2003

O corpo, espelho partido da história

por Evgen Bavcar

Resumo

A relação entre corpo ferido e história passa pela noção de progresso; logo, de subdesenvolvimento. De início, a seguinte questão impõe-se: o que se pretende buscar na história? Que espelho serve de modelo para o deficiente?

A começar pela Bíblia, é com o pecado original que Adão e Eva tornam-se deficientes, uma vez que mortais. Já na mitologia grega, o modelo é Prometeu, que, ao levar o progresso ao homem – o fogo divino –, é pregado na rocha. E a vítima do sacrifício para aplacar a fúria divina, assim como se constata entre os mais variados povos?

As formas de deficiência – nota-se – são muitas. O problema, hoje, é a cegueira dos pesquisadores diante dos fundamentos conceituais dela, anteriores à Revolução Industrial e seu Hôtel des Invalides, que confere à vítima de guerra status tanto de inválido para o trabalho quanto de inapto para a vida, segundo as normas da época.

Etimologicamente, a palavra deficiente, bem como a proliferação de neologismos mais recentes, testemunha os esforços da humanidade para dissimular o objeto em questão, isto é, o corpo. Nas religiões monoteístas mesmas, seus ferimentos são ocultados por simulacros para que se esqueça dele e seu sofrimento, engrenados na história. Como acontece com o Anjo do Progresso, de Paul Klee e Walter Benjamin, avança-se deixando para trás não mais do que ruínas. A partir delas, é preciso ver algo mais do que edifícios destruídos e as vítimas de tais desabamentos.

Mesmo assim, o corpo permanece velado.

A perspectiva histórica hegeliana confere. Alguns fatos, com efeito, repetem-se. Primeiro como tragédia; depois, como farsa (segundo Marx). E esta é pior do que aquela (segundo Marcuse). Para dar conta da dimensão dissimulada do corpo no pensamento atual, é preciso tomar consciência da fragmentação a que ele foi submetido, de modo a ser ignorado em sua persistência desde as mais longínquas eras.

Daí, a deficiência como percepção corporal mais aguda, dolorosa e inefável, uma vez que cercada de todo um aparato conceitual cujo objetivo é aplacá-la; historicamente, inclusive.

Ela que representa a lembrança da natureza que se gostaria de dominar, bem como a revolta contra o aperfeiçoamento técnico e tecnológico que quer dar uma imagem mentirosa do corpo, roubando-lhe o sonho que a natureza havia depositado nele. O exame da doença do homem contemporâneo permite compreender melhor tal condição, sem por isso renunciar à utopia do corpo, que encontra origem na deficiência, cuja lógica é, mais ou menos, a seguinte: “Não fique triste porque é pobre, já que só assim poderá, um dia, ficar rico”. Logo, é ao deficiente que cabe tornar-se mais homem e assim realizar a utopia do corpo: a de superar a cada instante fraquezas e obstáculos do momento presente.

Tal utopia não deve se impor à natureza, mas trabalhar com a cumplicidade do possível. Esse poderia ser também o grande ensinamento dado por quem, no século XX, escolheu a autoimolação para protestar contra a redução, pelos totalitarismos, do espaço utópico. O corpo transformado em chamas ou aniquilado pela fome acaba tendo a última palavra – autêntica, já que sua exigência é a liberdade.


Vou tratar de desenvolver algumas questões decorrentes do exame da relação entre o corpo ferido e a história.

Bem entendido, para não negligenciar nenhuma das duas faces da expressão corpo ferido, complexa e rica de conotações, tal exame deve ser ampliado à contradição que existe entre história e progresso, quando a história é subdesenvolvimento.

Também cumpre apresentar a questão de uma história que é a dos vencidos, não apenas a de quem a escreve e a dos que pensam que a fazem.

Logo no começo desses problemas, põe-se a questão: que pretendemos buscar na história? Que espelho podemos tomar como arquétipo do deficiente?

Dessa perspectiva, temos de levar em conta substratos mitológicos da história ocidental; por exemplo, sedimentos bíblicos dos quais poderíamos dizer que fazem aparecer nossos antepassados Adão e Eva como deficientes da existência eterna, coisa que, depois deles, todos somos, uma vez que somos mortais.

A mitologia grega também nos apresenta, no homem revoltado, o arquétipo do deficiente. Prometeu, deficiente motor, uma vez que pregado no rochedo, quando ele prometera aos homens o progresso tecnológico graças ao fogo roubado aos deuses.

Poderíamos designar ainda como deficientes da existência temporal todos os que, antes que o carneiro substituísse o homem, foram sacrificados à divindade. Bem entendido, poderiam servir-nos outras formas de deficiência, mas lamentavelmente raros são os pesquisadores que consentem em ver os fundamentos conceituais da deficiência contemporânea. Seria preciso dar ao que constitui a deficiência contemporânea uma arqueologia mais consequente do que a que se detém no começo da Revolução Industrial ou na fundação do Hôtel des Invalides, que consagra o deficiente de guerra como signo que conota tanto os inválidos do trabalho como os inaptos para uma existência conforme as normas definidas em uma determinada situação histórica.

A palavra deficiente, bem como a proliferação das expressões mais contemporâneas que a substituem, testemunha os esforços feitos pela humanidade para dissimular a verdadeira substância que essas palavras designam, isto é, o corpo.

