2004

Indiferença, nova forma de barbárie

por Gabriel Cohn

Resumo

No poema “À espera dos bárbaros”, de Konstantino Kavafis, assim dizem os civilizados: “Sem os bárbaros, o que será de nós? Ah, eles eram uma solução”.

O que se pode pensar a partir da desesperança contida nesse suspiro? Que a teia de relações entre civilizados “de dentro” e bárbaros “de fora” é intricada, já que, no mínimo, aqueles são condicionados pela existência destes. Convém, pois, começar pela “civilização”.

Para tanto, é preciso retomar noções que se foram perdendo com a distinção entre “civilização” e “cultura”, o que decorreu da resposta conservadora ao ímpeto progressista ou evolucionista associado à organização da vida social, entendida justamente como ascendência civilizatória, em que pouco se acredita hoje. Tal resposta produziu, pelo menos, um efeito perverso, ao corromper o termo pela raiz. “Civilização” passou a responder pelas meras aquisição e manutenção de recursos técnicos, enquanto “cultura” passou a algo mais elevado, que corresponderia a  dar sentido a tais recursos. Pensando assim, haveria grande diferença entre inventar os talheres e usá-los. O objetivo dessa manobra consistiria em separar “civilização” e “cultura”, em favor desta. Decorreria disso a possibilidade de a “civilização” trazer nela a “barbárie”, constatação um tanto frankfurtiana. Mas não. Não é o caso – já que a atitude em questão não é crítica, mas simplesmente desqualificativa. É preciso, pois, criticar. Como? Ao investigar os limites e potenciais inerentes às duas noções. Fundi-las novamente, sob o signo da formação. Mais: restituir a barbárie no que ela, em si, traz de verdade.

Vida civil, livre convivência urbana, cidadania, e, indo mais fundo na etimologia, lar, abrigo, local de repouso em paz.

“Civilidade” seria a palavra, segundo Theodor Adorno. Ela que, atualmente, perdeu substância ao “emancipar-se”, ou seja, perder o chão histórico, privada que foi da dialética entre individualidade e convenção social original, pois, sem esta, o que há é o egoísmo que gira no vazio ideológico.

Por que é central a civilidade? Porque, por meio da experiência histórica, abre possibilidade para a consideração do outro, o que há de mais raro hoje.

Trata-se do oposto da indiferença, o que se distingue da mera diferença por meio da reconciliação com o universal. Com formação e responsabilidade, a civilidade opõe-se à barbárie.

Eis porque a indiferença é o principal aspecto da barbárie contemporânea.

Diferente do caráter “excludente” da nova ordem social mundial – que age contra minorias –, a indiferença afeta setores sociais inteiros, tornando-os irrelevantes. Eis a contrapartida social da relação entre o poder dos grandes agentes econômicos e o desinteresse pelas ações deles. Já a contrapartida política é a redução da democracia à sua dimensão mínima, de método de escolha de governantes no interior do mercado político. É verdade que, mesmo quando reduzida à sua expressão mais simples, a democracia não é pouco, no âmbito institucional dos processos políticos. É igualmente verdade, porém, que não é suficiente, quando se fala de civilização, pois não faltam atos de barbárie plena praticados por nações beneficiadas pelo funcionamento dos dispositivos democráticos, quando não em nome deles.


O Messias só vem quando não é mais esperado, lembra Kafka. Em outro registro, e a partir de outra grande matriz civilizatória do Ocidente, Kavafis põe na boca dos habitantes da cidade a pergunta: os bárbaros, onde estão eles, que poderiam nos salvar? Teimosa esperança no que só virá quando se tiver aprendido a não esperar a redenção transcendente, por um lado; desesperança e entrega total à ordem vinda de fora, pelo outro. Há algo que permita pensar esse descompasso sem depositar todo o peso numa ideia tão frágil como a de esperança? Talvez a referência contida em Kavafis à intrincada teia de relações entre os civilizados de dentro e os bárbaros de fora, com todas as suas permutações de identidades e localizações, ofereça uma pista. Pois são os não-bárbaros (posto que capazes de se diferenciar dos bárbaros) que mantêm a iniciativa de reservar para si a condição de civilizados, por mais que reconheçam que os outros lhes são indispensáveis. Convém, pois, começar pelo lado da civilização.

