1996

Messianismo e revolução

por Michael Löwy

Resumo

Seriam todas as formas de cultura revolucionária um avatar secularizado do messianismo judaico-cristão? Embora discutível e muito generalizante, a ideia se aplica a certas formas de pensamento da cultura judaica da Europa central na primeira metade do século XX. Um messianismo reaparece então, ligado a uma crítica à ideologia racionalista do progresso posta em crise com a Primeira Guerra mundial. É o que acontece em Walter Benjamin, desde seus primeiros escritos em 1915 até as “Teses sobre o conceito de história” escritas no ano de sua morte, em 1940, e no contexto da luta contra o fascismo. Em suas teses, Benjamin afirma que o Messias “faz saltar o contínuo da história” e que a sociedade sem classes, se lembra uma volta ao paraíso perdido, é mais uma rememoração das ruínas do passado da humanidade (conforme a sua imagem, inspirada num quadro de Paul Klee, do anjo arrastado pela “tempestade” do progresso). O tempo histórico não é vazio e homogêneo como o dos relógios, mas carregado dos “estilhaços do tempo messiânico”. Para Benjamin, cujas imagens buscam chegar, como a poesia, ao mais abstrato através do mais concreto, o futuro é apreendido como possibilidade que irrompe no presente e não como fim da história. Mais tarde, sua articulação entre teologia e marxismo encontrará uma correspondência na teologia da libertação latino-americana. Para esta, também movida por uma dialética histórica no campo ético, a luta por um mundo mais justo é um anúncio da vinda do Messias.


Em julho de 1830, durante a revolução que derrubou pela segunda (e última!) vez a monarquia dos Bourbon, teve lugar um curioso incidente, narrado por cronistas e testemunhas: chegado o anoitecer do primeiro dia de batalha, ocorreu que simultaneamente em vários pontos de Paris, independentes uns dos outros, os revolucionários atiraram nos relógios das torres.

O episódio é citado por Walter Benjamin na tese XV de “Sobre o conceito de história”, como exemplo de que “a consciência de fazer saltar o contínuo da história é própria das classes revolucionárias no momento de sua ação”.[1] Trata-se, aos olhos de Benjamin, de um ato carregado de significação ao mesmo tempo messiânica e revolucionária, visando à interrupção do tempo mecânico e vazio dos relógios, e à inauguração de um novo calendário histórico.

Qual é então a relação entre revolução e messianismo na época moderna? Como se articulam os dois na história do pensamento socialista? Seriam todas as formas de cultura revolucionária simplesmente um avatar secularizado do messianismo judaico-cristão?

É a tese que defende por exemplo o historiador liberal Jacob L. Talmon em seu livro Messianismo político: a fase romântica, que caracteriza como “socialismo messiânico” a obra de Saint-Simon e seus discípulos, assim como a de Fourier, Cabet, Blanqui, Fichte e Marx.[2]

Alguns anos antes, em seu conhecido ensaio sobre O significado na história, Karl Löwith havia tentado demonstrar que a utopia socialista do “reino da liberdade” — “finalidade última e ideal do messianismo histórico de Marx” — não era senão “um Reino de Deus sem Deus e sobre a terra”. Segundo o ilustre historiador das ideias, Marx era “um judeu de estatura vetero-testamentária”, e em última análise “é o velho messianismo e o profetismo judeu […] que explicam a base ideal do materialismo marxiano”.[3]

Sem recusar a priori esse tipo de análise, parece-me que ela sofre de dois defeitos: 1) seu caráter demasiado geral — Final, qual forma de pensamento moderno não seria “messianismo secularizado”? (Talmon fala em messianismo nacionalista, messianismo democrático etc.); 2) sua tendência especulativa, que não se fundamenta numa relação direta entre a doutrina revolucionária e o messianismo, mas em analogias reais ou supostas.

Existem porém certas formas de pensamento utópico-revolucionário que se referem explicitamente à herança do messianismo, em particular na cultura judaica da Europa central no curso da primeira metade do século XX: Gustav Landauer, Martin Buber, Walter Benjamin, Ernst Bloch, o jovem György Lukács são alguns dos exemplos mais notáveis dessa configuração político-religiosa.

A redescoberta do messianismo é, nessa geração de intelectuais judeus de cultura alemã, inseparável de uma certa sensibilidade romântica e de uma certa distância crítica em relação à ideologia racionalista do progresso.