O mesmo acontece em toda a história, e até na perspectiva teológica das grandes religiões monoteístas: o corpo ferido, deficiente, é ocultado por diferentes simulacros que nos fazem esquecer a existência e o sofrimento reais do corpo apanhado na engrenagem da história de que é símbolo o Anjo do Progresso, que avança recuando e deixando atrás de si as ruínas (ver as Teses sobre a filosofia da história, de Walter Benjamin).

Decerto que nesse amontoado de escombros é necessário ver algo mais do que edifícios destruídos: cadáveres; e corpos feridos, mutilados, deficientes, de seus irmãos com mais sorte, que sobreviveram.

Um simples exame aproximativo da terminologia que esconde os aspectos negativos do progresso nos fornece um ponto de vista inédito sobre a história, sua facies ipocratica, seus olhares de medusa a que o corpo do homem não pode resistir. Voltaremos a isso.

Nosso primeiro arquétipo bíblico, Adão, tornou-se, então, mortal: teria podido ser designado como deficiente existencial ou como inválido da eternidade paradisíaca. Mas também teríamos podido medir-lhe a deficiência recorrendo a percentagens, à semelhança das estatísticas contemporâneas.

Também evocaremos decerto os deficientes bem concretos que eram os filhos malnascidos dos espartanos, que eram rebentados contra os rochedos, e todos os que, de um ou de outro modo, foram vítimas das guerras ou do progresso tecnológico da Revolução Industrial. Bem entendido, seria muito difícil aplicar o termo a uma vítima do trânsito: deficiente do progresso tecnológico, com a menção da percentagem de sua deficiência.

O corpo como espelho da história, tanto no passado como em nossa época, continua velado. As definições que se utilizam muitas vezes são fortuitas e em grande parte exprimem a marcha da história como progresso que avança, como o Anjo de Paul Klee, recuando. Essa mesma figura nos protege pelo seu aspecto angélico e vela nossos olhares voltados para o espelho da história.

Não carece tratar a história da perspectiva hegeliana — alguns fatos da história se repetem (Hegel), primeiro como tragédia depois como farsa (Marx), a farsa é mais horrível do que a tragédia (Marcuse) — para nos darmos conta da dimensão dissimulada do corpo nas visões atuais que o fragmentaram e assim conseguiram desviar nossa atenção de sua persistência na história. É por isso que me esforço constantemente por apresentar o espírito como consciência do corpo, segundo o bem conhecido conceito de Espinosa, que assim mantinha a distância a dualidade alma/corpo, para acentuar a unidade inconsútil do corpo e seu saber.

Para além das expressões que, a título de maquiagem conceitual, designam o corpo deficiente, prefiro lançar a hipótese de que o corpo deficiente decorre apenas de uma consciência do corpo um pouco mais aguda e um pouco mais dolorosa, sem poder dizê-lo, devido a toda a aparelhagem conceitual que impede essa mesma consciência de dizer sua própria visão da história. Se o corpo não pode dizer o que é, já está do lado dos vencidos do progresso, de todos aqueles que não participam de pleno direito do trabalho da história e que, em conseqüência, não podem escrevê-la. Os cronistas da história, os observadores documentaristas dos acontecimentos do passado, por exemplo, notam e inscrevem os acontecimentos que se destacam do comum, e o mesmo acontece com o direito à palavra, uma vez que a tradição oral não tem direito à escrita, se não lhe derem a possibilidade de se tornar também letra, como fez Braille no século XIX e o Abbé de l’Épée, com a linguagem codificada dos gestos.

A palavra dos cegos foi, no entanto, um dos fundamentos da cultura grega; retomou mais tarde esse valor com grandes poetas como Milton — paradoxalmente, grandes analfabetos —, pois que, nem os cegos gregos nem Milton sabiam ler nem escrever, mas dispunham do verbo.

O direito à palavra deve então existir para todos os que, de um modo ou de outro, representam uma consciência do corpo diferente, reconhecida ou velada, evidente ou dissimulada mas, seja como for, um saber reconhecido pelas instituições, pelas mentalidades e pela terminologia contemporâneas.

Graças à minha vivência na Europa central, pude encontrar o corpo deficiente como espelho partido da história, através dos olhares que as crianças voltavam para todos os que, na minha região, portavam os estigmas da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais.

Com esses rostos de olhar ferido, esses corpos sem pernas, sem braços, precisei começar a realizar trabalhos práticos de imaginação quando o termo vítima de guerra, que nossa professora usava na escola primária, me pareceu um pouco abstrato. Quando criança, não me havia posto a questão dos desaparecidos do front de Isonzo (entre a Áustria e a Itália), pois eu não sabia o que essa expressão pudica escondia. Foi muito mais tarde, quando da tragédia da Europa central, isto é, a instauração dos sistemas totalitários que se abateram também sobre a minha Eslovênia natal, que de algum modo começou na proximidade de minha aldeia, onde as primeiras vítimas civis tombaram sob os fuzis do exército italiano que se vingava de seus reveses. Os antigos me contavam também os desdobramentos desta guerra que, após o conflito, atingia as crianças, se imprimiam sobre seus corpos, metamorfoseando-os em deficientes, isso que Kafka exprimiu tão bem na sua metáfora literária.