Para retomar a ideia de civilização, cumpre primeiro recuperar referências nela contidas que foram soterradas pela distinção que em certa época se construiu, entre “civilização” e “cultura”. Em boa medida isso ocorreu como resposta conservadora aos ímpetos progressistas e evolucionistas dos que apostavam numa sequência ascendente de níveis cada vez mais avançados de organização da vida social, entendidos justamente como níveis de civilização. Atualmente devem ser poucos os defensores de uma irreversível evolução civilizatória. Mas a resposta conservadora a essa concepção produziu efeitos perversos, ao corromper o termo pela raiz. Nessa perspectiva, civilização passou a significar a mera aquisição e manutenção de recursos técnicos e de destreza, reservando-se o termo cultura para algo mais elevado, que seria a capacidade de infundir sentido nessas habilidades em princípio acessíveis a todos. Numa formulação bem conhecida, civilização seria inventar os talheres, e cultura consistiria em saber servir-se deles de modo conveniente (conforme regras sociais específicas, portanto). A manobra é clara. Introduz-se uma cunha na junção da ideia de civilização com a de cultura, para valorizar a segunda em detrimento da primeira. Com isso desloca-se o foco do universal (ou tendente ao universal) para o particular, restrito, peculiar a este ou aquele povo ou, de preferência, a este ou aquele grupo social. Isso tem uma consequência muito importante do ponto de vista do meu argumento. É que, ao destruir-se por  essa via o contraste entre “civilização” e “barbárie” que tanto importava aos velhos evolucionistas (para quem ele indicava diferenças remediáveis entre estágios de desenvolvimento), insinuava-se a ideia de que a mera civilização, sem o corretivo restritivo — e historicamente contingente — da cultura, abrigaria ela mesma a barbárie. Isso à primeira vista pode parecer uma concepção crítica um tanto “frankfurtiana”, que assinalaria o germe da barbárie no próprio interior da civilização que se apresenta como a mais avançada. Mas não é isso. A atitude envolvida não é crítica: é de pura e simples desqualificação. A tarefa que temos, hoje, envolve justamente retomar a reflexão crítica tanto da civilização como da barbárie (e, de passagem, da cultura), para surpreender os limites e também o potencial não realizado de todos eles — incluindo a barbárie, que também tem o seu momento de verdade (com o quê, aí sim, estaríamos na linha dos mestres de Frankfurt). Trata-se de recuperar o complexo significativo que anima a ideia de civilização e a torna inseparável da ideia de cultura, entendida esta na sua acepção mais plena, como cultivo da humanidade, como formação. Vida civil, livre convivência na cidade, cidadania e, indo mais fundo na etimologia, lar, abrigo, local de repouso em paz — tudo isso faz parte desse complexo, assinalando o grande tema de uma sociabilidade que permita a todos estarem chez soi.

