1996

Ética e razão

por Franklin Leopoldo e Silva

Resumo

Qual é a relação entre a razão e os valores se levarmos em conta os aspectos do itinerário histórico da filosofia e estabelecermos parâmetros de compreensão do significado que a cultura moderna contemporânea confere às consequências éticas da nossa prática, às implicações intelectuais da dimensão ética de nossa existência?

Descobrir a origem da incapacidade reflexiva gerada pela complexidade da atualidade e analisar a perplexidade causadora de discussões éticas necessárias porém desprovidas de vigor para a abertura de novas vias, parece ser a única maneira de achar um caminho para pensar a ética da racionalidade contemporânea.

O aspecto positivo dessa aporia consiste em nos fazer entender a necessidade da reconstrução da pergunta pelo sentido da liberdade.

Buscar em Platão e Aristotéles uma inspiração para tentarmos restabelecer na atualidade uma relação positiva entre ética e cultura? Ou, como nos indica Foucault, fazer a crítica ontológica da atualidade, dos limites históricos de nossa situação cultural e abrir novas possibilidades de reinventar a liberdade?

Ambas as direções dependem de um movimento racional de rearticulação da experiência histórica que proporcione condições favoráveis para a reagregação do ethos.

Uma tal reagregação supõe o advento de condições de experiência histórica que permitam superar de alguma maneira a fragmentação do sujeito. Como ordenar e dar sentido ao pluralismo contingente das exteriorizações do sujeito senão na unidade de uma subjetividade que fosse capaz de remeter as diferenças de suas expressões à unidade do ethos? Tal reencontro de um polo metafísico da subjetividade significaria reconstruir uma experiência que mantivesse plenamente viva a polaridade que se desenha na relação, muitas vezes contraditória, entre as solicitações da práxis objetivada e a unidade ética da pessoa, que só compreende e domina suas ações quando exerce o domínio de si.


Não é difícil justificar a atualidade do tema. Muito mais difícil é compreender as implicações dessa atualidade e o modo pelo qual ela corresponde à crise que vivemos contemporaneamente. Com efeito, o caráter 
emblemático da razão relativamente à nossa civilização nunca impediu que ela fosse colocada em questão no que diz respeito à sua gênese, suas funções, sua finalidade. O confronto, já nos primeiros séculos da história da filosofia, entre os sofistas e o pensamento socrático-platônico nos mostra, sob o fundo comum do apelo ao poder da razão, duas concepções extremamente distintas de seu uso e de sua finalidade. Não se trata apenas das possibilidades de exercício da capacidade que distingue o homem dos seres não racionais, mas principalmente do sentido e do valor que se deve atribuir a esse exercício, para compreender, no plano da finalidade, a inserção do homem no cosmos. No âmbito do pensamento patrístico e medieval o problema da relação entre fé e razão se coloca, analogamente, como a tentativa de avaliar a distância existente entre a autonomia da racionalidade e a experiência do limite de uma razão que, do interior de si mesma, se obriga a considerar a inacessibilidade do que a transcende, e consequentemente a pensar-se diante do que não lhe é inteiramente compreensível. A modernidade assimilou a alteridade desse absoluto transcendente no movimento reflexivo de uma consciência que se afirma no poder representativo da totalidade pensada, ao mesmo tempo em que se contrapõe a uma exterioridade natural relegada à dimensão do ser não objetivo. Faz portanto a experiência do limite da razão exacerbando a negatividade do que a razão não pode abarcar. Foi na continuidade dessa perspectiva que o Iluminismo definiu o território do racionalmente compreensível através do valor lógico da universalidade, para que aquilo que ficasse além desses limites permanecesse também exterior ao plano da racionalidade humana. Seria talvez permitido dizer que a razão se constitui positivamente ordenando-se negativamente em relação àquilo que não pode abarcar nos parâmetros do que instituiu como ser objetivo.

O que se verifica então é que as noções, explícitas ou implícitas, de verdade, objetividade, limite, teoria, interese especulativo, uso da razão, finalidade, sentido do conhecimento etc., e tudo aquilo que a elas se contrapõe, delineiam a intersecção, nunca muito bem determinada, entre conhecimento e valor, ciência e sentido, verdade e finalidade. Pode-se dizer que nunca o conhecimento se instituiu, nos seus procedimentos e na demarcação dos seus horizontes, sem que se tenha constituído, simultaneamente, embora nem sempre reflexivamente, o quadro axiológico imanente ao desejo de saber. Há portanto, em princípio, uma indissociabilidade entre razão e ética, e isso não apenas nos termos da identidade platônica entre a verdade e o Bem, mas também em todos os projetos de intelecção de princípios, valores e fins, mesmo aqueles que conferem à racionalidade prática um perfil menos determinado do que aquele que a perspectiva socrático-platônica atribuía à relação entre o homem e o Bem.

A questão que nos ocupará aqui é a das modalidades de relação entre a razão e os valores: através do comentário de alguns aspectos colhidos no itinerário histórico da filosofia, procuraremos estabelecer parâmetros de compreensão do significado que a cultura moderna e contemporânea confere às consequências éticas da nossa prática e as implicações intelectuais da dimensão ética da nossa existência.

