1990

O desejo da realidade

por Maria Rita Kehl

Resumo

A realidade, sabemos, é inimiga do desejo. O desejo pertence aos domínios do Princípio do Prazer e, no limite, aos domínios da pulsão de morte. Tudo o que a realidade tem a oferecer são pobres substitutos – e no entanto é deles que depende nossa própria vida, e mesmo uma certa parcela de prazer possível.

O que sabe o Eu sobre o desejo? O que pode dizer o Eu sobre o desejo a não ser que se apoie no real? O real se impõe de tal maneira que a psique é obrigada a se modificar a partir do seu Princípio, desenvolvendo assim recursos novos: consciência, memória, atenção, pensamento, ação. “Quais serão as novas implicações, os novos compromissos entre prazer e sofrimento, realidade e ilusão, que (o Eu) deverá efetuar?”

É possível falar, a partir da instauração do Princípio da Realidade, de um desejo do real? É possível dizer que desejamos a realidade, ou que desejamos o futuro – essas duas construções impossíveis, inacessíveis em sua plenitude? O futuro nunca nos chega como tal e sim como presente (ou passado em eterno retorno), o real nunca nos chega sem o intermédio da representação.

Desejo do real, pulsão desviada de seu fim originário em direção à realidade: “pulsão epistemofílica” a que se refere Freud. Nas fronteiras entre o desejo e o real se delineiam as utopias, que também nunca nos chegam como tais – quando chegam, já são outra coisa. Esse é o destino do desejo: ver transformado em matéria humana, falível, finito, tudo o que é tocado pelo Princípio de Realidade – e ainda assim manter este Princípio como o único capaz de propiciar senão o gozo pelo menos o prazer, quando a fantasia revela sua insuficiência.

O gozo, esta é outra história: quando o delírio, tomando uma liberdade nem sempre bem calculada, inunda o real e lhe imprime sua marca.


I

Mesmo sabendo que a natureza última do desejo é da categoria do impossível, do absoluto, do interdito — que são três maneiras de dizer a mesma coisa —, não é assim que se dá nossa experiência cotidiana como sujeitos desejantes. Do ponto de vista do modo corriqueiro como vivemos e expressamos nossa condição de desejantes, o lugar dos objetos do desejo é a realidade, ou melhor, o campo das representações da realidade e dos objetos ditos reais. É nesse campo, das representações da realidade, que podemos falar não o desejo, mas do desejo, desviado de seus fins primários, obscuros para o sujeito, em direção a objetos secundários que aparecem para a consciência como objetos possíveis cujo alcance depende pelo menos em parte de nossa ação voluntária, consciente.

Aqui sou obrigada, um pouco a contragosto, a fazer um parêntese a respeito do que estou pretendendo chamar de realidade. A princípio parece simples: real é tudo o que se diferencia da produção alucinatória. Porém, as coisas se complicam muito quando se constata que, por um lado, também aquilo que o psiquismo alucina se baseia na memória de alguma experiência com algum objeto da realidade. Por outro lado, não temos nenhuma garantia a respeito da nossa plena objetividade, ou seja: de que nossa percepção e representação não só dos objetos da realidade, mas principalmente das leis que regem as múltiplas relações entre esses objetos, e entre nós e “eles”, sejam percepções e representações reais.

Sabemos que, quando Freud fala em Princípio de Realidade ou em exigências da realidade, está colocando a prova dos noves no limite daquilo que importa ao psiquismo, que é o próprio limite entre a vida e a morte: satisfação real é aquela capaz de assegurar a sobrevivência do corpo — último reduto que consegue se opor à onipotência do pensamento — enquanto o engodo da satisfação alucinatória é logo denunciado pelo próprio corpo, que continua a enviar sinais de desconforto e/ou alarme até que algum outro objeto venha ocupar o lugar do objeto criado pelo psiquismo em sua tentativa de auto-suficiência. A este outro objeto capaz de aplacar o corpo chamamos objeto real, ainda que o psiquismo precise de muito tempo e repetidas provas da realidade até diferenciar um do outro. Aqui, temos uma noção da realidade muito próxima da concretude: real é aquilo que fala ao corpo, prazer capaz de aplacar a carne, ameaça capaz de destruir a vida ou mutilar, danificar, modificar essa nossa “morada temporal” —, única morada do psiquismo, frequentemente subestimada por uma certa “onipotência do pensamento psicanalítico” pós-freudiano.

