1991

Imaginar e pensar

por Maria Rita Kehl

Resumo

A televisão universaliza o imaginário, responde com formulações do código social às questões mais subjetivas e não contraria em nenhum momento a lógica da realização de desejos. O que ela propõe, pois, é o gozo contínuo.
E o que fica interdito, excluído pela lei do gozo? O pensamen­to. Ele cuja condição fundamental é a ausência do objeto, algum corte, alguma separação que permita sua reaparição simbólica num outro sistema na forma de palavra — e a liberdade da palavra, nos processos de pensamento, é consequência de seu relativo descolamen­to em relação ao objeto. A liberdade, nos processos de pensamento, é fruto de certa possibilidade de simbolizar a lei, perceber seu ca­ráter humano, arbitrário e sobretudo modificável. Em última instância, o pensamento tenta transgredir, ampliar limites, modificar a realida­de de modo a possibilitar sempre um pouco mais de prazer.
A primeira premissa freudiana sobre o pensamento é que se trata de um substituto da realização alucinatória de desejos. Ou seja: só um desejo pode colocar o aparato psíquico em movimento, mas só o adiamento de sua realização (ou a interdição) é capaz de orientá-lo em relação à realidade em detrimento da satisfação aluci­natória, onipotente, imaginária.
A segunda premissa freudiana é que algo deve ter fracassado, na via da alucinação, para exigir do psiquis­mo o estabelecimento de um segundo processo, mais trabalhoso, mais lento e cheio de mediações, e que requer do aparato psíquico uma quan­tidade maior de energia acumulada do que a alucinação (que consiste na descarga imediata da excitação sobre uma imagem, idêntica, para o psiquismo, ao objeto de satisfação). O pensamento é fruto de uma lon­ga evolução psíquica, desde o domínio do princípio do prazer até a pos­sibilidade de representar também o desprazeroso, as experiências de frustração e dor, e assim operar sobre a realidade a partir do registro das experiências de vida.
Freud ensina enfim que o pensamento dá-se na relação entre o imaginário e o simbólico. Ou seja: ele requer a dupla dimensão da palavra: a simbólica e a relacional, isto é, a dimensão cultural, arbitrária, contratual, e a da experiência, fundada nas “primeiras e verdadeiras cargas de obje­to”. O pensamento requer adiamento da satisfação, mas também re­quer a experiência da satisfação que faz com que o sujeito psíquico não abandone suas cargas objetais nem de maneira neurótica (recalque) nem de maneira psicótica (substituição do investimento objetal pelo inves­timento no simbólico).
Por não opor resistência às demandas infantis e à ordem da falta, do conflito e do desprazer — até uma guerra atroz pode ser transformada em espetáculo de luz, som e euforia esportiva —, a televisão não permite que o telespectador simbolize seu discurso. Ele está diante da realidade apresentada por ela como diante de uma espécie de ficção totalitária em que tudo é possível e ao mesmo tempo nada acarreta consequências. A morte não existe no campo do discurso televisivo (ainda que morra gente na tela, o tempo todo).


PRECONCEITOS, OU NEM TANTO

Preconceitos sobre a televisão são quase tão antigos quanto a própria televisão. Que a televisão emburrece; que “aliena”; que hipnotiza ou que vicia, são lugares-comuns tão velhos que de alguns anos para cá críticos e intelectuais vêm tentando se livrar deles ou pelo menos superá-los, como se tenta superar as superstições que surgem diante de inventos e inovações ainda mal compreendidos ou assimilados.

No entanto, não estou certa de que tais preconceitos sejam completamente dispensáveis — talvez seja o caso de refletir melhor e verificar se não se tratam de verdadeiros conceitos, deduzidos quando a experiência de se ver televisão ainda não tinha se tornado um hábito tão banal e cotidiano como é hoje. Um fato que não pode passar despercebido (infelizmente, a favor dos tais “preconceitos”) é que nossa era, a chamada era da informação e da comunicação, não vem assistindo em decorrência disso a nenhum avanço no sentido do aperfeiçoamento do pensamento, da organização social e da racionalidade. Se nos anos 60 as primeiras imagens mostradas ao vivo sobre a Guerra do Vietnã, por exemplo, mobilizaram a opinião pública, escandalizaram o mundo e produziram uma rápida e brutal consciência a respeito do horror da guerra — contribuindo para pôr fim a ela —, nos anos 90 a guerra no golfo Pérsico é transmitida pela televisão como um espetáculo excitante, um Indiana Jones em grande escala para diversão dos espectadores que torcem para que o “grande justiceiro” consiga eliminar Satã com métodos eficientes e cheios de efeitos pirotécnicos. Um efeito de pura fantasia produzido pelo modo de transmissão dos fatos de uma guerra de verdade.