Partimos de um diagnóstico que já se tornou comum, mas que está excelentemente formulado por Lima Vaz: “As perplexidades de uma civilização que fez da razão seu emblema maior e caminhou ousadamente sob o signo desse emblema têm sua expressão mais aguda e mais dramática no desconcerto e na suspeita que invadem o universo dos valores e dos fins e que se exprimem de forma radical no niilismo ético” (Vaz, l995, p. 58). A complexidade e a perplexidade parecem ter se tornado constitutivos do ethos do nosso tempo. Se por um lado a velocidade das transformações históricas dissolveu o peso que o ethos da tradição poderia ter enquanto lastro do presente, por outro lado a razão moderna parece ter perdido, no desenvolvimento histórico mais recente, o poder de inventividade que seria necessário para dar conta das implicações éticas da complexidade de nossa civilização. Daí a perplexidade, que se manifesta na proliferação das discussões éticas na atualidade, as quais entretanto não parecem investidas de vigor e de rigor suficientes para o discernimento de novos caminhos, a partir de uma análise segura da posição histórico-metafísica do homem no curso de nossa época. Devemos nos debruçar sobre essa dificuldade, pois a compreensão da gênese de nossa incapacidade reflexiva é a única maneira de vislumbrar se 
existe ainda alguma possibilidade de pensar as implicações éticas da forma contemporânea de racionalidade. Não seria demais afirmar que a originalidade histórica do tempo que vivemos envolve o risco de total dissolução ética, ocasionada pelo radical ocultamento da dimensão moral da consciência, pelo menos nas esferas autênticas de sua manifestação. Numa visão histórica de longuíssima duração, não deixa de ser surpreendente que tenhamos desbaratado dessa maneira a herança que recebemos do classicismo grego como o fundamento racional da conduta humana. Por outro lado, o exame da sucessão histórica das figuras da razão explica a perda da autonomia do saber prático e a inutilidade presente daquilo que até o século XVII era chamado de sabedoria.

Aristóteles, no livro VI da Ética a Nicômaco, diferencia a figura da razão ligada ao saber demonstrativo daquela que se exercita no saber prático. Por um lado a especificidade da racionalidade prática se vincula aos caracteres da ação: particular e contingente. Por outro, esse tipo de saber, assim como o saber produtivo (techne, poiesis), se ordena ao saber teórico, já que a razão teórica, através de seu objeto privilegiado, o Bem, se constitui como polo irradiador da verdade que possam conter os demais níveis e gêneros de saber. Isso significa que, apesar de recusar a acepção unívoca da fronesis em Platão, Aristóteles não renuncia a um certo ordenamento das figuras do saber e da verdade. O objeto da ética é a felicidade entendida como a consecução do Bem verdadeiro, acessível ao homem enquanto tal, e não os bens relativos a que os interesses passageiros possam visar. Apesar de contingente, a ação ordena-se ao Bem, isto é, ao conhecimento teórico do Bem, muito embora, na contingência e na variabilidade que as caracterizam, as ações não possam ser visadas teoreticamente. No entanto, a felicidade maior do ser racional, não podendo encontrar-se em algo contrário à razão, há de estar na virtude mais elevada dentro do ordenamento racional: a contemplação. Por isso, no livro X da Ética a Nicômaco, Aristóteles menciona com ênfase o elevado valor do ato intelectual no estágio máximo em que o homem pode praticá-lo. Isso significa que a autonomia e a especificidade da ética não a isola do saber que corresponde à Filosofia Primeira. Essa relação aparentemente difícil entre necessidade e contingência está ilustrada no livro IV pelo equilíbrio entre a definição de virtude como o justo meio e a análise das diferentes virtudes: embora saibamos que a verdade é sempre o justo meio entre os extremos para os quais a virtude possa tender, ainda assim somente o discernimento e a exemplaridade poderão nos indicar, na prática concreta de cada virtude, o justo meio que lhe corresponde. Pode-se dizer, portanto, que o conhecimento de que a virtude é o justo meio difere do discernimento pelo qual encontro o justo meio em cada virtude. Essa diferenciação da razão responde à necessidade de ordenar a conduta humana no mundo prático. Se por um lado a ordem da conduta diz respeito à contingência da ação, por outro deve pautar-se pelo conhecimento do Bem, discernido em cada caso, na particularidade da ação, através de uma deliberação desde sempre inspirada no Bem como princípio, que ordena e confere sentido à multiplicidade empírica e histórica. Note-se portanto que a fronesis que determina por escolha o melhor em cada caso, embora possa ser considerada forma específica e autônoma de racionalidade, remete à fronesis como contemplação intelectual do princípio. Sem essa vinculação não haveria como reconhecer na melhor escolha a atuação implícita de um critério que deriva do Bem como medida do melhor.

