1996

Nascimento da razão, origem da crise

por Francis Wolff

Resumo

É historicamente legítimo dizer que uma nova ordem da razão surge na Grécia do século V a.C. Ela se caracteriza por uma rejeição da autoridade (mitos, textos sagrados, mestres da verdade) e por uma capacidade de universalização (sofistas e filósofos). Em vez de ato ritualizado, o discurso “racional” torna-se enunciado puro; a verdade subordina-se ao real que ela enuncia e exige a concordância do interlocutor. Isso tem a ver com a democratização das instituições políticas: isegoria (direito dado a todos de aconselhar a Cidade) e isocrítica (admitir como verdadeiro somente o que o outro admite como tal, qualquer um tendo esse direito). Todos possuem a faculdade de se comunicar discursivamente com todos, segundo um princípio geral de substituibilidade de locutores e ouvintes. E um discurso verdadeiro se reconhece pela coerência de sua cadeia argumentativa. Mas os discursos são plurais e cada um pode escolher entre enunciados contraditórios. Assim, com a razão nasce a crise, a ambiguidade. Ou se privilegia o discurso fundador da técnica argumentativa (a matemática) ou se privilegia o princípio fundador do julgamento democrático (a política). Seria irracional recusar que 2 + 2 = 4, mas seria irracional também admitir as regras de adição por maioria de votos. Como estabelecer conceitos igualmente eficazes para a universalidade objetiva (ciência, teoria e demonstração) e para a universalidade interlocutiva (debate e argumentação)? Questão talvez insolúvel. Mas se a crise é sempre constitutiva da razão, o que importa é fazer bom uso dela.


Sob muitos aspectos pode parecer temerário falar de “nascimento da razão”. Pois de que modo “a razão” poderia nascer?

A razão, entendida como uma essência, só poderia ser eterna. O conceito de “razão”, com efeito, é empregado desde a época medieval para designar a essência mesma do homem, definido, segundo a adaptação latina de uma observação de Aristóteles, como animal racional. A “razão” era assim concebida como a diferença específica do homem em relação aos demais seres vivos — e portanto como uma forma imutável, a-histórica, da humanidade, ela própria forma imutável e ahistórica. Falar do nascimento da razão parece assim uma contradição nos termos, já que a razão é coextensiva à humanidade.

Certamente, dirão, não seria possível buscar na história uma essência metafísica como a da razão, mas se poderia, ao contrário, tentar descobrir positivamente, por exemplo, quando na história os homens passaram a “raciocinar”, a pensar “conceitualmente” ou dedutivamente: somente sob essa condição é que se poderiam descobrir traços do advento histórico — ou mesmo pré-histórico — da razão. No entanto, é provável que essa abordagem, aparentemente mais positiva, esteja tão carregada de pressupostos metafísicos quanto a precedente. Pois passaríamos assim de uma concepção essencialista do Homem a uma concepção evolucionista da história. Ora, pensando bem, não há nenhuma razão para considerar que os homens, outrora, fossem menos “racionais’’ ou menos “razoáveis’’ que nós. Acaso preparar metodicamente uma armadilha para capturar um animal selvagem requer menos razão que construir uma bomba atômica? Há mais razão nas crenças e nos costumes de hoje do que naqueles de trinta séculos atrás?

Portanto não há razão para pensar que os homens, coletiva ou indivi dualmente, raciocinem mais ou melhor hoje que outrora, e muito menos para datar o nascimento da razão-faculdade. E, de fato, na medida em que a “razão’’ é pensada como uma determinação que se aplica ao Homem ou aos homens, não há nenhuma razão de imputar-lhe um nascimento.

Entretanto, há seguramente um sentido legítimo em falar de “nascimento da razão’’, contanto que se rompa com uma concepção da razão como essência ou faculdade e com uma concepção da história cujo centro seria o Homem. Pois se considerarmos não mais a história humana como tal, mas a história dos sistemas de pensamento, a história dos modos de seleção dos discursos socialmente legítimos, a história das técnicas da verdade, então podemos constatar momentos de ruptura na organização geral do saber. Sabemos que foi tal ruptura que ocorreu na Grécia do século V a. C. Essa ruptura é chamada às vezes a “passagem do mito à razão’’. Designa-se assim o aparecimento de uma nova ordem do saber que organiza conjuntamente novos campos de conhecimentos, que supõem, implicitamente, novos modos de validação e reconhecimento dos discursos verdadeiros, entre os quais se contam a demonstração matemática, que se formaliza com Tales por volta de 600 a. C., a investigação física e cosmológica, que na mesma época se afasta do mito entre os físicos da Jônia, a investigação histórica, que rompe com a lenda e adquire um caráter sistemático com Heródoto. É também a época em que se elabora um sistema de direito civil e penal que nada mais deve aos valores religiosos, como a pureza, ou às práticas rituais, como o ordálio, e em que se constitui igualmente uma nova economia da prova judiciária, fundada na argumentação e na investigação dos fatos. Para o coroamento de tudo, nascem, como sabemos, os primeiros grandes sistemas filosóficos.