Para a filosofia das Luzes o progresso da razão é um processo global e coerente, no qual cada avanço da racionalidade científica é ao mesmo tempo um avanço da racionalidade social e política. Segundo Condorcet, “todas as ocupações intelectuais dos homens […] concorreram para um fim único: os progressos da razão humana. O sistema inteiro dos trabalhos humanos se parece com uma obra de arte bem-feita, cujas partes, distintas por seu método, devem entretanto estar ligadas e formar um todo único, tendendo a um fim único”.[4]

Essa filosofia racional do progresso, que será compartilhada tanto por liberais como por socialistas, constitui, no fim do século XIX, um paradigma universal do pensamento social e político. Em sua forma mais vulgar e apologética — o evolucionismo liberal-darwinista de Herbert Spencer —, ela proclama solenemente que o progresso técnico e industrial (capitalista) conduz necessariamente à harmonia social e à desaparição do militarismo e das guerras.

Agosto de 1914, início da Primeira Grande Guerra, é um momento de crise dessa ideologia, e da visão otimista da racionalidade ocidental. Trata-se de uma crise que pode ser comparada àquela que produziu na consciência europeia do século XVIII o terremoto de Lisboa (1755): a absurda destruição da cidade e a morte de 20 mil de seus habitantes abalaram a confiança na doutrina da Providência divina. A ironia mordente da filosofia das Luzes se manifesta no Candide de Voltaire, onde o ilustre dr. Pangloss, filósofo do otimismo doutrinário (“Vivemos no melhor dos mundos possíveis”), morre esmagado pelo terremoto de 1755.

Algo semelhante se passa com o terremoto bélico de 1914: a filosofia do progresso, versão secularizada da Providência divina, entra em crise. A ideia, profundamente enraizada, de uma relação íntima e necessária, de uma coerência estrutural entre os progressos da razão científica e técnica, a modernização e industrialização, a gradual pacificação dos conflitos e o declínio do militarismo viu-se brutalmente desmentida pela realidade histórica. A utilização maciça da ciência e da técnica modernas (perfeitamente racionais) a serviço da exterminação recíproca das “nações civilizadas” da Europa — no que não seria senão o primeiro episódio de uma série monstruosa de catástrofes da modernidade no curso do século XX — não podia deixar de colocar em questão a concepção evolucionista-iluminista da racionalidade. Uma falha, uma cisão entre razão “instrumental” e “substancial” — para utilizar a terminologia que desenvolveria, anos mais tarde, a Escola de Frankfurt —, surge no que antes aparecia como um todo não problemático.

O messianismo revolucionário dos intelectuais judeus da Europa central é uma das formas de reação a essa crise. Talvez o representante mais importante de uma filosofia da revolução de inspiração messiânica seja Walter Benjamin, cuja crítica dos paradigmas racionalistas do progresso constitui sem dúvida uma das fontes subterrâneas da Dialética do Iluminismo, de Adorno e Horkheimer.

Benjamin não critica a racionalidade em si, mas uma forma específica de racionalidade, representada pela ideologia do progresso total e pelas instituições e estruturas que a encarnam na sociedade burguesa moderna, no Estado burocrático-militar e na civilização industrial capitalista.

O núcleo inicial da reflexão filosófica de Benjamin já se encontra, como uma semente que concentra todo o desenvolvimento ulterior, no discurso sobre “A vida dos estudantes”, publicado em 1915 — poucos meses depois do início da Guerra Mundial. Ele se rebela contra “uma concepção da história que, confiando na infinitude do tempo, só distingue o ritmo mais ou menos rápido no qual os seres humanos e as épocas avançam no caminho do progresso”. Em oposição à postura confortável e conformista dessa “informe tendência progresssista” — que tem como resultado o caráter “incoerente, impreciso, sem rigor, da exigência dirigida ao presente” —, Benjamin propõe as imagens utópicas, que consideram a história “à luz de uma situação determinada que a resume como em um ponto focal”: imagens como o reino messiânico ou a ideia revolucionária francesa.[5]

Messianismo e revolução aparecem desde esse momento intimamente associados no pensamento de Benjamin, como alternativa crítico-utópica — de inspiração romântica — tanto à sociedade existente como às doutrinas evolucionistas da história.

Para entender a relação de Benjamin com o romantismo é importante enfatizar que essa corrente de pensamento não é necessariamente — como se pretende com freqüência — retrógrada ou conservadora: existem também manifestações revolucionárias do romantismo, desde Friedrich Hölderlin e William Blake até Ernst Bloch e William Morris.