Isso indica que existem em Aristóteles duas figuras da razão que se diferenciam e se correspondem. O mais importante a notar é que tal correspondência deve ser entendida como um ordenamento da racionalidade prática à racionalidade teórica, sem que por isso a primeira seja simples derivação da segunda. Pelo contrário, a racionalidade prática, ordenando-se pela teórica, ordena o mundo dos homens de acordo com as características específicas da particularidade e da contingência. É certo que tais características definem o limite de um saber: não pode haver ciência do particular. Mas esse limite também configura a autonomia da racionalidade prática, ao mesmo tempo em que aponta para a transcendência que a própria experiência do limite designa. “[…] o saber filosófico que preside à própria diferenciação da razão segundo a concepção antiga nasce da experiência profunda da ordem divina que se eleva sobre a aparente desordem do mundo. É, pois, um saber eminentemente ordenador e, como tal, uma sabedoria” (Vaz, l995, p. 61).

É notável que a intersecção problemática entre a experiência do contingente e o conhecimento do Bem como princípio resulte na sabedoria como ordenação das coisas humanas, pois isso indica uma relação profunda entre o Bem como princípio da ação e a escolha humana (proairesis) como princípio de cada ação e como meio de discernir o bem que aí está envolvido. Significa que, sendo princípio de sua ação, o homem não é no entanto princípio do bem que a ação deve realizar. A responsabilidade moral fica dessa maneira vinculada tanto ao discernimento individual quanto à universalidade da razão. Importa não perder de vista essa referência transcendente do prático, pois é ela que impede que a deliberação ética seja considerada apenas como cálculo que opera na imanência das possibilidades da práxis. A “reta razão” supõe “a atividade do espírito que dá as diretrizes do obrar humano” (During, 1990, p. 726), a partir de uma autonomia que só se realiza plenamente na vida contemplativa. A especificidade da forma de vida virtuosa, objetivo ético-cívico do homem, não exclui o compromisso com a perfeição racional, ideal da teoria. O indivíduo se realiza portanto em dois planos de generalidade: a cidade entendida como comunidade ético-política, já que é inserindo-se nela que a deliberação individual ganha efetividade; e a intuição contemplativa como ápice da vida intelectual, não acessível a todos mas de direito pertencendo à esfera das possibilidades humanas.

Essa ordenação da liberdade prática à contemplação teórica é que foi abandonada pela racionalidade moderna, quando o pensamento da infinitude real do ser absoluto foi substituído pela intencionalidade representativa da consciência, virtualmente capaz de descobrir em si a infinitude lógica da ideia de Absoluto. Dessa maneira a ordenação ontológica que repousava no pressuposto da participação do intelecto humano num Absoluto real cede lugar à ordem da subjetividade metodicamente regulada pela intelecção de um Absoluto entendido como fundamento lógico da realidade pensada. Não mais ordenamento ontológico, mas representação do ser objetivo. Quando Descartes entende que a filosofia deve recomeçar pela instauração do método, pondo em questão o próprio ato de conhecer antes do conhecimento de qualquer objeto, isso significa o abandono do Absoluto 
real em prol da subjetividade epistêmica considerada como fundamento lógico. Conhecer antes de mais nada o próprio conhecimento é optar pela hegemonia da razão como índice de sua autonomia. “Na razão moderna o polo lógico assumirá, portanto, a primazia no universo da razão, e essa primazia é ratificada em Descartes pelo predomínio do método e em Kant pela emergência do sujeito transcendental que, como operador do método e construtor do objeto, acabará avocando para si o lugar e a dignidade do Absoluto real” (Vaz, 1995, p. 65). O processo de subjetivação leva à absolutização do sujeito no plano do conhecimento. A efetivação metódica da busca do fundamento leva a filosofia cartesiana a encontrar o sujeito como existência e como fundamento lógico. Como o que está em questão é a fundação do conhecimento, a existência e a essência lógica tornam-se necessariamente indiscerníveis. No entanto a função fundamentadora confere ao sujeito um teor epistêmico exclusivo; assim a unidade do método se projeta na unidade do conhecimento, ambas concebidas a partir da unidade da razão. Reconhecemos assim a primazia do “polo lógico”, que será plenamente manifestada na transcendentalidade do sujeito kantiano. A decisão kantiana de fundar o conhecimento na funcionalidade lógica do sujeito teórico realiza assim o deslizamento da subjetividade do centro lógico-metafísico, presente ainda em Descartes, para um centro definitivamente lógico, a unidade da síntese cognitiva. Dessa forma perdeu-se a ordenação metafísica do sujeito ao Absoluto e perdeu-se também o próprio estatuto metafísico do sujeito.

Ora, a unidade epistêmica e formal da razão, que assim se constitui, nega necessariamente a possibilidade de uma figura da racionalidade que, ordenada ao polo metafísico do conhecimento, permitiria o discernimento do reflexo do Absoluto na contingência, como acontecia no caso do fronimos aristotélico. Por isso o uso prático da razão em Kant consistirá no estabelecimento das condições formais do ato moral, mas não permitirá a intuição do Bem na ação concreta. Posso remeter a ação empírica aos critérios formais de universalidade, mas não posso submeter a contingência, no plano de sua irredutibilidade, às operações lógicas necessárias à formalização teórica. Sem o ordenamento metafísico, a ética entra para o domínio da racionalidade formal. É bem verdade que em Kant a moral não se submete aos procedimentos empírico-formais das ciências da natureza. Mas o sentido negativo desse limite impede que a racionalidade prática se constitua fora do domínio formal da transcendentalidade. Não é menos que a teoria, mas também não é outra coisa que se institua como completamente exterior à unidade lógica da razão. É portanto o gênero específico de racionalidade prática que está posto em questão. Já não posso referir o conteúdo contingente da ação ao valor que deveria investi-la, a não ser pela mediação da forma. Dessa maneira a intermediação formal dissolve a efetividade e logiciza o absoluto que o valor deveria manifestar.