Não é sem razão que essa nova ordem do saber, constituída no século V, pôde ser qualificada de racional — por oposição à antiga. Sem querer dar uma definição a priori demasiado estreita ou rigorosa, pode-se de fato dizer que a razão se resume em dois traços relacionados um ao outro, um negativo, o ou tro positivo. Negativamente, é a rejeição de toda autoridade, em particular de toda autoridade exterior ao julgamento de cada um (preconceitos, tradições, crenças a priori, discurso do mestre, texto sagrado etc.). Positivamente, é uma capacidade de universalização: uma conduta, uma crença, um discurso são geralmente qualificados de racionais se são universalizáveis, isto é, se dependem, cada um deles, apenas de sua faculdade discursiva, ou seja, de um discurso por direito enunciável e aprovável por todos. Ora, esses dois traços se encontram de uma ponta à outra da nova ordem do saber da segunda metade do século V, encarnada, no lado negativo, pelos sofistas, responsáveis por um formidável movimento de crítica à autoridade, à tradição, aos mitos, e, no lado positivo, pelos primeiros físicos, historiadores ou filósofos, que elaboram, sobre as ruínas das antigas crenças, uma discursividade universalizável. Tomada nesse sentido, a razão teria portanto nascido, há cerca de 25 séculos, às margens do Mediterrâneo, sob a luz auroral da Grécia.

Não obstante, pode ser que essa visão binária “do mito à razão’’, essa visão idealista da Grécia (o “milagre grego’’[1]), essa visão aufklärer da história que opõe a Razão triunfante à Obscuridade desfeita, seja tão contestável quanto nossas concepções essencialista ou evolucionista.

Pois se é possível efetivamente atribuir uma data de nascimento à razão, com a condição de fazer dela o determinante não do Homem mas dos sistemas de pensamento, então se verifica que, desde seu nascimento, a razão foi plural. Com efeito, uma interrogação sobre o Homem ou sobre a história dificilmente conseguirá datar a idade da razão — nome de uma faculdade mais ou menos misteriosa mas necessariamente una, indivisível e atemporal. No entanto, assim que interrogamos a constituição de modos de conhecimento ou a gênese de práticas discursivas, podemos certamente falar de “nascimento da razão’’, mas com a condição de ver na razão apenas o caráter do que é pensado ou realizado racionalmente. O substantivo razão é substituído pelo adjetivo ou pelo advérbio. Sendo assim, temos condições de perceber que não foi a razão que veio substituir de maneira inteiramente uniforme o mito, mas racionalidades diversas e conflituais. Tão logo se admite que os modos de pensamento não flutuam no céu das ideias mas estão encarnados em instituições sociais, determinados por práticas políticas e solidários de técnicas discursivas, então pode ficar claro que o pensamento racional se desenvolveu desde o início de modos antitéticos. Jamais houve uma nova ordem do saber — racional — substituindo a ordem antiga — mítica. O que ocorreu foi inclusive o contrário: a ordem antiga foi substituída por diversos sistemas igualmente racionais, mas rivais e antagonistas — e é talvez nisso que eles eram racionais! Dito de outro modo, o nascimento da razão foi ao mesmo tempo, e necessariamente, sua crise. O que nos obrigaria a romper com a ideia, ela própria mítica, de uma razão unificadora. É o que iremos tentar mostrar — e compreender.

Mas antes de mais nada: em que medida essas novas técnicas de pensamento ou de discurso podem ser qualificadas de racionais?

Para compreendê-lo, pode-se partir do conceito de “mestre da verdade’’ e opô-lo aos novos discursos da verdade que aparecem no século V — particularmente no corpus científico e no discurso jurídico, que tomaremos como pontos de apoio.

Como escreve Michel Foucault, “ainda entre os poetas gregos do século VI, o discurso verdadeiro, aquele em relação ao qual se tinha respeito e terror, aquele ao qual era imperativo se submeter, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual prescrito’’.[2] Nos tempos de Hesíodo, com efeito, como mostrou Marcel Détienne em Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque [Os mestres da verdade na Grécia arcaica], a verdade não é separável do mestre que a enuncia e das condições claramente formalizadas de sua enunciação. O mestre da verdade é em primeiro lugar o poeta que arranca os homens e os deuses do esquecimento e lhes dá assim uma memória. “Sua palavra eficaz institui por sua virtude própria um mundo simbólico-religioso que é o próprio real.’’[3] Cabe ao poeta dizer o que verdadeiramente foi: sem sua palavra, os altos feitos dos homens mergulham no não-ser; através dela eles são, tendo sempre sido. Ao contrário do que fará o historiador clássico, o poeta arcaico não busca dizer o que foi tal como pôde estabelecê-lo consultando e criticando as fontes, mas o estabelece pela escansão repetida e captadora de seu dizer, eco de todos os ditos, cuja beleza sublinha a verdade. O adivinho, outro mestre da verdade, diz de maneira uniforme o que foi, é ou será. Mas, contrariamente ao físico da época clássica, que do mesmo modo diz a natureza sob a forma do eterno, ele não busca dizer o ser tal como ele é, mas contribui para fazer com que ele seja por meio de seu dizer: sua palavra realiza, e por isso é cercada de desejo e temor e protegida da linguagem ordinária por seu cerimonial. O rei de Justiça da época arcaica igualmente diz a verdade como um mestre: ao contrário do júri da época clássica, que procura estabelecer o que foi feito e o que deve resultar disso, confrontando argumentações contraditórias, o antigo mestre da verdade faz ser o que ele diz, enunciando ritualmente o justo: ao fazer isso, atribui a cada um sua parte no mundo cósmico e portanto institui a ordem real da Cidade.

Se tentarmos agora enunciar sinteticamente a oposição entre as práticas discursivas da verdade na época clássica e na época arcaica, podemos destacar três traços, aliás solidários.