Mas a prova do corpo não pode ser a única prova dos noves da realidade, uma vez que para além da realidade imediata vivemos a realidade de uma determinada cultura, um campo de objetos e percepções que ultrapassa em muito aquilo que é do alcance da carne; um vasto campo simbólico no qual prazer e desprazer vão depender de um código compartilhado. Inclusive os prazeres vividos, aparentemente, “no corpo”. Código tão externo ao psiquismo — ainda que assumido e introjetado por ele — quanto os objetos concretos de que o corpo se apropria para sobreviver. Assim, à prova do corpo é preciso acrescentar a prova do Outro, e humildemente aceitar que, como programa mínimo de realidade — e sempre no limite —, real é tudo aquilo que o código de uma determinada cultura aceita como tal; real é todo objeto e toda relação que a cultura a que pertenço reconheça como tal.

Esse critério convencional, tão útil às ciências exatas, serve mal e porcamente à psicanálise, uma vez que o próprio Freud trabalhou para destituir boa parte de nossa confiança nos códigos compartilhados ao encontrar outras causas, outras explicações e outras determinações para fenômenos que até então a cultura à qual pertencia pensava já ter “enquadrado na realidade” à sua maneira. Além do mais, a psicanálise nos ajuda a desconfiar do campo do código como prova de realidade, já que é esse justamente o campo privilegiado da neurose, das racionalizações, das defesas que nos impedem, individualmente mas apoiados o melhor possível no consenso, de ver o que não é para ser visto.

Ainda assim temos de nos conformar com o fato de que o código tem o poder de criar um campo de realidade — social, ideológico e inclusive neurótico — e que é desse campo que nos chegam as representações, também externas ao psiquismo, que nos permitem uma certa confiança em que aquilo que estamos vivendo faz parte do que o Outro aceita como realidade, e, portanto, é como se assim fosse.

É como se assim fosse. Uma vez que nos acostumamos a aceitar que a realidade para a psicanálise tem um estatuto diferente do que tem para a filosofia; uma vez que aprendemos a desconfiar da relação necessária entre realidade e saúde, e encaramos a superadaptação às exigências da realidade como produto da ação das defesas neuróticas que inibem a curiosidade, a capacidade de investigação e de insubordinação — derivadas da curiosidade sexual infantil —, podemos admitir recuar até esse ponto como “programa mínimo” para a definição do campo social da realidade. Desde que não se perca de vista o limite da carne: pois alguém pode recusar o critério do Outro como exigência da realidade e se dispor a morrer como sujeito social em nome de alguma outra experiência de realidade — isolamento dos místicos, de alguns poetas, de alguns revolucionários —, e nem por isso estaremos seguros de poder rejeitar essas experiências como menos reais em função de seu desvio quanto ao código. Mas não se pode desatender totalmente os critérios do corpo sob pena de morte — e a morte é o fim de qualquer possibilidade.

Portanto, continuamos com Freud. O critério último e irredutível da realidade ainda é o que situa as possibilidades da vida diante das certezas da morte. Mesmo porque, embora sejamos obrigados a admitir que a realidade é externa ao psiquismo, ultrapassa seu alcance e sua capacidade de entendimento, precede nossa passagem por este mundo e certamente sobreviverá a ela, é impossível nos referirmos à totalidade desse real. A realidade de que se trata aqui é a realidade humana, resultante da permanente negociação entre as criações da realidade psíquica e as imposições da realidade externa. Se no início da sua obra Freud ainda tinha a ingenuidade de supor que algumas categorias de seres humanos — os neuróticos e psicóticos — viviam em menor ou maior grau “mergulhados na realidade psíquica” enquanto outros — os sãos — eram capazes de distinguir claramente a realidade sem deformá-la por ação do desejo inconsciente, logo foi obrigado a perceber que estava formulando uma psicologia cujas leis valiam para além dos limites do patológico. Assim, as deformações da realidade produzidas por ação do desejo, embora variem em qualidade e grau, não são próprias desta ou daquela patologia, mas próprias da existência do desejo e do recalque, o que significa próprias do humano, como o inconsciente também é.

