1996

Lógica da emancipação

por José Arthur Gianotti

Resumo

A ideia de revolução está ligada à de um nós coletivo que, menos do que ser um fato, é uma condição de inteligibilidade para seus agentes e intérpretes, mesmo quando eles se enganam. Cada ato se arma na expectativa de que o outro entenda o sentido do seu gesto. É assim que, conforme as conhecidas análises de Marx, a sociabilidade do mercado funciona, com seu padrão abstrato, seus ajustes práticos. Uma ilusão necessária sustenta o “fetichismo da mercadoria” e seu processo de exclusão e poder. O Estado como sistema jurídico e normativo constitui uma ilusão da mesma espécie, seja quando impõe uma política pretensamente racional, como nos sistemas totalitários, seja quando admite várias concepções racionais da sociedade que competem entre si, como no pensamento liberal mais recente de John Rawls. Justiça e racionalidade estão sempre em conflito. Como criar um modo de produção que seja justo e racionável? Para que as desigualdades provocadas pelo mercado de trabalho possam ser consideradas justas, o produto social resultante deve compensar os mais prejudicados. No fundo de toda análise, porém, há o horizonte comum das trocas simbólicas e dos jogos de linguagem tais como foram pensados por Wittgenstein. Indagar pelo sentido de nossas ações e proposições é sempre aprofundar a democracia. Na dialética de consenso e dissenso, este último deve reconhecer a possibilidade do primeiro para criar uma barreira contra a violência bruta.


Conforme se globaliza, o repertório revolucionário, romântico e europeu paulatinamente vai perdendo esses dois últimos atributos para deixar nua a ambiguidade que ao mesmo tempo alimentou e enervou a ideia de revolução. Esta propôs recriar um novo homem a partir das heranças de uma história que se esgotava em seu próprio movimento e, ao mesmo tempo, criar um novo ser social, absolutamente inédito, na base do passado. Nesse nível, a ideia hegeliana da Aufhebung, cujas raízes religiosas são facilmente verificáveis, serviu, como nenhuma outra, para instrumentalizar um pensamento que acreditou ser possível incorporar a contradição sem vir a ser contraditório, total sem promover o totalitarismo. No entanto, foi este, o totalitarismo, o fato inédito na história do século XX, pois em nenhuma época anterior um grupo político, parte ou partido, mas sempre uma particularidade social, pretendeu representar toda a herança do passado e todas as aventuras do futuro. O que a religião sempre colocara no além da morte, na cidade de Deus em contraponto com a cidade dos homens, tornou-se uma virtualidade no plano de nossa facticidade. Mas o colapso dos regimes totalitários obriga-nos a voltar para nossa finitude, perscrutá-la, amá-la muitas vezes. Isso nos forçaria, porém, a uma submissão aos fatos, a uma passividade diante duma história cuja necessidade, ou o acaso, estaria inteiramente fora de nosso controle? Somente nos restaria a revolta moral do dever ser contra as ignomínias de um ser banalizado na sua maldade?

Há vários caminhos para sair desse impasse. Um deles é procurar repensar essa própria noção de necessidade histórica, duma factualidade que resiste aos projetos do homem, reconhecida como força exterior, mas também enervada por seus limites e por suas contradições. Aqui reside um ponto sobre o qual gostaria de refletir nesta minha fala, uma achega para o problema maior dessa necessidade. As contradições que se encontram em certos fatos sociais constituem apenas momentos superáveis de um processo em desenvolvimento, ou estão entranhadas neles como seus momentos constitutivos? Há fenômenos sociais essencialmente contraditórios? Ainda que não sejam movidos inteiramente pela Aufhebung hegeliana, não estariam travados por uma tensão interna?