O primeiro concerne ao próprio discurso verdadeiro. Nas práticas arcaicas, o discurso verdadeiro jamais é “puro’’, isto é, puramente discursivo. O discurso (do poeta, do adivinho, do rei de Justiça) não é senão o elemento de um dispositivo mais geral de enunciação, ato ritualizado, jamais é separável do conjunto das circunstâncias formalizadas que o tornam possível e das marcas de distinção que assinalam seu poder de veridicidade. Nas práticas “racionais’’ (do historiador, do físico e mesmo do orador), o discurso é puro enunciado, um enunciado anônimo simplesmente ligado à sua referência, da qual obtém sua verdade. Isso é tanto mais verdadeiro para o enunciado puro por excelência, sem indicadores, sem temporalidade nem sujeito, sem nenhuma relação com as circunstâncias particulares de sua enunciação: o enunciado científico. E, entre os gregos, ele é representado essencialmente pelo discurso do matemático, cujo enunciado atômico típico é aquele que Aristóteles não cessa de tomar como exemplo: “A diagonal do quadrado é incomensurável com seu lado’’.

Segundo traço de oposição dos dois tipos de práticas discursivas, concernente desta vez à relação do discurso verdadeiro com o real. Nas práticas arcaicas, o discurso não constata o real, ele performativamente o faz ser. Numa passagem da Metafísica, Aristóteles afirma que não é por dizermos a verdade que aquilo de que falamos é real, mas porque aquilo de que falamos é real é que dizemos a verdade.[4] Esse teorema, porém, na realidade só tem sentido nas práticas discursivas clássicas, e nos permite opor claramente duas relações inversas do discurso verdadeiro com a realidade. No discurso “racional’’, diz-se que as coisas são tais; ora, elas são tais; logo, diz-se a verdade: subordina-se a verdade ao real que ela enuncia. No discurso arcaico, o mestre diz que as coisas são tais; ora, ele diz a verdade (por ser o mestre); logo, as coisas são tais: reconhece-se a verdade no mestre que a enuncia. A passagem às práticas racionais de veridicidade pode portanto ser descrita como uma inversão: da autoridade do mestre como abonador da realidade daquilo de que ele fala à autoridade da realidade como abonadora da veri dicidade do que diz o locutor.

O terceiro traço de oposição entre os dois tipos de práticas discursivas diz respeito à relação do discurso verdadeiro com seu destinatário. O do discurso arcaico é puramente passivo na constituição da verdade: ele escuta a palavra e a admite como verdadeira porque se submete ao mestre. Ele não precisa nem opinar nem mesmo crer. Nas práticas racionais do discurso, ao contrário, não há verdade possível sem a concordância, em geral explícita, daquele a quem nos dirigimos. A ponto de essa aprovação constituir, na maioria das vezes, a condição mesma da veridicidade. Dizer a verdade é antes de tudo poder fazer com que aqueles a quem nos dirigimos também admitam como verdadeiro o que dizemos. No tribunal, por exemplo, entre dois discursos, é tido por verdadeiro aquele que é reconhecido como verdadeiro pela maioria. Esse reconhecimento, com efeito, é que constitui a persuasão retórica; mas ele é igualmente constitutivo, embora em menor grau, da demonstração matemática. Para o professor, demonstrar é enunciar apenas o que o aluno não pode não admitir como verdadeiro sendo dado o que já admite como verdadeiro — teoremas ou axiomas (salvo os casos de “postulados’’, em que o professor pede explicitamente, e excepcionalmente, que o aluno admita um enunciado ao qual poderia não dar sua concordância).

Purificação do enunciado verdadeiro das condições em que ele é proposto; independência do enunciado verdadeiro em relação à autoridade daquele que o propõe; necessidade, para aquele a quem o enunciado verdadeiro é proposto, de reconhecê-lo igualmente como verdadeiro. Nessas três modificações está inscrito o nascimento da razão, ou pelo menos a racionalização das condições de produção da verdade. Mas nessas três modificações também está inscrita, em filigrana, a crise da razão, necessariamente coextensiva a seu nascimento.

Com efeito, no lugar do mestre da verdade, há doravante um “lugar vazio”, pelo menos o lugar para três questões. Se o enunciado é puro, então como reconhecer o enunciado verdadeiro, o que diz o ser tal como ele é, já que este não é oferecido ao reconhecimento público em discursos raros, sacralizados em suas formas, inscritos num ritual que os legitima e assinala seu valor insigne? Se o enunciado é o de qualquer um, e não do mestre socialmente legitimado, então o que impede o enunciado verdadeiro de ser um enunciado qualquer, e como reconhecer o que diz o ser tal como ele é, já que este agora está órfão de seu pai, o Insubstituível, o Mestre único? Se um enunciado recebe a aprovação contingente de qualquer um por acaso, então o que impede o enunciado verdadeiro de ser um enunciado qualquer, e como reconhecer aquele que, ao contrário dos outros, diz o ser tal como ele é, já que este não é mais o discurso que se impõe autoritariamente a todos?

Essas questões não constituem a crise da razão. Elas designam antes um espaço livre, o espaço livre da razão e, ao mesmo tempo, o lugar deixado vago pelo Mestre. E é nesse espaço que vão necessariamente se inscrever as diferentes técnicas racionais, que, em sua diversidade e por sua incompatibilidade, vão justamente constituir a crise da razão.

Mas antes de tentar compreender como essa crise foi historicamente possível e sobretudo por que ela era a priori necessária, é preciso talvez tentar determinar o motor histórico dessa racionalização dos procedimentos discursivos que se completa no século V. De acordo com nossa hipótese inicial, segundo a qual a razão não é nem uma faculdade nem uma essência, mas o determinante de modos de conhecimento inscritos em práticas sociais, consideraremos desta vez a hipótese de que essa racionalização dos sistemas de pensamento não é senão a outra face de um processo histórico contemporâneo: a democratização das instituições políticas.