O espetáculo de três eleições em anos sucessivos no Brasil, onde a recém-adquirida liberdade de propaganda política pela televisão parecia prenunciar um avanço para o comportamento político da população brasileira infantilizada por vinte anos de restrições democráticas, provou que a presença da televisão por si só não significa nada: o comportamento do eleitorado foi decidido por fatores antes emocionais do que racionais/políticos, a argumentação fantasiosa sempre pesou mais que a realista (inclusive, suspeito, na eleição dos prefeitos de esquerda em 88) e o efeito imagem foi sempre preponderante em relação às tentativas de reflexão de alguns candidatos.

Em vista destes exemplos mais conhecidos de todos nós (outros virão no debate, imagino), proponho-me a examinar a relação do discurso televisivo com o pensamento. Parto do pressuposto de que, no limite, tanto faz o conteúdo deste discurso. O que condiciona uma forma de ver, de “pensar” e de representar o real é a própria linguagem da televisão, com suas características de rapidez, constância, indiferenciação qualitativa entre as imagens mais diversas e principalmente por sua inserção sem descontinuidade no cotidiano das pessoas, o que impede qualquer distanciamento em relação ao que está sendo visto/ouvido na TV.

Começo com a criança, já que é na infância que se formam as condições mínimas para que um sujeito se torne pensante. Vamos observar um pouco o que se passa com este telespectador precoce, indefeso e disponível para ser impressionado pelo discurso da rede imaginária.

A CRIANÇA QUE VÊ TELEVISÃO

Ela está imóvel. Seu corpo se esqueceu de solicitá-la, a não ser por uma inquietação de bicho-carpinteiro que faz com que ela assuma as posições mais variadas na cadeira, na almofada, no tapete. Só um ponto do corpo permanece fixo: o olhar, fixado na tela luminosa do aparelho, capturado pela variação incessante de imagens e sons. O olhar, “primeiro aparato de apreensão libidinal do mundo”,[1] aquele que dá início a uma série de novas apreensões até a construção de uma identidade pessoal, pela via das identificações. Olhar que funciona sempre como antecipação da relação com o objeto, pois capta sua imagem antes — antes de quê?, antes que a palavra o nomeie, o corpo o possua, antes que a própria ausência obrigue a criança a simbolizá-lo.

É este olhar o canal que está inteiramente investido, inteiramente concentrado na relação da criança que assiste à televisão com a rede imaginária — e a criança nessa hora também faz parte da rede, se liga em cadeia nacional, cadeia de contatos imediatos de imaginário a imaginário.

A propósito:

As formações do inconsciente têm sempre uma ordem de realidade indissociável da ordem social. A fantasia é social: o inconsciente existe porque existe o outro ou os outros, os pais, representantes de um discurso que é cultural e portanto social. As fantasias infantis são tentativas de a criança metabolizar o social, a ordem, a lei: em primeira instância o sujeito recebe e registra imaginariamente o mundo, isto é, como que “alucina” o mundo, de acordo com a única lógica que seu psiquismo conhece: a da realização de desejos.

Tudo isto deve ser escrito entre aspas, tudo isto é teoria,[2] mas deve servir para nos esclarecer um pouco a respeito do poder dessa relação dual — criança diante da TV. Nenhuma outra demanda se interpõe entre eles, nenhum outro objeto tem maior poder de captação libidinal. Há momentos em que nada interrompe a relação entre a criança e este representante privilegiado da ordem social, este que é capaz de se propor a ela como objeto total, o que nunca se ausenta, não frustra, não abandona; capaz de fazer cessar tensões internas, capaz de fazer a criança esquecer seus desejos; este cujo código não tem lacunas, nem silêncios, não permite a dúvida nem a angústia. Um objeto de produção contínua de presença e de discurso.

Relação dual com um objeto total; mas não é isso o que se diz da relação da criança com seu primeiro objeto, a mãe?, relação que funda o imaginário (o código da realização de desejos) e cujo corte é essencial para que o pequeno se transforme em sujeito pela via do simbólico? Aí está a criança diante da TV refazendo os moldes da sua primeira relação de amor.