Comecemos pela questão da interssubjetividade. Não opera ela em vários planos? Ela se mostra pobre e pouco criadora quando reduzida a mero fato social existente, linha tortuosa a ligar dois agentes que se constituem por determinação recíproca. Nesse plano, é objeto de ciência e como tal, a despeito da precariedade do vínculo mantido entre sujeitos, vale como fenômeno do mundo a ser estudado segundo os parâmetros adotados regularmente pelos cientistas. Mas, se a ciência arma sistemas de conceitos, cabe ainda considerar que um sistema de regras, para ser seguido, seja pelos próprios cientistas, seja pelos agentes que se tornaram seus objetos de estudo, necessita pressupor, como condição de existência, noutras palavras, como condição transcendental, um nós coletivo, espécie de bastidor formado por sujeitos interagindo, funcionando como condição de inteligibilidade entre esses sujeitos e os próprios cientistas que sobre eles se debruçam. E tal coletividade não é propriamente um fato na acepção corriqueira da palavra, fenômeno do mundo entre outros fenômenos, mas momento de uma facticidade que se torna transcendental na medida em que se converte em condição de inteligibilidade para os próprios agentes e os cientistas que tecem teorias sobre eles. A realidade social se duplica sobre si mesma, fato que se põe como objeto da análise científica e fato pressuposto como certeza indubitável para que essa realidade seja entendida e considerada do ponto de vista de proposições verdadeiras ou falsas. Em primeiro lugar, percebe-se a sociabilidade posta por um sistema simbólico — a sociedade formada por vendedores e compradores posta pelo mercado e alinhavada pelo trabalho; a comunidade de cidadãos posta pelo Estado; a nação que coordena indivíduos ocupando um território, ligados por práticas cotidianas e irmanados pelo esforço de manter uma tradição; público e atores de um gênero artístico como o cinema, a literatura, as artes plásticas e até mesmo o público das obras filosóficas e tantos outros grupos formados pela prática de outros jogos de linguagem. Em segundo lugar, essa prática tem como horizonte a humanidade como um todo, formada por seres humanos capazes de chegar a um entendimento por meio desta ou daquela linguagem, indivíduos que desde logo podem seguir um sistema de regras, mas sobretudo julgar erroneamente, vale dizer, seguir uma regra na certeza de que o fazem corretamente embora o resultado venha mostrar a eles ou aos outros que se enganaram por completo. Nesse plano, o erro mais do que a correção solda um laço social pressuposto, porquanto ele situa os indivíduos, num mesmo nível, tanto como fissuras no mundo, pontos de indeterminação no tecido das regras sociais, quanto como elementos de um mesmo espaço lógico formado pelos juízos pronunciáveis.

Desenvolvo aqui uma observação que, salvo engano meu, Wittgenstein foi o primeiro a fazer, em seu livro Sobre a certeza, a qual, de certo modo, recupera pelo avesso a tradicional definição do homem como animal racional. Somente agora essa racionalidade não está encastoada numa faculdade da alma, mas se inscreve como condição da própria prática da linguagem, na racionabilidade de fatos simples tomados como evidentes e nas práticas de persuasão quando se instala um desentendimento. Os homens podem se comunicar, mesmo quando não possuem ainda uma linguagem comum. Por meio de gestos, de sons inicialmente desarticulados, enfim, por meio de práticas que os interlocutores supõem dotadas de sentido, eles acabam por se entender, formando jogos de linguagem rudimentares, que paulatinamente passam a ser propriedade comum. E, dessa perspectiva, a racionalidade ganha o sentido corriqueiro de marcar a possibilidade de um entendimento por meio da prática do discurso e da persuasão. Os homens são racionais, razoáveis, embora muitas vezes pouco comedidos, porquanto mesmo quando brigam ou se matam firmam-se na esfera do entendimento possível, relacionam-se entre si como seres capazes de entendimento. O outro não se dá de imediato como besta feroz; para que seja reduzido a esse limite, precisa ser considerado como tal, e considerar, neste caso, é retirar dele a aparência de humanidade. Na luta, cada lance, cada golpe mortal nega a redução do outro à pura animalidade, pois cada ato se arma na expectativa de que o outro entenda o sentido do seu gesto. Não se mata alguém como se fosse besta selvagem, por mais que o discurso, para encobrir essa verdade radical, necessite mentir e dizer o contrário.

Essa humanidade que reside no horizonte de nossos discursos, momento transcendental deles, na medida em que desenha um bastidor, uma condição, de suas respectivas práticas, efetiva-se em formas particulares de sociabilidade, postas e repostas por suas regras e atividades, cada uma desenhando seu espaço lógico discreto, o lugar do correto e do incorreto, embora nessa sua discrição conservem a possibilidade de interfaces comuns, já que todas elas implicam erro, por conseguinte possibilidade da pergunta pelo sentido, vale dizer, de um horizonte comum de entendimento. Mas cada sistema simbólico efetivo se arma a partir de uma perspectivação entranhada nele mesmo.