Sabemos que o século V grego não é apenas o do nascimento da história, da demonstração matemática, ou da interrogação filosófica, mas também o da democracia. É verdade que a democracia ateniense não corresponde exatamente ao que entendemos pela palavra: o povo soberano tem, na antiga democracia, uma extensão nitidamente mais limitada que na atual, ainda que suas atribuições sejam nitidamente mais amplas; a democracia ateniense é direta, ignora a representação e nela o sorteio dos cargos possui um papel essencial, juntamente com a eleição.[5] É verdade que a democracia ateniense jamais foi aquele sonho que tantos filósofos modernos projetaram sobre ela (ao contrário dos antigos). Também ela esteve, desde a origem, em crise, minada interiormente pela demagogia e torpedeada do exterior pela reação aristocrática. Apesar de tudo, cumpre admitir que foi por meio desse regime que, pela primeira vez na história, sem dúvida, os homens foram entregues a si mesmos para dispor de si próprios, sem a autoridade de um chefe, a dominação de uma casta ou a irrecusabilidade de um texto sagrado.

Ora, como sabemos, a democracia é por excelência o regime do discurso, isto é, da palavra pública: toda decisão (política, jurídica ou judiciária) supõe a discussão aberta, a confrontação explícita das posições das partes presentes, a exposição a todos de razões válidas para todos, o estabelecimento em comum dos valores comuns. De modo que, na democracia, a política se confunde com o intercambiável, tanto por seus objetos (o político é o discutível) como por sua forma (publicidade dos debates, transmissibilidade das opiniões).

Em que consiste, portanto, o regime discursivo da democracia? A democracia política é, por definição, negativa, a rejeição do Mestre, ou seja, do Insubstituível. A democracia discursiva é, positivamente, um regime de discurso que obedece, como corolário, ao que podemos chamar o princípio da substitutibilidade infinita dos lugares dos locutores e dos ouvintes. Talvez possamos, mais precisamente, distinguir seus dois aspectos complementares, que chamaremos a isegoria locutiva e a “isocrítica’’ interlocutiva.

Há primeiramente, do lado do locutor, o que os gregos chamavam em política a isegoria: o direito igual dado a todos de “levantar-se para aconselhar a Cidade’’. De maneira mais geral, podemos considerar a isegoria como o reconhecimento da equivalência dos locutores, ou seja, a indiferença a 
priori do enunciado quanto à qualidade ou ao estatuto do enunciador; é, em suma, o princípio segundo o qual a palavra adquire autoridade apenas pelo fato de pertencer à comunidade dos locutores possíveis. Ora, se esse princípio discursivo, em sua face política, é institucionalizado no funcionamento democrático da Cidade, em sua face cognitiva ele é o próprio fundamento do novo regime da verdade encarnado no funcionamento racional dos modos de conhecimento. Tomemos dois exemplos: a administração racional da prova em matéria judiciária supõe o direito rigorosamente igual das partes de expor seu ponto de vista diante de todos a fim de persuadir a todos. Essa mesma igualdade tem por função garantir boa parte das regras formais da instituição judiciária no direito clássico, a verdade devendo manifestar-se primeiro pela simples aplicação da regra isegórica: igualdade estrita dos tempos de fala, equiparação de todos os meios de defesa das teses opostas. Do mesmo modo, na outra extremidade, a administração racional da prova em matéria matemática resulta também da possibilidade, para qualquer um que tenha aprendido, de transmitir a um interlocutor possível o conjunto do corpus do saber, dos primeiros princípios às últimas consequências. Tampouco aí existe Mestre. A própria ideia de que os enunciados matemáticos são demonstráveis está fundada precisamente na transmissibilidade indefinida do saber e na substitutibilidade indefinida dos sábios, pura função sem sujeito, lugar vazio do Mestre.[6]

Mas essa substitutibilidade democrática tem também uma outra face, do lado do destinatário do discurso. A democracia supõe, com efeito, não apenas que todos os locutores têm igual direito a falar mas também, como corolário, que todos os interlocutores têm igual direito a julgar o que os ou tros dizem. Decidir, em democracia, se faz em dois tempos: o tempo em que se fala (discussão) e o tempo em que se julga (pelo voto, por exemplo). E este último supõe não mais a coletividade dos locutores possíveis mas a dos interlocutores possíveis, que se confunde com a primeira somente em extensão. Do ponto de vista do regime da verdade, isso implica que o estabelecimento de uma verdade depende não apenas de um poder de enunciação — o direito de falar — mas de um poder judicativo ou “crítico’’ — o direito de julgar se o que é dito é verdadeiro. Por oposição ao regime arcaico da 
verdade, que conhece apenas o poder do locutor autorizado a enunciar verdades já julgadas (ou seja, sem julgamento verdadeiro), no regime democrático da verdade esses dois poderes são distintos e encarnados pelos lugares respectivos do locutor e de seu destinatário. Dito de outro modo, a “isocrítica’’ consiste no seguinte: jamais admitir como verdadeiro senão o que o outro a quem nos dirigimos admite como tal, e reconhecer a qualquer outro o direito igual de ser esse interlocutor legítimo. Ora, esse mesmo princípio discursivo, encarnado no funcionamento democrático da Cidade, encontra-se, em sua faceta cognitiva, no fundamento do funcionamento racional dos modos de conhecimento. Retomemos nossos dois exemplos: a administração racional da prova em matéria judiciária supõe o direito, rigorosamente igual para todos os ouvintes, de julgar a verdade do que foi afirmado pelas partes. Uma boa parcela das regras formais da instituição judiciária tem a função de garantir essa igualdade e essa independência das funções: princípio do júri popular, direito de voto igual para todos os ouvintes, passividade e mutismo absoluto dos juízes (que não participam sequer da condução do debate) etc. O que alguns afirmaram, outros, e inclusive todos, de maneira coletiva e igual, devem julgar. Do mesmo modo, a administração racional da prova em matemática resulta também do reconhecimento de que cabe ao destinatário, ao aluno, se quiserem, estabelecer como verdadeiro o que diz o professor, e que nada do que este diz é verdadeiro, a não ser aquilo que o aluno não puder deixar de reconhecer indiscutivelmente como tal, no estado em que se encontra seu próprio saber. É exatamente isso o que fundamenta, tecnicamente, uma demonstração: partir daquilo que aquele a quem nos dirigimos reconhece como verdadeiro para deduzir daí o que ele ainda não pode, mas deverá, necessariamente, reconhecer como verdadeiro, sem jamais recorrer a algo que exceda aquilo que a cada instante ele não pode deixar de considerar verdadeiro. Também nesse caso não existe Mestre. Como o locutor, o interlocutor é uma pura função sem sujeito, o outro lugar vazio do Mestre, a simples aplicação do princípio da substitutibilidade indefinida.