Aí está a criança entregue pela família aos cuidados da televisão. Pela mãe ocupadíssima, pelo pai ausente, pela cidade que se esqueceu de abrir espaços de convivência para ela, pelo isolamento da família nuclear: a relação da criança com a televisão também é determinada pela ordem que a cerca. Aí está ela entregue a este grande Outro, senhor do código e da lei; um código impossível de ser simbolizado justamente porque nunca se cala, e se manifesta em um fluxo de imagens concretas, abundantes, regidas por leis muito semelhantes às que regem as formações oníricas. E que ainda por cima é capaz de — à maneira da mãe do bebê — nomear o tempo todo o desejo da criança e assim nomear quem ela é, mesmo que ela não seja o que o código do Outro lhe diz — mas quem é ela para se dar conta? O que ela pode vir a saber de si e de seu desejo, se todas as suas indagações parecem ser respondidas pelo discurso onipresente da televisão?[3]

As questões fundamentais da existência, as perguntas fundamentais da curiosidade sexual infantil, as chamadas “protofantasias” cujas respostas a criança constrói imaginariamente, formando suas próprias teorias para tentar se manter sempre no lugar da realização de seus desejos — estas perguntas a televisão responde para ela, o tempo todo.

Então a criança se pergunta sobre a cena primária, a cena primordial de amor entre os pais da qual ela própria foi concebida. Pergunta: quem sou eu?, de onde vim?, como fui feita?, que desejo me construiu assim?, como pergunta também sobre o funcionamento das coisas do mundo (questão genérica que abriga a dúvida sobre a origem dos bebês, escreve Freud). E para estas questões constrói suas próprias teorias, cenas imaginárias sobre a origem e o porquê da vida, sobre o começo e o fim dos tempos — pois já sabemos que toda criança se interessa pelas grandes questões da filosofia, ou que os filósofos são simplesmente adultos que não desistiram de sua curiosidade infantil. Mas a televisão oferece respostas mais prosaicas: “Você veio ao mundo porque foi escolhida pela Estrela para brincar com a nova linha de bonecas X”; “Você existe para comer potes e potes de Danoninho”. Ou: “O funcionamento de todas as coisas é simples — você pede, a mamãe compra; você aperta o botão, o brinquedo se mexe”.

E a criança pergunta também sobre a origem do desejo; a origem daquilo que nela é fome de amor e sabe-se lá do que mais. Daquilo que não se aquieta e nada consegue satisfazer por completo. Ela pergunta: “Mãe, seu amor nunca acaba? Mãe, por que eu quero sempre tanto e sempre mais? O que será de mim quando eu tiver que ficar sem???”, e para essas questões também produz suas próprias teorias, como a cena da sedução do bebê por uma pessoa adulta — outra das fantasias inconscientes que fundam o imaginário. Mas a televisão oferece uma resposta bem mais tranquilizadora: “Eu sempre estarei com você. Eu só quero que você me queira. Eu sou inesgotável, nunca vou te abandonar. Onde eu existo, a falta não existe”.

Por último a criança também quer saber sobre a diferença entre os sexos. “Por que é que eu não posso ser também menino (menina)? Quando é que meu pintinho vai crescer? Quem vale mais: quem tem ou quem não tem?” E para isto formula incríveis teorias sobre o dom e a falta, a onipotência e a castração. No entanto, a TV lhe responde: “Você pode ser tudo. Seu pintinho vai crescer quando você comprar a roupa das Tartarugas Ninja. Vai ser a mais desejada da rua, da escola, do quarteirão quando comer os biscoitos vitaminados Tostines”.

A televisão universaliza o imaginário, responde com formulações do código social às questões mais subjetivas e não contraria em nenhum momento a lógica da realização de desejos. Quem poderá desencantar esta criança, bela adormecida enfeitiçada pelo espelho que só responde sim às suas tentativas de permanecer onipotente? Quem poderá despertá-la de seu sonho de alienação e devolvê-la ao mundo onde convivem os homens e as mulheres? Um beijo de amor, diz a lenda. E aqui cabe lembrar que o mundo desta criança já foi povoado antes que ela tenha sido entregue aos cuidados da televisão.

LINGUAGEM ONÍRICA E DISCURSO DA TV

Aqui cabe outro rápido corte teórico para esclarecer o que quis dizer quando afirmei que a televisão “fala” a linguagem dos sonhos. O sonho, segundo a teoria freudiana, representa o resultado de uma espécie de negociação, uma “solução de compromisso” entre duas instâncias psíquicas conflitantes: o inconsciente, regido inteiramente pelo princípio do prazer e pela lógica da realização de desejos, e o que Freud na primeira tópica chamou de sistema pré-consciente/consciente, encarregado entre outras funções de manter os conteúdos inconscientes recalcados de modo que o princípio de prazer não venha a interferir (demasiadamente) no nosso modo de funcionamento “normal”, regido sobretudo por um princípio de adaptação às restrições e determinações da realidade. E a realidade humana, sabemos, é sempre social, cultural e estruturada pela linguagem.