Vejamos, por exemplo, como esta se realiza na sociabilidade posta pelo mercado. E aqui retomo, sem entrar nos pormenores, as conhecidas análises de Marx. Compradores e vendedores se reúnem para a troca de seus produtos obtidos segundo uma divisão social do trabalho previamente estabelecida. No nível mais elementar em que o analista se coloca para compreender esse fenômeno social da troca, o dinheiro é apenas meio que viabiliza atos desconectados pelo tempo. Se ele for introduzido desde logo como um bem que o mercado associa a um produto, como fazem legitimamente as ciências econômicas, todo o sentido da troca fica inteiramente alterado. De um ponto de vista científico a teoria do valor-trabalho está inteiramente morta.

Para evitar mal-entendidos vale a pena explicitar esse ponto. Aquela conivência entre filosofia e ciência que Marx herda do idealismo alemão se dissolve na medida em que a ciência moderna, particularmente a economia, se aferra ao projeto de elaborar modelos descritivos, às vezes constitutivos, de fenômenos positivamente dados, que possam ser então manipulados e controlados. A microeconomia procura descrever o comportamento dos consumidores, e a macroeconomia, a formação e distribuição da riqueza no jogo das nações. A ideia de um capital como um sujeito capaz de valorizar-se a si mesmo é completamente estranha a essas ciências. Mas a questão ressurge quando nos propomos a compreender o sentido da palavra troca numa dada circunstância histórica em que praticamente tudo o que chega ao mercado provém dum sistema produtivo, em que todos os fatores já estão sob a forma mercantil. Em suma, o novo ponto de partida passa a levar em conta o fato histórico do capitalismo, tendo em vista a separação do trabalho dos meios de produção e a necessidade de que, para que possam unir-se novamente, produzam um excedente. A historicidade de uma forma de trabalho e a de uma forma de excedente orientam a investigação, marcam a intencionalidade do sistema teórico a ser montado com o intuito de entender práticas datadas. Não é aqui o lugar para justificar essa opção, apenas cabe salientar que a análise, na medida em que procura uma condição transcendental duma determinada forma existente de sociabilidade, a sociabilidade capitalista, deixa de ser científica para almejar desenvolver-se num discurso propriamente filosófico, que não procura adequação aos fatos, mas tão-só capturar sentidos que se armam no discurso do analista e nas práticas dos analisados.

Entender o sentido da troca entre produtores independentes aparece assim como a primeira tarefa para que se entenda o sentido das trocas capitalistas. Essa forma de intercâmbio constitui o ponto de referência para aqueles que procuram compreender a existência de uma troca que se tece entre agentes que somente trabalham para a troca. Esta é condição necessária para que se entenda uma forma de sociabilidade pela qual somente se troca quando ao menos uma das partes é movida pelo interesse do lucro. Por isso que nunca existiu um modo simples de produção de mercadoria. Constitui uma abstração necessária para a compreensão das trocas capitalistas.

Nesse sistema os indivíduos se associam exclusivamente graças àquilo que são capazes de levar reiteradamente para o mercado, vale dizer, os produtos de seus próprios trabalhos. E este é um pressuposto que é reposto pela efetividade da troca. Produtos dos mais diversos trabalhos são, desse modo, igualizados na base de um equivalente geral. Mas no que pode consistir essa equivalência de produtos tão disparatados? São todos eles postos como produtos e, dessa forma, como resultantes de diversos trabalhos reiterados que, nessas condições, por terem sidos igualados entre si, se apresentam todos como se fossem múltiplos de um trabalho simples e abstrato, isto é, sem outra qualidade além da capacidade de produzir e de modificar coisas da natureza.