No duplo princípio da substitutibilidade sobre o qual se fundam as decisões tomadas democraticamente ter-se-á reconhecido, portanto, o mesmo duplo princípio sobre o qual se fundam as verdades estabelecidas racionalmente. Assim se poderá adiantar que o nascimento da “razão’’ na história dos sistemas de pensamento, ou pelo menos dos procedimentos de estabelecimento das verdades, não é senão o equivalente, do lado do conhecimento, do advento da democracia na história das instituições políticas.

Com isso, duas de nossas questões deixadas em suspenso encontraram resposta, entre as três que o vazio deixado pelo discurso do Mestre colocava.

Como se reconhece, no regime racional, o discurso verdadeiro, se ele não é o que é dito pelo Mestre, nos perguntávamos. Justamente no fato de ele poder ser assumido por qualquer um. Não é qualquer enunciado, mas somente aquele que pode ser afirmado por qualquer um. O princípio da insubstitutibilidade (do Mestre) é substituído pelo princípio da isegoria (dos locutores). Como se reconhece, no regime racional, o discurso verdadeiro, se ele é aquele que qualquer um pode aprovar? Justamente no fato de que deve ser aprovado por aquele a quem nos dirigimos. Não é qualquer enunciado, mas somente aquele que pode ser aprovado por qualquer um. O princípio da obediência do destinatário é substituído pelo princípio da ‘’isocrítica’’: supõe-se que cada um seja dotado de uma faculdade de julgar o verdadeiro e o falso.[7] Os dois princípios asseguram conjuntamente a função de rarefação, de seleção, de distinção dos discursos legítimos: no lugar do mestre do discurso verdadeiro, não há uma ausência de sujeito, mas um novo sujeito da verdade, definido por uma dupla universalização, as duas faces da substitutibilidade discursiva. Poderemos de resto reconhecer, na complementaridade dessas duas faces, duas das características clássicas da razão: faculdade que todos possuem de se comunicar discursivamente com todos, capacidade de cada um de distinguir o verdadeiro e o falso. Duas características essenciais, mas incompletas.

Porque resta a terceira questão deixada em suspenso, a que concernia ao próprio discurso. Se doravante, no regime racional, o discurso está nu, despojado de todas suas condições ritualizadas de enunciação singular, como reconhecer que se trata de um discurso verdadeiro? Como se dá o processo de rarefação dos enunciados e de legitimação do discurso? A isso o regime democrático da verdade não responde, mas é fácil perceber o que, de fato, veio substituir o ritual como elemento de seleção do enunciado legítimo. Uma vez que o discurso é puro, puro enunciado que remete apenas à sua referência, ele não pode mais ser legitimado pelas condições singulares que remetem, solenemente, cada enunciado às suas circunstâncias excepcionais; ao contrário, o que irá assinalar sua verdade são as condições mais gerais que põem em relação cada enunciado com todos os outros no seio do próprio discurso. Para que um enunciado seja verdadeiro, doravante é preciso que ele seja compatível com todos os demais no seio do mesmo discurso — discurso cuja identidade é definível justamente por essa coerência.

Compreende-se assim como o Mestre, sua pompa, sua autoridade, seu ritual discursivo foram substituídos por técnicas argumentativas, por direito utilizáveis e controláveis por todos.

Com efeito, o que define uma argumentação senão, em primeiro lugar, justamente a condição que acabamos de observar: a necessidade de relacionar todo enunciado aos demais no seio da cadeia discursiva? Em outras palavras, argumentar é determinar quais enunciados condicionais permitem chegar a um outro enunciado compatível com os primeiros sem recorrer a nada mais senão a enunciados “puros’’. É, em suma, constituir uma cadeia discursiva sem sujeito. Vê-se de fato como, da condição primeira (a coerência da cadeia), tiram-se as duas outras, que são as que observamos. Uma técnica argumentativa é controlável por todos, é por isso que ela é uma técnica; e as cadeias discursivas que com ela é possível constituir são independentes do estatuto do locutor, e é por isso que ela é argumentativa (isegoria). Uma argumentação é o único meio discursivo, puramente discursivo, com o qual é possível que aquilo que consideramos verdadeiro seja admitido como tal por aquele a quem nos dirigimos, supondo neste a capacidade de julgar por si mesmo o verdadeiro e o falso (isocrítica). Nessas três condições reunidas, portanto, veremos a “obra da razão’’, a argumentação, que permite a qualquer um convencer qualquer um.

Tudo isso seria bom e belo. Ao temível Mestre dos tempos obscuros, proferindo verdades inverificáveis às quais era preciso obedecer, teriam sucedido homens livres, vivendo juntos, democraticamente, de acordo com suas próprias decisões, e só admitindo como verdadeiro o que racionalmente julgassem dever admitir. Mas isso jamais aconteceu. Porque, justamente, jamais houve uma técnica argumentativa única, nem, de fato, uma racionalidade única.