Em sua tese sobre O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (1919), Benjamin avança uma hipótese surpreendente: a verdadeira essência da Frühromantik de Novalis e Schlegel “deve ser buscada no messianismo romântico”. Como exemplo Benjamin cita uma célebre fórmula do jovem Friedrich Schlegel: “O desejo revolucionário de realizar o Reino de Deus […] é o início da história moderna”.[6]

O que significa “messianismo romântico”? Em outra passagem da tese Benjamin explicita sua interpretação ao opor uma concepção qualitativa do tempo infinito (qualitative zeitliche Unendlichkeit), “que provém do messianismo romântico” — e para a qual a vida da humanidade é um processo de realização e plenitude (Erfüllung) e não um simples devir —, à concepção vazia da temporalidade (leeren Unendlichkeit der Zeit), característica da ideologia moderna do progresso (Ideologie des Fortschritts).[7]

A semelhança entre essas observações de 1919 e as que constituem o núcleo central das teses “Sobre o conceito de história”, de 1940, é impressionante, e do cumenta a profunda continuidade do pensamento de Walter Benjamin.[8] Entretanto, essa continuidade — e a impossibilidade, por conseguinte, de separar mediante uma espécie de “corte epistemológico” um jovem Benjamin “teológico” e um velho Benjamin “materialista” — não nos deve fazer perder de vista a importância que tem, para sua evolução intelectual e política, a descoberta do marxismo em 1924, graças à leitura de História e consciência de classe (1923), de Lukács, mas também graças aos sedutores argumentos da militante comunista soviética Asja Lacis. A partir desse momento sua visão da revolução se formula direta e explicitamente nos termos da teoria marxista da luta de classes.

Em seus textos de inspiração marxista do fim dos anos 20 e começo dos anos 30 a dimensão messiânica desaparece (ou só permanece de forma subterrânea), mas a recusa da ideologia conformista do progresso continua a ocupar um lugar central em sua visão da história e confere a seu marxismo uma qualidade crítica que lhe dá uma nítida superioridade sobre as tendências dominantes no pensamento de esquerda dessa época (antes de 1933!).

Contra o que se poderia chamar “fatalismo otimista” desta última, Benjamin define, num artigo de 1929 sobre o surrealismo, o espírito revolucionário (comunista, anarquista ou surrealista) como “organização do pessimismo” — expressão que ele toma ao comunista dissidente (trotskista) e escritor surrealista francês Pierre Naville. O que significa essa fórmula?

Pessimismo em toda linha. Sim, sem dúvida e totalmente. Desconfiança em relação ao destino da literatura, desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do homem europeu, e sobretudo uma tripla desconfiança diante de toda acomodação: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. E uma confiança ilimitada só na I. G. Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe.[9]

A visão pessimista-revolucionária de Benjamin permitiu-lhe entrever — intuitivamente, mas com uma surpreendente exatidão — as catástrofes que esperavam a Europa, perfeitamente resumidas na conclusão irônica desse parágrafo. É claro que mesmo ele, o mais pessimista de todos, não podia prever as destruições que a Luftwaffe iria infligir às cidades e populações civis do continente; e ainda menos que a grande indústria química I. G. Farben iria, apenas doze anos mais tarde, contribuir para “racionalizar” o genocídio mediante a produção do gás Ziklon B. Entretanto, único entre os pensadores marxistas da época, Walter Benjamin teve a premonição dos monstruosos desastres que poderiam resultar da civilização burguesa industrial em crise.

Durante a segunda metade dos anos 30 começam a aparecer novamente temas messiânicos nos escritos de Benjamin, em particular no Passagenwerk. Entretanto, é em seu último texto, as teses “Sobre o conceito de história” (1940) — um dos documentos mais inovadores e visionários da teoria revolucionária desde as Teses sobre Feuerbach, de Marx —, que se apresenta, em sua forma mais radical, a confluência entre messianismo e revolução.

Redigido pouco antes de seu trágico suicídio na fronteira da Espanha (para escapar da Gestapo), esse texto enigmático e fascinante, fusão única em seu gênero entre teologia e marxismo, esperança messiânica e luta de classes, resume, de forma lapidar e alegórica, ideias que o habitavam havia muito tempo. Em uma carta a Gretel Adorno, apresentando as teses, Benjamin explica: “A guerra e a constelação que a trouxe me levaram a colocar no papel alguns pensamentos, sobre os quais posso dizer que os guardo comigo […] há aproximadamente vinte anos”.[10] A constelação à qual ele se refere é constituída pelo pacto germano-soviético e pelo início da Segunda Guerra Mundial. Não é por acaso que esse documento significa ao mesmo tempo sua ruptura com a variante stalinista do marxismo e a crítica mais radical e sistemática dos fundamentos epistemológicos da ideologia moderna do progresso. Entretanto, seria falso reduzi-lo a uma reação conjuntural diante de uma situação histórica desesperadora: como o próprio Benjamin afirma, trata-se do resumo de uma longa trajetória espiritual, que tem seu ponto de partida em 1915-20.