Note-se com cuidado que esse critério de sentido é igualmente critério de efetivação dos trabalhos individuais, pois cada um deles somente vem a ser acolhido pelo sistema se for medido por esse padrão abstrato. Mas aqui se forma uma estranha ilusão. Para que possa medir, um padrão precisa estar encarnado num objeto real, cujas propriedades abstratas passam a ser vistas nele conforme ele funciona efetivamente. Ora, nenhum trabalho efetivo vem a ser, por causa do mercado, ponto de referência da existência de todos eles, mas todos eles somente perduram se se subordinarem a um padrão que, no final das contas, somente se manifesta no final da operação, quando oferta e demanda se conciliam. No entanto, não entra no mercado nem permanece nele quem não operar segundo essa ilusão. Daí o caráter necessário dela, uma abstração vindo a ser condição de existência de ações individuais, pois se assenta num mecanismo social de exclusão dos atores menos produtivos. Além do mais, toda a diversidade efetiva dos trabalhos individuais se oculta nas propriedades do produto. Os objetos enquanto mercadorias importam por seus valores. Aquele processo de igualação dos trabalhos aparece nos valores igualados a partir duma unidade simples, as diferenças de desgaste das forças individuais de trabalho aparecem no tempo incluído na forma da grandeza valor, e, finalmente, as relações entre os produtores adquirem a forma duma relação social entre os produtos do trabalho, a saber, uma relação de proporção entre os produtos valorados. São estes, como se sabe, os três pontos que Marx assinala como responsáveis pelo quiproquó formal promovendo o fetichismo das mercadorias.

Convém notar que desde Kant se critica a metafísica por atribuir à coisa em si atributos que somente pertencem ao fenômeno enquanto estruturado para o conhecimento. O fetichismo nasce de um processo paralelo, segundo o qual se atribuem ao valor propriedades características dos critérios que o medem. Nada mais legítimo, por conseguinte, do que tomar o objeto social, a mercadoria, forma elementar da riqueza capitalista, nascendo de um engano de tipo metafísico. É ainda de notar que, desse ponto de vista, não se pode capturar o sentido dessa forma de sociabilidade conformando-se aos padrões da positividade científica, limitados unicamente pela intenção de desenhar modelos de funcionamento do real com o intuito de prever e intervir. Compreender o sentido da sociedade capitalista implica, pois, proceder a uma crítica de sua positividade, procurar o mecanismo oculto responsável por sua objetivação. E essa pergunta pelo sentido não precisa nascer diretamente dos interesses de uma classe oprimida, mas pode despertar naqueles que sofrem os atritos de práticas contraditórias.

Importa salientar como essa ilusão necessária residente na troca de mercadorias se arma por meio de um juízo sui generis. Sua igualação é um juízo prático levado a cabo desde logo pelos agentes. O processo de trabalho se move desde logo num universo em que operam medidas técnicas segundo parâmetros impostos pela própria natureza do produto. Não se fabricam arcos e flechas sem que o uso de um se reporte ao uso de outro, pois, de outro modo, se aparecer uma sobra neste ou naquele lado da equação, o produto deixa de ser arco ou deixa de ser flecha. Um arco não dispara um número qualquer de flechas, de sorte que uma proporcionalidade técnica deve ser mantida entre os produtos. Mas a mensuração operada pelo mercado de produtores simples de mercadoria repõe esse juízo numa relação de poder. Sem que se use diretamente da força, resulta da medida segundo o padrão abstrato a exclusão do mercado de todos aqueles que não lograrem trabalhar dentro do intervalo determinado pela produtividade média do grupo. Pouco importa a quantidade de bens de que os indivíduos carecem, ou os custos que estão dispostos a pagar para obtê-los. Posto que a produção se performa nas bases de uma divisão social do trabalho existente, posto que os trabalhadores podem saltar deste para aquele ramo segundo suas conveniências e conforme venham a ter acesso às novas tecnologias, a oferta se ajusta à demanda na medida em que todos aqueles que trabalham abaixo de um intervalo que gira em torno da produtividade média social tendem quer a mudar de ramo produtivo quer a ser excluídos do mercado. Suponhamos que um produtor consiga operar com uma produtividade extraordinária, o valor agregado do produto, como sabemos, vai ao chão, o que impede seus concorrentes de completarem a cesta básica de que precisam para viver. Estes tratam então de produzir segundo a nova técnica, ou mudam de profissão ou também ficam fora do sistema produtivo. Não reside aqui, nessa relação permanente de poder, o segredo da perdurabilidade da ilusão?