Tratemos de examinar por quê. Lembremos primeiro que a terceira condição (a que comanda o vínculo de todo enunciado aos demais em substituição ao vínculo de cada enunciado às suas condições de enunciação) é a tal ponto independente das outras duas que não é constitutiva do “regime democrático do discurso’’. E é bem natural que seja assim. Se cada um é livre para exprimir sua opinião e julgar a verdade das outras, não se percebe como todas poderiam se submeter a priori à lei da coerência discursiva. Na assembleia, um locutor, se quiser fazer com que os outros compartilhem sua opinião, deverá sem dúvida tentar persuadi-los por meio de argumentos, e portanto deverá, na medida do possível, submeter seu próprio discurso a essa lei (por 
exemplo, através do que Aristóteles chama entimemas). As condições 1 (isegoria) e 3 (coerência) estão assim reunidas em seu discurso. Mas, dado que num regime democrático nenhum enunciado pode ser tido por verdadeiro sem que aqueles a quem nos dirigimos o decidam (condição 2), não é necessariamente esse discurso particular que será reconhecido como verdadeiro (ou justo), o que pode ocorrer com este ou aquele outro, rigorosamente incompatível com o seu. E já que o poder de julgar reconhecido a todos é o de discriminar entre enunciados, o conjunto discursivo submetido ao julgamento de cada um é evidentemente incoerente: cada um pode e deve escolher entre enunciados contraditórios, podendo se apresentar argumentos em defesa tanto de um como de outro. Por exemplo, os enunciados “Os generais da batalha das Arginusas são traidores’’ e “Eles não são traidores’’.*

E é aí, no nascimento da razão, que se situa a origem de sua crise; é aí que a razão se divide em racionalidades antitéticas. Por duas razões que se conjugam. De um lado, as condições 2 (isocrítica) e 3 (coerência), igualmente necessárias para definir a argumentação, são, no limite, enquanto condições da verdade, incompatíveis entre si. Mas, de outro lado, as três condições que vimos não são por si só suficientes para determinar racionalmente a verdade de um enunciado. Elas não bastam inteiramente para substituir o Mestre morto. Pois não permitem que de fato se responda, em todas as circunstâncias, à questão concernente a como se reconhece um enunciado que diz o que é. Sob o reinado do Mestre, não havia problema, ocorria o inverso, o dizer do mestre precedia e determinava o que era tido por ser. Mas doravante o problema se coloca, pois supõe-se que “o que é’’ preceda e determine o que dele se diz.

A priori, com efeito, duas respostas opostas são possíveis à questão precedente.

Ou se privilegia um princípio fundador da técnica argumentativa, sua condição 3, isto é, o princípio segundo o qual todo enunciado deve se relacionar ao corpus de todos os outros. E, de fato, o discurso é verdadeiro porque diz o ser e o ser é o que é sem poder ser de outro modo. À coerência absoluta de todos os enunciados entre si corresponde o princípio ontológico de identidade e de não-contradição no ser. Mas, no limite, esse princípio acaba, cedo ou tarde, por entrar em contradição com o poder “crítico’’ que se supõe existir em cada um: pois como diferentes crenças opostas poderiam ser verdadeiras ao mesmo tempo? É essa via racional que leva a uma forma extrema e limite de argumentação, a demonstração matemática, e, mais além, ao discurso da ciência.

Ou se privilegia um princípio fundador do julgamento democrático, a condição 2 do regime democrático da verdade, isto é, o princípio segundo o qual todo sujeito falante pode igualmente julgar a verdade de todo discurso. E, de fato, o discurso é verdadeiro porque pode ser aprovado por qualquer um a quem ele é dito, e não por alguns em detrimento de outros. Mas, no limite, esse princípio acaba, cedo ou tarde, por entrar em contradição com o princípio de identidade no ser: pois como poderiam ser considerados verdadeiros enunciados admitidos por este ou por aquele mas incompatíveis entre si? É essa via racional que leva a uma forma particular de argumentação, a que “permite concluir os contrários’’, a argumentação retórica, e, mais além, ao discurso do direito.

A crise da razão pôs assim em concorrência, desde o início, vários campos de racionalidade distintos. Jamais houve uma maneira de estabelecer racionalmente verdades, mas necessariamente várias. O antagonismo entre ciência e direito é a melhor ilustração desse nascimento conflituoso.

O discurso da ciência, e, particularmente, a demonstração matemática, funda-se sobre a isegoria democrática: qualquer um, contanto que saiba falar, pode conhecer e enunciar as verdades matemáticas, seja qual for seu estatuto social e a educação que recebeu, como o mostrava Platão na interrogação do escravo no Menon. Mais ainda: o discurso do professor de matemática está ao alcance de qualquer um, contanto que tenha aprendido, sob a orientação de um professor, a desenvolver o conjunto das verdades necessárias que se deduzem das verdades iniciais que ele necessariamente traz em si enquanto ser falante. Para isso basta reconhecer a existência de seres que são sempre e necessariamente o que são, que existem fora da temporalidade da enunciação, e tais são precisamente os objetos desse modo de conhecimento. Sendo assim, o princípio absoluto do dizer (identificado à racionalidade) é o princípio da coerência, posto que a lei absoluta do “ser dito’’ é a não-contradição. Basta admitir que o que foi uma vez reconhecido como verdadeiro o é para toda a eternidade, já que “dizer a verdade é dizer o que é’’, e o que é é sempre, identicamente, o que é. Com isso o discurso matemático não é senão o longo, lento e necessário desenvolver de uma cadeia discursiva, cujos primeiros elementos são aqueles que todos devem reconhecer como verdadeiros, e cujos elementos sucessivos são aqueles compatíveis com os precedentes, como deve admiti-lo todo interlocutor. Se o princípio fundador do discurso da ciência é a coerência e a unidade da cadeia discursiva, isso não impede que o “princípio isocrítico’’, constitutivo do regime democrático, também esteja presente, em filigrana, no discurso da ciência, mas somente enquanto subordinado ao outro princípio. Assim, o professor de matemática, que conduz a demonstração, dirige-se ao aluno como representante do interlocutor universal, e exige dele, a cada passo da demonstração, sua concordância de direito, de tal modo que são consideradas demonstradas apenas as proposições que podem ser aprovadas por esse interlocutor ideal. Mas vemos que, desse poder crítico do interlocutor, o que subsiste não é senão um traço enfraquecido.[8] O sujeito a quem nos dirigimos não é este homem da Cidade com quem se está falando, contra quem se está argumentando e que se pode contestar: é o sujeito “universal’’, capaz de admitir, como qualquer outro, a coerência entre enunciados; é precisamente o que em cada um o identifica a qualquer outro.