Como em 1915, Benjamin critica a doutrina do progresso infinito e irreversível, através de um tempo homogêneo e vazio, que confunde o avanço dos conhecimentos e das habilidades com o progresso do gênero humano enquanto tal (tese XIII). A seu ver, nada prejudicou tanto o movimento operário alemão quanto sua crença conformista de que nadava na correnteza representada pelo desenvolvimento técnico: o marxismo vulgar da social-democracia celebrava os progressos da dominação sobre a natureza, sem perceber as regressões sociais (tese XI).[11]

Mas desta vez Benjamin se confronta com um fenômeno novo, inexistente em 1915, que levou ao paroxismo as contradições da civilização industrial moderna: o fascismo. O conformismo “progressista” da esquerda teve como resultado uma trágica incapacidade de entender a natureza tecnocrática e moderna do fascismo, que se traduziu na estupefação com o fato de que tal fenômeno fosse “ainda” possível no século XX (tese VIII).

Benjamin foi um dos primeiros marxitas a dar-se conta de que uma certa racionalidade moderna — materializada nas ciências e técnicas, na administração burocrático-racional, na grande indústria capitalista e na tecnologia militar —, que atingiu um altíssimo nível no século XX, não só era perfeitamente compatível com o advento do fascismo, mas podia até mesmo se transformar em formidável instrumento de dominação, e colaborar na realização de seus objetivos. O fascismo leva às suas últimas consequências a combinação tipicamente moderna entre progresso técnico e regressão social, racionalidade instrumental e irracionalidade substancial.

Para ganhar a partida contra o fascismo, o materialismo histórico necessita da ajuda da teologia, isto é, da ideia messiânica. A confluência dos dois, sugerida na tese I, encontra sua expressão mais impressionante na célebre tese IX, que resume, como em um ponto focal, o conjunto do documento. Trata-se de um texto alegórico, no sentido em que seus elementos não têm significado fora do papel que lhes é intencionalmente atribuído pelo autor. Benjamin estava fascinado pelas alegorias religiosas, em particular as do drama barroco alemão — o Trauerspiel, ao qual havia dedicado seu primeiro grande livro —, no qual a alegoria é “a facies hippocratica da história que se oferece ao olhar do espectador como uma paisagem primitiva petrificada”.[12] É exatamente nesse espírito que ele redige o texto profundamente inquietante que é a tese IX:

Existe um quadro de Klee intitulado Angelus novus. Ele representa um anjo que parece estar na iminência de afastar-se de algo em que crava o seu olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estendidas. O anjo da história deve parecer assim. Ele tem o seu rosto voltado para o passado. Onde diante de nós aparece uma cadeia de acontecimentos, ele enxerga uma única catástrofe que incessantemente amontoa ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele gostaria de demorar-se um pouco, acordar os mortos e juntar novamente os cacos. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranha em suas asas e é tão forte que o anjo não mais pode fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. O que chamamos de progresso é esta tempestade.[13]

Como decifrar essa alegoria? A estrutura do texto é a de uma correspondência — no sentido baudelairiano — entre o sagrado e o profano, a teologia e a política, o messianismo e a revolução, que atravessa cada uma de suas imagens. Não se trata de uma simples “secularização” do conteúdo religioso no terreno histórico, como o pretende muitas vezes a escola de interpretação “materialista” das teses de 1940, nem uma “tradução” em linguagem marxista de um pensamento essencialmente místico (como sugere Gershom Scholem): as duas dimensões são ao mesmo tempo distintas e inseparáveis.[14]

Numa carta a Scholem, Benjamin se descrevia ironicamente como um Janos cujas duas caras olham respectivamente para Moscou e para Jerusa lém. Parece que seus partidários ou críticos escolhem apenas uma das faces, procurando ignorar a outra. Para sair desse impasse não é inútil recordar que o deus romano tinha com efeito dois rostos, mas uma só cabeça: as caras de Benjamin são manifestações de um só e único pensamento que tem, simultaneamente, uma expressão messiânica e uma secular. Talvez seja no Brasil, sem dúvida o país em que o movimento da teologia da libertação teve maior impacto, que se possa melhor compreender a possibilidade e a importância de uma colocação que buscou articular revolução e espiritualidade messiânica, teologia e materialismo histórico.