As relações entre a realidade psíquica e a realidade externa ao psiquismo estão longe de ser de pura oposição. Para entender um pouco do que as constitui, temos de admitir no mínimo que: primeiro, toda fantasia toma como suporte algum acontecimento da experiência real; segundo, nem tudo o que é recalcado são fantasias — percepções da realidade externa que podem ser sentidas como ameaçadoras para o ego em função de sua associação com o desejo também são recalcadas e se incorporam ao conjunto de imagens que vão formar a tal realidade psíquica. A percepção “minha mãe me odeia” pode ser absolutamente realista em alguns casos e, recalcada por seu caráter doloroso e ameaçador, ficar condenada a se manifestar na forma de fantasia ou percepção deformada. Por último, o desejo e suas manifestações não são menos reais do que as trovoadas ou as fases da Lua.

Por tudo isso, nenhuma humildade por parte do analista diante daquilo que é real para seu paciente é demasiada. Como o criador da psicanálise, devemos saber negociar na moeda do país que estamos visitando,[1] que não é especificamente o país da neurose ou da psicose — é o reino do inconsciente. Para além da onipotência do pensamento existe o pensamento e sua potência, cujos limites nunca conhecemos o suficiente. Para além das frustrações que a realidade impõe à onipotência do pensamento, temos de admitir que todo o resto do que pode ser ou não “real” está aí para ser redefinido por cada um que queira se aventurar — como Freud — a enxergar e agir ultrapassando as fronteiras do que estamos acostumados a convencionar como realidade.

II

Quem observa uma criança se desenvolver pode conferir que, passado um primeiro momento em que ela parece não notar o mundo, e um segundo momento em que, já tendo notado o mundo, ela reage com angústia a tudo o que é novo — tudo o que não é a mãe (angústia que não deixaremos nunca de sentir frente ao desconhecido, ainda que a esse sentimento venha se juntar outros) —, ela entra numa longa fase de inquietação que eu chamaria de fome do mundo. “Fase” que, se essa criança não for muito reprimida em seus impulsos, deverá caracterizar o resto da sua vida, passando por altos e baixos a depender dos conflitos que desviarão ou bloquearão o curso da sua libido.

Pois essa fome do mundo, essa libido passeadora que parece querer provar sempre um pouco de tudo mesmo quando aparentemente satisfeita em suas demandas essenciais — alimento, amor — essa fome é típica do humano, diferenciadora entre o que é do homem e o que é da natureza. Essa fome nos permite dizer com tranquilidade que a pulsão não é da mesma natureza que o instinto, já que o instinto se define por seu objetivo, enquanto a pulsão permanece móvel, capaz de abraçar o mundo entre seus objetos.

O que pretendo investigar aqui é alguma coisa a respeito dessa fome do mundo, que, quando se nos apresenta desinterditada, é capaz de nos proporcionar experiências muito próximas da felicidade — ainda que frequentemente acompanhadas da chamada angústia de prazer. E notem que estou relacionando a felicidade ao sentir fome, e não ao sentir saciedade; ainda que eu admita que uma parte, mas só uma parte, da felicidade da fome vem da antecipação da experiência de saciedade, não posso admitir que essa antecipação seja responsável por toda a alegria da fome, já que também sabemos por experiência que a saciedade está mais próxima do tédio, de uma certa tristeza, de uma espécie de morte do desejo, do que a fome — e, portanto, a saciedade é sempre também uma decepção. Se a alegria da fome fosse pura antecipação da saciedade, seria a antecipação de uma decepção. Não; a alegria da fome, essa mesma que nos faz dizer “o melhor da festa é esperar por ela”, não é a antecipação da hora em que não teremos mais fome, hora de grau zero da alegria, mas a própria alegria de desejar, de ter desejos e enunciá-los, ou, como se diz, de viver por eles.

Mas, assim como quero diferenciar a alegria da fome do prazer da saciedade, é importante diferenciá-la da experiência da privação, já que esta nunca é vivida sem imensa angústia, a própria angústia de morte: a dúvida sobre as possibilidades de sobrevivência do sujeito. A alegria de desejar depende de uma certa dose de confiança no real, uma certa quantidade de experiências de gratificação que permitam esperar que esse lugar externo ao psiquismo para onde se espraia a “fome do mundo” seja um lugar de onde pode vir alguma espécie de prazer e alguma espécie de confirmação, de aplacamento, pelo menos temporário, de minhas indagações. É quando a realidade da nossa experiência é de certa forma amistosa, quando a realidade cede ao acordo que o desejo faz com suas exigências, que a fome do mundo é sentida como antecipação feliz, afirmação do sujeito que ao dizer “eu quero” está também dizendo “eu posso” ou, pelo menos, “eu acho que posso”.

