2007

Medos de ontem e de hoje

por Jean Delumeau

Resumo

O medo foi, durante muito tempo, ou ocultado, ou culpado. Sempre existiu um confusão entre medo e covardia, coragem e temeridade. A história do medo é, assim, também a história de sua culpa nos contextos culturais que valorizavam prioritariamente a coragem militar. No seu Traité des passions, Descartes entende como medo um excesso de covardia.

Já em Virgílio, “o medo é a prova de um nascimento baixo”. Montaigne, no século XVI, e La Bruyère, no século XVII, concordam e atribuem aos humildes a propensão à covardia. Entretanto, com a Revolução Francesa, os pobres adquiriram o direito à coragem.

O medo humano é fundamentalmente o medo da morte. Todos os medos contêm, em graus diferentes, essa apreensão fundamental. Em diversas situações idílicas da morte, ou ela é abolida, ou é transportada a um adormecimento.

O medo sempre acompanhou o homem mas pode mudar segundo os tempos e os lugares, em virtude das ameaças. Durante muito tempo, os principais perigos vinham da natureza: as epidemias, as más colheitas, os incêndios, os tremores de terra, as erupções vulcânicas, os maremotos, etc. Mas, ao longo das épocas, a guerra ocupou um lugar cada vez maior. A partir da invenção das armas de fogo no fim da Idade Média, podemos acompanhar o crescimento e as mudanças dos medos até chegar a multiplicação dos atos terroristas de hoje. O século XX foi o mais criminoso da história se somarmos os “holocaustos” aos horrores da guerra propriamente dita, foi então que o medo atingiu seu ápice.

Alguns medos são viscerais (medo da noite, do mar, etc) e naturais (medo das epidemias, terremotos, maremotos); outros, ao contrário, culturais. É o medo do outro. A humanidade terá, certamente, muito tempo ainda para combater esse medo do outro, forma particular do medo do desconhecido e que está na origem do racismo. O século XX teve a esse respeito uma experiência desastrosa.

O medo é certamente necessário e mal percebemos como a humanidade poderia ter progredido sem ele. Mas ele rapidamente se torna invasivo, escapando do controle, fazendo submergir qualquer espírito crítico e qualquer sentimento de humanidade.

Hoje é sobretudo nas cidades que se tem medo. É aí, por excelência, que o terrorismo se instala, porque os autores dos atentados podem se esconder melhor, jogar cada vez mais com o efeito surpresa, provocando mais e mais vítimas.

A necessidade de segurança é estrutural em nós. Em nossas sociedades afirma-se uma demanda imensa de segurança.

Mas a demanda de segurança é sempre proporcional às situações que a provocam?

É do interesse de todos conter o sentimento de insegurança nos limites do suportável. Mas — reflexão final de caráter antropológico — o medo não desaparecerá da condição humana. Seguramente não podemos viver sem um entorno protetor. No entanto, as sociedades e os indivíduos devem encontrar um equilíbrio entre o arriscado e o seguro, entre a liberdade e a segurança.

De certa maneira, o medo é necessário quando se trata de uma sadia antecipação dos perigos, às vezes bem reais, que nos ameaçam.


O jornal francês Le Monde trouxe como manchete em seu número do dia 2 de janeiro de 2004: “2003 foi o ano de todos os medos”. Assim, compreendo muito bem que vocês tenham desejado me ouvir falar a respeito do tema “medos de ontem e de hoje”. O convite que me fizeram muito me honra e vou tentar corresponder à altura. Mas devo dizer que falarei como historiador, especialista em um período relativamente antigo, enquanto vocês estão sobretudo preocupados com os problemas de hoje. Quero crer, porém, que todas as referências históricas facilitarão a vocês uma abordagem do presente, e que minha fala possa contribuir para uma reflexão sobre o medo a partir da leitura do passado e graças a esclarecimentos distintos, mas convergentes.

Mas, em primeiro lugar, em termos clínicos e fisiológicos, o que é o medo? É uma emoção-choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela consciência de um perigo iminente ou presente. Alerta, o organismo reage por comportamentos somáticos e alterações endócrinas que podem ser muito contrastantes dependendo das pessoas e das circunstâncias: aceleração ou diminuição do ritmo cardíaco, respiração muito rápida ou muito lenta, contração ou dilatação dos vasos sanguíneos, aumento ou diminuição da secreção das glândulas, paralisação ou exteriorização violenta e, no limite, inibição ou, ao contrário, movimentos desconexos e atabalhoados.

