2011

Heresias (Pensamentos ateólogicos)

por Michel Déguy

Resumo

A crença comum e a doutrina “dogmática” professam que o homem é um ser “criado”, e criado “à imagem de Deus”. A heresia do pensamento racional não consiste tanto em fulminar em nome da ciência as tolices anti-evolucionistas e em esquecê-las quanto em se perguntar que sentido o pensamento — teologia e filosofia — pode dar a essas formulações.

O que é ser criado? O que é “à imagem de Deus”?

Quais são os traços que formam de repente a “condição humana”; que, ao irromperem num hominoide, suspendem sua “evolução” e o lançam na condição que a expressão “à imagem de Deus” pode resumir; que humanizaram o hominídeo a partir dessa “imagem-de-Deus”? O que é para o homem um “Deus?

É necessário — pelo pensamento, pela “razão” — virar e revirar em todos os sentidos “ser criado” e “à imagem de Deus”. Não que, como respostas a questões não insolúveis (“problemas” na vida ou nas ciências), haja uma “boa resposta”, mas por equivalências, transformações e paráfrases, cunhagem hermenêutica que-pode-não-ter-fim, em troca dessas duas fórmulas tradicionais.

A resolução “cética” ou “materialista” dos filósofos se entende assim: hostil à superstição da credulidade; contra a mística, o espiritualismo, contra o “metafísico” vulgar; não há “espíritos” livres, errantes, sem corpo. Não há espírito sem encarnação, e o movimento (“criação”) não é o do “verbo que se faz carne”, mas da carne que se faz verbo (palavra) pela imaginação. Encarnação ou aparição: essa é a condição fenomênica.

O humano não pode depor sua crença. Por quê? A crença é que “o homem” foi criado. Sua história edênica começa a dois: história de um casal. A história termina por um Juízo Final que trata os indivíduos um por um. Não por etnias ou nações. Um por um, o homem-alma é salvo ou condenado; predestinado, perdoado.

A antropologia é mitologia. Todas as Grandes Narrativas, com suas pequenas narrativas, são “míticas”. O mito é para sempre primeiro, primitivo, primordial, coletânea das origens e dos começos onde a origem se desdobra. Desmitificar é, portanto, a grande tarefa do pensador. O que tem por consequência que o heresiarca moderno é um que desiste, abdica, abjura. Ele se despoja dessa humanidade mitológica, gregária, cuja fábula não é mais a verdade. É preciso ter havido teologia para que a heresia (deposição de crenças, conservação em “relíquias”, interpretações) permita não tanto hipóteses inteligíveis sobre o passado “remoto”, mas transposições racionais dentro da interatividade humana hoje.


A crença comum e a doutrina “dogmática” professam que o homem é um ser “criado”, e criado “à imagem de Deus”. Um Museu da Criação, recentemente inaugurado nos Estados Unidos, conforta a credulidade popular ligada a essa representação, ao propor um espetáculo infantil “contra o evolucionismo”. A heresia do pensamento racional não consiste tanto em fulminar em nome da ciência essas tolices e em esquecê-las quanto em se perguntar o que o pensamento — teologia e filosofia — pôde pensar “com isso”, isto é, que sentido ainda se pode dar a essas formulações. É preciso tratar as relíquias.

O que é ser criado? O que é “à imagem de Deus”? A imagem de Deus foi a alavanca, a mediação pela qual se criou — e de certa maneira se cria — a humanidade do humano: Homo creator seria o nome de uma fase da hominização da qual Homo sapiens teria sido uma das anteriores, mas em descontinuidade, não previsível em termos de “evolução reconstituída”, momento da Gênese que escapa à genealogia positiva de uma gênese real reconstituível.