Fiz referência, acima, aos mestres frankfurtianos da teoria crítica da sociedade. Pois é um deles, Theodor W. Adorno, que oferece os elementos para localizar o núcleo de significados que permitirá identificar, nas condições contemporâneas, tanto a promessa contida na ideia de civilização como a forma que nelas assume a sua inseparável ameaça, contida na ideia de barbárie. O texto de Adorno que pretendo usar não trata diretamente de civilização, mas daquilo que se poderia entender como sua expressão mais plena, que se traduz numa  forma  peculiar  de  conduta  dos  homens  entre  si.  Num dos pequenos  ensaios  e  antimáximas  de  seu  livro  Minima  moralia, Adorno fala do tato — mais precisamente, da “dialética do tato”. O termo, porém, poderia muito bem ser traduzido por civilidade.  Pois é disso que se trata: para além do refinamento, ou do gosto, a civilidade manifesta-se, no texto de Adorno (sobretudo quando lido junto com os demais), como, antes de mais nada, respeito ao outro, exercício espontâneo e autônomo da dignidade humana sem imperativo categórico, com bases históricas materiais. É ideia negativa: não reafirma algo já dado, mas assinala os limites de sua realização e evoca uma possibilidade histórica. Tal como despontou historicamente, a civilidade instala-se em espaço singular: aquele em que a  individualidade burguesa emergente se combina com os fracos remanescentes das convenções aristocráticas legadas pelo ancien régime em seu ocaso. Daí a sua dialética, expressa no jogo entre individualidade e convenção, em que nenhum dos termos aparece desencadeado, solto. Nem pura auto-referência da individualidade nem convenção opressiva, pois: mas ambas definindo-se e limitando-se mutuamente. A civilidade quase dispensa a convenção e quase dispensa o móvel interno: joga com ambos. É o momento, raro e fugidio, do encontro (da “reconciliação”) entre o compromisso externo e o impulso interno, entre a renúncia e a plenitude. Como fazê-lo perdurar, cobrar a promesse de civilisation sem a qual não há promesse de bonheur? Pois no momento histórico presente a civilidade perdeu substância. E o fez, diz Adorno, porque se tornou “emancipada”, sem chão histórico, privada da dialética da interpenetração tensa da individualidade e da convenção que estava na sua origem. Com isso a convenção perde sua base social substancial e a individualidade, solta e sem referência, gira no vazio da ideologia; com prejuízo para ambas.

A civilidade é um modo de expressão da experiência social: exprime um modo de agir, de sentir, de avaliar. É, portanto, um modo de exercício da cultura no plano das relações sociais. Vista por esse ângulo, a cultura revela-se naquilo que tem de mais fundo, como tradução da experiência social no registro significativo. Para além, e mais fundo, de constituir um complexo de normas, valores e regras de conduta, a cultura é um conjunto de padrões de interpretação da experiência. Mais do que molde rígido, é travessia constante da fronteira entre as sensações brutas e os significados compartilhados. Não há como, pois, contrapor civilização e cultura, nem mesmo separá-las; e, no mundo moderno, o elo que as liga é a civilidade. A civilização envolve, primeiro, a unidade tensa entre conteúdos materiais da experiência socialmente compartilhada e os padrões de interpretação que lhe dão sentido. Depois, configura a unidade maior, entre a civilidade no plano social e a cidadania no plano político; entendida esta na sua dupla dimensão, também inseparável, de exercício de direitos (que são universais) e de participação na coisa pública pelo exercício de virtudes civis (que são contextuais).

Por que é central a civilidade? Porque abre a possibilidade da coisa mais difícil de todas, que é a orientação da experiência social pelo prisma da consideração pelo outro, naquilo que ele tem de universalmente válido. Civilidade e humanidade são o mesmo, escreve Adorno. Trata-se de ideia diferenciadora: a consideração pela humanidade do outro não é abstrata, mas passa pela diferença que o individualiza. É, pois, o oposto da indiferença. Mas também não é mera diferença, distinção solta, desencadeada: sua referência é universal, como possibilidade a ser cobrada como promessa, na figura de uma humanidade unida nas suas particularidades, reconciliada. Por não ser mero relativismo, que fragmenta diferenças recolhidas cada qual no seu mundo fechado e paradoxalmente acaba homogeneizando tudo — onde só há diferenças o resultado é o indiferenciado —, não dispensa a divergência e converte o consenso numa tarefa. Civilização e cultura são dimensões inseparáveis do processo histórico, como figuras do universal e do particular. Trata-se de encontrar os elos entre ambas, não de identificá-las ou contrapô-las. Na dimensão da civilização o elo é dado pela civilidade; na dimensão da cultura, pela formação. Em ambos os casos, trata-se de imprimir forma à experiência: forma social num caso, forma significativa, no outro.

