1987

Lou Andreas Salomé: a paixão viva

por Luzilá Gonçalves Ferreira

Resumo

Lou Andreas Salomé viveu a paixão com paixão. Talvez por isso tenha provocado tantas paixões nos seres que encontrou em seu caminho: Rilke, Nietzsche, Paul Rée, Tausk e, parece, até mesmo Wagner.

Duas razões tornam difícil conhecer mais profundamente Lou Salomé. A primeira é que grande parte de sua obra tem suas edições esgotadas e poucas reedições. A segunda: Lou destruiu grande parte de sua correspondência por achar que sua vida particular só a ela interessava e só a ela pertencia.

Muitos de seus biógrafos a apresentam como uma grande devoradora de homens ou uma aproveitadora que viveu à sombra de grandes homens para se fazer brilhar. Porém, intrépida e ousada, Lou se encontra pelo menos um século à frente da maioria das mulheres do seu tempo. Sua paixão pela vida transparecia em seu próprio corpo. Corpo que, para ela, era o meio mais concreto e imediato de inserção no mundo, o campo do primeiro autoencontro. E o primeiro dever para com este corpo é o de amor. O cuidado com o corpo é tão importante como o cuidado com o espírito.

Lou Salomé manteve uma relação de cumplicidade com a natureza. O mundo exterior que penetra o mundo interior. Para a autora, quando nos apaixonamos, quando amamos, o ser amado nos aparece como inserido na natureza. Na época de seu relacionamento com Rilke, seu grande amor, Lou escreve num ensaio: “O ato sexual é o meio pelo qual a vida nos fala, como se o amante não fosse apenas ele mesmo, mas também a folha que treme sobre a árvore, o raio que cintila sobre a água”. Rilke a fez acreditar que a unidade perdida do corpo e da alma, do eu e do mundo, motivo de sua busca incessante pela vida afora, podia ser resgatada e reencontrada.

Quando escreve sobre o Erotismo traz as evidentes marcas da embriaguez física e espiritual que estaria vivendo com Rilke mas nos lembra que, “no êxtase amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos, em última análise, remetidos a nós mesmos”. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação e criação. E o amor um elemento de produção: “somos a cada instante outros, encontramos no outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso, até — o que dá à relação erótica sua riqueza”.

Amar a vida, amá-la mesmo quando chega ao fim. A velhice vista como uma volta à paz inicial, o retorno do indivíduo a um estado de não divisão, de fusão primitiva do eu para consigo mesmo. O corpo se acalma quando relativiza, na velhice, a distância entre corpo e alma. Para Lou Andreas-Salomé é preciso amar a vida em todas as suas fases. Amar até mesmo a morte.


Lou Salomé: uma prática de paixão; alguém que viveu a paixão com paixão, e talvez por isso mesmo provocou, até uma idade avançada, o nascimento da paixão nos seres que encontrou em seu caminho: Rilke, Nietzsche, Paul Rée, Tausk e, ao que parece, até mesmo Wagner sucumbiram ao seu encanto e à alegria de viver que transpirava em cada um de seus gestos — e o próprio Freud não parece ter sido indiferente à graça da discípula que ele qualificou de “raio de sol”.

A paixão de Lou pela vida transparecia em seu próprio físico. Freud lhe escreveu um dia: “Você tem um olhar como se fosse Natal”. E a escritora Helena Klinkberg (citada por Peters): “O sol se levantava quando Lou entrava numa sala”. Era um ser luminoso, transparente e lúcido, daquela lucidez talvez de que fala João Cabral de Melo Neto a respeito de Monsieur Teste: “uma lucidez que tudo via, como se à luz ou de dia”. Um ser humano para quem a felicidade é condição natural e destino do homem: “dentro da felicidade eu estou em casa”. E ainda: “A única perfeição é a alegria”. Essa paixão pela vida, ela a transmitia aos outros, fazendo com que as pessoas ao seu contato desenvolvessem e dessem o melhor delas próprias. O que fez alguém escrever: “Quando Lou se interessa apaixonadamente por um homem, nove meses depois este homem dá à luz um livro”. Um interesse pelo outro que o leva a crescer e produzir — mesmo quando esse crescimento e essa produção implicam o sofrimento.