Se muitas vezes os historiadores não têm tido vontade de chamar as coisas pelo nome, os deficientes da Primeira Guerra Mundial e seus sucessores compreendiam intuitivamente que os desaparecidos são aqueles cujos corpos estilhaçados, reduzidos a nada, não podiam sequer servir de espelho partido, antes de gelado espelho cego, sem imagens, sem relevo, único resíduo de uma consciência que, outrora, pertencia concretamente ao presente.

Deve-se dizer também que, a partir do século XX, a maneira de dissimular os corpos feridos ou destruídos começou a atingir uma perfeição apenas pressentida no passado. Outrora, os corpos mutilados serviam para mostrar a miséria em praça pública, ou a justiça nas forcas, quando ficavam expostos (ver Michael Gibson: a ausência de cadáver na forca, na pintura de Brueghel, é sinal de que o duque de Alba abandonara os Países Baixos).

O corpo pregado ao pelourinho servia também à Justiça, e de desculpa a todos os que desejavam humilhar o próximo, obter algum favor ou atestado de bom comportamento. O corpo mutilado, exposto em praça pública, visava suscitar a piedade, mas também servia de apelo à caridade. É necessário lembrar que frequentemente o corpo ferido, diferente demais, servia para divertir (os anões da corte de Pedro, o Grande). Não esqueçamos também os negros mutilados, os eunucos negros do serralho, que, como espelho da feiúra, não só guardavam as mulheres do harém, mas, devido ao físico repugnante, exaltavam até o limite a imagem sublime, inigualável, do sultão ou do grão-mogol.

Desde a Antiguidade, sob os regimes tirânicos, o corpo sofredor também representou a punição de todos os que não se submetiam ao poder. Nos corpos, o traço das torturas exemplares assinalava a dupla marca do mestre sobre os subalternos, isto é, a posse absoluta do corpo de outrem e de sua vida.

Narrativas sem conta — que seria demasiado longo enumerar — de tortura do corpo exercida pelo poder revelam qual é a visão da vida do torturador; o mesmo se diga da marca, poderíamos dizer da tatuagem, que o mestre imprime na pele daquele cujo dever é apenas prolongar os caprichos da vontade do mestre. A frase de Aristóteles: “O escravo deve fazer o que pensa o mestre” significa que o corpo do escravo não passa do reflexo mecânico do pensamento do mestre e substituto do corpo deste último para as tarefas ingratas que ele mesmo não quer executar.

A industrialização da morte no século XX foi uma tentativa para se desembaraçar do corpo como testemunha da barbárie; nessa perspectiva, o forno crematório representa o apagamento absoluto do processo da morte em massa. Sabe-se que o enterro nas fossas comuns não favorecia a extinção dos traços de execução em massa e podia provocar — o que realmente aconteceu — demasiadas catástrofes ecológicas, isto é, demasiadas provas do que ocorreu.

O corpo no século XX também apresenta um problema muito complexo, em cuja topologia podemos desvelar os traços da história, os meandros dos totalitarismos e principalmente um aspecto escondido da história escrita in vivo.

Foi por meio da experiência do que vivi na Europa central que pude, ainda criança, descobrir a marca da história quando, aos seis anos, pude observar os corpos estilhaçados de três crianças da minha aldeia que tinham brincado com material de guerra. Com a preocupação de me dar uma lição de prudência antecipadora, meu tio me levara com minha irmã para ver esse acidente, para que, por minha vez, eu não brincasse com as armas que para nós, a geração do pós-guerra na Eslovênia, substituíam brinquedos que nos faltavam. Essas três crianças feridas fizeram descer sobre o meu coração um amargor de que nunca pude libertar-me, mesmo analisando as guerras, as ideologias, e tudo o que, na minha pátria eslovena, constituía material de destruição dos corpos.

Com essas jovens vítimas, imprimiram-se em mim imagens que me fizeram compreender o que significa o olhar de Medusa, encarnado hoje nas invenções tecnológicas. Outrora, Perseu dispunha do espelho mágico que protegia o seu corpo e assim podia evitar a petrificação sob o olhar da Górgona. Outros espelhos mais aperfeiçoados serviram aos homens para se defenderem da fatalidade: é assim que compreendo a função do periscópio de um tanque, defesa do corpo que dirige o olhar para as granadas mortais que virão explodir contra as paredes blindadas.

Na nossa defesa do olhar como expressão do corpo, referimo-nos sempre ao olhar redentor de Perseu e sempre nos lembraremos da visão mortal das Górgonas, que, no nosso tempo, se tornaram cada vez mais abstratas e mais perigosas.

Na idade de doze anos, compreendi de modo concreto o alcance desse olhar, depois de ter brincado com um material de guerra que eu não conhecia o suficiente para lhe impor meu próprio espelho mágico, herdado de meu longínquo ancestral Perseu. Foi por isso talvez que pensei muito nessa ausência técnica de proteção, mas já era tarde demais e eu não podia fazer outra coisa senão reconstruir meu espelho partido interiormente, a fim de mudar minha perspectiva sobre o espelho da história.

Já no hospital, observando os corpos feridos, eu sabia existir uma outra marcha da história, a que é incapaz de organizar desfiles solenes, exaltados pela beleza dos corpos perfeitos dos soldados, porque não deseja mostrar as aparências mentirosas de sua glória efêmera. Ainda criança, eu me sentia desconfortável quando os mais velhos falavam dos grandes mutilados de guerra que jamais apareciam com o verdadeiro aspecto, mas sempre ornados com palavras de louvor ou com as próteses que tentavam esconder sua miséria verdadeira.