Quando o real é hostil, lugar de privação e frustração permanentes, tudo isso muda, e nos deparamos com a ameaça constante de afrouxamento dos vínculos e dos investimentos do Eu em relação à realidade: é o que se pode chamar psicose da miséria.

III

A realidade e seu Princípio só se introduzem no campo do desejo a partir do malogro da satisfação alucinatória através, da qual o psiquismo tentava obedecer às demandas imediatistas e onipotentes do Princípio do Prazer. O fracasso (parcial, veremos) do Princípio do Prazer inaugura a um só tempo três instâncias para a psique — o tempo, a realidade e o embrião de um sujeito, diferenciado do todo ao qual se achava unido imaginariamente e portador de um desejo, já que na vigência do Princípio do Prazer não se pode falar exatamente em desejo justamente pela vinculação imediata entre a necessidade e a satisfação alucinatória. No mínimo, não se pode falar de permanência do desejo antes do fracasso do Princípio do Prazer.

É a partir desse fracasso que o psiquismo desenvolve recursos para fazer a mediação necessária entre a pulsão e a satisfação parcial da pulsão — recursos a que chamamos Princípio de Realidade. É então que se introduz a experiência do tempo, já que a psique, regida de acordo com os processos primários, vive uma espécie de atemporalidade, de simultaneidade entre a manifestação da necessidade e a representação do objeto da satisfação. É com o fracasso do Princípio do Prazer que surge a possibilidade de este recém-chegado ao mundo se tornar sujeito de uma história, que será a história das tentativas que ele fará para encontrar satisfação substitutiva para a satisfação alucinatória: a história dos embates do indivíduo com a realidade e das múltiplas enunciações do desejo, que só são possíveis se referidas aos objetos do “mundo real”. E aqui não interessa se o psiquismo percebe esses objetos “corretamente” (já vimos que nunca os percebe de maneira totalmente “realista”), uma vez que o que nos importa é a realidade psíquica, resultante da composição possível entre as demandas do prazer e as imposições da realidade externa. Importa que a representação desses objetos tenha algum apoio na realidade, que se sustente minimamente diante da prova do corpo e da prova do código, as provas da realidade que nos interessam.

Assim, podemos dizer que todo sujeito é sujeito de um desejo, ou melhor, todo sujeito é sujeito porque é desejante — e esse vínculo é fundante, já que sujeito, realidade (da qual o tempo faz parte inegável) e desejo são paridos a partir do mesmo evento: o fracasso do Princípio do Prazer, primeira experiência de corte na unidade imaginária mãe-criança, ou mundo-criança, ou, ainda, na unidade imaginária entre a necessidade e sua imediata satisfação.

A decepção com a satisfação alucinatória obriga à introdução da realidade para o psiquismo,[2] e a realidade cria o desejo em dois sentidos: primeiro, porque é do fracasso dessa satisfação imediata que o desejo se manifesta enquanto tal. Enquanto não existe demora, não existe corte, não é possível reconhecer o desejo. Seguir desejante é assim, para o sujeito, ao mesmo tempo condenação, signo de sua expulsão do paraíso, e condição de sua existência, já que não desejar o remeteria de volta à situação primitiva de não ser sujeito, indiferenciação anterior à esta separação inaugural que nos faz sujeitos de uma história pessoal e intransferível.

Em segundo lugar, a realidade cria o desejo porque é dela que nos chega a percepção dos objetos parciais substitutivos para a demanda absolutista da pulsão; objetos que permitem que o desejo se destaque da pulsão e ganhe uma fala (a pulsão é muda), e ao mesmo tempo aliviam o sujeito da pressão dessa demanda absolutista destinada ao fracasso. A realidade cria o desejo do mesmo modo (e não é o mesmo processo?) que se pode dizer que uma mãe cria seu filho, oferecendo a ele uma fala, seu próprio desejo (com o qual a criança de início se identificará) e os recursos de satisfação que lhe permitam crescer e multiplicar por sua vez seus próprios recursos.