Se o inconsciente é regido por um princípio e a consciência por outro, se à consciência cabe relacionar-se com o código cultural e o inconsciente permanece preso ao código da realização de desejos, é de se supor que a cada um, destes sistemas corresponda uma linguagem diferente. A linguagem da consciência é nossa conhecida, é a linguagem que estrutura nossas relações e nosso pensamento durante a vigília. Já a linguagem do inconsciente — que de vez em quando irrompe à consciência na forma de atos falhos, lapsos, chistes, formações mistas de palavras etc. — se revela sobretudo através dos sonhos.

Por ter se mantido como instância recalcada, apartada do fluxo temporal de experiências que estruturam nossa relação com o real, o inconsciente não conhece outra lei além da lei do desejo; ali o fluxo de energias psíquicas é livre, ali tudo é permitido. Não existe negação, contradição, não existe fim nem morte, não existe a noção de impossibilidade ou de absurdo para o inconsciente; todas as associações, todos os sentidos são possíveis na vasta rede de imagens que forma o repertório inconsciente. Nos sonhos, as imagens se formam e se encadeiam através de dois processos principais: condensação — cada imagem resulta do cruzamento de diversos caminhos associativos e sua força vem do fato de ela sintetizar várias outras imagens, todas relacionadas à realização de desejos — e deslocamento, ou seja, imagens não censuradas recebem a carga psíquica de imagens censuradas associadas a elas, e as “representam” também no sentido da realização de desejos.

Apesar dessa vasta movimentação, dessa incessante criação de sentido, não se pode dizer que exista um pensamento inconsciente no sentido que costumamos dar a esta palavra — um processo de criação de conceitos através do estabelecimento de relações entre outros conceitos pré-adquiridos. O pensamento exige um certo adiamento da realização de desejos, exige que a palavra se descole da coisa nomeada e perca seu caráter concreto. Para Freud, todo “pensamento inconsciente” revelado de vez em quando no sonho não passa de recordação de pensamentos formulados durante a vigília e repetidos como restos mnêmicos na elaboração onírica. Mais adiante gostaria de apresentar as ideias freudianas sobre as premissas do pensamento abstrato.

O que me interessa por enquanto é estabelecer uma analogia entre a linguagem dos sonhos, reveladora dos processos inconscientes e do modo que chamamos imaginário de representar nossa relação com o real, e a linguagem da televisão. Também ali todos os sentidos são possíveis. O discurso televisivo é criação de código mas não de pensamento, pois o poder de coisa de todas as imagens impede qualquer deslocamento entre o significante e o significado. Também para o discurso televisivo não existe contradição, negação, impossibilidade. A inocência de um desenho animado pode ser interrompida subitamente por um segmento de discurso sobre as propriedades de um biscoito, ao qual se segue um trecho de trailer de um filme da sessão da noite mostrando cenas de sexo e violência, uma chamada para o telejornal anunciando outras cenas de violência real mas sem que nada as diferencie da violência fictícia mostrada há pouco, volta-se a uma propaganda de lingerie, a uma apresentadora de minissaia e finalmente ao desenho animado interrompido. O ritmo, o tom da voz que narra e anuncia, a sintaxe indiferenciada onde não há orações subordinadas, não há alternativas excludentes, não há contradições — tudo isto lembra a linguagem onírica.

Com uma diferença importante: o sonho, diretamente subordinado à realização de desejos, tem um poder de realidade tão intenso que nossa reação emocional é igualmente intensificada. O prazer, a dor, o horror, a angústia que somos capazes de sentir quando sonhamos parecem amplificações exageradas daquilo que sentimos na vigília. Se a criança (ou nesse caso qualquer pessoa) está diante da rede de imagens televisivas como está diante de seus sonhos, como explicar a indiferença com que ela recebe tudo o que acontece na tela? Violência, erotismo, destruição, absurdos, fantasmagorias, nada parece ter o poder de abalar profundamente a criança que vê televisão. Tudo se equivale, tudo é e não é verdade, a única coisa capaz de abalar seriamente o telespectador seria a interrupção do fluxo de imagens. Alguma coisa importante diferencia aqui a criança que vê televisão da criança que sonha, e sua indiferença diante dos conteúdos da televisão (que podemos comparar com a tenebrosa indiferença dos adultos diante das imagens da guerra no golfo Pérsico, como se estas fossem apenas cenas espetaculares produzidas para a TV) sinaliza essa distinção.

É como se (e por enquanto escrevo apenas como se) ela se relacionasse não com o real social ou com sua própria realidade imaginária mas diretamente com o código desencarnado de sua cultura. Um código muito específico, que representa ao mesmo tempo a lei e a realização de desejos — ou seja, nesse caso a lei é a própria lei da realização de desejos travestida de código civilizatório. Aqui vale lembrar que o superego para Lacan não é apenas aquele que exige: “Não goza!”, mas simultaneamente o que nos impõe: “Goza!” — como se exigisse também do sujeito ocupado em suportar as interdições impostas pelo real, que continue sendo o bebê perfeito do narcisismo materno (que é também seu próprio narcisismo). A norma que rege o código da rede imaginária não é outra que o imperativo do gozo, e neste caso o discurso televisivo, revestido da autoridade de código social, exige a mesma coisa: gozo, a plenitude, a locupletação.