A descoberta desse mecanismo de ajuste prático e objetivo, em que os agentes se tornam vicários ou inúteis, teve enorme impacto no pensamento do século XVIII e deu origem ao conceito de burgelische Gesellschaft. Hegel pode fazer de todo o processo um conceito porque para ele um conceito já é juízo em potência. Mas como manter essa concepção quando nos apartamos de sua tese de que todo objeto finito é momento da Infinidade e do Absoluto? Resta-nos a tarefa de compreender o sentido desse procedimento de ajuste como forma social de mensuração. Ora, se medir é também seguir uma regra, somos surpreendidos pelo fato de que a regra responsável pela constituição do valor das mercadorias se configura unicamente no final de cada etapa do processo produtivo. O resultado da mensuração afeta a estabilização de seu metro. Mas que metro pode vir a ser um trabalho social abstrato? Uma ilusão necessária de equalização que se desenha na base duma relação objetiva de exclusão e de poder. E tal exclusão se torna ainda mais feroz quando a troca, em vez de relacionar dois produtores, põe em contato o dinheiro como capital e a mercadoria força de trabalho, pois esse conúbio de duas mercadorias tratando de se igualar percorre um processo mais complexo de corte do desigual, na medida em que a igualdade da troca se assenta nas desigualdades necessárias para a constituição de um excedente econômico.

Obviamente essas observações elementares são insuficientes para a inteligibilidade do capitalismo contemporâneo, nem se poderia esperar que o fetichismo da mercadoria, cuja articulação é feita no modo de produção simples de mercadoria, se manifestasse como tal no sistema completo. O próprio Marx nos ensina que ele se dá no modo pelo qual o trabalho produz o salário, o capital, o lucro, e a terra, a renda. E para os dias de hoje ainda seria preciso completar e sofisticar nossa análise e examinar como pode funcionar esse fetichismo quando a produção se faz negando um dos pressupostos do modo de produção simples de mercadoria. Atualmente não é todo mundo que tem acesso às tecnologias de ponta, de sorte que se reduz a vicariedade dos produtores efetivos. Mas a breve análise que acabamos de fazer já nos basta para mostrar como relações sociais podem se armar na base de ilusões necessárias. E, se as relações capitalistas de produção são atravessadas por um erro metafísico, torna-se impossível capturar seu sentido exclusivamente do ponto de vista científico, sem que se faça desde logo a crítica da positividade das relações capitalistas contemporâneas. No entanto, se essa positividade se aliena em virtude de associações entre indivíduos que julgam reiteradamente de forma incorreta, essa crítica, do ponto de vista teórico, só pode ser feita por uma dialética transcendental: uma doutrina crítica dos erros sistemáticos, a partir dos quais se armam certas formas de sociabilidade. Erros sistemáticos sob a aparência de acertos, porque cada acerto se faz por um processo violento subjacente.

Haveria outras formas de fetichismo além daquele das mercadorias? Tudo parece indicar que também o Estado, como um sistema jurídico existente e ao mesmo tempo normativo, que julga os indivíduos do ponto de vista abstrato do homem equânime e racionável (“from the point of view of the fair and reasonable man”, como dizem os juristas ingleses), também constitui uma ilusão dessa espécie. Igualmente isso parece acontecer com a ideia de um sujeito livre e autônomo, vale dizer, capaz de julgar a si mesmo a partir de normas que ele próprio se impõe. Mas estas são apenas sugestões, pistas a serem perseguidas em trabalhos mais compenetrados. Não estou aqui para lhes apresentar resultados de investigações cuidadosamente meditadas, mas tão-só para estimulá-los a retomar certas teses do passado que parecem ter sido superadas com a derrocada do marxismo.

Sugerida a possibilidade de uma dialética transcendental, cabe-nos então examinar a viabilidade de uma crítica ao sistema capitalista que, desarticulando a positividade das relações sociais pelas quais ele vem a ser travado, logre ainda estabelecer parâmetros para que essas relações possam ser julgadas do ponto de vista da justiça. Se tomássemos o homem como animal racional, no sentido clássico da palavra, isto é, dotado de uma capacidade, a razão, de chegar aos últimos fins, vale dizer, ao incondicionado, e daí derivar o que devemos e o que não devemos fazer, então a tarefa que nos impõe a irracionalidade do sistema capitalista consistiria em suprimir de cabo a rabo o fetichismo da mercadoria, sob qualquer forma em que ele se apresente. No seu lugar deveria ser instalada uma engenharia social inteiramente transparente em que as necessidades últimas dos homens devessem ser satisfeitas. Mas que razão hoje em dia nos parece capaz de determinar inquestionavelmente o fim último do homem neste mundo? Que razão poderia, sem se expor ao ridículo, proclamar o fim da história, o fechamento de um ciclo civilizatório, que começasse na Idade da Pedra e terminasse na crise global do capitalismo? A experiência dos dois regimes totalitários, o nazismo e o stalinismo, que atravessam este infeliz século XX, nos mostra que as políticas que se pretenderam integralmente racionais resultaram numa violência inédita e numa completa subordinação das liberdades individuais a um partido, o único detentor de qualquer racionalidade. Sob esse aspecto, o pensamento político liberal e radical — John Rawls é o campeão dessa tendência — teve o mérito de tomar como ponto de partida o fato de que hoje em dia várias concepções racionais de sociedade competem entre si, de sorte que qualquer proposta moral e política precisa articular-se tendo em vista esse fato. O princípio da tolerância está na base da análise de uma política democrática.