Essa separação entre ética e metafísica aparece na filosofia kantiana como uma nova proposta de relação entre a realidade antropológica e a universalidade da razão. Como respaldar, na ausência da metafísica, o valor que deve investir a ação moral, senão remetendo o fundamento da ação à universalidade formal da razão, pela qual o sujeito assume o caráter absoluto de sua própria funcionalidade? Assim sendo, a unidade da razão atinge a esfera ética através de suas formas, já que o projeto cartesiano de moral racional não se mostrou passível de realização efetiva. A assunção da racionalidade formal como derradeira etapa da realização da autonomia da razão tem implicações profundas. Com efeito, é o dinamismo produtor da razão que assim se caracteriza como paradigma tanto no plano do conhecimento como na esfera da ética. Mas essa solução universalista torna-se tributária da feição lógica de uma razão essencialmente analítica. O importante é reconhecer que a universalidade se constitui como imanente à estrutura subjetiva, para que a experiência possa adquirir significado racional. Sendo assim, a experiência histórica do ethos não mais pode transcender, na sua inteligibilidade, a esfera do construtivismo da razão subjetiva. Como diz Vaz,

se esta intencionalidade não aponta mais para o polo metafísico, ela deve necessariamente retornar sobre si mesma e orientar-se para o polo lógico, enquanto imanente ao próprio sujeito, seja como princípio da ordem racional do seu discurso, seja como fundamento da sua aprioridade transcendental sobre o dado da experiência. A autonomia do sujeito manifesta-se, pois, enquanto exigência de universalidade, como transcendentalidade e como discurso. E é como tal que ela se apresenta no campo da ética, mostrando-se aí como lugar de intersecção da experiência que deve ser racionalizada em termos de norma, e da razão que deve receber da experiência o conteúdo do seu exercício normativo. [Vaz, 1995, p. 73]

O Iluminismo pretendeu que o homem fosse o único artífice de sua humanidade. Para tanto as condições de inteligibilidade da teoria e da ação teriam que ser remetidas às representações da razão subjetiva. Na intersecção histórica entre essa pretensão e suas motivações estão as condições do extraordinário desenvolvimento da racionalidade técnica expresso nos resultados das ciências empírico-formais e, mais tarde, na ilusão da possibi lidade de transparência do sentido da história. Ora, se a razão se ordena pelo êxito das suas realizações analíticas, devemos perguntar se isso não significa perder de vista a originalidade da racionalidade prática. Se por um lado a experiência do ethos só pode ser compreendida a partir de suas razões, por outro lado ela não será compreendida se tais razões forem incorporadas ao universo teórico dos procedimentos instrumentais. Será a razão apenas a soma desses procedimentos — a projeção da objetividade — ou guardaria ela em si mesma a possibilidade de vincular a liberdade e o bem num plano diferente do das determinações discursivas de sua exterio rização técnica? Talvez estejamos vivendo as consequências de dois processos de separação: entre conhecimento e metafísica, e entre ética e metafísica. Não é estranho que essa dupla separação se reflita numa terceira: entre conhecimento e ética. Por isso boa parte das discussões atuais se dá em torno do problema da reconstrução da mediação entre ética e conhecimento (problema do fundamento). Há uma suspeita de que, num mundo regido pela racionalidade tecno-analítica, a revitalização da ética passa pela revisão de sua racionalidade, isto é, das formas racionais de sua incorporação. Mas podemos duvidar de que haverá realmente uma recuperação da dimensão ética se a buscarmos através das mediações sugeridas pela vertente da razão analítica, isso se desejamos efetivamente voltar a compreender o ethos pelo seu teor de racionalidade específico. Não seria sensato procurar, no mundo da tecnocracia, do instrumentalismo e do imediatismo, o equivalente do fronimos aristotélico, embora nada seja mais urgente, nesse mesmo mundo, do que a recuperação da virtude prática. Entretanto, nas condições históricas que caracterizam a nossa herança iluminista, a tarefa fundamental é certamente a construção de formas de compreensão ética da práxis que confiram alguma fundamentação ao dever ser. Será que, por um feliz paradoxo, esse caminho já não estaria indicado na face menos aparente da autofundamentação da razão iluminista?