Dito de outro modo, o ex nihilo da criação e o “à imagem de Deus” designam o mesmo “momento”, momento não determinável em continuidade de condições reais. Ou: o ser que se estabeleceu na Terra há alguns milhares de anos, transformando-a em “mundos”, não surgiu pela evolução, o homem não descende do macaco em sua humanidade como o polegar opositor, a postura vertical, a cavidade laríngea etc., numa paulatina transformação física por “acaso e necessidade”. Não: um acontecimento se deu no qual “a imagem de Deus” (o que é) fez, e foi, criação. Evolução criadora, o estranho oximoro de Bergson, só pode significar um momento — que não devemos imaginar ou “ficcionar” como processo real, empírico, mas pensar como acontecimento. Qual? Convém a ele o predicado de “criado”; criado pela “imagem de Deus”. Ele não é produzido em seu ser-homem somente pela evolução. Ele se ergue, se soergue pela “imagem de Deus”, que o tira do seu nihil, do seu “não-ser-homem”: criação continuada, isto é, essa “imagem de Deus” continua a mantê-lo e a transformá-lo em “humanidade”. Impossível (se cercarmos de inquietudes refletidas e argumentos esse acontecimento de ruptura) não citar, então, este pensamento de Claude Lévi-Strauss: que foi de uma única vez, e por assim dizer de um único golpe, que a linguagem chegou ao humano, que a carne se fez verbo.

Foi somente pela linguagem (logos) que a psique animal (paleoantrópica) se fez “pensamento” e o paleo, “pensante”. Que houve pensamento. Quais são (quais foram, terão sido) os traços que formam de repente a “condição humana”; que, ao irromperem num hominoide, suspendem sua “evolução” e o lançam na condição que a expressão “à imagem de Deus” pode resumir; que humanizaram o hominídeo a partir dessa “imagem-de-Deus”? O que é para o homem um “Deus” que se condensa sobre sua cabeça a partir do seu estado hominoide pré-humano e torna a lhe cair em cima como se Ele o criasse, isto é, poder “demiúrgico”, “transcendente” no qual ele se conquista ao “alienar-se” (Feuerbach)?

Três traços decisivos: a morte; o verbo; o outro mortal que fala: o mesmo. Essa foi, muito tempo depois (se me permito dizer, em tom narrativo), a figura do “Cristo” que homens reconheceram como divina: falando (Evangelho) — amando (abolindo as tribos) — morrendo: ele falou, amou, morreu. Um loquaz reconhecido crucificado. O ser-homem, à imagem de Deus, consiste nessa triplicidade — e, singularmente, nessa proximidade inventada que eles (os “discípulos”) chamaram “fraternidade”. Cada um é como o outro, há um todos. Próximos na medida em que falam-morrem.

Milênios depois, o que a doutrina católica chamou de “virtudes teologais” confirma essa triplicidade — fé, esperança, caridade. Fé: na imagem-de-Deus; esperança: numa “vida eterna”, isto é, no além; caridade: o outro existe “como eu”, é uma “alma”. E, bem mais tarde ainda (“Deus estando morto”), a questão do pensamento é conservar-depositar (o contrário de “ultrapassar”?) essa “relíquia” neste mundo, aqui. Portanto, “rebaixar”, se quiserem, a este mundo inferior as “aspirações” que nos moviam para um Além, de modo que um nós humano possa se manter. As virtudes teologais “desconstruídas se transformam em: veracidade do testemunho, energia do desespero, tolerância absoluta.

Precisamos assim — pelo pensamento, pela “razão” — virar e revirar em todos os sentidos “ser criado” e “à imagem de Deus”. Não que, como respostas a questões não insolúveis (“problemas” na vida ou nas ciências), haja uma “boa resposta”, mas por equivalências, transformações e paráfrases, cunhagem hermenêutica que-pode-não-ter-fim, em troca dessas duas fórmulas tradicionais. Não pode não haver onto-teo-logia, já mesmo antes de Platão. Deus está no pensamento; a “filosofia” é a “meditação metafísica” que, nas línguas maternas do logos, o acolhe e o transporta: fora da religião, em rivalidade com as religiões, sempre suspeita aos olhos delas, porque a filosofia não é ato de fé. Fora da religião, a filosofia segue um caminho a-dogmático, a-teológico, a-teu, o pensamento depõe Deus, não está encarregado de manter sua crença nem seu culto.

A imitação não imita a imagem (“à imagem de Deus”); é Deus-Imagem, ou seja, o progenitor perdido, não esquecido, não aniquilado, mas tornado espírito. A imaginação inventa a imagem, o meio imaginário no qual o infans torna-se ser-falante, espírito. A psique, a imaginação tomada pelo assombro da morte, o horror enlutado, a perda do progenitor arrancado, o devir espírito dos mortos, o desejo e a superstição da imortalidade, o “culto” dos antepassados, inventa a imagem-deus.