A civilidade, como exercício, e a formação, como aprendizado, constituem, na sua unidade, o oposto da barbárie. Ambas remetem ao tema central da responsabilidade, que assume, no plano da civilidade, a forma do cuidado com o outro. A atenção ao outro, que está presente em Adorno como núcleo mesmo da civilidade, e que, como cuidado, care, é contribuição importante do pensamento feminista à reflexão social, é ponto nodal na articulação da referência particular (este outro ser, que aqui se encontra) e a referência universal mais plena (os homens só se tornarão humanos quando deixarem de atormentar os animais, dizia Horkheimer). Isso envolve a questão fundamental da articulação dos direitos universais com as responsabilidades locais. No que nos importa aqui, a responsabilidade como instância da civilização representa, sobretudo, a oposição à indiferença. E, com isso, chegamos à questão da barbárie. Pois o que se defende aqui é que a indiferença é a forma contemporânea da barbárie.

Bem sabemos como o termo bárbaro traz uma carga peculiar desde a origem: o estranho, o que não fala (a nossa língua), o inacessível, o que tem que ser mantido longe, ou submetido. Nessa concepção, a barbárie é a invasão da nossa casa pelo estranho — mesmo quando é para nos salvar da nossa civilização, como lembra Kavafis. Nisso, aliás, exprime-se o lado sombrio da associação entre civilização e morada, mundo habitável. Esta é, até hoje, a óptica conservadora (os franceses seguidores de Le Pen que o digam, entre tantos outros). Nessa perspectiva, a civilização é algo a ser preservado contra a ameaça externa, é algo a ser cercado, blindado. Não há como evitar, nesse passo, que ocorra à mente uma raiz do termo pólis, que é muro, limite; o que mais uma vez nos recorda a íntima associação da noção de civilização com o medo, que é transferido para fora, para os de fora. (Afinal, nossos conceitos trazem todos eles as marcas de múltiplas incrustações históricas, e não há como tentar limpá-los, nem cabe esse gesto; mas cabe, sim, saber discernir suas muitas camadas indutoras de interpretações tácitas). Ocorre que, seguindo-se essa linha de argumentação, logo concluiríamos que a ideia de barbárie é uma construção que não resiste à mudança de perspectiva gerada pela consideração do outro como legitimamente diferente e merecedor de respeito como tal. E, prosseguindo nessa mesma linha, diríamos que esse gesto de alçar o outro à condição de diferente mas igual é o gesto civilizado por excelência. Mas isso não seria suficiente. Como a nova direita europeia descobriu há bom tempo e já foi demonstrado por vários ângulos pelos seus críticos, o tão decantado respeito pelo outro não rompe o círculo perverso do confronto do particular com o particular, em que cada qual fica do seu lado na sua irredutível diferença. Claro que somos de fato diferentes. Nisso reside o momento de verdade da barbárie. A sua falsidade consiste precisamente em tornar absoluto esse seu momento de verdade. (Todo relativismo repousa em algum absoluto não questionado.) Civilização, para fazer sentido, remete ao universal. É só neste que se pode romper, pela descoberta dos laços que atravessam o conjunto todo, a casca opaca das peculiaridades tornadas absolutas e externas umas às outras. O jogo das peculiaridades soltas ainda é da ordem da barbárie. Em primeiro lugar, naquilo que aqui nos interessa, porque nesse plano não é possível evitar que o respeito pelo outro deslize rumo à indiferença pelo outro. A aceitação generalizada da diferença é a expressão exata da indiferença. A barbárie é, antes de mais nada, uma forma perversa de universalização: tudo o que não se identifica com a peculiaridade dada é resto indiferenciado, irrelevante, indiferente, portanto. Em contraste, a universalização civilizada necessariamente encerra o particular como objeto de consideração, não é indiscriminadamente abstrata.

Meu argumento, pois, é precisamente este: que a face contemporânea da barbárie se exprime na indiferença. Mas há um segundo passo nesse argumento: é que essa associação entre barbárie e indiferença é fundamental porque a indiferença é um traço estrutural básico da forma de organização das sociedades que corresponde ao modo contemporâneo de operação do capitalismo. A ideia é que a lógica do funcionamento do intercâmbio intra e internacional no interior do sistema “global” que se vem desenhando nas últimas décadas envolve um aspecto da maior importância. É que o aumento de capacidade de decisão de um número restrito de agentes econômicos que operam em todos os quadrantes planetários gera efeitos em grande escala marcados pela circunstância de escaparem ao controle daqueles que os desencadearam. Em consequência, são em grande medida indeterminados. O aspecto fundamental disso é que essa indeterminação é assimilada sem grandes problemas por esses agentes dotados de capacidade de decisão altamente concentrada. Isso porque eles se encontram em condição de avaliar a propagação dos efeitos de seus atos como irrelevante para seus objetivos pontuais.