Pensar na relação da criança com a televisão como uma relação direta com o código, e que não passa necessariamente pela experiência do sujeito com os objetos, é pensar uma relação em que o simbólico é investido das cargas objetais. Ora, esta é exatamente a relação que o psicótico estabelece com o discurso. Aqui peço licença para citar um trecho do texto de Freud sobre o inconsciente em que ele define a relação do psicótico com o discurso:[4]

Na esquizofrenia ficam submetidas as palavras ao mesmo processo que forma as imagens oníricas partindo das ideias latentes do sonho — o processo primário. As palavras ficam condensadas e transferem suas cargas umas às outras por meio do deslocamento.

Mais adiante, Freud afirma que na esquizofrenia ocorre o “predomínio do que se deve fazer com as palavras sobre o que se deve fazer com as coisas”. Ou seja: ao contrário do que acontece na neurose, as cargas de objetos não são mantidas recalcadas, e sim investidas sobre as imagens verbais dos objetos.

Se para o inconsciente palavra e objeto são a mesma coisa (e para Freud as impressões inconscientes dão testemunho das “primeiras e verdadeiras cargas de objeto”, as primeiras apreensões subjetivas da realidade antes que a cultura nos ajudasse a ordená-la e nomeá-la), para a consciência a imagem objetal pode ser decomposta em imagem verbal e imagem “de coisa”. Isto é importante para se entender mais adiante o processo de pensamento, e é importante também para se entender o paralelo entre a relação do esquizofrênico com o discurso e a relação do espectador com o código televisivo, em que o discurso, predominantemente imagético e independente da referência da experiência, é investido como coisa, estruturado à maneira dos processos primários e regido pela lei da realização de desejos.

Não quero dizer com isso que a criança que assiste à televisão seja psicótica nem que a televisão propriamente dita seja um arremedo de esquizofrenia, e sim que a relação criança-TV remete a criança ao código social segundo o modo psicótico. O código, para este pequeno “espectador da vida”, não é regido pelas leis do simbólico, onde o símbolo é arbitrário, humano, social e universal, e sim pelas leis do imaginário, do sonho, do espelho e do narcisismo. A lei em sua forma imaginária, totalitária, não se revela para nós como produto das relações entre os homens e seus acordos, elaborados a partir das experiências e dos conflitos coletivos. A lei imaginária parece sempre ditada por valores transcendentes; é inflexível, é impossível de se transgredir e não permite alterações. No lugar do “é-porque-foi-feito-assim”, acredita-se no “é-porque-é” e ponto. A televisão apresenta o mundo à criança na forma de uma ficção totalitária. Diante dela há que se decorar o código e aceitar a norma; e a norma da rede imaginária, a lei dos mass media é sempre a mesma: Goza! Atende com urgência ao teu desejo!

O que é que se oculta aqui, nessa ordem onde aparentemente tudo é permitido, tudo pode e deve ser expresso e atuado? Alguma coisa que é justamente da ordem do social. Que a televisão e seu discurso são feitos pelos homens, por exemplo. E, mais ainda, que são feitos por alguns homens específicos e para alguns outros homens; que a lei do gozo exclui necessariamente uma grande multidão de outros homens, e esta é a condição para o gozo de alguns… Mas o mais difícil de se perceber diante do discurso televisivo é que à lei do gozo, tanto quanto a sua contrapartida — a proibição do gozo —, é impossível obedecer.

IMAGINÁRIO E PENSAMENTO

O que é que fica interdito, excluído pela lei do gozo? O pensamento. O pensamento, cuja condição fundamental é a ausência do objeto, algum corte, alguma separação que permita sua reaparição simbólica num outro sistema na forma de palavra — e a liberdade da palavra, nos processos de pensamento, é consequência de seu relativo descolamento em relação ao objeto. A liberdade, nos processos de pensamento, é fruto de certa possibilidade de simbolizar a lei, perceber seu caráter humano, arbitrário e sobretudo modificável. Em última instância, pensamos para tentar transgredir, ampliar limites, modificar a realidade de modo a possibilitar sempre um pouco mais de prazer. Mas, se pensamos, é porque já fomos apartados do estado do narcisismo primário, regido pela lei do gozo que é a lei do princípio do prazer.