Ao menos se pode entender a abertura dessa possibilidade na leitura que Foucault faz do texto kantiano “Resposta à questão: o que é o Iluminismo?”. A pressuposição que orienta essa leitura é dupla: a história do pensamento não é a história das representações ligadas a um certo “comportamento” das ideias; é muito mais aquilo que o próprio pensamento compreende, em cada época, como sendo o transcorrer de sua própria história, captada no enfrentamento do presente. Ler dessa maneira o texto de Kant não é simplesmente aprender a sua resposta; é aprender a responder a partir da construção das questões que emergem das urgências históricas da 
atualidade. Isso significa uma escolha: “a escolha filosófica de um pensamento crítico que toma a forma de uma ontologia da atualidade” (Cardoso, l995, p. 53). Tampouco — segundo pressuposto — a consideração histórica do presente deve guiar-se pelo enquadramento conceitual da experiência imediata. A diferença do presente surge das transformações no modo de viver a história. Por isso pensar o presente é refletir acerca da temporalização que faz dele o resultado da transformação do passado. O presente é atualização. “A noção de atualidade não é idêntica à noção de presente mas é construída a partir de um certo tipo de temporalização deste” (Cardoso, 1995, p. 56). Essa construção é a interpelação do presente que o insere no tempo histórico, de alguma maneira dissolvendo sua instantaneidade para atualizá-lo num movimento de temporalização. Pode-se dizer a partir daí que a leitura do presente simplesmente segundo o código do progresso histórico o isola numa contemporaneidade que se enrola em si mesma. É a própria negação do movimento histórico, pois o subordina à lógica retrospectiva que vincula a tradição aos resultados “comportamentais” do presente. A verdadeira interpelação problematiza o presente questionando o modo como se constitui a atualização histórica. É uma experiência que visa atingir em profundidade a “ontologia de nós mesmos”. “[…] problematização [é] um modo de apropriação do acontecimento pelo pensamento através de um questionamento da atualidade. A problematização constitui-se numa abertura do pensamento diante da abertura do acontecimento” (Cardoso, 1995, p. 60). Esse exercício da razão crítica é a escolha filosófica que Foucault remete a uma das tradições críticas legadas por Kant.

Em “O que é o Iluminismo” (Foucault, 1984), Foucault afirma que a analítica da verdade e a ontologia do presente constituem as duas tradições deixadas por Kant. É a segunda que coloca as questões sobre a atualidade, não apenas no sentido de entender o seu desenvolvimento histórico ou a necessidade de seu advento mas principalmente no sentido de se perguntar: o que é a atualidade? O que é isto que estamos vivendo? Existe algum signo histórico que seja capaz de revelar o significado profundo de uma dada época? Existe algum acontecimento em torno do qual se aglutine uma disposição histórica que revele o perfil da época e a essência das esperanças coletivas? Esse acontecimento ou esse perfil podem ser tomados como sinais de progresso, como Kant entendeu a sua própria época — Aufklärung — como maioridade da razão. Isso não importa muito. As ambiguidades da autonomia da razão iluminista, a configuração do destino da subjetividade moderna são questões que se colocam a partir da consideração do signo ou do acontecimento. O fato é que se trata de uma interrogação histórica que só pode ser formulada por uma razão crítica. Uma razão analítica pode entender que o presente é e isso envolve a elucidação das suas estruturas. Mas não pode perguntar o que é o presente, pergunta que se situa num plano aquém da análise do que é dado. De alguma maneira a razão analítica responde sem perguntar, situando-se num nível de facticidade da explicação que substitui a reflexão pela determinação mesmo quando tais explicações se dão aparentemente no âmbito do pensar filosoficamente a história. Mas a tarefa propriamente derivada de uma inquietação profunda, e não apenas de uma ânsia superficial de resultados, é aquela que se dedica à construção da indagação. Tal construção supõe a reflexão crítica sobre a gênese do presente, de tal modo que a opacidade do imediato se transforme na possibilidade de sua revelação. Por isso a interrogação histórica operada pela razão crítica não poderia contentar-se com o entendimento dos eventos e com a sistematização do seu encadeamento, bem como com a ligação disso com resultados, também entendidos unicamente no plano do eventual. Deve procurar compreender o sentido axiológico da historicidade que aí se constitui, para julgar os eventos a partir do uso que os homens fizeram da sua liberdade histórica. Assim, para compreender o sentido da historicidade no seu acontecer moderno, é preciso apreciar valorativamente a subjetividade na instância da fundação da modernidade e a subjetividade no advento da sua realização.

O sentido axiológico da historicidade é uma tarefa crítica da razão. Seja entendendo a época presente como fruto do progresso e do amadurecimento, como faz Kant em relação ao seu presente, seja entendendo-a como retrocesso e perda de substância humana, como seria mais adequado no caso do nosso presente, de qualquer modo o estabelecimento do valor se vincula à interrogação crítico-histórica.