Pois Lou Andreas-Salomé conseguiu realizar, em seus 76 anos de vida, o que nós todos gostaríamos e deveríamos fazer sempre — e não o fazemos por descaso, indolência, medo: tornar a vida o exercício apaixonado de uma busca. Sua exploração em todos os possíveis. Isto que requer a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida, como o dizia Rainer Maria Rilke a propósito de Rodin, “está nas pequenas coisas como nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso”. Antes mesmo do seu encontro com Rilke, Louise von Salomé já intuía essa verdade: desde muito cedo encontramos nela um grande apetite de aprender e de amar — e o objeto de sua atenção podia ser a psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor, de um esquilo na floresta ou de um corpo amado.

Porém é difícil falar de Lou por duas razões. Primeiro: grande parte de sua obra tem suas edições esgotadas e a pessoa a quem Lou entregou o destino de seus livros tem sido por demais parcimoniosa, reeditando ou editando muito lentamente. Por exemplo, o romance Fenitchka, escrito na juventude de Lou, só foi reeditado em alemão em 1982 e traduzido ao francês no ano passado; os textos que formam O amor do narcisismo, escritos entre 1913 e 1933, só foram publicados na Alemanha em 1977 e em 1980 na França. Textos fundamentais como “Eros” e “Meu agradecimento a Freud” só estão à disposição dos leitores desde 1982. E ainda há, inéditos, duas peças de teatro, o “Diário da Rússia” (escrito em 1900) e o romance Jutta, de 1921.

A segunda dificuldade: Lou destruiu grande parte de sua correspondência, às vezes em comum acordo com os amigos a quem escrevia, como é o caso de Rilke. O que se explica em parte: Lou achava que sua vida particular, no que tinha de mais íntimo, só a ela interessava e só a ela pertencia. O que é uma pena: quando a gente lê o que sobrou dessa imensa correspondência que Lou manteve com Rilke, durante mais de trinta anos, pode imaginar o que a humanidade perdeu. Acrescente–se a isso o fato de que são raros os seus biógrafos imparciais: eles a apresentam, em geral, seja como uma grande devoradora de homens, um Dom Juan de saias — ou então como uma aproveitadora, uma mulher que viveu à sombra de grandes homens, como Rilke, Nietzsche e Freud, para se fazer brilhar.

Lou Andreas-Salomé: uma mulher feita de qualidades às vezes contraditórias — que de contradições nós todos somos feitos. Deixemos que Rainer Maria Rilke fale por nós, num poema a ela dedicado:

Tu eras para mim a mais maternal das mulheres,

eras um amigo como são os homens,

ao olhar, eras uma mulher

e eras no mais das vezes ainda uma criança.

Eras a coisa mais terna que encontrei,

eras a coisa mais dura com a qual lutei.

Eras o cimo que me tinha abençoado —

e te tornaste o abismo que me devorou.

Uma mulher feita de ingenuidade e modéstia, convivendo com a intrepidez e a ousadia: “Ousa tudo, não tenhas necessidade de nada”, ela escreve a si própria; “A vida te dará poucos presentes, acredita: se queres uma vida, é preciso que a roubes”. Do ponto de vista intelectual, no modo como viveu sua vida, Lou se encontra pelo menos um século à frente da maioria das mulheres do seu tempo — e do nosso também, aliás. Sempre o desejo de ir além, de ultrapassar as fronteiras do conhecido: no estudo como no amor. Um contemporâneo de Lou, o poeta austríaco Hugo von Hoffmanstal, escreveu estas palavras, que ela teria certamente subscrito:

Toda existência me aparecia, numa embriaguez

contínua, como uma grande unidade: universo

espiritual e corporal não pareciam constituir uma

contradição, como também não a cortesia e a

bestialidade, a arte e a incultura, a solidão e a

sociedade: em toda parte eu estava dentro ou então

tinha o pressentimento de que tudo era símbolo.