A primeira premissa freudiana sobre o pensamento é que se trata de um substituto da realização alucinatória de desejos. Só um desejo tem o poder de colocar o aparato psíquico em movimento[5] , mas só o adiamento de sua realização (ou a interdição) é capaz de orientar este movimento em relação à realidade em detrimento da satisfação alucinatória, onipotente, imaginária.

Estes desejos do nosso inconsciente, sempre em atividade e, por assim dizer, imortais, desejos que nos recordam os Titãs da lenda sobre os quais pesam desde os tempos imemoriais imensas montanhas que foram lançadas sobre eles pelos deuses vencedores, e que ainda tremem de tempos em tempos sacudidos pelas convulsões de seus membros; estes desejos reprimidos, repito, também são de procedência infantil…[6]

E mais adiante: “Só um desejo infantil tem o poder de pôr em movimento o aparelho psíquico e produzir, por exemplo, um sonho”. Ou um pensamento, acrescento — mas por caminhos muito diferentes dos da produção onírica. Por isso, o pensamento é substituto da — e não idêntico à — realização alucinatória de desejos.

A segunda premissa freudiana sobre o pensamento é que alguma coisa deve ter fracassado, na via da alucinação, para exigir do psiquismo o estabelecimento de um segundo processo, mais trabalhoso, mais lento e cheio de mediações, e que requer do aparato psíquico uma quantidade maior de energia acumulada do que a alucinação (que consiste na descarga imediata da excitação sobre uma imagem, idêntica, para o psiquismo, ao objeto de satisfação). O pensamento é fruto de uma longa evolução psíquica, desde o domínio do princípio do prazer até a possibilidade de representar também o desprazeroso, as experiências de frustração e dor, e assim operar sobre a realidade a partir do registro das experiências de vida.

“As iniludíveis condições da vida”, escreve Freud[7], “vieram perturbar a função simples” (de descarga imediata das excitações). Como se dá esta função mais simples, de realização alucinatória de desejos, que forma a base de funcionamento do imaginário? Voltando a Freud:

A aparição de certa percepção (o alimento, por exemplo), cuja imagem mnêmica fica associada a partir de então com a marca mnêmica da excitação emanada da necessidade, constitui um componente essencial da experiência de satisfação. Quando a necessidade ressurge, surge também, associado a ela, um impulso psíquico que carregará de novo a imagem mnêmica do objeto de satisfação e tenderá a reconstituir [imaginariamente!, observação à parte] a situação da primeira satisfação. Tal impulso é o que chamamos de desejo. A reaparição da percepção é a realização do desejo e a descarga da excitação sobre ela é o caminho mais curto para tal realização…

Reaparição da percepção: o psiquismo dito primitivo, incapaz de pensar, tenta obter a satisfação por meio do que Freud chamou a constituição de uma identidade de percepção[8], ou seja, a repetição da percepção que se acha enlaçada à satisfação da necessidade e que nesse caso se confunde com a própria presença do objeto. O pensamento se vale de uma substituição da identidade de percepção por uma identidade mental — a ideia da coisa no lugar de sua reaparição como percepto.

O primeiro caminho, da satisfação imaginária, apesar de sua aparente simplicidade esconde uma frustração crescente na relação do sujeito com o real. Para se relacionar com o real e pensar sobre ele o sujeito psíquico tem de se dispor, no dizer de Freud, a deixar de representar apenas o prazeroso e passar a representar sua experiência em geral, ainda que seja desprazerosa. Tem de abandonar, portanto, o funcionamento regido pelo chamado princípio do prazer.

A terceira premissa freudiana sobre o pensamento é de que ele se dá na relação entre o imaginário e o simbólico. O pensamento requer a dupla dimensão da palavra: a simbólica e a relacional, que equivale a dizer — a dimensão cultural, arbitrária, contratual, e a dimensão da experiência, fundada nas tais “primeiras e verdadeiras cargas de objeto”. O pensamento requer adiamento da satisfação, mas também requer a experiência da satisfação que faz com que o sujeito psíquico não abandone suas cargas objetais nem de maneira neurótica (recalque) nem de maneira psicótica (substituição do investimento objetal pelo investimento no simbólico).