Às vezes, o próprio corpo não é mais do que a prótese de uma falsa moral que se recusa a arremessar contra os rochedos os filhos inaptos para a vida, com a radicalidade espartana.

O olhar considerado como um dos emblemas mais bem reconhecidos da civilização ocidental suscita problemas que me surgiram no curso de minhas pesquisas de estética e fotografia.

A figura mítica de Polifemo não representa só um olhar unidimensional, mas também a força da natureza ferida no retorno unívoco a si mesma, através do olhar tridimensional de Ulisses. O olhar do Ciclope é aquele que só conhece uma direção e não sabe diferenciar o nome da coisa, Ulisses e Perséfone. Mesmo quando esse olhar unidimensional é ultrapassado pelo piedoso Ulisses, ele não esquece o seu reflexo unidimensional, tateando à mesma maneira unidimensional os carneiros, como se os olhasse sempre com um olho só. Sua percepção óptica não pode atingir os homens de Ulisses escondidos debaixo da barriga dos carneiros, pois ele olha sempre em linha reta e não sabe ainda diferenciar a visão unidirecional da visão de debaixo — um pouco atrás da percepção primeira. Para mim, isso lembra a situação do homem e do seu corpo quando ele não sabe ainda que não pode se ver com seus próprios olhos, como dizia Pico della Mirandola.

Ulisses é então o protótipo do olhar bidimensional que predomina na história da nossa civilização e caracteriza a Modernidade. O olhar tridimensional, o de Édipo ou de Tirésias, portanto, a visão que caracteriza o terceiro olho, só pertence aos cegos e a todos aqueles que aceitam a cegueira como a única possibilidade, no sentido da verdade tridimensional do mundo. O olhar em três dimensões é o do corpo que, por isso mesmo, confirma sua extensão no espaço e, pela gênese do seu olhar, também o ponto zero sempre renovado no universo.

A história dos conceitos filosóficos só faz confirmar essas hipóteses e nos dá igualmente alguns protótipos dos cegos-modelos, como os gregos citados, o apóstolo são Tomé e tantos outros.

A arqueologia do olhar nos permite também compreender a ideia do corpo como espelho partido da história, mesmo fazendo abstração da visão física. O corpo não arranca os olhos apenas para dizer sua alma, mas também para olhar para trás, para as trevas do olvido, lá onde as figuras míticas sacrificadas começavam a aprendizagem do olhar humano. O corpo torna-se assim, ao mesmo tempo, o espelho e aquele que observa, a visão e seu reflexo, isto é, o Eu sabendo-se visto, tanto como o Eu não se sabendo visto, que procedem da mesma experiência do olhar corporal.

É por isso que, de acordo com Merleau-Ponty, tenho de considerar o corpo como totalidade aberta e o ponto zero do espaço. Muitas vezes é fácil dizer que, se alguém perde um sentido como o ouvido e a vista, os outros sentidos se fortalecem, sem considerar que o que importa é o coordenador supremo, isto é, o cérebro, que tenta encontrar substitutos para a percepção física deficiente. Não é preciso dizer que essa sobrevida dos sentidos não seria possível sem a complexidade do corpo. O substituto material de nossa espiritualidade torna-se assim a muralha contra todos os assaltos que nos ameaçam, e a linha de defesa mais eficaz contra a destruição do corpo e sua desaparição. De maneira mais simples, pode-se dizer que nosso corpo, nos seus infinitos refúgios, pode abrigar o sentido que falta e, por enquanto, falarei apenas do exílio da vista.

Levando em conta minhas experiências e as de alguns amigos, a ausência da vista provoca um funcionamento ainda mais afinado do terceiro olho e uma tomada de consciência interiorizada do papel dele na história.

Quando às vezes ouvimos dizer que “os cegos têm os olhos na ponta dos dedos”, trata-se de um evidenciar exclusivo, portanto redutor, da percepção tátil por meio das mãos — por exemplo, a leitura do braile; ao mesmo tempo, tal enunciado parece ingênuo quando penso no meu colega do Instituto dos Jovens Cegos de Liubliana, Svenko, cego e sem braços, que podia ler braile com a ajuda do lábio inferior. Muitas vezes penso nele e me digo que os seus lábios deviam ser dos mais instruídos do mundo, pois abarcavam tantas letras e tantos textos em relevo. Esse modo de leitura representa para mim os beijos mais sublimes que possa suscitar a relação sujeito-livro, a relação entre o espírito e o objeto do conhecimento. Em Svenko, os olhos haviam se deslocado para a ponta dos lábios. Eu poderia fazer toda uma demonstração a propósito do deslocamento do olhar físico através do corpo. Para um cego, é todo o corpo que de algum modo se torna órgão da vista, pois qualquer parte do corpo pode olhar de perto um objeto que lhe seja exterior.

Quanto a isso podemos dizer que os cegos retornam, por necessidade, à visão tridimensional, aquela que, segundo a mitologia grega, foi dada a Édipo e a Tirésias. Compreendi isso quando tive de interiorizar para sempre as imagens do mundo exterior, as paisagens da minha Eslovênia natal que foram a matéria-prima da minha visão. Aceitei o mundo tridimensional, o da verdade mais imediata que, desde a minha infância, me fez compreender a filosofia dos corpos nos materialistas gregos e em seus sucessores.