Consideremos, em contraposição, o discurso do direito e particularmente o papel da argumentação retórica no estabelecimento das verdades judiciárias. Dois oradores, representando o ataque e a defesa, defendem teses contraditórias — por exemplo, que Sócrates corrompe a juventude ou que ele não a corrompe. Antagonistas, cada argumentação tem por objetivo persuadir os juízes e fazê-los aderir à sua posição. Com efeito, estes devem decidir quem tem razão com base apenas no espetáculo dessa luta entre dois discursos. Percebe-se claramente de que modo tal procedimento se deduz dos princípios do regime democrático da verdade. Qualquer um pode igualmente defender qualquer tese, qualquer um pode igualmente julgar qual é sua verdade. Contudo, o que organiza o conjunto desses discursos não é mais o princípio da não-contradição entre enunciados, mas exatamente o contrário: é o princípio segundo o qual a verdade deve se manifestar na confrontação de enunciados contraditórios entre si. Toda a forma do procedimento judiciário tem precisamente este objetivo: permitir que se manifeste da maneira mais exata, mais igual, mais equitativa a oposição entre dois enunciados. O princípio absoluto da verdade é a isocrítica, e ela supõe o antagonismo entre enunciados contraditórios. Cada ouvinte é dotado do poder de julgar a verdade e, portanto, de discriminar entre tais enunciados contraditórios. Quanto ao princípio de coerência, constitutivo da argumentação racional, ele também está presente, em filigrana, no discurso judiciário, mas apenas enquanto subordinado ao princípio isocrítico. Assim, é cada orador, separadamente do outro, que deve respeitá-lo em relação à posição que defende, apresentando uma argumentação coerente. Mas vemos que se trata apenas do traço enfraquecido do verdadeiro princípio da coerência, posto que os dois enunciados contraditórios são igualmente defensáveis.

O melhor exemplo dessa razão em crise desde seu nascimento é sem dúvida esse conflito entre ciência e direito, ou, se preferirem, entre matemática e política. Mas a filosofia é, também desde seu nascimento, igualmente reveladora. Assim, poderíamos considerar as doutrinas de Protágoras e de Platão como tentativas simétricas de superar essa crise, de um lado e outro da cisão entre opinião e ciência (doxa e episteme). Com seu “homem-medida de todas as coisas’’ e seus “dois discursos em oposição sobre qualquer assunto’’, Protágoras pensa a democracia política e se esforça por levar a nova racionalidade dos procedimentos político-judiciários até o campo dos conhecimentos ditos científicos: tenta negar a crise unificando o conjunto das verdades e fundando todas elas sobre os princípios da isegoria e da isocrítica. A recusa das verdades matemáticas ou a generalização do discurso crítico (“todas as opiniões são verdadeiras’’) são o preço a pagar por essa negação. Por outro lado, com suas Ideias e seus Números eternos, com seu filósofo-rei, com a subordinação da conduta da Cidade ao conhecimento absoluto do verdadeiro com base no modelo do conhecimento matemático, Platão se esforça por levar a nova racionalidade científica até o âmbito da vida da Cidade: tenta negar a crise unificando o conjunto das verdades e fundando todas elas sobre o ser absoluto, eterno e necessário que a coerência do discurso matemático supõe. A recusa dos procedimentos democráticos ou a generalização do discurso científico são o preço a pagar por essa negação. Poderíamos talvez até demonstrar como a filosofia de Aristóteles, uma geração mais tarde, já é o sinal de que a crise é insuperável: é sobre uma oposição de dois mundos (sublunar e supralunar) que Aristóteles irá fundar a igual legitimidade dos dois tipos de procedimentos discursivos e a igual racionalidade dos dois tipos de verdade.

Esses fatos, conflito de legitimidade entre procedimentos igualmente racionais, os da prova judiciária e os da prova matemática, conflito doutrinal entre teorias da verdade igualmente racionais, a do Sofista e a do Filósofo, revelam bem que a crise existe de fato desde o nascimento da razão na Grécia. Poder-se-ia mostrar o que funda de direito essa crise? Poder-se-ia mostrar que a razão está necessariamente em crise em sua própria constituição, ou seja, que ela não pode se realizar senão em racionalidades conflituosas? Creio que sim.