Dessa citação, dois adjetivos devem ser retidos: as expressões espiritual e corporal. Falando do povo russo, Lou assinala como um dos seus traços marcantes a ausência de dualismo no que concerne a esses dois polos. E explica: “A esperança expressa no sonho e na realidade vivida parece menos nítida, as coisas ‘celestes’ não são ainda sentidas como abstratas nem as coisas ‘terrestres’ como marcadas pelo pecado”. Alma e corpo são, pois, elementos indissociáveis e o ser humano, fusão desses elementos, tem o dever de desenvolver seu exercício de modo aguçado.

O corpo. Um campo metafórico — ou metonímico, se o quiserem. Nosso meio mais concreto e imediato de inserção no mundo; meio de falar ao outro, de ser por ele aceito: e essa fala remete a uma realidade mais complexa. Pois o corpo é, antes de tudo, relação de mim para comigo mesmo, o campo de meu primeiro autoencontro. Um solo inicial, lugar onde se realiza o choque entre o físico e o psíquico. Lou: “A alegria contida no prazer fisiológico só pode abrir bem aberta a porta às intrusões da alma”.

Meu primeiro dever para com este corpo, que recebi como uma graça, é o de amor. Para Lou, Narciso não é aquela figura que perdeu a si próprio, por excesso de amor para consigo. O narcisismo é algo necessário, condição essencial ao meu desempenho no mundo: aliás, Lou lembra que Narciso, o personagem da lenda, não viu a si próprio num espelho, mas nas águas de um lago: isto é, teve sua imagem incorporada à natureza. O narcisismo é aquele estado em que o mundo e nós não estamos indissociados: é o estado próprio da criança em seus primeiros anos de vida. Do narcisismo, diz Lou: “Nós repousamos, por assim dizer, como outrora, no ventre da mãe, quase sem sermos separados do que nos cerca, englobando-o em nós e ao mesmo tempo incorporados a ele”.

A dissociação entre o mundo exterior e o mundo interior não existia no começo de nossas vidas: formávamos então uma unidade. A criança, durante muito tempo, não se sente um ser dividido e se insere no contexto exterior sem dúvidas nem questionamentos: conversa com as coisas e as pessoas ao seu redor, como prolongamentos dela própria. Ela brinca, e o jogo é algo sério, faz parte da realidade. Só mais tarde o jogo terá o aspecto de simulação, de momento de exceção. A atividade da imaginação será então contida pela ação da consciência, o sonho e a ação vão se alternar, mas não se fundirão mais, como antes. Progressivamente a integração da criança com as coisas e o sentimento de ser um consigo mesma foram rompidos. E a vida inteira deverá ser para o indivíduo a busca daquela reintegração inicial, levado pelo que Lou chamou de “a nostalgia da unidade primitiva”.

Corpo e espírito deveriam, assim, constituir um todo; o corpo é mais que um depositário, um invólucro, é metade do meu Eu. O cuidado com este corpo é, deste modo, tão importante como o cuidado com o espírito: as alegrias que um corpo pode nos dar são ou deveriam ser desfrutadas em alto grau pelo espírito. E, entre os meios por excelência que tem o corpo de tomar consciência de si mesmo, estão o contato com a natureza e o amor.

Lou Salomé manteve sempre com a natureza uma relação de cumplicidade. Mais do que contribuir para a saúde do corpo, a natureza lhe dá saúde mental: dá-lhe respostas de modo harmonioso, fazendo com que se inter-relacionem, de modo harmonioso, corpo e espírito. Cada vez que Lou se apaixona ela arrasta consigo o homem amado a se instalar em alguma casa de campo ou à beira de uma floresta: onde se pode andar descalço sobre a relva, respirar ar puro e colher flores e frutas selvagens: regozijo para os sentidos e para a alma. Numa carta a Freud, a propósito da morte de Rilke, Lou escreve:

Frequentemente tive uma relação bastante especial com a natureza (daí meu forte impulso de viver apenas no campo), uma relação tal que, depois de viver em cidades, ou de viajar, ou após as relações sociais, ou de estar com amigos, sentia que precisava voltar ao velho ambiente da natureza, quase como se eu precisasse disso para analisar para mim mesma o que experimentara nesse intervalo. Então, era quase como se a natureza estivesse dizendo-me, através de suas árvores e prados e nuvens, o que ela própria experimentara — o vasto, simples e invariável destino das estações que por ela passaram — e como se meus vários interesses humanos, em comparação com isso, tivessem pouca importância, apesar de seus múltiplos aspectos. E, agora, é quase como se Rainer estivesse debaixo de minhas árvores, enquanto elas experimentam o outono, o verão, o inverno ou a primavera. Num sentido diferente, ele também se tornou “maduro” com elas, reduzido a umas poucas linhas iniciais. Mas é também, da mesma forma, imutavelmente real e maduro, não afetado pelas minhas subjetividades, e ainda assim simboliza completamente nossas emoções internas, exatamente como nossas impressões da natureza exterior são sempre consideradas por nós como simbolizando algo dentro de nós.

A natureza é, assim, muito mais do que um cenário: é fonte de símbolos, agente de um diálogo, mundo exterior que em nós penetra.

Na correspondência com os amigos, com Rilke, Lou se mostra atenta à chegada da primavera, ao amarelar das folhas de outono, a uma alimentação simples, a um remédio caseiro à base de plantas; seu quarto de trabalho em Göttigen se tornava verde, escrevia ela, pela sombra de uma enorme árvore cujas folhas o invadiam, dando-lhe a impressão de trabalhar em plena natureza. De sua janela ela avistava os campos, e, quando a especulação imobiliária começou a devastar as colinas que cercavam a cidade, Lou faz parte de sua tristeza e de sua impotência aos amigos. E escreve em seus “Cadernos íntimos dos últimos anos”, recém-editado:

Outrora, quando chegava o fim do outono, uma claridade progressiva acompanhava o desaparecimento das folhagens e este espetáculo me fazia uma profunda impressão: apesar da estação cada vez mais sombria, apesar da perda das folhas protetoras e hospitaleiras, assistia-se a um acontecimento irresistível de liberdade e claridade. E quando aquilo se acompanhava de um vento de tempestade, que em uma noite arrancava as últimas folhas ainda presas às árvores, este acontecimento parecia mais que fabuloso: dir-se-ia a anunciação do mundo. Desta vez, tudo aconteceu de outro modo: depois das semanas de novembro, quase mornas e de tímidas geadas noturnas, o grande terreno que se estende diante do jardim, e que ficava escondido pelas árvores, se descobriu pouco a pouco aos nossos olhares. Durante o verão, a vista se detinha em campos ondulantes, de modo que a gente esquecia a cidade que dominava, do alto, este terreno. É verdade que, há muito tempo, as coisas haviam mudado: os loteamentos de pós-guerra tinham modificado perspectivas de campos semeados de pequenas cabanas, e nosso horizonte era um bairro da cidade — mas a paisagem ao redor do jardim afogava tudo isso, quase a negava por seu modo de dar a palavra ao céu, acima e além dos montes.

Mas agora constroem-se apressadamente quase oitenta casas e algumas ruas, até a beira da cerca viva do jardim, e a claridade do outono desvenda esta metamorfose […]

Se soubéssemos, o que não é previsível, que esta urbanização apressada, no meio desta nossa bela paisagem isolada, vai-se revelar judiciosa e realmente útil, nós a olharíamos com um olho favorável: sobretudo que, nesses 32 anos que vivemos aqui, nossa esplêndida solidão permaneceu intacta mais tempo do que esperávamos. Mas nós somos feitos de tal modo que uma outra voz fala em nós: aquela que defende uma propriedade, sua situação protegida e sua vista desimpedida, como se sua perda nos privasse de uma parte de nós mesmos. Não se deve criticar muito esta atitude, porque este elemento de egoísmo é indispensável a cada um para se afirmar na vida.

A natureza nos dá a correspondência de que necessitamos na busca da primitiva unidade perdida entre o corporal e o espiritual. Sua visão faz surgir em nós aquele gozo desinteressado que se assemelha à contemplação da obra de arte ou o prazer de amar: desbloqueia em nós, a partir da fruição dos sentidos, o prazer de olhar, de aspirar, de tocar, a atividade produtiva da imaginação: quer a sintamos como objeto de contemplação, quer busquemos nela refúgio, abrigo, como uma espécie de volta ao seio materno, a natureza possibilita um diálogo interno do eu consigo mesmo ou do eu com um objeto, na busca da harmonia, da integração.