Examinando num outro texto a mesma questão (“What is Enlightenment”, Foucault, 1988) e referindo-se ao tratamento kantiano da relação entre o uso privado e o uso público da razão, o que Foucault tematiza implicitamente é a ambiguidade da relação entre ética e política no preciso momento histórico em que a maioridade da razão é proclamada por Kant como vinculada ao seu livre uso na esfera pública. O uso privado da razão diz respeito à circunscrição dos interesses sociais naquilo em que afetam o indivíduo e naquilo em que se subordinam por definição à exterioridade das regras que os disciplinam. Nesse campo a liberdade da razão se concilia com a obediência devida aos princípios de organização sócio-política sob os quais vivem os homens. É possível questioná-los mas não é possível desobeder a eles. O uso público da razão se relaciona menos ao universo social do que à própria racionalidade enquanto traço distintivo da humanidade. É o âmbito do universal, no qual a razão ou se exerce soberanamente ou contradiz a si própria. É interessante notar que seria difícil definir os domínios assim configurados como o ético e o político, de forma separada. O indivíduo não pode desobedecer às regras sociais que determinam a inserção civil, embora possa discutir a racionalidade e a pertinência de tais regras. Ora, o indivíduo que obedece politicamente àquilo mesmo que não aceita eticamente está dividido como sujeito, já na esfera do uso privado da razão. O exercício da razão livre no plano da universalidade se opera quando o indivíduo, abstraindo de alguma maneira as próprias determinações que o constituem como tal, atua como uma espécie de sujeito universal. Pode-se supor talvez, a partir daí, que a verdadeira esfera da liberdade é a do uso universal da razão, em que ninguém atua a partir da individualidade determinada, mas a partir da universalidade da subjetividade racional. A maioridade da razão se define assim como a consciência que o indivíduo histórico passa a ter da universalidade da razão, como característica da 
humanidade. Reconhecimento da racionalidade e reconhecimento da humanidade ocorrem assim a partir da abstração da determinação da individualidade no plano do uso público da razão. Essa estratégia de legitimação pela mediação de uma universalidade constituída pode ser relacionada, segundo Foucault, com o trabalho de justificação operado na Crítica, em que se definem os casos de delimitação e de atuação legítima da razão. Importa notar, para aprofundamento da ambiguidade antes mencionada, que a legitimidade da razão, tanto no uso teórico como no uso prático e mesmo no que se refere à terceira crítica, remete-se à normatividade transcendental, que universaliza o conhecimento, a ação moral e o juízo precisamente por retirá-los da contingência fática a posteriori. Talvez se possa relacionar a essa perspectiva transcendental o fato de que a liberdade e a maioridade da razão se manifestam na universalidade do público em que a humanidade compartilhada racionalidade.

Diante desse quadro deve-se perguntar se é a normatividade transcendental, que impõe à razão o universalismo abstrato de uma realidade transformada em sistema, o legado que devemos reconhecer e assimilar enquanto herdeiros do Iluminismo. Será essa a única maneira de receber a herança? Ou haverá outro modo pelo qual a modernidade mais recente pode se fazer herdeira do Iluminismo? Aquém das características que marcaram concretamente o ideário da Ilustração como momento da história do pensamento, Foucault nos convida a recuperar um certo ethos filosófico que nos impele à tarefa da interrogação histórico-crítica. A “ontologia do presente” é a “ontologia histórica de nós mesmos”. Isso significa que a pergunta “o que é a atualidade” se constrói a partir da afirmação crítica da busca do sentido que historicamente conferimos à nossa liberdade. Somos ainda capazes de capturar, na análise da nossa modernidade, algo que ultrapasse a simples determinação conjuntural, indefinidamente repetida a partir do pressuposto do progresso? Somos ainda capazes do gesto de Baudelaire, isto é, de recapturar o eterno dentro da fugacidade do presente? E não seria esse lastro de eternidade que nos faria inventar-nos autenticamente dentro da nossa mo dernidade? A maioridade como tomada de consciência da autonomia da razão poderia ser entendida, num plano aquém da ambiguidade da resposta kantiana, mas ao mesmo tempo fiel ao espírito kantiano, como o ethos filosófico da permanente crítica e da permanente reinvenção. Isso, que certamente não se concilia com a ambição explícita do formalismo transcendental, é no entanto, segundo Foucault, a grande lição de Kant. Mas não haverá aí um obstáculo na raiz? O próprio ato de reconhecimento da “maioridade” já não envolveria algo como a inserção institucional da liberdade, o que já seria contrário à vivência ética individual? Kant diria que na esfera do interesse particular não pode haver liberdade sem o limite da determinação. Seria possível aceitar a lógica dessa afirmação, se com ela não tivéssemos que aceitar também que a universalidade característica do uso público da razão livre envolve pelo menos o risco da anulação da individualidade concreta. Há um conflito, certamente; herdar a Ilustração significa envolver-se nesse conflito, experimentar historicamente essa tensão. Se a autonomia está implicada no ethos da Ilustração, não há como constituir o sujeito autônomo sem passar pelas contradições que expressam esse ethos. É uma experiência que só pode ser refletida pela razão crítica.