É com a introdução do Princípio de Realidade que o sujeito desenvolve consciência, atenção, memória, discernimento, pensamento e ação![3] Ao mesmo tempo, são esses recursos psíquicos que criam a realidade na qual este indivíduo particular irá viver, realidade que não é simplesmente um dado exterior ao psiquismo e imposta em bloco a ele (este sim o “real impossível” a que se refere Lacan), mas recriação permanente do sujeito a partir de cada uma de suas intervenções concretas e sobretudo simbólicas e simbolizatórias. O sujeito não se apropria simplesmente do código posto à sua disposição pela cultura, anterior à sua entrada em cena. Ele re-simboliza continuamente, interfere continuamente no código. As chamadas “faculdades mentais” enumeradas em “Os dois princípios… “, de Freud, representam um enorme ganho de liberdade para o sujeito que deixa de estar condenado ao recalque como único recurso para evitar desprazer. Memória, atenção, discernimento e o grande herdeiro da atividade alucinatória que é o pensamento permitem que o psiquismo não tenha mais de simplesmente recalcar toda a representação que é fonte de desprazer, e assim possa distinguir em que circunstâncias uma representação pode trazer prazer, desprazer ou ser neutra nessa questão. Interferir nessas circunstâncias, reinterpretá-las, relativizá-las ou até mesmo alterá-las concretamente quando possível é interferir no código, re-simbolizar o real. Viver uma história pessoal que não seja simplesmente repetição do já vivido antes pelos que nos precederam.

[…] Aquele que começou a perceber a magnificência da coesão universal e suas leis imutáveis, perde facilmente seu próprio, pequeníssimo Eu. Absorvido pela admiração e possuído de uma verdadeira humildade, esquece com demasiada facilidade que é por si mesmo uma parte daquelas forças cuja atuação o maravilham e que pode tentar alterar, na medida de suas energias pessoais, uma pequeníssima parte do curso necessário do mundo, deste mundo onde o pequeno não é menos maravilhoso nem menos importante que o grande.[4]

Há uma distância entre a onipotência do desejo, que pretende criar um mundo próprio à sua inteira conveniência, e o poder de modificação do Eu sobre a realidade, sinal de potência e saúde do ego. Distância marcada pelas sucessivas transformações por que este sujeito teve de passar, movido pela aspiração de “encontrar uma realidade na qual o prazer seja possível”.[5]

IV

As representações dos objetos da realidade são o único ponto de apoio do sujeito para falar do desejo, mas o julgamento que o Eu efetua sobre essas representações e principalmente sobre sua relação com elas está cheio de enganos, ou melhor, de ilusões, criadas pelas próprias colisões entre o desejo e o recalque.

Se alguém diz: “aquilo que eu mais desejo é conhecer a Europa”, respaldado na plena certeza de que a Europa é um objeto real e de que seu desejo encontra consonância e reconhecimento no desejo de muitas outras pessoas, mesmo assim estará incorrendo em pelo menos três ilusões ou, por assim dizer, três meias verdades.

Primeiro, o que ele quer não é exatamente conhecer a Europa — o que pressupõe desconhecimento —, já que ao dizer Europa o sujeito está, ainda que inconscientemente, se referindo a alguma coisa que ele pensa que conhece, pelo menos o suficiente para desejar. O que ele deseja então, aqui, não é exatamente conhecer um lugar desconhecido, mas reconhecer um objeto de suas representações, de seu universo simbólico, investido de afetos a priori a partir principalmente do desejo do Outro. É (também) porque a Europa é um objeto da realidade bastante privilegiado dentro do código que ele se torna tão privilegiado aos olhos desse sujeito particular (supondo que ele seja brasileiro como nós…).

Assim, quanto mais ele “souber” sobre essa Europa, mais chances terá de obter prazer visitando-a, se aquilo que ele antecipa for encontrado de fato — e, nesse caso, conhecemos o poder do desejo em promover ilusões de modo que essa pessoa possa encontrar exatamente o que esperava e simplesmente não perceber nada do que contrarie a imagem preconcebida da Europa dos seus sonhos. Nesse caso, ele encontrará a Europa como se fosse um reencontro, e os reencontros em geral são mais felizes que os enfrentamentos com o desconhecido — é só lembrar a criança que reage com angústia a tudo o que não é a mãe. O reencontro é uma reafirmação narcisista do ego e um prazer de repetição, enquanto o encontro com o desconhecido ameaça o narcisismo, exigindo que o ego se refaça, se reestruture parcialmente para incorporar o(s) fato(s) novo(s).[6]

Nesse caso, se o sujeito por algum grande azar não for capaz de promover a ilusão de estar reencontrando a Europa de seus pressupostos, corre o risco de voltar como se não tivesse ido: o que ele foi (re)encontrar não estava, e o que encontrou não estava investido de afeto, não era a Europa dos seus desejos!