E quando nos apaixonamos, quando amamos, o ser amado nos aparece como inserido na natureza. Na época de seu relacionamento amoroso com Rilke, Lou escreve, num ensaio sobre o amor: “O ato sexual é o meio pelo qual a vida nos fala, como se o amante não fosse apenas ele mesmo, mas também a folha que treme sobre a árvore, o raio que cintila sobre a água — mágico da metamorfose de todas as coisas, uma imagem explodida na imensidão do Todo, de tal modo que nos sentimos em casa onde estivermos”. Na mesma época, Rilke escreve, num poema a Lou:

Então tua carta me trouxe a doce bênção,

eu soube que o longínquo não existia:

Em tudo que é belo tu vens ao meu encontro,

Tu minha brisa de primavera. Tu minha chuva de verão,

Tu minha noite de junho com mil caminhos,

nos quais nenhum iniciado me precedeu:

Estou em ti.

Cito de propósito esses versos de Rilke dirigidos a Lou. Pois, ao que nos deixam supor a correspondência, alguns traços biográficos e sobretudo um longo texto que Lou escreveu a Rilke, após a sua morte, o poeta das “Elegias de Duino” foi provavelmente o único grande amor de Lou Salomé. Foi o primeiro com quem manteve uma relação íntima — e, pasmem, aos 30 anos de idade, quando Lou já estava “casada” com o professor Andreas, havia anos. Rilke foi o primeiro homem surgido no caminho de Lou que parecia possuir aquela indissociação entre o corpo e o espírito que ela não havia encontrado e, parece, nunca encontrou nos demais homens. Num belo texto incluído em sua autobiografia, e que foi retomado por Ernest Pffeiffer, que o editou, nos Cadernos íntimos dos últimos anos, Lou assim fala a Rilke:

Se fui tua mulher durante anos, é porque foste para mim a primeira realidade em que o corpo e o homem são indiscerníveis, fato incontestável da própria vida. Eu teria podido te dizer, palavra por palavra, o que tu me disseste ao confessar teu amor: “Tu só és real. Foi assim que nós tornamos marido e mulher, antes mesmo de nos tornarmos amigos, e esta amizade não foi o fruto de uma escolha, mas de núpcias clandestinas. Não eram duas metades que se buscavam em nós: nossa unidade surpresa se reconhecia, trêmula, numa unidade insondável. Assim, éramos irmão e irmã — mas como num passado distante, antes que o incesto fosse sacrilégio”.

E um pouco mais adiante ela se pergunta:

E nós dois não tínhamos em comum este murmúrio de inconcebível — vivido até o mais profundo de nossos corpos — e que trazíamos em nosso sangue — até nos menores instantes, nos instantes mais sagrados de nossa existência?

Rilke representou para Lou o grande amado que a fez acreditar que a unidade perdida do corpo e da alma, do eu e do mundo, motivo de sua busca incessante pela vida afora, podia ser resgatada e reencontrada: como acontece em certos momentos de comunhão entre corpos, aqueles em que, segundo as palavras de Lou, “nós assistimos de algum modo a um espetáculo dos primeiros tempos das origens — o nascimento pelo qual a vasta matriz universal da fisiologia dá à luz a vida psíquica em todo o seu esplendor”.

Lou escreveu vários ensaios sobre o Erotismo. O primeiro deles data de sua ligação com Rilke. Intitulado Reflexões sobre o problema do amor, traz as evidentes marcas da embriaguez física e espiritual que sua autora estava vivendo. Aqui ela assinala, em páginas de um admirável lirismo, a capacidade que tem a paixão amorosa de nos abrir o caminho ao sentimento da totalidade da vida e sua faculdade de nos colocar em estado criativo. O ato amoroso “nos enche a alma inteira […] de ilusões e de idealizações espirituais, forçando-nos ao mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem possibilidade de se esquivar, ao dispensador de uma tal desordem; ao corpo”. E Lou escreve:

Pois, sobretudo, resulta no indivíduo uma espécie de interação ébria e exuberante das mais altas energias criadoras do seu corpo e a exaltação mais alta da alma. Enquanto nossa consciência se interessa vagamente, habitualmente, por nossa vida psíquica, como por um mundo que conhecemos mal e que controlamos ainda pior, que ao que parece forma um com ela, mas com o qual normalmente ela se entende mal — eis que se produz subitamente entre elas uma tal comunhão de enervação que todos os seus desejos, todas as suas aspirações se inflamam ao mesmo tempo.