Ao mesmo tempo, tanto em relação à manifestação exterior quanto à experiência interior, a emoção do medo libera, assim, uma energia não habitual e a dissemina por todo o organismo. Essa descarga é, em si, uma reação providente de legítima defesa, mas que o indivíduo não usa sempre de modo consciente.

Sendo coletivo, o medo corre o risco de transformar-se em pânico. A França conheceu muitos desses momentos ao longo de sua história: “O Grande Medo” camponês de 1789; a derrota caótica do exército de Napoleão III, em 1870, pelos prussianos, evocada por Zola em La débâcle (1892); o êxodo massivo em junho de 1940. No quadro de Goya intitulado O pânico (Museu do Prado), o surgimento de um gigante cujas mãos golpeiam um céu carregado de nuvens parece justificar o desespero de uma multidão que se dispersa freneticamente em todas as direções.

A psiquiatria distingue “medo” de “angústia”, pois o medo tem um objeto preciso, que podemos enfrentar já que pode ser bem identificado. A angústia, ao contrário, é uma espera dolorosa diante de um perigo tão temeroso que não se consegue “nomeá-lo”. É um sentimento geral de insegurança. Mas medos repetidos podem gerar crises de angústia. Reciprocamente, um temperamento ansioso corre o risco de estar mais sujeito ao medo do que um outro. Como o medo — fundamentalmente reação sadia de alerta, porém suscetível de múltiplas derivações — a angústia é ambivalente. Ela é, ao mesmo tempo, vertigem do vazio e esperança de plenitude. Kierkegaard, em 1844, em Concept d’angoisse, viu nela o símbolo da condição humana, pois não existe liberdade sem risco, e, portanto, sem angústia.

Apesar de seu caráter natural, o medo foi, durante muito tempo, ou ocultado, ou culpado pelo discurso que nossa civilização sustentou a seu respeito. Uma confusão largamente aceita formulava equações entre medo e covardia, coragem e temeridade. A história do medo é, assim, também a história de sua culpa nos contextos culturais que valorizavam prioritariamente a coragem militar. No seu Traité des passions, Descartes entende como medo um excesso de covardia: “a covardia é”, ele escreve, “contrária à coragem, como o medo ou o pavor à ousadia”.

Além disso, a fórmula de Virgílio, “o medo é a prova de um nascimento baixo”[1] teve vida longa. Montaigne, no século XVI, e La Bruyère, no século XVII, atribuem aos humildes, como uma obviedade, a propensão à covardia. O medo era então qualificado como o destino vergonhoso e ordinário — e, portanto, como legitimação da submissão — dos pobres. Estes, com a Revolução Francesa, conquistaram o direito à coragem. Mas o novo discurso ideológico copiou, a seu modo, o discurso antigo, camuflando o medo para exaltar o heroísmo dos humildes. A preocupação com a verdade psicológica teve, assim, dificuldade em abrir seu caminho, mas foi vencendo pouco a pouco. Dos Contes de Maupassant aos Dialogues des carmélites de Bernanos, passando por La débâcle de Zola, a literatura progressivamente deu ao medo seu verdadeiro lugar, enquanto a psiquiatria se debruçou sobre ele, a partir de então, com mais atenção. Jean-Paul Sartre observou com precisão que aquele que não sente medo não é normal; isso não tem nada que ver com a coragem. Passa então a ser banal sondar, por meio de pesquisas, as pessoas sobre o medo ou, ao menos, sobre suas inquietações. Na França, há um centro de pesquisas para o estudo e a observação das condições de vida, o Credoc, que registra regularmente o número de franceses que temem, ao mesmo tempo, quatro tipos de risco: doença grave, acidente em estradas, agressão na rua e acidente nuclear. Em 1982, 14% dos franceses sentiam medo desses itens; em 1996, 29%; em 2003, 39%. Seguramente, aqui se trata mais de preocupação do que de medo. Entretanto, devemos constatar, primeiro, que as pessoas não temem mais confessar suas inquietações e seus medos; segundo, que elas o confessam, razão pela qual nosso sentimento de insegurança tem aumentado.