Para compreender as possibilidades da visão aberta, preciso pô-la em paralelo com o problema da dor. Conforme acreditava o herói de Tchekhov, é verdade que às vezes se pode, pela ação do espírito, dominar o sofrimento. Mas sem por isso esquecer, como o doente de Tchekhov observa ao médico, que ele grita se lhe derem um beliscão. Isso quer dizer que, apesar de toda a grandeza do espírito, o corpo reage, infalivelmente.

Foi uma outra ideia do corpo que levou Louis Braille a dar aos cegos a escrita tridimensional, enquanto Valentim Haul não se havia mostrado suficientemente radical no seu invento. Com efeito, este último usara letras normais, escritas em relevo, impondo assim a lógica da percepção dos olhos à percepção tridimensional, a do toque, que constitui o olhar aproximado. A título de ilustração, devo citar também o exemplo de Helen Keller, surda, muda e cega, para dizer que, graças à sua professora, seu corpo comunicou a ideia original, arqueogrega, aplicada a uma pedagogia e a uma gnoseologia dignas de um gênio, que curiosamente foi o da água e que nos faz lembrar Tales de Mileto. Foi o corpo da criança que trouxe remédio à incomunicabilidade no silêncio e nas trevas; e foi a água, elemento externo, que pôde superar a barreira do impossível.

É verdade que vivemos pelo nosso corpo na obscuridade do momento vivido, como diria Ernst Bloch; mas talvez graças a isso possamos superar a condição humana e contar com a nossa utopia mais concreta, a do corpo.

Efetivamente, é opondo nosso corpo às agressões exteriores que defendemos a consciência de ser. A desaparição do corpo no século XX parece tanto mais grave quanto não podemos sequer suspeitar da existência do substrato material tornado cinza, coisa em que Giuseppe Fiorelli podia acreditar — Fiorelli, o célebre arqueólogo de Pompéia que preencheu os vazios deixados na cinza pelos corpos calcinados para assim lhes conservar volume e forma.

É por isso que o destino dos corpos no século XX me deixa inquieto, quando a aniquilação total de sua matéria significa a impossibilidade de recuperar seu aspecto espacial, isto é, sua figura terrestre.

Como eu disse já, os deficientes representam muitas vezes a parte doente da história, uma espécie de Terceiro Mundo no Primeiro ou no Segundo Mundo, talvez mesmo um Quarto Mundo em nossos países ditos civilizados e industrializados. E eu não poderia esquecer os corpos dos deficientes mentais, que, com os dos comunistas, foram, na época nazista, vítimas antecipadoras das câmaras de gás e desapareceram para sempre no nada do olvido. Para eles, mesmo a engenhosidade dos Guiseppe Fiorelli não teria podido servir grande coisa, pois que seus corpos não existiam mais — mesmo em vazio.

É talvez a partir dos eventos históricos que o corpo humano poderá desempenhar um novo papel. Grandes pintores como Bosch e Goya tinham compreendido isso, e a arte do século XX também apreendeu o destino do corpo humano torturado, humilhado, fragmentado e desaparecido.

No romance de Boris Pahor, Pèlerin parmi les ombres, o corpo — como diz Françoise Mandelbaum — é apresentado como forma de combustível que, ao arder, pode fornecer o calor das duchas àqueles que não eram ainda candidatos à passagem para os fornos crematórios.

É indispensável ressituar o problema do corpo no seu contexto histórico e tentar chamar as vítimas ao menos pelo seu verdadeiro nome. Se ousamos dizer inválidos de guerra, por que não deveríamos usar expressões como inválidos do progresso ou inválidos da industralização, da alimentação, em vez de vítimas da fome?

O corpo não pertence a um domínio abstrato da nossa vida; ele permanece o centro inelutável da nossa existência e da nossa experiência mais imediata do tempo e do espaço.

Como disse Ernst Bloch, a fome, “como óleo na lâmpada da história”, poderia fazer progredir a humanidade. Mas mesmo o instinto de sobrevivência, exacerbado pela subalimentação,

pode ser manipulado: se sujeitarmos esse instinto ao uso da droga, os drogados tornam-se deficientes da necessidade indefinida, da exigência de um veneno que lhes desperta no corpo as pulsões mais elementares de sobrevivência. Tornam-se então prisioneiros do círculo vicioso que remete sempre ao mesmo objeto do desejo e suprime a possibilidade de outras satisfações. A droga torna-se assim expressão de um mundo unidimensional em que o corpo é para si mesmo o seu próprio fim, sem nenhuma saída nem nenhuma utopia concreta possível. A droga, esse cardápio monótono…

O corpo desse deficiente do hábito que é a droga vê reduzir-se o seu espaço vital, que se torna de fato a prisão moderna em que o sujeito se encerra a si mesmo, constituindo-se ao mesmo tempo carrasco e vítima. Tornado assim deficiente, o corpo não pode mais, de verdade, pedir socorro a outrem, do outro que, de sua parte, não tenha entrado nessa ideologia de fome unidimensional.

O problema do olhar ferido leva-me a falar tanto dos cegos como dos deficientes de visão; eles constituem, contudo, o único grupo capaz de olhar em linha reta nos olhos do sol. Por essa aproximação do objeto visto, suas vistas feridas evocam a frase de Plotino: “Se o olho humano não tivesse algo de solar, não poderia perceber o sol”. O que haverá então de solar no olhar cego, senão a lembrança da nossa estrela mais próxima, aquela que, por meio de um olhar dito normal, se manifesta durante a noite pelo reflexo que, do sol, nos dá a lua, isto é, no espelho cósmico de Perseu, graças ao qual as noites terrestres não renunciam totalmente ao seu sonho de sol? Haverá algo de semelhável na experiência dos cegos?