Pois se pode dizer a partir de Foucault que, se a crítica exercida pela razão analítica impõe limites, a outra forma, aquela exercida pela razão crítica, propõe a experiência dos limites como possibilidade de transgredi-los. É isso que significa definir o ethos como atitude-limite: o sentido positivo do limite é a possibilidade de transgredi-lo. Mas é claro que será no plano da individualidade ética que tal transgressão poderá ser pensada, já que a liberdade universal se constitui à custa do sentido negativo do limite na esfera da liberdade privada. Será preciso integrar a transgressão à esfera da razão e da ação individuais para que se possa constituir o teor concreto do sujeito, já que este é sujeito de seu pensamento e de sua ação. Por isso a normatividade transcendental deve ser substituída pela gênese compreensiva da historicidade do sujeito. A posição metafísica do sujeito na história se define então pela oposição à necessidade do processo histórico e contra o caráter absoluto de suas determinações. A gênese do que somos indica a possibilidade de podermos ser diferentes, se a historicidade for compreendida como a possibilidade de assumir a diferença do presente. Mas a diferença do presente é sempre polaridade entre o resultado do processo histórico e o que fizemos de nossa liberdade; por isso essa diferença deve ser compreendida criticamente e não apenas constatada factualmente. Somente através da reflexão sobre o presente levada a cabo pela razão crítica é possível colocarmo-nos sempre no limite de nosso ser histórico. Esse limite é compreendido como possibilidade de superação do que somos historicamente. Isso significa simplesmente entender a história como movimento e não apenas como justaposição de tempos presentes. É a ideia do movimento histórico que permite a experiência do limite, pois a história não é apenas sucessão mas também transformação: a transformação verdadeira é transgressão do limite. Como relacionar a experiência com a transgressão? Entendendo que a ontologia do presente é na verdade a crítica ontológica de nós mesmos. Esta acaba sendo a característica fundamental do que Foucault chama de ethos filosófico, “[…] um trabalho levado a cabo por nós mesmos sobre nós mesmos como seres livres”. Trata-se de um esforço que não se dá ao abrigo de nenhuma estrutura universal; que não aspira a nada de definitivo; porque a experiência do limite é por si mesma limitada e determinada, e assim também a possibilidade de superá-lo. O que podemos superar, o que podemos transgredir, senão o contingente?

Mas somos ainda capazes de compreender o verdadeiro significado da contingência que atravessa a práxis? Quando se fala em prática, normalmente entendemos um domínio ao qual a razão teórica se aplica. O grau em que se consolidou essa relação indica quanto a nossa época se organizou a partir da supremacia da racionalidade técnica. Pois já Kant, na primeira introdução à Crítica do juízo, havia feito a distinção entre o sentido da prática como aplicação da teoria e o sentido da prática como instância autônoma de um certo exercício de racionalidade. Apesar da vinculação de ambas as posições da razão à unidade do princípio transcendental, a distinção kantiana evoca ainda o eco tardio da possibilidade de compreender a práxis na sua singularidade. Hoje já não parece existir efetivamente essa possibilidade. Quando falamos em conhecimento prático indicamos quase sempre algo que deriva do saber científico e se presta à aplicação. Torna-se difícil operar a diferenciação entre o prático e o técnico. Essa indiferenciação corresponde à unidade da razão que opera na ciência. A ciência, como mostrou Heidegger, inclui a técnica como consequência direta e imanente do seu desenvolvimento. A razão moderna, por articular desde o seu surgimento o conhecimento e o poder, possui na aplicação técnica da ciência a última instância de sua própria definição. A inseparabilidade entre o saber e o domínio da natureza impede que se faça qualquer separação autêntica entre ciência e técnica. É essa continuidade que oculta o verdadeiro significado da práxis. Assim como a ciência moderna não necessita da familiaridade primária com o mundo, a partir da qual os gregos apreendiam a physis, uma vez que o paradigma galileano se estrutura na representação matemática da natureza, assim também a técnica aparece em continuidade com essa representação calculante e participa da mesma essência, aplicando-se ao mundo não na radicalidade de sua contingência, mas no estrato planificado do cálculo da satisfação das nossas necessidades. “Prescindindo de todo nosso mundo, primariamente apreensível e que nos é familiar, a ciência se converte num conhecimento de contextos domináveis através da investigação isolada. A partir daí, sua relação com a aplicação prática deve ser entendida como situada em sua própria essência moderna” (Gadamer, 1983, p. 42).

A incorporação da práxis à técnica faz então desaparecer o mundo prático como cenário da ação que se estrutura a partir da compreensão da contingência na sua singularidade. O mundo natural é aquele em que a contingência aparece como incompletude causal. O mundo humano é aquele em que a contingência aparece como moldura da finitude. A finitude é incompletude ética: a “ontologia de nós mesmos”, de que fala Foucault, enfrenta basicamente a tarefa de compreender de forma crítica esse limite que nos é dado quando tomamos consciência de nós mesmos como seres em que o estado necessário de carência emerge como constitutivo. À incompletude natural se acrescenta portanto a necessidade de suprir a carência ontológica a partir de um horizonte ético de transcendência. O homem é o único ser em que a necessidade atua como causa do desejo de transcendência, qualquer que seja a figura que tal desejo projete como realização. Ora, a impossibilidade de pensar a práxis a partir do ethos faz com que necessidade e carência sejam compreendidas como questões a serem resolvidas no âmbito da razão técnica. A necessidade deixa então de aparecer como incompletude ontológica e torna-se uma espécie de motivação do aprimoramento de satisfação de carências no plano lógico-natural. Assim se consolida o sentido técnico da práxis, que é também a perda do seu sentido ético. As soluções são buscadas através de uma razão cujo progresso é visto como meio de superação de todas as carências. Dessa forma a responsabilidade ética se confunde com a finalidade da eficácia tecnológica. A razão técnica produz meios de satisfação adaptados às diferentes esferas das necessidades humanas, desde a sobrevivência material até o ajuste psicológico da personalidade. Como nesse caso desaparece a distinção de natureza entre meios e fins, já que os fins são vinculados à simples consecução técnica daquilo que o meio pode proporcionar, não existe, por consequência, o distanciamento das necessidades imediatas que seria necessário para pensá-las como expressões parciais da situação metafísica do homem, o que permitiria ordenar o uso dos meios às finalidades próprias da práxis.