Para evitar que a multiplicidade das razões conduza ao irracionalismo Rawls distingue, de um lado, o homem racional (rational), tal como é pensado pelas teorias da escolha racional, que concebem o agente social como um ser capaz de justificar individualmente seus fins e os meios necessários para obtê-los; de outro, o homem racionável (reasonable), dotado de uma sensibilidade moral, que o leva a comprometer-se com uma cooperação social equitativa, vale dizer, submetida ao princípio de justiça como equidade (John Rawls, Political liberalism, pp. 48 ss.). Dado esse princípio, ele requer que a sociedade seja bem ordenada, vale dizer: 1) que todos os seus membros conheçam e aceitem os mesmos princípios de justiça; 2) que sua estrutura básica, isto é, suas principais instituições políticas e sociais, seja publicamente conhecida; 3) que os cidadãos tenham um sentido normal e efetivo de justiça que os leve a endossar essas instituições principais (idem, p. 35). Ora, se uma dialética transcendental nos mostra tanto a possibilidade como a realidade de instituições que repousam sobre ilusões necessárias, então 
essas instituições não podem pertencer a uma sociedade bem ordenada e não podem ser julgadas justas. Estaríamos fadados a condenar definitivamente o mercado capitalista e voltar ao ideal comunista que prega o fim de qualquer produção sob a forma mercantil?

Por outro lado, todavia, principalmente do ponto de vista da racionabilidade, parece-me evidente que não existem hoje meios de criar riqueza social totalmente desvinculados de uma forma ou outra de mercado. Nada impede Robert Kurtz de anunciar, em altos brados, a crise do modo de produção de mercadorias. Nem ele nem ninguém foi até agora capaz de nos dizer como um futuro modo de produção se organizará para evitar a violência da competição capitalista e o estigma do mercado, sem cair na regulamentação autoritária, e no fundo ineficaz, do sistema produtivo. Qualquer projeto de produção cientificamente planejada, que fosse capaz de ajustar oferta e demanda na base de um cálculo racional prévio, foi irremediavelmente refutado pelos fatos. Isso, porém, nos obrigaria a nos entregarmos de braços abertos às irracionalidades do mercado e ao fetichismo da mercadoria?

Se para produzir um excedente econômico for preciso, como deve acontecer numa sociedade justa e bem ordenada, que a desigualdade somente seja admitida se esse excedente beneficiar em maior grau aqueles que se situam na base da escala das desigualdades sociais, então essa forma de produzir deve estar associada a um sistema de distribuição que beneficie precisamente aqueles que forem prejudicados pela competição capitalista.

Produção injusta para que se possa ter uma justa distribuição? Não se estaria recaindo naquela proposta, de triste memória, de que se precisa fazer crescer o bolo para em seguida distribuí-lo? Se nos lembrarmos, porém, dos ensinamentos dos economistas em geral e do próprio Marx de que produção, distribuição, troca e consumo fazem parte de um mesmo silogismo, ou, deixando de lado essa linguagem hegeliana, formam uma mesma trama de determinações recíprocas, a dificuldade pode ser formulada da seguinte maneira: como é possível armar um sistema de produção, da produção em sentido estrito ao consumo, que seja justo e racionável?

Retomemos a questão do fetichismo da mercadoria. Na nossa interpretação ele provém do erro, comum na metafísica clássica, de atribuir ao real propriedades que convêm ao objeto posto como padrão de medida. Desse modo, a metafísica, por exemplo, se engana ao afirmar que existem mônadas, objetos simples, meramente porque todo padrão de uma regra, de um conceito, é simples. No caso da produção mercantil, o padrão do trabalho abstrato, vale dizer, o ideal de uma média da produtividade social, firma-se como aquele limite na vizinhança do qual giram de fato os trabalhos individuais para ganhar estatuto coletivo. Ora, existem várias práticas nas sociedades contemporâneas que regulam o mercado de um ponto de vista político. Uma delas é o salário mínimo assegurando aos trabalhadores o acesso a uma cesta básica de sobrevivência. Qual é o mínimo salário justo?