Cada uma das imagens da alegoria tem portanto um duplo significado. Pelo menos em relação a uma delas, a tese IX nos oferece a dupla chave: o correspondente profano da tempestade que sopra do Paraíso é o progresso, responsável pela “catástrofe incessante” e pelo amontoado de ruínas que cresce até o céu. Mas para as outras “imagens dialéticas” é preciso descobrir essa chave, utilizando o conjunto das teses e outros escritos de Benjamin.

Qual seria o equivalente secular do paraíso perdido do qual o progresso nos afasta cada vez mais? Em vários textos de Benjamin dos anos 30 encontramos referências indicando que se trata da sociedade sem classes pri mitiva. Por exemplo, num artigo sobre Bachofen (1935), ele insiste no caráter profundamente democrático e igualitário das comunidades matriarcais arcaicas. Se autores marxistas como Friedrich Engels ou anarquistas como Elisée Reclus se interessaram pela obra de Bachofen, é porque nela se encontra a “evocação de uma sociedade comunista na aurora da história”.[15] E no ensaio “Paris, capital do século XIX” (1936) Benjamin volta a esta ideia: as experiências da sociedade sem classes da pré-história, depositadas no inconsciente coletivo, “em relação recíproca com o novo, dão nascimento à utopia”.[16]

Como parar a tempestade, como interromper o progresso em sua fatal progressão? A resposta de Benjamin, mais uma vez, é simultaneamente teológica e profana. Na esfera religiosa, trata-se de um ato messiânico: a tese XVII nos fala de “interrupção messiânica do devir”, e em uma das notas preparatórias se encontra a seguinte afirmação: “O Messias quebra a história”.[17] Seu “correspondente” profano nada mais é senão a revolução: as classes revolucionárias, escreve a tese XV, estão conscientes — no momento de sua ação — de que devem “fazer saltar o contínuo da história”. A interrupção messiânico-revolucionária do progresso — que não é obra de um indivíduo, mas das classes oprimidas — é portanto a resposta de Benjamin às ameaças que faz pesar sobre a espécie humana a continuidade da tempestade maléfica, a iminência de novas catástrofes, de novas ruínas no amontoado que sobe até o céu. Era o ano de 1940, pouco antes de Auschwitz e Hiroshima…

Na tradição judaica — que Benjamin conhecia bem, graças aos trabalhos de seu amigo Gershom Scholem —, os tempos messiânicos significam a restauração (Tikkun) da harmonia originária, o restabelecimento do paraíso perdido. O seu equivalente secular nas teses de Benjamin é a utopia comunista, a nova sociedade sem classes. Em uma das notas preparatórias das teses ele insiste: “É preciso devolver ao conceito de sociedade sem classes seu verdadeiro rosto messiânico, e isso no próprio interesse da política re volucionária do proletariado”. É somente ao se dar conta dessa significação messiânica que este pode evitar as armadilhas da ideologia “progressista” e entender que “a sociedade sem classes não é o objetivo final do progresso, mas a realização — tantas vezes tentada em vão — de sua interrupção definitiva”.[18]

Scholem tinha portanto razão ao escrever que para Benjamin “o Paraíso é ao mesmo tempo origem, passado ancestral da humanidade e imagem utópica do futuro de sua redenção”, mas acho que ele se engana ao acrescentar que se trata de uma concepção do processo histórico “mais cíclica que dialética”.[19] Para Benjamin, a sociedade sem classes do futuro (novo Paraíso) não é a volta pura e simples à sociedade sem classes da pré-história: ela contém em si, como síntese dialética, e como rememoração universal, todo o passado da humanidade.

A “correspondência” que se estabelece nas teses de 1940 entre a era messiânica e a futura sociedade sem classes não pode ser entendida em termos de pura “secularização”. O religioso e o político, o messiânico e o revolucionário entram numa relação de reversibilidade recíproca, de tradução mútua, que escapa a toda redução unilateral. Numa carta a Scholem datada de maio de 1926, Benjamin se refere a uma identidade entre o religioso e o político que se manifesta na paradoxal inversão/reversão (paradoxalen Umschlagen) de um no outro, não importando em que direção.[20]

A concepção qualitativa da temporalidade produzida pela reflexão político-religiosa das teses “Sobre o conceito de história” se opõe diretamente àquela imanente às doutrinas do progresso: o tempo quantitativo, linear e cumulativo. O tempo histórico para Benjamin não é vazio e homogêneo, como o dos relógios, mas carregado de conteúdo pela memória e pelos “estilhaços do tempo messiânico” (tese XVIII A) nele incrustados. Como exemplo do enfrentamento entre as duas temporalidades Benjamin cita o memorável ataque aos relógios públicos pelos revolucionários de 1830 (tese XV) que mencionamos no início deste texto…

O messianismo revolucionário de Benjamin se situa no campo da racionalidade ou do irracionalismo? A pergunta é legítima, mas é preciso evitar transformar esses dois polos do pensamento em uma dualidade de tipo maniqueísta — uma divisão rigorosa e absoluta do mundo em “Forças da Luz” e “Forças das Trevas”, como propunha o ilustre profeta Mani (século III) em sua obra Kephalia (capítulos) ou o ilustre filósofo György Lukács em seu livro A destruição da razão (1953), que reduz toda a filosofia alemã, de Schelling a Nietzsche e de Simmel a Weber, a variantes do irracionalismo.