Por essa exaltação da alma através dos sentidos, por essa impressão que o ato amoroso nos dá de haver ido muito longe, e tocado o indizível, é que ele pode influenciar e favorecer a criação, a “pátria do dizível”, como escreveu Rilke. E Lou: “O mundo da criação e do amor significa: volta ao país natal, entrada no paraíso; o da impossibilidade de criar, ou do amor morto, é, ao contrário, um exílio onde os deuses nos abandonam”.

A atividade criadora se apaixona por tudo aquilo que é vida em nós, que é indício do que em nós lateja de mais secreto, e que atinge as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não se apercebia. Pode voltar àquele estado de inocência primeira que possuiu na infância, redescobre a “novidade” das coisas, com o frescor de uma sensação primitiva: o olhar da criança sobre o mundo que descobre maravilhada; o olhar de Adão diante de Eva recém-saída de si. Confrontado com os seus longes, o amado vê a si mesmo, e ao mundo exterior, como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar com a força das plantas na primavera. “Nesta igualdade original do corpo e do espírito e nesta consciência ingênua de um e de outro — uma criança que acredita em tudo que vê, para quem tudo se renovou, que, cheio de uma fé e de uma confiança sem limites, gostaria de gritar sua alegria ao esplendor inverossímil do mundo, e não saberia saudar de melhor modo a razão senão fazendo cabriolas diante dela… como se balbuciasse em sonho, ele tem algo a dizer sobre estes esplendores ocultos que lhe fizeram, ai de nós, esquecer tantas coisas úteis e necessárias.”

O ato amoroso transforma o parceiro num “conto estranho e maravilhoso”. A paixão amorosa é uma porta, diferente de todas as outras portas, “em sua arquitetura ornada de elementos ricos de sentido, em virtude de um simbolismo singular”. É o caminho por excelência que nos leva a nós mesmos. Por ela “nós não somos um mundo de realidade, somos apenas o espaço e o metteur en scène de um mundo onírico, todo-poderoso, irresistível”.

Assim, o amor durará enquanto os amantes forem capazes de oferecer ao outro essa entrega, que dá acesso de modo vital à capacidade de se concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si por causa de outro.

A esta altura, a gente poderia se perguntar — não seria esta uma visão demasiado idealizada do amor? Mas Lou não se deixa embalar incondicionalmente pelo êxtase da paixão: esta grande amorosa foi também, segundo a expressão de Freud, uma “compreendedora”. Neste mesmo ensaio, ela nos lembra que no êxtase amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos, em última análise, remetidos a nós mesmos. A reconciliação que se fará aqui será sobretudo entre o sujeito e ele 
próprio, através do outro, mais do que entre o sujeito e o objeto amado. Num ensaio sobre o erotismo, datado de 1910, e num ensaio posterior, quando Lou já se engajara definitivamente à psicanálise, intitulado Anal e Sexual, ela nos lembra que na união física “a gente não possui um ao outro por meio do corpo, mas apesar do corpo, que, como todo mundo sabe, não se identifica jamais […] completamente com o todo da pessoa, mas aparece sempre como uma parte dela e resiste à dominação mais viva”.

E Lou tem essas palavras estranhas e admiráveis:

Talvez, no momento da maior felicidade amorosa, nós estejamos uma vez mais dentro de uma recordação longínqua, como se estivéssemos dentro de um pedaço de vida que nos foi retirado, como diante de um cadáver amado […] o êxtase instantâneo do ato sexual suprime o outro, e é somente quando os amorosos voltam a si que o parceiro — como um ser de novo um pouco mais distante — se revela a eles como alguém para si, que vive uma vida autônoma.