Segundo Rawls, é possível conviver com a desigualdade de salários desde que todo acréscimo na massa salarial beneficie mais aqueles que estiverem na base dessa escala. Isso na verdade tem acontecido em algumas sociedades contemporâneas, mas mesmo nos Estados Unidos e na Europa essa política atinge as minorias, sejam elas étnicas, religiosas ou de idade, discrepância que se agiganta entre os países do centro e da periferia do sistema como um todo. De um ponto de vista macroeconômico ainda vale aquela observação de Marx de que o capitalismo gera simultaneamente a maior riqueza e a maior pobreza.

O que nos importa, porém, do ponto de vista da justiça e da racionabilidade, é que já se conhecem mecanismos de intervenção política que podem tornar justos os sistemas de remuneração salarial. Mas são meros conhecimentos que não se assentam em instituições dotadas de relativa transparência e força suficiente para implementá-los. É nesse nível institucional, creio eu, que a questão precisa ser trabalhada. Como em outros domínios das ciências, há conhecimentos suficientes para que muitas injustiças vigentes sejam resolvidas, mas falta poder institucional para enfrentá-las de fato. Ora, os instrumentos que nos oferecem as ciências econômicas e a crítica filosófica da alienação bastam para desenhar instituições compensatórias que, sem pretender ser inteiramente transparentes, cuidem para que o todo tenda a ser justo e racionável. Carecemos de instituições capazes de intervir na política econômica mundial. E, como desde logo se descarta a ideia de que se tenha uma única política correta, justa e racionável, essas instituições só podem ser representativas, vale dizer, permeáveis à diversidade dos interesses e da luta pelo poder. Noutras palavras, para que se conviva com as alienações da produção mercantil, para que seus efeitos sejam cada vez mais circunscritos e podados, é preciso aprofundar o sistema político representativo, em escala regional e mundial, a fim de que ele democratize as decisões de política econômica. Como já disse outras vezes, em vez do Palácio de Inverno, o assalto deve agora ser dirigido ao Banco Central.

Pode-se imaginar por que transformações deve passar o regime capitalista mundial para comportar essas novas formas de representação. Mas será ele ainda capitalismo? Provavelmente não. Sobretudo porque um sistema justo de produção, se não implica uma política de pleno emprego, requer ao menos políticas compensatórias, de tal sorte que todos aqueles que foram separados de seus meios de produção possam se beneficiar de um plano de justiça social e levar uma vida digna e socialmente produtiva. Para que as desigualdades provocadas pelo mercado de trabalho venham a ser consideradas justas é preciso que o produto social resultante compense aqueles que forem os mais prejudicados no início do processo de produção. Ora, o capital teve o mérito e o demérito de separar o trabalhador, hoje assalariado, de seus instrumentos de trabalho. Se isso permitiu a total subversão da própria atividade do trabalho, assegurando-lhe um aumento tão extraordinário de produtividade que já está em nosso horizonte uma drástica diminuição da jornada de trabalho, não é por isso que convém olvidar o drama daqueles que, sem emprego, se privam dos meios de subsistência. Uma sociedade contemporânea justa implica uma política de distribuição equitativa do produto social. E esse critério não deve ser posto como ideia reguladora de nossa história, mas deve ajuizar cada ato efetivo de nossas políticas cotidianas.

Seria muito interessante estudar mais amplamente as instituições necessárias para que se tenham sociedades justas e racionáveis. Mas aqui também esbarramos com os limites de nosso tempo. E, para não fugir inteiramente do assunto deste seminário, convém voltar à questão da crise da racionalidade. Para que se possa aplicar o critério rawlsiano da justiça equitativa é preciso separar racional de racionável. É racional que o religioso fundamentalista, cuja maior preocupação é salvar sua alma e sopesar os meios necessários para lograr tal fim, arquitete e cumpra atos de terrorismo, desde que se julgue irremediável e injustamente excluído duma sociedade. Mas é inteiramente irracionável que tome esse seu julgamento como o único possível e não participe da discussão e da prática democráticas a respeito dos fins últimos da sociedade.