Nessas circunstâncias, altera-se o próprio significado do termo decisão. Na origem ele se referia a um ato de um agente senhor de sua vontade que, numa situação de crise (isto é, de paralisia, por extremar-se a distância entre as opções disponíveis), intervém para criar uma nova situação, uma nova configuração, no limite, uma nova legalidade. Nesse sentido, decisão não se confunde com a escolha entre alternativas, pois é mais propriamente a criação de novas alternativas. A oportunidade importa para a decisão, sem dúvida, mas a orientação básica dirige-se para o controle da situação, da maneira mais integral e no prazo mais longo possível. Não é mais este o caso, na etapa contemporânea. A palavra de ordem é mobilidade, rapidez, sobretudo. Decisão deixa de ser um sinal da virtu do agente que depois busca conservar o objetivo conquistado: passa a ser a capacidade de detectar num átimo a oportunidade da fortuna fugaz.  Isso não é de hoje, mas cada vez mais os agentes do capital percebem que seus interesses não mais repousam na capacidade de explorar produtivamente força de trabalho (isto é subsidiário), mas na incorporação de técnicas organizacionais e de planejamento que lhes permitam, num mundo globalizado e hipercomplexo, concentrar a atenção, em cada momento, estritamente nas oportunidades de ganho imediato que cintilam aqui e acolá. Não se trata mais de buscar eliminar, ou de neutralizar, os componentes irracionais (vale dizer, não controláveis) do ambiente em que se age, mas precisamente de ignorá-los — não por negligência, mas por exigência de funcionamento de um sistema hipercomplexo. Nitidez na escolha do alvo, mobilidade e rapidez na decisão são os imperativos da ação eficaz.

No modelo clássico do mercado concorrencial, ações singulares de agentes com alcance limitado equilibravam-se mutuamente, dispensando toda intervenção. O modelo pode ter sido uma aproximação grosseira, mas serve para contraste com uma situação como a atual, em que as ondas de choque criadas pelas ações de alguns poucos agentes literalmente monstruosos (porque não só desconhecem a força que têm como não se importam com isso quando agem) obrigam a repensar outra categoria central do pensamento moderno: a de controle. Claro que os grandes agentes decisivos têm, talvez mais do que nunca, controle sobre seus objetivos imediatos e sobre o formato organizacional mais adequado para atingi-los. O que acontece é que a escala de operações e a complexidade de seus ambientes se tornaram de tal ordem que os efeitos secundários (diretos, indiretos e combinados ou sinérgicos) extravasam o controle, não só pela natureza que assumem mas — e este é o ponto decisivo — porque não mais importam a quem os desencadeou. Pode parecer pouco, mas há uma diferença enorme entre o agente que conhece os seus limites de intervenção eficaz e se preocupa com isso, quando nada para superá-los numa busca implacável de controle sobre o mundo, e o agente a quem simplesmente não importa o que decorre de suas ações para além dos limites de seus objetivos imediatos. Na sua acepção primitiva, a ideia de controle envolvia uma responsabilidade do agente, uma capacidade de resposta às consequências de seus atos, sem a qual perderia sentido a ideia de organização. É um pouco por isso, também, que o programa socialista clássico, sobretudo na sua versão revolucionária, vai perdendo fôlego ao longo desse período. Pois não há como gerar, pela capacidade de resposta à ação de um adversário que necessariamente incorpora as regras do sistema em que age, formas de organização que permitam arrebatar seu controle dos processos quando a situação em que atua o levou a abrir mão da racionalidade organizadora e controladora que permitiria de algum modo prever seus atos. O novo ambiente combina de modo peculiar a concentração de capacidade de decisão com o caráter aparentemente errático das ações. Eis por que faz sentido sugerir que a ênfase na dimensão da organização é do passado, substituída como vem sendo pela ênfase na mobilidade. Não é um mero jogo de palavras afirmar que as novas condições históricas vão substituindo a possibilidade da organização responsável pelo exercício da mobilidade oportunista.

