apagamento tendencial da política. Há a política, com efeito, quando o princípio do governo está separado do princípio da sociedade. E é essa separação que está no cerne do paradoxo democrático, do paradoxo do governo daqueles que não têm direito de governar.

O apagamento dessa separação tem um nome, hoje, favorável. Isso se chama consenso. O consenso é algo completamente diferente de pacificação dos conflitos. O consenso é o apagamento da divisão política, é, na verdade, a privatização da vida pública, sua redução à gestão de interesses de uma sociedade. É a identificação do princípio da comunidade política com o modo de vida de uma sociedade. Mas o “modo de vida de uma sociedade” é, na realidade, a tensão entre esses dois princípios da vida comum que tendem a se impor lá onde a sociedade não está separada dela própria pela divisão política. De um lado, é a identificação do poder do comum com o poder econômico que governa a produção e a distribuição dos bens materiais. Do outro, é sua identificação com o poder de transmissão que está no princípio da vinculação comum. Poder de riqueza de um lado, poder de filiação de outro. Mas esse segundo poder é duplo: ele é o poder da identidade daqueles que compartilham o mesmo ethos, e é o poder da alteridade, da lei divina ou não humana que governa, em última instância, essa identidade.

O pressuposto “choque de civilizações” pretende traçar uma oposição simples entre países ricos e democráticos e países pobres, cravados na afirmação étnica e na submissão religiosa. Mas, na realidade, os dois princípios tendem a dividir entre si o próprio governo de nossas sociedades à medida que aí se apaga a singularidade da invenção democrática que mantinha a sociedade a distância dela própria. A distinção política cede lugar à confusão ética: confusão da comunidade política com o medo de vida de uma sociedade; tensão ou confusão dos dois princípios dessa vida: a reprodução da riqueza comum e a transmissão da participação comunitária; tensão ou confusão da afirmação identitária e da submissão para com a alteridade. São essas confusões em cadeia que produzem o sentimento do terror que une numa só síndrome a ansiedade íntima de cada um (com as ameaças pesando sobre a ordem internacional) e a confrontação com o mal infindo.

O discurso ético intelectual sacraliza, na verdade, essa configuração. Ele pretende recusar a ingenuidade das cruzadas do bem contra o mal e perturbar a segurança da ordem consensual, remetendo-a a suas origens violentas, e fazendo do terror não mais a arma do inimigo do bem e da democracia, mas uma condição compartilhada. No lugar da oposição do bem e do mal, ele coloca a identidade última do aterrorizador e do aterrorizado, a relação da civilização da violência irredutível e fundadora da relação com uma alteridade incontrolável. Mas esse discurso só faz, na realidade, dobrar o discurso oficial da luta contra o terror. Ele só confirma o apagamento da política com seu efeito: o face a face simples entre a lei da mercadoria e a lei do outro; a indistinção das ameaças efetivas e da aflição íntima de cada um; a confusão dos negócios concernentes à proteção das sociedades e os concernentes à lei de Deus e do Outro. O discurso intelectual do terror compartilhado transforma-se, então, na versão sofisticada do consenso que ele pretende combater. No lugar das invenções singulares da política e da arte, ele remete ao princípio da vida comum do qual elas deviam se libertar para existir: a tragédia observada do ponto de vista da sabedoria do coro: o perigo da prosperidade humana na luta com os poderes obscuros e assassinos que castigam a perda da medida. Essa sabedoria pretendia ser um aviso aos governos. Ela nunca fez outra coisa senão sustentar a arrogância deles, que se faziam protetores da comunidade em perigo.

Tal é, hoje, a dificuldade de pensar o terror. O terror não é simplesmente um conjunto de atos e de ameaças efetivos. Esse nome designa também um certo estado do mundo. Mas esse estado do mundo define também um modo de percepção e uma grade conceitual: o terror se apresenta muito naturalmente como explicação do terror. E ele tem argumentos para isso: quem irá negar que existe angústia no cerne da experiência subjetiva e da violência na origem das comunidades? De fato, não se pode negá-lo. O que é preciso recusar, por outro lado, é o amálgama ético que leva todos os medos e todas as violências a uma única e mesma violência originária: Revolução Francesa, Gulag soviético, extermínio de judeus na Europa ou terrorismo islamita são assim remetidos a uma única e mesma origem, a uma aflição originária e a uma desmesura fatal da criatura humana na luta com a presença neurótica dos deuses ou com sua ausência psicótica. E, lógico, também não é tão fácil hoje se apoiar em distinções estabelecidas para refutar esses amálgamas: quem irá, atualmente, retomar, por exemplo, a clara oposição do tempo de Sartre e de Frantz Fanon entre a violência que oprime e a violência que libera? De qualquer maneira, a distinção dos medos e das violências ou a distinção das causalidades e das temporalidades não se efetuam segundo o único comando do pensamento. Elas advêm apenas da racionalidade singular das invenções da política e da arte que quebram o poder homogeneizador da confusão ética. Nenhuma sabedoria bem-pensante pode ditar o caminho dessas invenções. Nenhuma pode também suprir sua ausência.

Tradução de Marcelo Gomes.

 

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