A acumulação de meios técnicos se caracteriza como atividade indefinidamente em ampliação não tanto porque a ela seja inerente o progresso, mas sim porque a presumida neutralidade ética da técnica impede que seja estabelecido um telos exterior à sua própria natureza, o que só poderia ser feito na esfera de uma razão prática. Tudo se passa

como se nós, em nosso sistema econômico-social, conseguíssemos uma racionalização de todas as relações vitais — que seguem uma coação objetiva imanente e responsável pelo fato de sempre continuarmos inventando e aumentando cada vez mais nossa atividade técnica, sem que possamos saber como podemos sair desse círculo diabólico. [Gadamer, 1983, p. 52]

Talvez seja possível dizer que estariam incluídas no círculo a que se refere Gadamer algumas discussões contemporâneas que se dão em torno da possibilidade da fundamentação ética do agir. Até que ponto o consenso intersubjetivo alcançado através do diálogo, por exemplo, não representaria uma tentativa de conferir ao caráter obrigatoriamente comunitário da ação uma estrutura ético-normativa derivada das expressões externas da subjetividade? Se, por um lado, é verdade que a linguagem, principalmente no seu teor expressivo, configura a marca da mediação reflexiva que é própria da situação humana, por outro, há que se reconhecer que a opção pela via sociolinguística significa a conformidade ao paradigma objetivista da racionalidade técnica no que concerne à produção de significados consensuais. Seria o caso de se perguntar se esse caminho não estaria sendo aberto a partir da perspectiva de uma aplicação da razão técnica e não a partir da singularidade do mundo prático, em que o valor da ação e do universo da ação não poderia coerentemente ser pensado de forma imanente a um mundo objetivamente estruturado e tecnicamente consolidado. Não será o pragmatismo um ismo da razão teórica que se autojustifica através da ilusão de que compreendeu o seu outro quando o domina a partir de si mesmo?

A singularidade da práxis é inseparável da axiologia da ação. O pressuposto de tudo que dissemos é que a necessidade da racionalidade prática como exercício de razão crítica deriva da incontornável tendência da razão analítica para a naturalização dos valores. Desde que se perdeu a identificação platônica entre ser e valor, a ontologia concedeu que se lhe corresponda algo como uma lógica dos valores que tende a se expressar numa filosofia da ação, objetivação analítica da práxis. Nesse sentido, a grande questão que deveria ser colocada para uma crítica da modernidade é o aparente caráter aporético de uma reflexão prática. Talvez se possa dizer que o aspecto positivo dessa aporia consiste em nos fazer entender a necessidade da reconstrução da pergunta pelo sentido da liberdade. Temos a opção de recolher na tradição a possibilidade de “reencontrar a trilha platônico-aristotélica” (Vaz, 1995, p. 78) para tentar restabelecer na nossa atualidade uma relação positiva entre ética e cultura. Podemos também, a partir de uma temporalização do presente, exercer esse modo de conhecimento sui generis que Foucault indica como a crítica ontológica da atualidade, para fazer dos limites históricos de nossa situação cultural novas possibilidades de reinventar a liberdade. Ambas as direções dependem de um movimento racional de rearticulação da experiência histórica que proporcione condições favoráveis para a reagregação do ethos.

Uma tal reagregação supõe o advento de condições de experiência histórica que permitam superar de alguma maneira a fragmentação do sujeito. Como ordenar e dar sentido ao pluralismo contingente das exteriorizações do sujeito senão na unidade de uma subjetividade que fosse capaz de remeter as diferenças de suas expressões à unidade do ethos? Tal reencontro de um polo metafísico da subjetividade não significaria o abandono da historicidade em prol de um pretenso fundamento, logicamente absolutizado na instância do subjetivo. Significaria reconstruir uma experiência que mantivesse plenamente viva a polaridade que se desenha na relação, muitas vezes contraditória, entre as solicitações da práxis objetivada e a unidade ética da pessoa, que só compreende e domina suas ações quando exerce o domínio de si.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

I A R. Cardoso, “Foucault e a noção de acontecimento”, Tempo Social, Departamento de Sociologia da fflch da usp, vol. 7, nos 1-2, 1995.

I. During, Aristóteles, México, UNAM, 1990.

M. Foucault, “O que é o Iluminismo”, in C. H., Escobar (org.) Michel Foucault, o dossier — últimas entrevistas, Rio de Janeiro, Taurus, 1984.

M. Foucault, “What is Enlightenment”. Tradução espanhola de R. Treviño, “Que es la Ilustración”, Sociologica, Mexico, unam, ano 3, nos 7-8, 1988.

H.-G. Gadamer, “A razão na época da ciência, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983.

H. C. L. Vaz, “Ética e razão moderna, Síntese Nova Fase, vol. 22, no 68, 1995.

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