O medo é fundamentalmente o medo da morte. Todos os medos contêm, em graus diferentes, essa apreensão fundamental; e, portanto, o medo não desaparecerá da condição humana ao longo de nossa peregrinação terrestre. O caráter incontornável desse limite explica o sonho durável, seja o de uma Idade do Ouro situada arbitrariamente num passado distante, seja o de um novo paraíso sobre aTerra, que reencontraria as condições encantadoras atribuídas a essa suposta Idade do Ouro. Tanto em uma quanto em outra dessas situações idílicas da morte, ou ela é abolida, ou é transportada a um apaziguador adormecimento. Nesses paraísos terrestres o medo não cabe. Essas evasões da imaginação representaram um papel importante na nossa civilização, quer se trate da nostalgia do Jardim do Éden, quer se trate das esperanças milenares que atravessaram a história desde o apocalipse até a new age dos nossos dias.

O animal pode ser motivado por algum tipo de expectativa agradável de algo que vai acontecer logo, mas ele não sabe o que é esperança. Assim também o homem antecipa sua morte muito mais do que o animal. Um psiquiatra escreveu que o medo nasceu com o homem em épocas obscuras: que ele nos acompanha em toda a nossa existência. Mas os medos podem mudar segundo os tempos e os lugares, em virtude das ameaças que pesam sobre nós. Durante muito tempo, os principais perigos que ameaçaram a humanidade, e, portanto, os principais medos, vinham da natureza: as epidemias — especialmente a peste negra e a cólera —, as más colheitas que levavam à fome, os incêndios provocados particularmente por raios, os tremores de terra, as erupções vulcânicas, os maremotos, etc. Mas, ao longo das épocas, a guerra, como uma panóplia dos perigos, ocupou um lugar cada vez maior. Podemos acompanhar esse crescendo a partir da invenção das armas de fogo no fim da Idade Média, e assim sucessivamente com o “levantamento em massa” decretado pela Revolução Francesa, com as centenas de milhares de homens chamados a combater durante as guerras napoleônicas, com a passagem para a cifra de milhões de homens que se enfrentaram uns aos outros por ocasião da Primeira Guerra Mundial, com os 20 milhões de de chineses mortos na invasão japonesa iniciada em 1931, com os 40 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial e com o uso da bomba atômica em 1945. O aperfeiçoamento dos armamentos, o movimento para uma guerra total, a multiplicação, hoje, dos atos terroristas conduzem logicamente a um aumento contínuo do número das vítimas e, especialmente, de vítimas civis. Isso significa que, quantitativamente, os perigos e os medos oriundos da guerra, ainda que não tenham desaparecido, tornaram-se cada vez menos importantes em relação àqueles oriundos dos homens. Isso é particularmente verdadeiro hoje, em que o terrorismo tomou dimensão mundial: ninguém mais está protegido em lugar nenhum. O medo tornou-se, cada vez mais, o medo do próprio homem. Evocarei esse elemento novo no término da minha fala: o homem é agora capaz de perturbar a natureza.

Levando em conta os progressos técnicos e o aspecto aterrador do qual os conflitos armados se revestem atualmente, não seria exagero afirmar que o século XX foi o mais criminoso da história, somando-se os “holocaustos” aos horrores da guerra propriamente dita.Tal século foi, também, aquele em que o medo atingiu seu ápice. Ao extermínio dos judeus e dos ciganos que Hitler tentou levar a cabo, somam-se, antes e depois, o massacre dos armênios e os genocídios no Camboja e em Ruanda.