Devemos reconhecer que nem todas as manifestações do espírito humano se deixam enquadrar em uma ou outra dessas categorias. A poesia de Baudelaire ou Rimbaud é “racional” ou “irracional”? Encontramos a mesma dificuldade ao tentar definir uma “filosofia poética” — termo que utiliza Hannah Arendt para caracterizar a obra de Walter Benjamin.

Dito isso, como situar nesse “campo de forças” o marxismo messiânico de Benjamin? Para José Guilherme Merquior não cabem dúvidas: as teses de 1940 (que ele designa como “Teses de 1939”) são “uma capitulação em face do irracionalismo”, uma manifestação de “irracionalismo de esquerda”. Essa interpretação bastante categórica se baseia no seguinte argumento: “O Jetzzeit (sic) — o tempo agora — de Benjamin […] nos faz lembrar irresistivelmente o Augenblick de Klages, tal como apropriado por Heidegger”. Ora, Karl Mannheim já apontava, em seu livro Ideologia e utopia (1929), que a consciência utópico-milenarista — por exemplo, o anarquismo de um Gustav Landauer — recusa a ideia de evolução ou progresso, para privilegiar o momento (Augenblick) abrupto, o agora (Jetzt) carregado de significado.[21] Nem Klages nem Heidegger — pensador com o qual Benjamin sentia muito pouca afinidade — são necessários para dar conta da presença desses temas tipicamente messiânicos (ou quiliásticos) nas teses “Sobre o conceito de história”.[22]

Mais interessante me parece a opinião de Sergio Paulo Rouanet, que se rebela contra as interpretações irracionalistas e vitalistas da obra de Benjamin. O método empregado no Livro das passagens é temerário, mas perfeitamente racional: “Ele não consiste em usar a imagem para dissolver o pensamento na imediaticidade do pré-conceitual, o que seria, de fato, um projeto irracionalista, mas em pensar por imagens, como o alegorista, chegando ao mais abstrato através do mais concreto”. Rouanet cita ademais um parágrafo do livro em que Benjamin explicitamente reivindica para si o “machado agudo da razão [que] […] deve tornar transitáveis todos os terrenos, limpando-os dos arbustos da demência e do mito”.[23]

Entretanto, Rouanet não se refere, em seu ensaio, ao messianismo ou às teses de 1940. Seria este um terreno minado pelo irracionalismo? Em seu recente livro sobre Benjamin, o filósofo marxista Daniel Bensaïd define o pensamento do último Benjamin como racionalidade messiânica. Esta última se distinguiria da racionalidade historicista clássica por sua concepção não linear da causalidade, sua sensibilidade para o imprevisto e o aleatório, as aberturas, as transições e as passagens. Nas “Teses sobre o conceito de história” de Benjamin, “onde o machado afiado da razão messiânica cruza o martelo do materialismo crítico”, o futuro é apreendido como possibilidade irrompendo no presente, e não como fim da história, lugar imóvel de uma terra prometida.[24]

Como se descobriu recentemente, o célebre historiador da cultura Erich Auerbach havia proposto em 1934 o nome de Benjamin para o cargo de professor de literatura alemã na Universidade de São Paulo: infelizmente o projeto não vingou…[25] A verdade é que a América Latina estava longe das preocupações do autor do Livro das passagens. Encontramos entretanto em seus escritos algumas referências interessantes ao nosso continente. Por exemplo, em 1929 ele publica uma resenha do livro de Marcel Brion sobre Bartolomeu de Las Casas, e propõe a seguinte apreciação do livro (e, na mesma ocasião, do significado histórico do protetor dominicano dos indígenas): “O trabalho penetrante de Brion nos revela aqui no terreno moral a mesma dialética histórica, que encontramos também no terreno cultural: em nome do catolicismo um padre se opõe às atrocidades que se cometiam 
em nome do catolicismo”.[26]