Somente o mito de Eros e Psique nos pode dar a resposta. Na relação amorosa que mantêm, o olho não desempenha o papel de órgão da distância, o de órgão da proximidade, na medida em que é olhar aproximado, isto é, toque. O deus grego do amor, Eros, é cego, e Psique torna-se, refletida pelo calor do corpo, o sol escondido de sua noite de amor. Uma situação muito bem ilustrada na célebre escultura O beijo, de Rodin, em que os corpos dos dois amantes escondem o lugar do olhar mais intenso, os rostos que se contemplam na lembrança de uma unidade erótica que está no centro do mito grego.

A célebre foto de Doisneau, o beijo diante do Hôtel de Ville de Paris, não poderia servir de ilustração tão perfeita, pois se trata de uma representação em duas dimensões, as da foto. Os corpos dos amantes de Rodin, esses são representados no seu volume; são corpos presentes em um espaço tridimensional, e lamento que essa maravilhosa escultura esteja disposta perto de uma parede, o que corresponde antes à escolha de um olhar frontal, bidimensional, do que ao de um terceiro olho que, num espaço e num tempo dados, pode olhá-la em toda a sua volta.

O calor do sol também pode ser elemento de visão tridimensional, principalmente se considerarmos o corpo como substrato material em que se exilou um pouco do calor do astro. Poderíamos dizer que descendemos das estrelas, apesar da distância entre elas e os seres de olhar bidimensional que somos nós. Mas ao aproximar seu olhar das cinzas de um vulcão, as quais trazem em si a lembrança do fogo cósmico, o corpo ferido de um cego pode captar, por exemplo, a proximidade da Terra e do Sol. Está claro que esse olhar passa através de um significante invisível, e devo lembrar, a propósito, a frase de Kazantzákis: “Que tristeza que nossos olhos de argila não possam alcançar o invisível!”. É nessa perspectiva de uma dialética entre o visível e o invisível que devemos compreender o desejo de Orfeu em busca do corpo de Eurídice, que, depois da passagem do rio do Esquecimento, se tornou deficiente absoluta da existência terrestre.

Recordando-se do caminho, Orfeu avança para as trevas do Hades graças à música que ocupa o volume invisível da obscuridade, lá onde, sob a proteção de Perséfone, se encontra dissimulado o reflexo bidimensional de Eurídice, quer dizer, a sua sombra. Efetivamente, no Hades, país das sombras, Eurídice tornou-se uma imagem em duas dimensões: de onde a lógica do interdito, que impunha a Orfeu não olhar para trás, se quisesse transformar essa imagem num corpo. Foi no momento do regresso, através do país do silêncio, quando Orfeu não aceitou a cegueira, que a sua bem-amada desapareceu como corpo dotado de volume. Desejando assegurar-se da sua presença atrás dele, esqueceu-se de sua representação interior, o reflexo da imagem dela na memória, e transgrediu assim a lei das trevas, bem conhecida pelos cegos, que faz com que o espaço não seja só a superfície obscura de uma percepção. É sua origem material, isto é, sua existência real, que permite às sombras tornarem-se volumes. Acrescentemos que Orfeu teria podido evitar perder Eurídice para sempre se a tivesse interiorizado suficientemente, se a tivesse levado diante de si com os olhos fechados, se a tivesse conduzido às cegas sobre a terra, à maneira de Eros.

O mundo virtual nos remete a Orfeu: aí, o todo visual domina todas as outras percepções, e corremos o risco de não mais desejar nossas Eurídices concretas de três dimensões, mas de nos contentarmos com objetos sexuais fetiches, ilusões onipresentes na vida moderna. Se não ouvirmos o apelo do objeto desejado que a poesia também representa, podemos um dia vir a contentar-nos com imagens, fata morgana visuais sem realidade material, e esquecer que, separada do corpo supliciado de Orfeu, é a sua cabeça flutuando sobre o rio que suscita o cantar das águas.

Na realidade, não podemos nos libertar da fatalidade, da perda do objeto amoroso de percepção bidimensional, se não aceitarmos algumas pequenas cegueiras existenciais de ocasião, que a todo momento vêm nos lembrar a realidade corporal das Eurídices em três dimensões.

É por isso que não quero falar exclusivamente do corpo ferido como espelho da história. Toda deficiência é a expressão de uma tragédia que, muitas vezes de modo injusto, diz respeito diretamente às pessoas implicadas, em vez de ser o destino de todos nós.

A história humana inteira nos demonstra que somos ao mesmo tempo nós mesmos e os outros, os quais, como nós, vivem das realidades múltiplas, visíveis e invisíveis, percebidas e não percebidas, sabidas e ignoradas. Pouco importam então as idéias sobre a percepção, quando esta passa pelo corpo ferido; pois, mesmo como tal, ele pode ser vetor de uma utopia inteiramente concreta.