Assim, mesmo quando alcançamos na união com um corpo amado e desejado aquele “momento esplêndido” de que Lou nos fala, mesmo que o ser amado nos apareça como a única realidade existente, e mesmo que as coisas ao redor de nós percam sua consistência, sejam aqueles “móveis de banal presente” de que falava o querido Mário de Andrade, que o parceiro amado seja para nós, por um instante, um resumo do mundo inteiro, símbolo e metáfora, que deveria assim acalmar nossa nostalgia da totalidade — mesmo assim chegamos a entender que nesses momentos de exceção, breves e fulgurantes parênteses na trajetória de nossas vidas, são aquilo que Lou Salomé chama de “egoísmo erótico”, aquilo que “durante a festa só festeja a si mesmo”. Aqui, contrariamente ao que escreveu Camões, “nunca pode se transformar o amador na coisa amada”.

Na novela Uma longa dissipação, que Lou escreveu na juventude e que só no ano passado foi traduzida para o francês (pela Editions des Femmes), uma mulher — Adine — renuncia, em nome da independência de sua vida pessoal, ao homem amado. E assim escreve:

Ele me beijava, sem se soltar, sem nada ceder a sua impetuosidade, e seus carinhos quase me brutalizavam. Beijava como alguém bebe, e que, duvidando poder aplacar sua sede, ficou meio morto sobre o solo. Beijava-me com a nostalgia, o fervor e a gratidão de um homem que seus beijos o arrancam à morte, no meio de inexprimíveis delícias.

Eu não me mexia, não me defendia. Cedia docemente a seus gostos sem lhes responder. Sentia com uma piedade espantada a explosão desta longa, longa paixão recalcada à força de renúncia e que neste instante se satisfazia como cega. E, enquanto eu cedia a seus beijos insensatos, algo estranho despertava em mim, algo terno e quase maternal — o devotamento de uma mãe que, sorrindo a seu filho que chora, lhe oferece o seio de onde jorra o alimento: […]

Benno me libertou enfim com um gemido, como se acabasse de se ferir. Levantou-se de um salto, trêmulo, e me disse com uma expressão de arrebatamento apaixonado: “Eu te agradeço. Tu, o mais querido de todos os seres, eu te agradeço! Teria morrido sufocado e dilacerado se tu me houvesses repelido!”

Ele não pensou, não sonhou um só instante, que eu não tinha compartilhado sua embriaguez. Fundir-se com o outro numa comunhão dos sentidos é também amor, claro, mas a um certo grau da paixão o amor se torna um egoísmo tão irrefletido que não tem mais nem uma única fibra sensível para o mundo exterior, mesmo que seja o mundo dos sentimentos do ser amado, e que toda dissonância perturbadora se torna impossível, pelo fato mesmo de que a gente não a recebe nem a percebe mais. A paixão amorosa é a última, a extrema solidão.

A união dos corpos, assim considerada, não é a melhor forma de comunhão entre os amantes: em razão mesmo do obstáculo do corpo. Este aparece como um terceiro elemento entre os amantes, um intruso que pode tolher a elaboração imaginativa necessária a todo amor que se quereria criativo. Assim, o afastamento dos corpos pode provocar até mesmo mais amor: pode depurar o amor. Nos Cadernos íntimos dos últimos anos, Lou reflete, aos 76 anos de idade, sobre épocas de seu passado amoroso:

Um fato sempre me comoveu: após minha separação de um parceiro, sua ausência nada retirava ao amor que eu lhe tinha, mas lhe dava uma importância nova, pois ele escapava assim aos exageros deformadores que o amor superpunha à sua individualidade. Ele retomava sua individualidade própria e meu olhar sereno, sem colocar condições nem exigências, tinha por ele um interesse que se chama objetivo e não significa somente uma ausência de amor e de inclinações íntimas, mas uma atenção à realidade que nos cerca e da qual fazemos parte e que buscamos tornar hospitaleiras.