Esse passado recente, tão trágico quanto tenha sido, não deve nos desviar de uma reflexão mais geral sobre as diferentes formas de medo. Entre os medos, uns são viscerais e naturais; outros, ao contrário, culturais. Em nossa época, em que fazer um cruzeiro marítimo — se possível em mares quentes e num suntuoso iate — é algo tido como um relaxamento sublime, temos dificuldades em compreender por que nossos ancestrais tinham tanto medo do mar. Eles tinham excelentes razões para isso, levando em conta a má qualidade das embarcações e as condições aleatórias de navegação. Antes dos aperfeiçoamentos da técnica moderna, o mar era sentido como um espaço fora-da-lei e a antítese da estabilidade. Logicamente associado, na sensibilidade coletiva, às piores imagens de descontração, o mar estava ligado à morte, à noite, ao abismo. Ele era, por excelência, o lugar do medo, do desmedido e da loucura, o sorvedouro onde habitam Satã, demônios e monstros. Compreende-se, a partir de então, o que anuncia são João no Apocalipse (20,1): “Depois vi um novo céu, um nova terra. O primeiro céu, na verdade, e a primeira terra desapareceram; e do mar, nada mais haverá”. O filósofo Gaston Bachelard escreveu que todo um lado de nossa alma noturna se explica pelo mito da morte concebida como um embarque na água. Daí o medo do elemento líquido, ao menos nas civilizações tradicionais. A noite também estaria na origem de um medo fundamental do ser humano? Essa é uma discutida questão. “E se o Sol não reaparecesse amanhã”, perguntava o romancista Georges Simenon, “não é essa a mais velha angústia do mundo?”. No entanto, nota-se que os bebês, frequentemente, não tem medo do escuro. Ao contrário, alguns cegos, que não conhecem a luz do dia, são mesmo assim tomados por inquietações quando a noite vem, pois o organismo vive naturalmente no ritmo do universo. Mesmo, se distinguirmos metodologicamente medo do escuro e medo no escuro, é preciso reconhecer que o acúmulo de perigos objetivos que a humanidade conheceu ao longo do tempo, durante a noite, fez nascer um medo quase natural da escuridão; e isso principalmente porque a privação de luz diminui a chama dos “redutores” da atividade imaginativa. Daí as antigas ligações regularmente feitas entre a noite, de um lado, e Satã, as bruxas, os espectros e os danados, de outro.

Na época do renascimento — ponto de referência cronológica que me é familiar — os medos noturnos são “manchete” da literatura e dão nome a obras como a de Thomas Nashe, The Terrors of Night. E o autor confirma que quando um poeta quer descrever algum acidente trágico ou horripilante, para imprimir-lhe mais densidade e verossimilhança, ele começa com um tom lúgubre dizendo que era noite quando a coisa aconteceu, e que a luz havia desertado o firmamento. Os textos bíblicos clássicos, durante muito tempo, conjugaram seus efeitos para induzir nas almas o medo da noite. Cícero inclui entre os filhos da noite o medo, o trabalho, a velhice e o desgosto. A simbologia cristã associa o mal à sombra e faz de Satã o soberano do império das trevas. Nash também declara que a noite é o livro negro do diabo no qual se inscrevem nossos pecados, e que o sono é a estrada real da tentação e da danação. A obra de Shakespeare contém mais de 25% de ações noturnas em suas tragédias. Macbeth evoca “a mão invisível e sanguinária da noite”; “O olho da noite é escuro, como uma órbita vazia” (Rei Lear); “Sob sua influência os cemitérios bocejam e o inferno exala suas pestilências” (Hamlet); “A noite é anunciadora da morte” (Júlio César); etc. É provável que o medo da noite dure tanto tempo quanto os homens, que se servirão dessa característica — ainda mais evidente hoje — do medo como justificativa de agressões noturnas.

Daí a necessidade da iluminação noturna nas cidades. Eu gostaria aqui, como historiador, de lembrar quando começaram a iluminar Paris. Deliberativa a esse respeito foi a decisão tomada pelo tenente da polícia de Paris, La Reynie, em 1667, de dispor lanternas nas ruas da cidade. Uma portaria estipulou, em seguida, que a partir do dia 20 de outubro de todo ano, e até o último dia de março, sinos dispostos nas principais ruas indicariam todos os dias o momento de acender as lanternas. Na época, Paris, que tinha cerca de 500 mil habitantes, contava com 2.736 lanternas. Luís XIV mandou cunhar uma moeda cuja legenda proclamava Securitas et nitor (“Segurança e luz”). A inovação suscitou a admiração dos contemporâneos. Um deles escreveu que a ideia de iluminar Paris durante a noite com uma infinidade de luzes merece que as populações mais afastadas venham ver o que os gregos e os romanos jamais imaginaram para a polícia de suas repúblicas.

A iluminação urbana foi implantada em Londres em 1668; em Amsterdã, 1669; em Copenhague, 1681; em Viena, 1687, etc. No fim do século XVIII, as cidades-piloto, do ponto de vista da iluminação noturna, eram Londres e Paris. Os contemporâneos louvaram o efeito de segurança dessa iluminação. O autor de uma tese sobre Paris endereçada à imperatriz Maria Teresa em 1770 fala da “grande segurança” da qual gozam os parisienses e afirma que “as ruas de Paris menos frequentadas estão seguras tanto de noite quanto de dia; podemos percorrê-las a qualquer hora, de bolsa na mão, sem o menor receio”. Essa consideração certamente era bem exagerada. No entanto, não há dúvida de que a iluminação das ruas, com uma presença policial redobrada, contribuiu e contribui sempre para diminuir, ao mesmo tempo, a insegurança noturna e o medo da noite.