Em segundo lugar, lembrando a dificuldade de Freud em visitar sua amada Roma, é ilusão pensar que o objeto mais desejado seja fonte de expectativas de puro prazer. É bem conhecida a interpretação que Freud fez de suas dificuldades em pisar o solo romano: aquilo que representava para ele a experiência mais desejada era também fonte de maior angústia justamente por seu enlace com o aspecto recalcado do desejo — superar seu pai na rivalidade edípica.[7] Realizar um grande desejo pode ser, portanto, uma tarefa perigosa para a consciência, carregada de ameaças arcaicas e causadora de grandes angústias. No entanto, vencida essa angústia (quando é possível vencê-la), não há felicidade maior do que a realização de um desejo infantil — e isso Freud também pôde constatar quando, enfim, visitou Roma…

Por fim, talvez devêssemos dizer “o que eu mais quero é conhecer a Europa”, já que o desejo aponta para um outro lugar: o lugar da sua incansável repetição. Então, o que mais se deseja não é ir à Europa, mas desejar ir à Europa e seguir desejando, seguir sendo sujeito de um enunciado que aponta para algum objeto real, reconhecido pelo Outro e que pode representar a reafirmação repetitiva do desejo no campo da realidade. O que mais se deseja é seguir sendo sujeito de um desejo que possa se enunciar, ter a falta mas também o significante, já que o terrível é a falta sem um significante que pareça lhe corresponder — e assim sucumbir a ela. Terrível é a perplexidade de se perguntar: o que eu desejo?, que é o mesmo que desconhecer — quem sou eu? —, já que desde a origem o sujeito se identifica pela sua particular cadeia de significantes, sua coleção particular de representantes da falta, tanto mais asseguradora quanto mais referida ao campo da realidade a partir do qual também o Outro o reconhece e o legitima, reconhece os objetos (secundários) do seu desejo. É ao reconhecer esses objetos como desejáveis também no campo do código que o sujeito reafirma narcisicamente a sua existência como alguém capaz de expressar o que também é desejável para o Outro. Afinal, nunca é demais lembrar, com Lacan, que todo desejo é desejo-do-desejo-do-Outro[8] no limite, e sempre no limite, já que entre a abstração de que a teoria é capaz e a maneira como o desejo se apresenta à consciência vai uma distância tão grande quanto a distância entre o recalcado e o permitido. Distância que só se revela pequena depois de transposta.

V

Se a realidade, o desejo e o sujeito são fundados a partir do recalque que acompanha o fracasso do Princípio do Prazer, vale a pena especularmos um pouco sobre a natureza do que é recalcado.

Segundo Freud, o que é prazer para o inconsciente é desprazer para a consciência. O que eu mais penso que desejo talvez seja ir à Europa, mas este desejo já está no lugar de um outro, substituindo com algum êxito aquilo que não pode se expressar. Nossa contradição fundamental é que a busca do prazer seja regida justamente pelo Princípio menos apto a realizá-lo, e que a manifestação das demandas regidas pelo Princípio do Prazer tenha tanta capacidade de suscitar desprazer à consciência.

Pois se o Princípio do Prazer busca a descarga imediata de qualquer excitação — e à recordação deste percurso que vai da carga de excitação (desprazer) à sua descarga (prazer), chamamos desejo[9]— isto equivale a dizer que busca um estado de não-tensão, de não-desejo, de repetição de um eterno mesmo. Freud, depois de muito se indagar sobre essa tendência do psiquismo à repetição, concluiu que o misterioso objeto primário do desejo, nunca expresso diretamente porque recalcado desde a introdução do Princípio de Realidade,[10] objeto perdido para a consciência mas terrivelmente persistente no inconsciente, é um objeto imaginário representativo de um estado de plenitude e de vazio. Capaz, no imaginário, de conduzir o sujeito cansado das tensões de carga-e-descarga da vida, de volta a um lugar de repouso onde ele de fato nunca esteve: lugar de plenitude e indiferenciação que, sendo domínio do Princípio do Prazer é assim mesmo — e por isso mesmo — domínio da Pulsão de Morte.

O caminho da satisfação alucinatória imediata é portanto recalcado não só porque fracassa enquanto possibilidade de satisfazer o aspecto orgânico da pulsão — o seio alucinado não mata a fome — mas sobretudo por ser um caminho, uma cadeia associativa que conduz à pior das angústias, à de aniquilamento do sujeito, grau zero do desejo — fantasia primária da fusão com o objeto total e fim das perturbações vitais.