A razão, dizíamos no começo, pode ser, grosso modo, reduzida a duas funções. Uma função negativa, a rejeição de toda autoridade exterior ao julgamento de cada um; uma função positiva, a universalização discursiva. Sem dúvida. Mas essa universalização dissimula uma ambiguidade. Com efeito, ela pode assumir duas formas distintas e até mesmo opostas. A universalização pode primeiramente referir-se à comunidade implícita dos seres falantes, ao espaço da interlocução. É universal nesse sentido o que qualquer outro, enquanto me dirijo a ele, deveria poder admitir pelo simples fato de, como eu, falar, e de eu ser para ele o que ele é para mim, um interlocutor possível. Um procedimento, uma instituição, uma conduta serão ditos então racionais se respeitarem esse princípio de universalização. É assim que a intolerância ou o fanatismo nos parecem irracionais; é também assim que a discussão, a argumentação e o debate público nos parecem procedimentos racionais que servem para regular conflitos ou conduzir a decisões esclarecidas. Mas a universalização pode igualmente referir-se à objetividade explícita à qual o discurso remete, não mais a dos seres falantes mas a dos seres ditos. É universal nesse sentido o que qualquer outro deveria admitir, não enquanto me dirijo a ele e lhe atribuo uma faculdade igual à minha, mas por ser objetivamente aquilo a que necessariamente o enunciado se refere. Um procedimento, uma instituição, uma conduta serão ditos então racionais se respeitarem esse princípio de universalização objetiva. Assim nos parece irracional recusar que 2 mais 2 é igual a 4 ou mesmo defender o fixismo das espécies ou a astrologia. Mas nos pareceria igualmente irracional admitir as regras da adição ou as leis da astronomia após tê-los decidido por maioria de votos.

No conceito abstrato de razão, a rejeição do Mestre é acompanhada da aceitação do Universal. Mas em toda racionalidade efetiva essa rejeição vai de par seja com o primeiro modo de universalização, seja com o segundo. É exatamente o que o exemplo do nascimento da razão nos permitiu observar. A rejeição do mestre da verdade significou, em todo caso, a isegoria, que encontramos em nossas duas figuras. Todos os homens se tornaram locutores autorizados e não há mais Mestre.

Mas esse princípio conjugou-se tanto com a universalidade objetiva (fundando o princípio de coerência na origem das demonstrações matemáticas) como com a universalidade subjetiva (fundando o princípio de isocrítica na origem dos procedimentos da prova judiciária).

Vemos também que essa dupla universalização, que corresponde à crise da razão, leva a diferentes concepções filosóficas da razão: faculdade (universalmente compartilhada) de distinguir o verdadeiro e o falso, ou poder (objetivamente fundado) de conduzir dedutivamente raciocínios rigorosos. Não há o menor paradoxo em perceber que aquele que consideramos o mais ilustre defensor da “razão moderna’’ funda a racionalidade científica sobre uma definição da razão que remete aparentemente ao universal subjetivo.[9] Não será isso também um sinal de que a filosofia se esforça, no mais das vezes, por negar que a razão esteja sempre em crise?

Vemos enfim que essa dupla universalização leva necessariamente a questões críticas, no duplo sentido da palavra crítica. Por exemplo: a racionalidade filosófica é algo do primeiro ou do segundo tipo? E onde se situa a fronteira entre os dois? O diálogo de surdos entre “fanáticos’’ e “tolerantes’’ revela também a dificuldade que existe em separar “objetivamente’’ os dois domínios. Pois a distinção entre eles deve ser determinada objetiva ou interlocutivamente? Questão de segundo grau que leva, de modo perigoso, a uma regressão ao infinito. Questões difíceis, e que os gregos não se colocavam. Num certo sentido, talvez, eles foram as primeiras vítimas da crise do universal, mas dispunham, com os conceitos de doxa e de episteme, de dois conceitos suficientemente eficazes para encerrar cada tipo de universal em seus limites. Será que dispomos de conceitos igualmente curativos para distinguir sempre o que deve pertencer à universalidade interlocutiva (ou seja, ao debate e à argumentação) e o que só pode pertencer à universalidade objetiva (ou seja, à experiência, à teoria e à demonstração)?

Mas será de fato importante saber resolver essas questões? O importante não é antes poder colocá-las, ou seja, reconhecer que se a crise da razão é sempre constitutiva, jamais acidental, sempre endógena, jamais exógena, se portanto ela é “natural e inevitável’’, como a dialética em Kant, convém não precaver-se contra ela — como se evita uma doença — mas fazer bom uso dela — como de toda ilusão necessária?

Tradução de Paulo Neves

Notas

[1] Tão logo se evoca o “nascimento da razão na Grécia’’, tende-se a associar essa ideia com a tese idealista do “milagre grego’’: a Grécia, berço de todos os Valores da Civilização, e seu pequeno povo, povo eleito dos deuses entre todas as nações etc. Falar do “nascimento da razão’’ nesse sentido mostra um discurso que procede justamente mais do mito que propriamente da razão.

[2] Michel Foucault, L’ordre du discours, Paris, Gallimard, 1971, p. 17.

[3] Marcel Détienne, Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque, Paris, François Maspero, 1981, p. 15.

[4] Ver Aristóteles, Metafísica Q, 10, 1051 b 6.

[5] Sobre a importância do sorteio, por oposição à eleição, na definição da “democracia’’ antiga, ver o livro recente de Bernard Manin, Principes du gouvernement représentatif, Paris, Calmann-Lévy, 1995, capítulos 1 e 2.

[6] Sobre o conceito de “lugar vazio’’ no pensamento da democracia, ver Claude Lefort.

[7] Podemos reconhecer aí os fundamentos do pensamento de Protágoras.

[8] Prova desse enfraquecimento é a decepção que experimentamos diante das respostas do escravo no Menon de Platão, lacônicas, ou pelo menos muito pouco “críticas’’.

[9] Ver Descartes, Discours de la méthode, 1.a parte (Adam-Tannery, VI, 2): “O poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens’’ [tradução brasileira de J. Guinsburg].

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