O temor da volta das doenças contagiosas pertence, também, aos medos recolhidos no fundo de cada um de nós. Daí a comparação fácil que muito se faz hoje de apresentar a aids como a “peste” de nossa época.

Certamente, a Aids é um perigo, infelizmente, bem real (22 milhões de mortos desde o começo da epidemia em 1980 e atualmente 45 milhões de pessoas contagiadas). Mas, se ela é transmissível, especialmente por meio de relações sexuais, por outro lado, ela não é contagiosa se compararmos com a peste ou com a cólera. É importante notar que a peste foi, no passado, o maior dos males que se abateram sobre as populações do Antigo Regime. Ela foi para essas populações um mal absoluto. A Peste Negra (1348-1350) eliminou, em três anos, ao menos um quarto e talvez até um terço da população europeia; e permaneceu, depois, durante muito tempo em estado endêmico. Na França, entre 1350 e 1536, puderam-se identificar 24 ocorrências principais, secundárias ou periféricas de peste, ou seja, quase uma ocorrência a cada oito anos. Num segundo período, de 1536 a 1670, uma a cada onze anos. A epidemia surgiu novamente no Ocidente em 1720. Outros detalhes reveladores: Milão, em 1630, Nápoles, em 1656, Marselha, em 1720, perderam, em alguns meses de “contágio”, a metade de seus habitantes.

Também os documentos que relatam as reações das populações atormentadas com a irrupção da peste permitem um estudo, como em laboratório, dos comportamentos de medo em épocas de intensa epidemia: fuga desordenada das cidades de quem tinha a possibilidade de escapar do inferno urbano; desconfiança recíproca daqueles que ficavam e que se evitavam uns aos outros. As pessoas trancavam-se em casa, recusavam cuidar de seus parentes doentes, procuravam um bode expiatório. Alguns padeciam na loucura, outros, numa decadência a mais ignóbil. Quando todos os remédios haviam fracassado — fogueiras nas encruzilhadas ou procissões —, os sobreviventes mergulhavam no desespero. Finalmente a epidemia se esgotou dela mesma e a vida recomeçou.

Ao lado das apreensões vindas do fundo de nós mesmos — medo do mar, da noite —, e daquelas motivadas por perigos concretos — terremotos, incêndios, epidemias, etc. —, devemos ceder um lugar aos medos mais culturais, que podem, igualmente, invadir os indivíduos e as coletividades, fragilizando-os. É o medo do outro. A raiz disso se encontra na apreensão provocada entre pessoas que não se conhecem, ou que se conhecem mal, que vêm de fora, que não se parecem conosco e que, sobretudo, não vivem da mesma maneira que vivemos. Falam outra língua e têm códigos que não compreendemos. Têm costumes, comportamentos, práticas culturais que diferem das nossas, não se vestem como nós, não comem como nós, têm religião, cerimônias e ritos cujo significado nos escapa. Por todas essas razões, eles nos assustam e somos tentados a tomá-los como bodes expiatórios em caso de perigo. Se uma desgraça acontece a uma coletividade, é por causa do estrangeiro. Antigamente, dizia-se sempre que a peste vinha de outro país — o que, na realidade, não era sempre falso.

A humanidade terá, certamente, muito tempo ainda para combater esse medo do outro, forma particular do medo do desconhecido, que nunca deixa de vir à tona e que está na origem do racismo de todos os tempos. O século XX teve a esse respeito uma experiência desastrosa. Mas, já no século XI, um bizantino aconselhava que se um estrangeiro viesse à sua cidade, e se ligasse a você, e se vocês se dessem bem, não confiasse nele; ao contrário, seria justamente aí que você deveria tomar o máximo de cuidado. No século XVII, e ainda no começo do século XVIII, movimentos xenófobos explodiram em vários cantos da Europa: em 1620, em Marselha contra os turcos, massacraram-se 45; em 1623, em Barcelona contra os genoveses; em 1706, em Edimburgo, onde a população matou a tripulação de um navio inglês. Ainda, em agosto de 1893 aconteceu um massacre de italianos no porto francês de Aigues Mortes: oito entre eles foram mortos. Acusavam-se os operários italianos das salinas do sul de quebrar os ritmos de trabalho e de fazer os salários abaixar; até mesmo de preparar um ataque contra operários franceses. Sabemos todos, pela história recente, as consequências assustadoras decorrentes do medo dos judeus — caso extremo do medo cultural do outro. Agora estamos, infelizmente, vivendo em escala mundial esse medo do outro pela possibilidade de um “choque entre civilizações”, que nos ameaça constantemente.