A constatação dessa solidão a que nos remete a paixão não nos deve entretanto entristecer. A fusão inteira do nosso ser com o outro, por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez mais nós mesmos, para poder ser um mundo para o outro. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação: cada vez ela inaugura em nós um ser novo; como um ato de linguagem, cada vez que eu falo a um Tu, é um Eu diferente que fala a um novo Tu: quando digo Eu, já não sou aquela que falava há pouco. A relação erótica é, assim, nela mesma, criação. E o amor um elemento de produção: somos a cada instante outros, encontramos no outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso até — o que dá à relação erótica sua riqueza:

só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas… e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro.

É preciso que a gente seja sempre, um para o outro, duas deliciosas surpresas fecundas. Aquele mundo da fábula de La Fontaine “Os dois pombos”, que aconselha aos amantes: “Amantes, felizes amantes, vocês querem viajar? Que seja pelas margens próximas/ Sejam um para o outro um mundo sempre belo, sempre diverso, sempre novo./ Sejam um todo um para o outro, contem por nada o resto”. E Lou analisa esta necessidade de renovação e da existência do mistério na relação amorosa:

Pois, no seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de “conhecer perfeitamente o outro”: por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de apreender objetivamente este parceiro… É terrível de dizer, mas, no fundo, o amante não está querendo saber “quem é” em realidade seu parceiro. Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem incompreensível… os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um mistério.

Assim, o amor não seria um encontro, mas uma busca. Não quer dizer que chegamos, mas que estamos próximos. Rilke perguntava-se na Primeira elegia de Duino: “Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-los, frementes? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no voo mais do que ela mesma”. E nas cartas a um jovem poeta, em maio de 1904:

Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. […] O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe.

Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola dessa busca. É preciso buscar com amor, com paixão. Amar a vida, amá-la mesmo e sobretudo quando ela chega ao fim, e o espírito e o corpo veem limitados seu campo de ação. Nos Cadernos íntimos dos últimos anos, Lou Andreas-Salomé dá um balanço de sua vida. Em fevereiro de 1934, isto é, três anos antes de morrer, ela escreve:

Distingue-se entre os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre mais sinistro da morte — como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo mortífero.

E um pouco mais adiante:

Sempre não tive a ideia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora. Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência; eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser vivida. Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes sofridos pela nossa carne, nosso espírito […] do mesmo modo que a juventude mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso, por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite que se chegue a uma plenitude mais acabada.

A velhice pode ser, assim, uma volta àquela espécie de paz inicial e retorno do indivíduo a um estado de não divisão, de fusão primitiva do eu para consigo mesmo, o corpo parece se acalmar relativizando-se, desse modo, a distância entre corpo e alma: uma volta certamente ao narcisismo inicial, de integração do Ser para consigo mesmo. Num ensaio de 1901, escrito aos 40 anos e intitulado A velhice e a eternidade, Lou afirmava: “O velho está liberto de todos os seus limites pessoais e escrúpulos mesquinhos. Retirado lentamente da vizinhança imediata dos outros seres vivos, ele se vê, progressivamente, reintroduzido no grande encadeamento universal”.

É preciso amar a vida em todas as suas fases e amar até mesmo a morte. Aqui Eros e Thanatos se dão as mãos — são forças complementares e não contrárias. A morte é a redenção da vida individual, escreve Lou num artigo sobre o misticismo russo. Nossa morte não nos separa dos seres que amamos: ela nos entrega de modo mais completo a eles:

No dia em que eu estiver no meu leito de morte

— Faísca que se apagou —,

Acaricia ainda uma vez meus cabelos

Com tua mão bem-amada.

Antes que devolvam à terra

o que deve voltar à terra,

Pousa sobre minha boca que amaste

Ainda um beijo.

Mas não esqueças: no esquife estrangeiro

eu só repouso em aparência,

Porque em ti minha vida se refugiou

E agora sou toda tua.

[Hino à morte]

A morte desfaz, assim, a distância entre os amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A morte não é uma partida, mas uma volta: um retorno do indivíduo àquela união primitiva com as coisas. Por isso não a devemos temer.

A grande biografia de Lou Salomé ainda não foi escrita. Mas, pelo que dela nos resta, fica uma lição final de amor pela vida, de paixão pela vida, de totalização da vida. Por isso Lou desejou ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas no jardim de sua casa, em Gottingen: para que seu corpo pudesse se incorporar à terra e ser transformado em planta e flor.

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