Quarenta anos mais tarde encontramos no Brasil e na América Latina um exemplo notável dessa dialética histórica no campo ético: um grande número de discípulos de Las Casas, tratando de combater, em nome do cristianismo libertador, as atrocidades cometidas em nome da defesa da “civilização cristã ocidental”. Gostaria de concluir este texto com algumas palavras sobre a teologia da libertação, por duas razões:

1) Trata-se de uma forma de cultura político-religiosa cuja articulação explosiva de teologia e marxismo, redenção e luta de classes, apresenta inegáveis afinidades com o pensamento do último Benjamin — mesmo se existem diferenças óbvias (a começar pela distância entre o catolicismo e o judaísmo) e apesar de os teólogos da libertação ignorarem (com poucas exceções) a obra do escritor desaparecido em 1940.[27] Benjamin nos ajuda a entender a teologia da libertação — e vice-versa.

2) A teologia da libertação é o mais importante exemplo contemporâneo de messianismo revolucionário, como produção intelectual — de dominante racionalista — e como movimento social com vocação emancipadora.

Uma das principais críticas contidas na “Instração sobre alguns aspectos da teologia da libertação” lançada pelo Vaticano (a Congregação para a Doutrina da Fé) em 1984 contra a nova teologia latino-americana é que ela praticaria uma hermenêutica que conduz a uma releitura essencialmente política das Escrituras, situada “na perspectiva de um messianismo temporal”.[28] Na realidade, a teologia da libertação recusa a separação entre o temporal e o espiritual: ela reivindica para si o espírito vetero-testamentário da unidade da história — ao mesmo tempo sacra e profana, como no  Êxodo —, em oposição ao dualismo (matéria/espírito) de origem grega, que rompe com a mentalidade bíblica.

O que significa isso em relação ao messianismo? Segundo Gustavo Gutierrez, o advento do Messias é um tema que atravessa a Bíblia em seu conjunto. Uma espiritualização equivocada levou frequentemente a esquecer

o poder transformador das estruturas sociais injustas implicado pelas promessas messiânicas. A supressão da miséria e da exploração é um sinal da vinda do Messias… Lutar por um mundo justo, no qual não existirá mais nem servidão, nem opressão, nem trabalho alienado, é anunciar e significar a vinda do Messias. As promessas messiânicas, portanto, vinculam estreitamente o Reino de Deus e as condições de vida dignas do ser humano.[29]

Comentando as ideias de Gutierrez e de outros teólogos da libertação, Christian Duquoc — dominicano, professor do Instituto Católico de Lyon — observa com grande penetração:

Se os teólogos da libertação criticam as formas espiritualizadas do messianismo, é porque essas formas pressupõem que a história marche, como por encanto, na direção de uma realização feliz, escatológica, independentemente do que façam os seres humanos. Essa interpretação espiritualizante não inicita à ação, mas à passividade. Se os pobres se resignam, a história continua sendo o lugar privilegiado da violência. A transferência do caráter messiânico de Jesus ao povo, sobre o fundamento da Páscoa, exclui um advento do sentido independentemente da tomada de seu destino em suas próprias mãos por parte dos oprimidos.[30]

Paradoxalmente, a doutrina espiritualista passiva à qual se opõe o messianismo ativo da teologia da libertação apresenta surpreendentes semelhanças com a doutrina materialista do progresso automático contra a qual combatia o messianismo revolucionário de Walter Benjamin…

Notas

[1] Estou usando a tradução (inédita) do texto de Benjamin por Marcos Lutz Muller e Jeanne Marie Gagnebin.

[2] . L. Talmon, Political messianism. The Romantic phase, Londres, Secker & Warburg, 1960, pp. 35-228.

[3] Karl Löwith, Meaning in history, Chicago, The University of Chicago Press, 1949, pp. 42-4.

[4] Condorcet, Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, Paris, Éditions Sociales, 1966 (1793), p. 248.

[5] W. Benjamin, “Das Leben der Studenten” (1915), in Gesammelte Schriften, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1977, Band II, 1, p. 75. Esta conferência foi pronunciada por Benjamin no verão de 1914, mas sua redação final se deu mais tarde, já à luz dos acontecimentos de agosto de 1914 (início da guerra).

[6] W. Benjamin, Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik (1919), Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1973, pp. 65-6, 70.

[7] Idem, ibidem, pp. 86-7. Ver também o ensaio de 1916, “Trauerspiel und Tragödie”, que insiste na diferença entre o tempo messiânico pleno (erfüllt) e o tempo vazio da mecânica e do relógio (Gesammelte Schriften, II, 1, p. 134).