Essa situação conduz a que se dê uma ligação entre mentalidade obsessiva e utilização do medo como arma. Um grupo ou um poder ameaçado, ou que se crê ameaçado e, portanto, que sente medo, tem a tendência a ver inimigos por todos os lados: fora e, cada vez mais, dentro do espaço que ele quer controlar. Ele tende assim a se tornar totalitário, agressivo e a reprimir todo desvio, até mesmo qualquer veleidade de discussão. Um Estado totalitário tem, então, vocação terrorista. Na França de 1793, essa lógica interna conduziu a Convenção a “pôr o terror na ordem do dia” e a votar a “lei dos suspeitos”. No século XX, a ideia da “cidade assediada”, com todas as fantasias que ela suscita, levou aos piores massacres da história perpetrados pelo governo de Hitler e os dos países comunistas, que levaram ao interior de cada país uma atmosfera sufocante à base de suspeitas, de prisões, de denúncias e de torturas.

Estamos assim diante de extremas derivações do medo quando ele não é observado de maneira lúcida e quando não é administrado. O medo é certamente necessário e mal percebemos como a humanidade poderia ter progredido sem ele, quer dizer, sem a tomada de consciência dos perigos que sucessivamente aparecem no meio do caminho. Mas ele rapidamente se esquiva, tornando-se invasivo, escapando do controle, fazendo submergir qualquer espírito crítico e qualquer sentimento de humanidade. Aung Sun Kyi, Prêmio Nobel da Paz (1991), escreveu que em seu país, a Birmânia, não é o poder que corrompe, mas o medo; o medo daqueles que exercem o poder, de perdê-lo; o medo das metralhadoras, daqueles que são oprimidos pelo governo.

Há ainda um dossiê histórico que eu gostaria de abordar na minha fala de hoje: é o da evolução da violência e da segurança na vida cotidiana. Ainda aqui, tratarei sobretudo da Europa ocidental, porque foi a esta que dediquei meus estudos. E a pesquisa sobre esse espaço geográfico permite comparações que, espero, possam ser úteis para outras partes do mundo.

Na Europa ocidental, então, se deixarmos de lado os períodos de guerra, constataremos, de maneira geral, uma dimensão da insegurança e da violência cotidianas desde a Idade Média até meados do século XX. O historiador Lawrence Stone demonstrou por meio de dados o que aconteceu na Inglaterra, afirmando, nos anos 1980, que lá tudo se dá como se a proporção dos homicídios no século XIII tivesse sido duas vezes mais elevada que a dos séculos XVI e XVII, e a dos séculos XVI e XVII de cinco a dez vezes mais forte do que a de hoje.

Uma enquete paralela feita na Dinamarca para os anos de 1685-1855 faz igualmente notar que o roubo levava cada vez mais vantagem sobre a violência nas causas julgadas nos tribunais. Conclusões semelhantes às que se chegou a respeito de Paris e do norte da França do século XVI até 1789. Em porcentagens, o roubo aumenta, mas a violência recua. Isso foi, talvez, consequência da expansão da civilização urbana; do progresso da alfabetização e do ensino, da diminuição da mortalidade dos adultos, e do endurecimento da segurança pública.

Mas sob nossos olhos acontece há cerca de quarenta anos um retrocesso da situação. Quase em todos os lugares do mundo, e mesmo em velhos países da Europa, a insegurança está aumentando, com roubos e violências se acumulando. O caso da Rússia é, infelizmente, muito instrutivo com relação a isso. Há quinze anos ela acumula desemprego, deterioração, insegurança e corrupção. Mas a insegurança aumentou sensivelmente também nos Estados Unidos há um quarto de século. Segundo estatísticas do FBI, atos delinquentes violentos — homicídios, assaltos à mão armada, estupros — passaram, entre 1973 e 1992, de 875.910 para 1,9 milhão por ano.