É nessa linha de reflexão que se pode sustentar que a atual lógica econômica dominante está centrada naquilo que se poderia denominar indiferença estrutural, que envolve  a irresponsabilidade  das agências decisivas (empresas, mas também, em escala crescente, Estados nacionais) em relação a tudo que exceda a órbita imediata de sua ação. Nesse sentido, desgastam-se os laços entre processos econômicos e poder político, e acaba fazendo sentido a imagem — errônea quanto ao resto — da crescente perda de substância do Estado como instituição classicamente associada ao âmbito nacional. Não insistirei aqui no radical economicismo que anima a atual ordem dominante, nem na desqualificação da dimensão política nisso envolvida. Outros, como Francisco de Oliveira, já o fizeram vigorosamente. Importa, neste passo, assinalar a importância que assume, no mundo cujos contornos se vêm desenhando, a contínua criação de áreas de indiferença, por efeito desse paradoxo do alcance global das decisões: à multiplicação de focos de atenção pontuais responde o aprofundamento da indiferença estrutural. A dificuldade da questão só aumenta quando consideramos que indiferença não envolve necessariamente ausência de mecanismos seletivos.  Pelo  contrário, eles ganham papel decisivo. O termo decisivo é intencional neste ponto: alude à circunstância de que, na forma de organização das sociedades e de seu conjunto, vai ganhando corpo a substituição da decisão de agentes identificáveis por operações seletivas incorporadas à rotina de sistemas complexos. São essas operações que definem o que é relevante ou não, o que merece atenção e o que cai na área de indiferença. Trata-se de um modo de dar conta da impossibilidade da decisão por agência responsável, posto que nenhum agente, ou conjunto de agentes (classe, por exemplo), tem como aspirar à visão de conjunto das ações possíveis e dos efeitos previsíveis, sem a qual a ação deixa de ser a expressão de uma capacidade de iniciativa para ser mera resposta, reação a demandas e estímulos.

Insiste-se com frequência no caráter “excludente” das sociedades que se vão formando na nova ordem. Mas é preciso considerar que a rigor não se trata de exclusão.

O processo não mais se dá em termos da natureza inconveniente de tal ou qual grupo social bem definido, mas incide sobre setores inteiros das sociedades, não porque sejam inaceitáveis (minorias étnicas, por exemplo) mas simplesmente porque são irrelevantes. Essa é a contrapartida social da relação entre o poder dos grandes agentes econômicos de decisão e o desinteresse destes pelos desdobramentos das consequências de seus atos. Em ambos os casos, áreas inteiras do terreno em que se opera se tornam irrelevantes, insignificantes, se convertem em áreas de indiferença. Por outro lado, a contrapartida política disso é a redução da democracia à sua dimensão mínima, de método de escolha de governantes no interior do mercado político. É verdade que, mesmo quando reduzida à sua expressão mais simples, a democracia não é pouco, no âmbito institucional dos processos políticos. É igualmente verdade, porém, que não é suficiente, quando se fala de civilização; pois não faltam atos de barbárie plena (com todas as marcas da indiferença aqui apontadas, só que rebatidas sobre o plano da violência pura) praticados por nações beneficiadas pelo funcionamento dos dispositivos democráticos, quando não em nome deles. Não é difícil enunciar a tarefa urgente que se apresenta: a de reunir numa unidade forte a democracia política, a civilidade social e a responsabilidade moral. Difícil é não esmorecer diante da inevitável constatação de que, por urgente que seja, é tarefa para décadas, ou gerações. Não há como acelerar o processo de emancipação plena da humanidade (pois é disso que se trata, não menos). Mas há como, e por quê, ampliar aqui e agora os espaços para que se ouça a voz da razão. Pois esta, como diria Freud, é baixa, mas persistente.

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