[8] Como o observa Leandro Konder em seu belo livro sobre Benjamin, existe na evolução do pensador “marxista melancólico” uma forte continuidade subterrânea, que o leva com frequência a reassumir concepções anteriores, mesmo depois de ter ingressado em novos períodos e mesmo depois de suas ideias terem sofrido importantes reformulações (L. Konder, Walter Benjamin. O marxismo da melancolia, Rio de Janeiro, Campus, 1988, p. 25).

[9] W. Benjamin, “Der Surrealismus, Die letzte Momentaufnahme der europäischen Intelligenz”, in Gesammelte Schriften, II, 1, p. 308.

[10] Carta de abril de 1940, citada no aparato crítico do t. I, 3 das Gesammelte Schriften, p. 1226.

[11] Como observa com razão Jeanne Marie Gagnebin em seu excelente livrinho, Benjamin rejeita uma concepção teleológica da história, na qual esta “se encaminha inexoravelmente em direção a uma meta preestabelecida e constatável ‘cientificamente’”. A originalidade de Benjamin consiste em não se contentar com a denúncia dessa visão determinista, mas criticar “a concepção de tempo que a sustém e que permite pensar o devir histórico independentemente da ação humana” (J. M. Gagnebin, Walter Benjamin, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 22).

[12] W. Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels, in Gesammelte Schriften, i, 1, p. 343.

[13] Mais uma vez usamos a tradução de Marcos Muller e Jeanne Marie Gagnebin.

[14] Cf. J. M. Gagnebin, op. cit., p. 23: “Uma das constantes de Benjamin é passar do registro teológico ao materialista e vice-versa, com uma facilidade que desconcerta seus leitores”.

[15] W. Benjamin, Gesammelte Schriften, III, 1, pp. 220-30.

[16] W. Benjamin, Das Passagen-werk, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1983, Band 1, p. 43.

[17] W. Benjamin, Gesammelte Schriften, I, 2, pp. 703 e I, 3, p. 1243.

[18] Idem, ibidem, I, 3, pp. 1231-2.

[19] G. Scholem, Walter Benjamin und sein Engel, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1983, p. 65.

[20] W. Benjamin, Briefe, Frankfurt/Main, Suhrkamp, 1983, Band 1, p. 426.

[21] José Guilherme Merquior, O marxismo ocidental, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987, pp. 180-1, e Karl Mannheim, Ideologie und Utopie, Frankfurt/Main, Verlag G. S. Bulmke, 1969, p. 195.

[22] Em uma carta a Scholem datada de 20 de janeiro de 1930, Benjamin prevê um “choque” com a obra de Heidegger, resultado do encontro de duas maneiras “muito diferentes” de conceber a história. Meses mais tarde (25 de abril), escrevendo ao mesmo amigo, refere-se a um projeto comum empreendido por Brecht e ele, visando “demolir Heidegger” (W. Benjamin, Briefe, Band 2).

[23] Sergio Paulo Rouanet, “Benjamin, o falso irracionalista”, in As razões do Iluminismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 114-5.

[24] D. Bensaïd, Walter Benjamin, sentinelle messianique, Paris, Plon, 1990, pp. 190, 210, 217, 249.

[25] Veja-se a carta de Auerbach a Benjamin datada de 23 de setembro de 1935, recentemente descoberta e publicada por Karlheinz Barck: “Há pelo menos um ano, quando soube que se buscava um professor de literatura alemã para São Paulo, pensei no senhor, e transmiti seu endereço naquela época (na Dinamarca) às instâncias competentes — mas nada resultou disso…” (K. Barck, “5 Briefe Auerbachs and Walter Benjamin”, Zeitschrift für Germanistik, Berlim, H. 6, 1988, p. 689).

[26] W. Benjamin, Gedammelte Schriften, III, 1, p. 180.

[27] Raros são os especialistas em Benjamin que se dão conta dessa analogia. Por ocasião do colóquio sobre Benjamin organizando pelo Instituto Goethe do Brasil, Klaus Garber confessou sentir uma “grande tentação” de analisar a teologia da libertação à luz do pensamento de Benjamin (“Dossiê Walter Benjamin”, Revista USP, no 15, set. nov. 1992, p. 16.

[28] Congregation pour la Doctrine de la Foi, “Instruction sur quelques aspects de la théologie de la libération”, in Théologies de la libération. Documents et débats, Paris, Cerf, 1985, p. 175.

[29] G. Gutierrez, La fuerza historica de los pobres, Lima, Centro de Estudios y Publicaciones, 1979, pp. 55-6.

[30] Christian Duquoc, “Une unique historie. Réflexion autour d’un thème majeur des théologies de la libération”, Recherches de Science Religieuse, t. 74, no 2, avril-juin 1986, pp. 
214-5.

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