Eis o caso da França. Até os anos 1960, o número constatado de crimes e delitos era estável, em torno de 500 mil por ano. Aumentou fortemente em seguida, atingindo hoje 4 milhões. Se, dentro dessa estatística, isolarmos os roubos acompanhados de violência, constatamos que foram multiplicados por 23. Atualmente na França o número global de crimes e delitos está em baixa, mas o número de ocorrências violentas continua a aumentar. Em resumo, quase no mundo todo a insegurança, sob todas as formas, avança intensamente e raros são os países como Finlândia e Japão, que são exceção. Todos os observadores relacionam essa degradação, sobretudo, com a multiplicação, no século XX, das grandes megalópoles que ultrapassam a casa do milhão de habitantes.

Com relação a isso, entretanto, também existe um retrocesso da situação que a história permite clarear. A cidade era antigamente um local de relativa segurança em comparação com o campo. A cidade da Idade Média e da época clássica era não somente percebida e vivida como um lugar de cultura e de civilização, mas também como um espaço protegido por muralhas, mais bem administrado do que o campo, que se beneficiava de uma revitalização mais bem assegurada, gozando de uma melhor força policial, dotada de melhores instituições jurídicas e, além disso, de hospitais e de escolas. O filósofo francês do século XVII Descartes, que viveu em Amsterdã, elogiou a cidade, escrevendo:

Que outro lugar se poderia escolher […]; onde se pode gozar de uma liberdade tão íntegra, onde se pode dormir com menos preocupações, onde sempre se tem policiais aos nossos pés propositadamente destacados para cuidar de nós, onde os envenenamentos, as traições, as calúnias são menos conhecidas?[2]

Descartes encontrava-se, portanto, feliz e “descansando em Amsterdã mais do que em qualquer outro lugar que não fosse aquele”. Alguns anos mais tarde, o escritor francês La Bruyère apontava como uma evidência que “a segurança, a ordem e a limpeza” transformavam a permanência nas cidades em algo “delicioso” e para aí “levaram abundantemente a doçura da sociedade”. Seguramente, existem testemunhos no sentido contrário, que relativizam as citações precedentes. Muita gente sentia medo de circular à noite na Paris do século XIX. Mas podemos considerar, com uma aproximação verossímil, que durante muito tempo as cidades foram mais seguras do que o campo. Em nossos dias, ao contrário, a cidade grande se tornou sinônimo de insegurança, particularmente nos bairros de periferia. É uma banalidade dizer isso, mas é preciso lembrar que essa situação é contrária ao que prevaleceu durante muito tempo.

Hoje é sobretudo nas cidades — e especialmente nas grandes cidades — que se tem medo. É aí, por excelência, que o terrorismo se instala, porque os autores dos atentados podem se esconder melhor, jogar cada vez mais com o efeito surpresa, provocando mais e mais vítimas. Por conseguinte, é nos lugares com forte concentração humana que o medo, em escala mundial, é mais intenso, a ponto de induzir uma mudança em nossas vidas cotidianas, em razão das medidas de controle e de fiscalização tomadas pelas autoridades, ao que se soma o novo fenômeno da globalização: a partir de agora, é no mundo inteiro que podemos nos transformar em vítimas do terrorismo. Ninguém está protegido e um camicase pode aparecer em qualquer lugar.

Penúltima questão que eu gostaria de abordar hoje como historiador de longa data: a questão da relação entre a insegurança objetiva e o sentimento de insegurança, deixando claro, obviamente, que não estou subestimando os perigos e o medo que atualmente imperam, independentemente do terrorismo, em certas periferias e em certos bairros violentos. A necessidade de segurança é estrutural em nós. No entanto, o conhecimento do passado parece mostrar que essa necessidade se reforçou com a afirmação da modernidade e com o fato de que nossos ancestrais eram mais resignados e fatalistas do que nós diante dos infortúnios e dos perigos que permanentemente os cercavam. Em nossas sociedades afirma-se, ao contrário, em todos os setores, uma demanda imensa de segurança.

A questão se coloca, então, em saber se a demanda de segurança é sempre proporcional às situações que a provocam. Voltemos um instante ao “Grande medo” que se propagou na França durante o verão de 1789. Nesse começo de Revolução Francesa, marcado especialmente pela fuga ao estrangeiro de um certo número de nobres, circularam rumores que anunciavam a vinda iminente de bandidos subornados por nobre exilados: dizia-se que iam incendiar as choupanas e as colheitas. Em mais da metade do país, os camponeses foram tomados pelo medo, de modo que se mobilizaram e incendiaram muitos castelos. Ora, esses rumores não tinham fundamento.