Pessoalmente, sempre considerei a cegueira, antes de mais nada, uma deficiência social, e pude encontrar numerosos exemplos, literários ou filosóficos, que são outros tantos testemunhos da agonia que suscita e que é fruto de um pensamento unidimensional: “Será verdade que só os cegos deveriam viver após a morte, como pretende certo escritor que se esquecera de que Ulisses, o homem do olhar bidimensional, já estava quase cego quando reencontrou sua Ítaca bem-amada e enfim pôde percebê-la verdadeiramente, materialmente, através do corpo?”.

Não esqueçamos também Laocoonte, a figura mítica que, acreditando no significante invisível, isto é, no terceiro olho, queria prevenir os gregos do perigo que se escondia no célebre cavalo de Troia. Evitemos ficar deficientes dos significantes visuais e positivistas, mas esforcemo-nos também por acreditar em uma semiologia negativa, estimulada pelo mito, ou pela literatura que dela nos dá tão numerosos exemplos.

Para mim, fotografar é escrever com a luz. Justifico meu trabalho nesse domínio pelo resultado do progresso técnico, sirvo-me dessa invenção para criar imagens. No entanto, a máquina fotográfica não foi concebida para os cegos, da mesma forma, aliás, que não o foi para os canhotos. Graças a um domínio técnico do fenômeno da camera oscura, ela pode captar a imagem exterior e imprimi-la no filme.

A origem dessa invenção deve ser procurada, bem antes da Renascença, no mito da caverna de Platão. Essa caverna é o espaço das nossas experiências empíricas do mundo, o lugar onde, na obscuridade da gruta apenas iluminada pelo fogo, se começam a distinguir os objetos projetados nas paredes, isto é, na tela de nossa percepção visual.

Sair dessa gruta significa mudar de iluminação. Explorando as possibilidades técnicas da máquina fotográfica, procuro imaginar-me o que será impresso no filme, representá-lo para mim no espaço do meu imaginário.

Não sou fotógrafo, mas iconógrafo, porque a imagem captada pela máquina fotográfica é sempre antecipada na minha cabeça, e assim constitui um ato mental. Deficiente da imagem visual física, tento exprimir, por meio da máquina fotográfica, as aparições que se formam dentro de mim e que, como tais, se tornam um pouco as imagens da transcendência invisível.

Nunca se pode observar o sonho de outra pessoa se ela não no-lo comunicar; assim, também eu não poderei jamais ver minhas fotos com meu olhar físico, mas só ter uma representação verbal delas graças aos amigos benévolos. Minhas imagens adquirem por isso uma espécie de transcendência imediata. É por isso que, numa emissão radiofônica, John Berger teve a ideia de comparar minhas fotos às pinturas de Fayoum dedicadas à transcendência.

Exteriormente iconoclasta e interiormente iconófilo, fico do lado de Eros, considerando a obscuridade como volume e não apenas como superfície. Trata-se para mim da continuação lógica da experiência do quadrado de Malevitch, e da entrada no espaço tridimensional das trevas, como a desaparição do sujeito/pintor na paisagem que previamente ele tinha concebido (ver a novela de Marguerite Yourcenar em que o pintor chinês desaparece com o barco que ele pintou).

Portanto, não sou fotógrafo, mas “alguma coisa que fotografa”, porque minha deficiência não me permite o olhar físico distanciado, mas apenas o toque, a que chamo olhar aproximado. A série de fotos com o título Vistas táteis representa os olhares aproximados que lanço sobre os modelos fotografados, e uma versão moderna da experiência do Eros grego.

Quando faço retratos, dou às pessoas fotografadas a possibilidade de olharem para o infinito, pois por trás da máquina fotográfica não existe nenhuma instância de controle, isto é, um operador que a todo momento poderia vigiar o olhar do outro. Minhas imagens existem para mim na medida em que existem para os outros. Realizando a síntese entre a palavra e a imagem, quem me descreve minhas fotos põe uma palavra sobre o que mostro: assim retomo a tradição da arte cristã, que deve todas as figuras ao texto bíblico.

Para poder fotografar, eu, que sou um Édipo tardio, tenho de me apropriar da imagem que pertence a todos e a cada um. Entretanto, posso às vezes ser reacionário, preferindo Antígona ao cão-guia, pois ela representa não só uma imagem de mulher em revolta contra o Estado, mas também o amor do próximo e a preeminência da lei do coração relativamente à justiça dos homens.

“O essencial é visto pelo coração”, dizia Saint-Éxupéry. Também se torna visível pelo meu sonho de uma nova Antígona que não seja somente a que nos propõem as imagens visuais. O olhar aproximado dos deficientes da vista possibilita a percepção material do substrato do mundo e do nosso corpo, ainda que seja no espelho velado da visão do cego.

Esse reflexo não representa perigo de suicídio pela identificação absoluta do sujeito com o objeto, isto é, daquele que olha com aquele que vê e se sabe insubstituível na sua presença corporal.

Referindo-me aos intérpretes gregos do oráculo, sustento que a palavra do corpo ferido do cego pode portar em si uma força redentora e evidenciar o conteúdo abstrato e mentiroso das realidades virtuais que ficam sem volume nem consistência perceptíveis pelo nosso corpo. Para mim, a única possibilidade de me assegurar da existência é um corpo a corpo permanente do objeto da percepção com o sujeito que percebe.

Na minha qualidade de fotógrafo, tento considerar a câmara escura como espaço infinito em que as imagens podem surgir. Também nossa Terra é uma câmara escura onde os astrofísicos podem às vezes observar as estrelas diretamente, mas no mais das vezes às cegas, com a ajuda de instrumentos e da imaginação, conforme observa o astrofísico Peter von Balmoos.