A definição freudiana do pensamento é complicada mas preciosa:[9] trata-se de um “rodeio desde a recordação da satisfação tomada como representação final, até a carga idêntica da mesma recordação, que deve ser alcançada pelos caminhos que enlaçam as representações, sem se deixar cair em erro pelas intensidades das mesmas”. Vale a pena destrinchar esta definição em pelo menos três de seus elementos: (1) que o pensamento é um rodeio, ou seja, um caminho mais longo do que a satisfação obtida pelos recursos do imaginário, (2) um rodeio de onde até onde?: “desde a recordação da satisfação tomada como representação final”, isto é, um rodeio que parte do registro da satisfação direta com o objeto ou com sua “imagem de coisa” (e aqui reafirmamos a importância dos registros imaginários nos processos de pensamento) e tenta chegar à “carga idêntica da mesma recordação”, ou seja, à criação de uma representação não do mesmo objeto mas de um objeto que atraia sobre si “carga idêntica” (permitindo então o mesmo prazer de descarga). Parte-se então do registro imaginário e tenta-se alcançar o simbólico, percorrendo os caminhos associativos entre as representações, sem, no entanto, (3) “se deixar cair em erro pelas intensidades das mesmas”. Aqui se repete a insistência freudiana na necessidade de adiamento da satisfação, pois a intensidade com que as imagens associadas à representação final da satisfação são investidas psiquicamente produz as chamadas ilusões. Das quais ninguém está livre, mas que são insuficientes para estruturar uma relação com o real na qual o prazer seja possível. A “desilusão”, para Freud, é condição fundamental para qualquer conquista humana sobre a realidade dada.

PENSAMENTO E EXPERIÊNCIA

Voltando à televisão depois deste longo rodeio, não é preciso muito esforço para se entender como é que sua presença massiva na vida da criança, apresentando continuamente a ela imagens que satisfazem seus desejos (e impedindo assim que a criança entre em contato com o desejo não satisfeito), embora não proíba o pensamento, funciona de maneira a torná-lo desnecessário. Livre da demanda de se pensar no mundo, “livre” da necessidade de realizar os difíceis caminhos que partem da “recordação da satisfação” para chegar até a “carga idêntica da mesma recordação”, a criança se encontra não exatamente presa numa armadilha mas enfeitiçada… pelas “intensidades das representações” associadas aos seus primeiros objetos de prazer.

Por não opor nunca resistência às demandas infantis, por não introduzir nada que seja da ordem da falta, do conflito, do desprazer — até uma guerra atroz pode ser transformada em espetáculo de luz, som e euforia esportiva —, a televisão não permite que a criança simbolize seu discurso. Ela está diante da realidade apresentada pela TV como diante de uma espécie de ficção totalitária onde tudo é possível e ao mesmo tempo nada tem consequências. A morte não existe no campo do discurso televisivo (ainda que morra gente na tela, o tempo todo).

Quem poderá desencantar esta criança enfeitiçada? O beijo da experiência talvez seja capaz disto — e aqui quero opor a experiência do contato direto com os objetos, a experiência dos riscos reais da vida, das tentativas de transpor limites, da obtenção de alguns sucessos mas também de fracassos neste sentido, à experiência não vivida “adquirida” pela assimilação do discurso televisivo. Se no ser humano o simbólico é feito das experiências de limites — limites fora dos quais não conseguimos sobreviver —, o imaginário são moções de transgressão a estes limites.[10] Um não faz sentido sem o outro. As experiências de risco, mas também de contato, de amor correspondido, de ódio suportado, fundam o imaginário e dão consistência ao simbólico. Só a experiência pode nos ensinar (aliada ao pensamento) que a lei é necessária mas também, no limite, arbitrária, e que nada está dado definitivamente no mundo dos homens.

Encerro com trechos de um texto de Walter Benjamin sobre a experiência[11] escrito na juventude, no qual o filósofo se depara com o muro intransponível da experiência adulta, transmitida como dado da realidade — e se rebela contra ela:

Em nossa luta por responsabilidade enfrentamos um mascarado. A máscara do adulto chama-se “experiência”. Ela é inexpressiva, impenetrável, sempre igual. Esse adulto já experimentou tudo: juventude, ideais, esperanças, a mulher. Tudo foi ilusão. Frequentemente, ficamos intimidados ou amargurados. Talvez ele tenha razão. O que podemos contestar-lhe? Nós ainda não experimentamos nada.

Benjamin contrapõe à experiência morta, transmitida como código pronto e conformista do adulto para o jovem, o direito à própria experiência da vida:

[…] Nós, porém, conhecemos algo que nenhuma experiência pode nos proporcionar ou tirar: sabemos que existe a verdade, ainda que tudo o que foi pensado até agora seja equivocado; sabemos que a fidelidade precisa ser sustentada, ainda que ninguém a tenha sustentado até agora. […] Nada é mais odioso ao filisteu do que os “sonhos de sua juventude” (e amiúde o sentimentalismo é a camuflagem desse ódio). Pois o que lhe surgia em sonhos era a voz do espírito, que também o convocou um dia, como a todos os homens. [..] O filisteu apresenta à juventude aquela experiência cinzenta e poderosa, aconselha o jovem a zombar de si mesmo. Sobretudo porque “vivenciar” sem o espírito é confortável, embora funesto…

Não conseguiria ser mais eloquente do que ele, que se rebelou contra o código da experiência não vivida muito antes de conhecer a televisão. Digamos que de lá para cá as técnicas se aperfeiçoaram — e o discurso televisivo não é senão um modo mais eficiente de se transmitir a experiência morta do “filisteu” a que se referia Benjamin. Mas liberdade de pensamento, indissociável de liberdade de ação,[12]é uma dessas utopias que é preciso sustentar, ainda que tenha sido tão pouco sustentada, ou praticada, até agora.