Este exemplo levanta o problema entre a insegurança real e a insegurança sentida. Tocqueville, já no século XIX, havia notado que, quanto mais um fenômeno desagradável diminui, mais o seu resíduo assume proporções desmesuradas. Confirmando esse diagnóstico, o demógrafo francês Claude Chesnais escrevia em 1989:

Toda diminuição do nível de violência é acompanhada de uma sensibilidade creditada à violência, portanto, de um recrudescimento do sentimento de insegurança. A partir disso, interpretar a expansão do sentimento de insegurança em termos de aumento da violência objetiva não é somente ilusório, mas mistificador. Uma grande parte dos comportamentos violentos ou irregulares admitidos numa sociedade tradicional (…) e fechada, não é mais tolerado numa sociedade independente e […] aberta.[3]

É certo, por exemplo, que o número de agressões no metrô e nos ônibus de Paris seja fraco quando o comparamos com os 4 milhões de usuários que se servem diariamente desses meios de transporte. Mas um aumento, mesmo reduzido, desses ataques provoca um temor coletivo.

Essas constatações não suprimem, logicamente, o problema grave que todos nós vivemos do atual crescimento do número de agressões e do sentimento de insegurança, mesmo nas sociedades mais favorecidas do planeta. É do interesse de todos conter o sentimento de insegurança nos limites do suportável. Mas — reflexão final de caráter antropológico — o medo não desaparecerá da condição humana. Seguramente não podemos viver sem um entorno protetor. No entanto, as sociedades e os indivíduos devem encontrar um equilíbrio entre o arriscado e o seguro, entre a liberdade e a segurança, e compreender que chega um momento em que um excesso de segurança não reconforta mais e que a busca febril pela proteção cria novamente a angústia. Um filósofo francês, Jean Paul Aron, escrevia em 1977, um pouco antes de morrer de Aids, doença da qual ele já tinha consciência, que devemos nos defender da utopia de uma segurança generalizada, de uma assepsia universal, de uma imunização do corpo e do espírito contra todas as incertezas e todos os perigos.

Essa reflexão cheia de bom senso faz com que eu volte a meu ponto de partida: de certa maneira, o medo é necessário quando se trata de uma sadia antecipação dos perigos, às vezes bem reais, que nos ameaçam. Ora, atualmente, muitos dos dirigentes do planeta — chefes de Estado ou dirigentes econômicos — se recusam a olhar lucidamente o futuro e a tomar consciência do desastre ecológico que nos atinge e que diz respeito a todos nós. Desperdiçamos os recursos do planeta e nossos sucessores sofrerão as consequências disso. E, assim fazendo, nós aumentamos, aliás, de maneira inquietante, a poluição e, portanto, o clima do planeta. Um documentário suíço, difundido recentemente pelo canal francófono TVS, mostrou, por meio de cálculos muito simples, que se 1,2 bilhão de chineses quisessem atingir dentro de vinte anos o nível de vida médio dos habitantes dos Estados Unidos, os recursos da Terra não seriam suficientes. Haveria, em escala mundial, falta de energia e falta de água, e, além do mais, uma poluição desmesurada e um acúmulo insuportável de dejetos.

Estamos devidamente advertidos. Portanto, é preciso que tomemos consciência dos perigos que nós mesmos criamos. Os países ricos deverão aceitar a redução de seu padrão de vida, e todos os cidadãos do mundo também deverão compreender que o planeta está frágil a partir de agora. A romancista francesa do século XIX, George Sand, cujo bicentenário de nascimento celebramos em 2004, e que era uma apaixonada pela natureza, lançou seu último alerta:

Se não prestarmos atenção nisso, a árvore desaparecerá e o fim do planeta se dará por ressecamento, sem necessariamente um cataclismo, por culpa do homem. Não riam, aqueles que estudaram a questão não pensam nisso sem se apavorarem.[4]

Tradução de Marcelo Gomes.

Notas

[1] Virgílio, Eneida, IV, 3.

[2] René Descartes, Œuvres complétes, tomo I (Paris: Garnier, 1946).

[3] Claude Chesnais, Histoire de la violence (Paris: Robert Lafont, 1989).

[4] Cf. J. Chalon, George Sand, une femme d’aujourd’hui (Paris: Fayard, 2004).

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