Poderia a “ontogênese” (“minha” história) recapitular o devir adulto ao longo da filogênese? Da crença à suspensão dubitativa, crítica, pelo não saber socrático, até a sabedoria ateia.

A resolução “cética” ou “materialista” dos filósofos se entende assim: hostil à superstição da credulidade; contra a mística, o espiritualismo, contra o “metafísico” vulgar; não há “espíritos” livres, errantes, sem corpo (“puros”, dizia Nerval). Não há espírito sem encarnação, e o movimento (“criação”) não é o do “verbo que se faz carne”, mas da carne que se faz verbo (palavra) pela imaginação. Encarnação ou aparição: essa é a condição fenomênica.

No entanto, a humanidade é gregária; vive em multidão, em “sociedades”. A substância é gregária; não acontece de um indivíduo mais outro formarem sociedade. A “religião”, como os fundadores da sociologia compreenderam, é a Aliança. Talvez haja não três, mas tantos monoteísmos quantos são os povos. Um povo só se faz povo religiosamente[1]. Solidário na crença em seu Deus. Tudo isso está tão estabelecido, foi tão estudado, que não é o caso aqui de insistir, só de lembrar. E certamente Israel é uma manifestação evidente disso.

As Alianças e suas Leis são exteriores umas às outras. Os povos se separam infinitamente, absolutamente. A religião é genocida. Cada uma quer o todo, quer que as outras reconheçam seu Deus como o único verdadeiro. A linguagem em línguas (Babel) faz que os homens (as multidões, cada uma mantida na sua homofonia, no seu monolinguismo) não possam se entender, não se falem. Poderia essa alteridade absoluta na mesmidade ser não “ultrapassada”, mas contornada, arranjada, “administrada” quando necessário (para “a paz entre as Nações”), como acontece com frequência “de homem a homem”, isto é, um por um? Que uma sociedade se mantenha sem cultos do seu ser supremo é provavelmente impossível. A laicidade, longe de resolver o problema, contorna essa impossibilidade pela neutralidade em relação aos cultos.

(Ingredientes da Fábula): “Fazer o mito falar novamente a partir da sua interrupção”.

O humano não pode depor sua crença. Por quê? A crença é que “o homem” foi criado. Sua história edênica começa a dois: história de um casal. Mas isso é pouco. Não basta para conceber a substância gregária, multitudinária da humanidade. A história termina por um Juízo Final que trata os indivíduos um por um. Não por etnias ou nações. A fábula de Sodoma dizia que por um justo a tribo seria poupada. Um por um, o homem-alma é salvo ou condenado; predestinado, perdoado. Assim, o filho do homem-filho de Deus (“engendrado e não criado”) veio não para salvar as tribos, mas o próximo. A Nova Aliança não propõe um novo partido entre Israel e seu Deus, mas desfaz a Aliança. Ora, esta não pode ser desfeita: “Deus” é o nome do que substantifica a multidão em povo. O povo existe na credulidade. Os “povos”, enquanto houver povos, são herdeiros dessa crença solidarizante. Um dos últimos em data (o Volk), com seus dois profetas, o poeta e o pensador, se submeteu a seu Guia (Führer), que o conduziu ao hominicídio, ao “geocídio” moderno; e, localmente (em toda a Europa subjugada), à matança insensata.

De onde viemos? A Tanatofania (cf. Gérard Bucher) humaniza os hominoides; ela suspende o gregarismo animal, zoomorfo; ela cria (faz existir) outro modo de ser. Ela sidera a “horda”, o que Freud fabula (transforma em narrativa) como “assassinato do Pai”, o Pai morto distingue os irmãos, desfaz o gregário: a pena de morte (da morte) declara-se aos olhos, inventa a cena, coloca cada um à mesma distância do morto, do Grande Morto. Ao mesmo tempo em que este se torna antepassado, Manes; espírito do além; o plural surge como número dos filhos, dos “mesmos”. O grupo mergulhado no estupor ouve seu próprio clamor de dor e de cólera.