NOTAS

  1. A expressão é de Antonio Godino Cabas, no texto “O simbólico, o imaginário, o real”, in Curso y discurso en la obra de J. Lacan (Buenos Aires, Helguero Editores).
  2. Idem, ibidem.
  3. “A realidade para o psiquismo é a ausência do objeto”, escreve Maud Mannonni em A teoria como ficção (São Paulo, Summus Editorial).
  4. S. Freud, O inconsciente, parte VII (Madrid, Biblioteca Nueva).
  5. Freud, Sonhos, cap. VII: “Psicologia dos processos oníricos”, item c: “A realização de desejos”.
  6. Idem, ibidem.
  7. Idem, Sonhos, cap. VII, item e: “Processo primário e processo secundário. A repressão”.
  8. Idem, ibidem.
  9. Idem, ibidem.
  10. Outra formulação de Godino, no texto citado.
  11. Walter Benjamin, “Experiência”, in A criança, o brinquedo, a educação (São Paulo, Summus Editorial).
  12. Ver o excelente ensaio de Hannah Arendt, “O que é liberdade?”, in Entre o passado e o futuro (São Paulo, Perspectiva).

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  • ampliar limites
  • aparato psíquico
  • arbitrária
  • ausência
  • ausência de objeto
  • caráter arbitrário
  • caráter humano
  • caráter modificável
  • cargas objetais
  • cheio de mediações
  • código social
  • colocar em movimento
  • condição
  • conflito
  • consequência
  • contínuo
  • contrariar
  • contratual
  • corte
  • demandas infantis
  • descarga imediata da excitação sobre uma imagem idêntica ao objeto de satisfação
  • descolamento
  • desejo
  • desprazer
  • desprazeroso
  • detrimento
  • dimensão cultural
  • domínio do princípio do prazer
  • dor
  • dores
  • dupla dimensão da palavra
  • espetáculo
  • euforia esportiva
  • excluído
  • excluir
  • exigência
  • exigir
  • experiência
  • experiência da satisfação
  • experiências
  • ficção totalitária
  • forma de palavra
  • formulação
  • formulações
  • fracassado
  • fracassar
  • fracasso
  • Freud
  • frustração
  • frustrações
  • fundação
  • fundada
  • fundamental
  • fundamento
  • fundar
  • gozo
  • gozo contínuo
  • guerra
  • imaginário
  • interdição
  • interdito
  • investimento no simbólico
  • investimento objetal
  • lei do gozo
  • lento
  • liberdade
  • liberdade da palavra
  • lógica da realização de desejos
  • longa evolução psíquica
  • luz
  • maior energia acumulada
  • maneira neurótica
  • maneira psicótica
  • modificar a realidade
  • morra
  • morte
  • movimento
  • nada acarreta consequências
  • objeto
  • operar sobre a realidade
  • opor
  • ordem da falta
  • orientar
  • outro sistema
  • palavra
  • pensamento
  • perceber
  • possibilidade
  • prazer
  • premissa
  • premissa freudiana
  • primeiras e verdadeiras cargas de objeto
  • processo trabalhoso
  • processos de pensamento
  • propõe
  • propor
  • proposta
  • psiquismo
  • questão
  • questões
  • realidade
  • realidade televisiva
  • realização
  • realização alucinatória de desejos
  • reaparição simbólica
  • recalque
  • registro das experiências de vida
  • relação
  • relação entre o imaginário e o simbólico
  • relacional
  • representação
  • representar o desprazeroso
  • Resistência
  • responder
  • resposta
  • satisfação
  • satisfação alucinatória
  • satisfação imaginária
  • satisfação onipotente
  • segundo processo
  • separação
  • simbólica
  • simbolismo
  • simbolizar
  • simbolizar a lei
  • simbolize seu discurso
  • símbolo
  • sistema
  • som
  • subjetiva
  • subjetivas
  • subjetividade
  • subjetivo
  • subjetivos
  • substituição
  • substituto
  • sujeito psíquico
  • tela
  • televisão
  • trabalhoso
  • transgredir
  • tudo é possível
  • universal
  • universalizar
  • via da alucinação