Vejamos, porém, no que consiste esse seu juízo de racionalidade. O outro — que para levarmos o caso a seu limite também é terrorista — nega-lhe as razões de sua conduta assim como os caminhos de sua salvação. Reconhecido o abismo entre eles, a violência é inevitável. Mas a guerra tem lógica. Cabe avaliar o adversário do ponto de vista de sua força bruta, assim como daquele de sua astúcia. E, como argumenta Hobbes, esta é capaz de suplantar qualquer violência cega do adversário. O reconhecimento desse fato, entretanto, não nos leva para o lado do contrato social, porque uma interssubjetividade já foi tecida pelo próprio reconhecimento, a humanidade já está presente até mesmo nas práticas de desencontro. Sendo este um juízo e não apenas uma opinião, pode levar em conta os resultados da prática avaliativa. Quando luta cegamente e sem pensar já está reconhecendo o outro como ser humano capaz de avaliar e de julgar. Portanto, como um membro da humanidade capaz de persuasão, de sorte que a violência nega o que sua prática já está reafirmando. Esse reconhecimento não se socorre das regras mais gerais do discurso nem apela para uma pragmática transcendental, mas simplesmente faz parte de sua prática de conflito. E nela é possível que alguém venha simplesmente a perguntar: “O que eu estou fazendo?”, “O que ele está fazendo?”, e desse modo essa mesma prática muda de configuração, na medida em que se abre para uma investigação de seu sentido. Neste ponto preciso, creio eu, tomo distância dos neofrankfurtianos, que, em vez de entranhar os limites transcendentais numa prática significativa, os lançam para regras de tais práticas, como se entre elas e as regras houvesse apenas uma diferença de tematização, quando me parece que é toda a perspectivação do ato significativo que se altera, quando se passa duma prática simbólica para a análise de seu sentido. As regras só aparecem quando dentro dessas práticas elementares perguntamos por seus respectivos significados.

Esse atalho, assim o penso, nos foi aberto por Wittgenstein. Não nos obriga a essa distinção lógica entre o racional e o racionável, porquanto para que se estabeleça qualquer jogo de linguagem, em última instância, qualquer sistema simbólico que firme a distinção entre o correto e o incorreto, é necessário que se tomem certos fatos do mundo como certos e inquestionáveis, que qualquer homem racionável há de reconhecer. Noutras palavras, racional e racionável se determinam reciprocamente e se instalam ao mesmo tempo. Tudo o que é indubitável para que funcione um jogo de linguagem, no contexto de uma determinada sociedade, pode ser formulado em proposições autenticamente verdadeiras, que não são atravessadas pela bipolaridade do correto e do incorreto. Mas desde que essas proposições do jogo de linguagem passem a ser vistas a partir da pergunta a respeito de seu significado. E sempre estamos praticando um determinado sistema simbólico. Tão logo perguntamos o que as proposições desse sistema significam, somos obrigados a reconhecer certos fatos que todo homem racionável admite. E dentre esses fatos se encontra aquele que descrevemos ao dizer que os homens, mesmo quando erram, estão participando do universo do entendimento possível. E se a prática entre os adversários já os situa neste mundo é tanto racionável como racional pedir-lhes que atentem para o significado do que estão fazendo. Desse modo, entre eles se abre o espaço da persuasão, não porque este está travado por regras do discurso, mas porque o que fazem já é significativo, desde que a pergunta pelo significado seja feita. Tudo se passa como se na mesma figura em vez de uma lebre víssemos um pato. Aprofundar esse espaço lógico da persuasão e da humanidade, indagar pelo sentido de nossas ações ao mesmo tempo que nos encastoamos em instituições justas e representativas, é aprofundar a democracia. Não se trata de criar instituições sociais a partir desse fundamento consensual. A ideia de humanidade não funda nada, e cada sistema simbólico recorta e cria um espaço lógico, que de imediato se contrapõe a outro. Mas o importante é salientar essa dialética do consenso e do dissenso, de tal modo que este reconheça sempre a possibilidade do primeiro e, dessa maneira, crie uma barreira contra a violência bruta, ao mesmo tempo que abre o horizonte da negociação política. E como essa política necessariamente deve aumentar a visibilidade dos mecanismos sociais de produção, distribuição e consumo da riqueza, nessa sondagem dos fundamentos a democracia passa a operar além dos limites tradicionais do jogo político para se pôr como democracia social.

 

 

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