Com razão a antropologia é mitologia. Todas as Grandes Narrativas, com suas pequenas narrativas, são “míticas”. O mito é para sempre primeiro, primitivo, primordial, coletânea das origens e dos começos onde a origem se desdobra: gonias, teo e antropogonias. Desmitificar é, portanto, a grande tarefa do tradutor — do pensador. O que tem por consequência que o heresiarca moderno é um que desiste, abdica, abjura. Ele se despoja dessa humanidade mitológica, gregária, cuja Fábula não é mais a verdade. É preciso ter havido teologia para que a heresia (deposição de crenças, conservação em “relíquias”, interpretações) permita não tanto hipóteses inteligíveis sobre o passado “remoto”, mas transposições racionais dentro da interatividade humana hoje.

O fim do mundo vagueia no mundo como sua “mundialização”.

A descrença ataca “para acabar com” esses teologemas nascidos da superstição que recaíram sobre a humanidade. Nada está escrito. Nada está prescrito.

Em que consiste a descrença? É tempo de investigar isso assiduamente, em variadas perspectivas de “pesquisa”. Tomar ao pé da letra as verdades como verdades de fato tornou-se loucura. Trata-se de profanar — dando ao depósito sentido atual.

Todo reino se divide contra si mesmo e assim marcha para a perdição.

Toda religião é cissípara, engendra seu cisma, sua guerra “das religiões”, seu suicídio. Para sempre o cristianismo se dividiu em três, e o islamismo, em dois. Longe de “ecumenismo” ser esperança que a crença chama de volta, o século, este no qual vivemos, parte-se em pedaços “agora”, isto é, para sempre, e longe do “diálogo” os aproximar até a reunião, a noção de sua própria coerência e fidelidade torna perene a separação. A verdadeira “tolerância” do outro, ou respeito da alteridade absoluta, incompreensível como seu idioma, impede para sempre a “reunião das Igrejas”.

A indivisão é o mito.

amai-vos não tem sentido psicológico algum. Não apenas não tem sentido de uma multidão a outra, de uma Nação” a outra, porque o amor é a capacidade de um sujeito, mas de um sujeito a outro ele é o que “subjetiva”, isto é, singulariza, personifica, “prefere”, escolhe, cria reciprocidade afetiva. Sua generalização como disposição universalizável recomendada é “contraditória”. Não se compreende realmente o que seu imperativo ordena. Na existência em multidão dos humanos, a disposição gregária só pode ser a indiferença ignorante (há sete bilhões) de outros que não conheço — mesmo se “conheço” o número ou um tumulto psicológico na minha vizinhança (assim como percebo na praia “o ruído confuso das ondas”). A benevolência ou propagação da simpatia (educada nos Estados Unidos), ou “tolerância” na acepção banal, não está à altura do “fenômeno humano”. O estado de Natureza é uma ficção entre outras. É tão inverossímil quanto verossímil que a “humanidade” (sempre considerada de imediato como Grande Número, “espécie”) tenha começado por uma agregação de pequenos grupos, movimento de esporos familiar e de clã, e resultado aos poucos de adições por contato. É pouco provável que a bondade tenha agido como causalidade antropológica…

E, mesmo que tivesse sido assim, a bondade nada mais pode. As leis (Alianças) separam infinitamente. Ao mesmo tempo na outra escala — se posso dizer, a da humanidade dupla de Aristóteles, como ousia-proté deutera —, o indivíduo moderno contemporâneo, engendrado pelas guerras mundiais e pelas guerras de religiões, entra em pânico: “onipotência paralisada”.

A pena de morte cobre a Terra. Não se pode expulsar a morte, apesar da “perseguição infernal” a seu encalço. A mortalidade cria o desejo louco da imortalidade — que patrocina a tecnociência (e o imenso cortejo cinematográfico, bacantes uranianas, que a deifica). Morte inaceitável, amaldiçoada e banida, exorcizada como “vida nua” equívoca, objeto de perseguição ou de clonagem. O homem é um deus para o homem.

Tradução de Paulo Neves

Notas

  1. Deus é americano, Deus é alemão etc. (God is American, Gott ist mit uns…). 

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