“A obscuridade do momento vivido” não diz respeito somente aos cegos, mas a toda a humanidade em busca do infinito. Devo acrescentar que não apreendo coisas ou pessoas na foto, mas antes tento dá-las, graças à invenção da câmara.

Parece que “amar é dar o que não se tem”. Eis o que se poderia dizer do ato fotográfico, principalmente quando se trata de puro ato mental. Sendo assim, jamais consigo responder à pergunta que alguém me faz: “Como é que eu sou?” — mas respondo com retardamento, fazendo uma foto; e às vezes essa demora me permite ir um pouco além do visível.

Portanto, por que é que a ideia do deficiente invadiu a história contemporânea? Falar do corpo ferido, designar o outro como diferente de nós, é tentar acreditar na possibilidade do corpo ideal, perfeito. Segundo Rosenzweig, o Eterno criou o mundo tão perfeito que começou logo a lamentá-lo. Foi assim que se decidiu a acrescentar a morte à criação. É assim que a história começa, que o tempo imprime suas formas aos nossos corpos e o espaço sem vazio à nossa presença terrestre. Começamos a partir desse ponto zero do espaço e, por intermédio do corpo, a história do outro se mistura às nossas pequenas histórias. E quem dirige esta grande história? De acordo com Walter Benjamin, é um anão escondido debaixo do tabuleiro sobre o qual se jogam os movimentos temporais, com a história, quando entramos nela. O autômato descrito por Benjamin (uma marionete vestida de turco) e um jogo de espelhos que dissimula o essencial são o que cria a ilusão. O homem-máquina da aparência visual não é o equivalente de um anão escondido na máquina. Não quero falar de Deus no sentido em que o entendia Dali, que afirmava dever ele ser muito pequeno para estar presente em todas as coisas. O autômato descrito por Benjamin representa uma das figuras, o substituto, o homem-máquina que, em nossa época, como diz Eric Fromm, se torna, na realidade, um robô. E foi a robotização do homem que criou na ciência contemporânea a ilusão de uma analogia entre o homem e a máquina, entre a estrutura e o conteúdo irredutível do substrato humano. Se o homem não for mais do que uma máquina, as pessoas que se ocupam dele são engenheiros, reparadores dessas estruturas: Georges Simmel dizia que o dinheiro é a ferramenta mais perfeita; eis uma instrumentalização das coisas, querendo dizer que os banqueiros seriam os engenheiros com as ferramentas mais perfeitas.

Poderíamos até dizer que aquele que escuta o inconsciente estruturado como linguagem deve ser antes considerado um engenheiro que se ocupa da estrutura mental, da máquina pensante. Tratando assim do homem moderno, esquecemos a criatividade dele; e o perigo da aplicação do mecânico ao sujeito, o homem, significa a desumanização contemporânea do homem.

É a ideia do deficiente como destino comum de todos nós que nos permite pensar de outro modo o corpo e ver nele também um reflexo inédito da história. O corpo pode tornar-se assim o espaço utópico mais imediato, isto é, o substrato material e incontornável dos nossos sonhos. Partindo de uma ideia nova do corpo como condição material de nossa liberdade, podemos conservar a subjetividade contra a mecanização das funções corporais e, principalmente, contra a robotização de nosso espírito.

Por isso, penso eu, um fotógrafo cego que não possa de jeito nenhum dominar seu objeto é sempre melhor que um photomaton que, como Olímpia de Hoffman, repita sempre a mesma música, sem cambiantes nem imaginação.

O corpo que possuímos está sempre em desnível em relação àquele que imaginamos ter. Dom Quixote não olha as coisas tais como são, mas como poderiam ser: é assim que ele se açula contra os guerreiros, enquanto Sancho Pança — que identifica o corpo e sua imagem — vê apenas moinhos de vento. Montado no burro, permanece no mundo factual da percepção, da normalidade.

No que me diz respeito, prefiro Dom Quixote e suas versões modernas, mesmo que ele me leve a ver em cada mulher uma Dulcineia potencial. A deficiência é, portanto, o desnível entre a percepção do mundo tal como é e tal como poderia ser.

Os deficientes representam a lembrança da natureza que gostaríamos de dominar, bem como a revolta contra o aperfeiçoamento técnico e tecnológico que quer dar uma imagem mentirosa do corpo, roubando-lhe o sonho que a natureza havia depositado nele. O exame da doença do homem contemporâneo permite compreender melhor nossa condição, sem por isso renunciar à utopia do corpo que tem origem no corpo dos deficientes. Dizia-se: “Não fiquem tristes porque vocês são pobres, um dia vocês poderão ficar ricos”. Da mesma forma, o deficiente pode tornar-se mais homem e assim realizar a utopia do corpo, a de superar a cada instante fraquezas e obstáculos do momento presente.

A utopia do corpo não deve se impor à natureza, mas trabalhar com a cumplicidade dos nossos possíveis. Este poderia ser também o grande ensinamento dado por todos os que, no século XX, escolheram a auto-imolação para protestar contra a redução, pelos totalitarismos, do espaço utópico. Seus corpos transformados em chamas ou aniquilados pela fome acabam tendo a última palavra que ainda é uma palavra autêntica do corpo exigindo sua liberdade.

Tradução de Paulo Neves

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