Essa fantasia equivale a uma fantasia de morte, e se não é a representação da morte do corpo (que não conhecemos) é certamente a morte do sujeito, retorno à origem indiferenciada, a um lugar onde as psicoses nos sugerem que fantasias de incesto e morte se equivalem.

Mas, se é o recalque que interdita o acesso da consciência ao “objeto perdido” imaginário, ele é por sua vez insuficiente para desviar o curso da libido desse investimento cujo caminho está sempre aberto no inconsciente. O recalque é um recurso para evitar desprazer, mas não para proporcionar prazer. O funcionamento psíquico, marcado pelo recalque, fica para sempre dividido, aceitando e recusando as condições do Princípio de Realidade, aceitando e recusando os prazeres parciais que a realidade lhe oferece e permite, recusando e insistindo na demanda de satisfação absoluta, gigante temporariamente imobilizado no inconsciente, mas que pode a qualquer momento despertar, como lembra a poeta[11] a respeito da paixão: “é uma fera que hiberna — precariamente”. Para acalmar essa fera só existe um recurso eficaz — o prazer, algum prazer. É a realidade com seus pobres objetos parciais que vai oferecer ao sujeito possibilidades de prazer substitutivas do prazer alucinatório e impedir que o campo do desejo seja inundado pela Pulsão de Morte e seus “equivalentes em vida” — incesto, indiferenciação. Assim como a luz do dia vem nos apaziguar minimamente depois de uma noite de insônia em que ficamos entregues às nossas piores fantasias — e qualquer copo de água, qualquer escova de dentes parece ter a capacidade de recriar um terreno protegido contra a morte que havia dentro de nós —, a realidade tem um certo poder de salvar o ego da Pulsão de Morte. Um certo poder, isto é, nos casos em que a realidade oferece gratificações capazes de sustentar os investimentos feitos em sua direção.

Por fim, é bom lembrar que, para além do mínimo necessário de recalque, quanto mais recursos o sujeito tiver para obter prazer sem ter de recalcar todas as representações regidas pelo seu Princípio, maiores suas possibilidades de gozo, já que, primeiro, seu desejo não é de leite, mas de plenitude; segundo, o desejo nunca se conforma totalmente com os limites impostos pelo Princípio de Realidade. É imediato evocarmos a experiência do gozo sexual, carregada de fantasias mesmo numa relação sexual “real”, e a experiência de gozo presente no ato da criação poética, por exemplo, em que as fantasias se aliam aos recursos secundários da psique para “inventar realidades” capazes de proporcionar um acréscimo de prazer àqueles que o mundo oferece. Estou relacionando aqui a experiência do gozo ao sentimento de onipotência e de extravasamento dos limites do ego que acompanham essas experiências — para as quais o sofrimento (também presente) não se constitui necessariamente em obstáculo.

Terceiro: nem tudo o que, no que se refere ao desejo, é prazer de repetição, está a serviço da Pulsão de Morte. A repetição é a insistência do desejo não apenas em se realizar plenamente, mas em se expressar, em ser reconhecido pelo Eu.[12] Se o desejo se realizasse plenamente no sonho, por exemplo, não se repetiria de um sonho a outro. O que se realiza no sonho e com isso proporciona inegável prazer é a expressão (disfarçada) do desejo. “O desejo é indissociável de sua significatividade “, escreve Moustapha Safouan,[13] de modo que significá-lo é também, de certa forma, realizá-lo. Mas só de certa forma — tanto que ele se repete.

O que estou especulando aqui, e que talvez possa nos esclarecer alguma coisa a respeito do que estou chamando de “desejo da realidade”, é que a satisfação parcial do desejo possibilitada pelos objetos secundários “disponíveis” no campo da realidade é indissociável de um mínimo de satisfação alucinatória. Afinal, o que seria do prazer obtido “na real” se até mesmo sua fruição mais palpável e mais adaptada aos critérios do código social não se comunicasse sempre com o onírico, não fosse dotada de um poder de sonho fugidio capaz de incrementar esse prazer e imprimir-lhe as marcas do gozo? E, quando escrevo poder de sonho fugidio, é para frisar que esse poder não é total; perseguir isto que nos parece sempre ao alcance, mas nos foge constantemente é a condição que nos permite continuar desejando.

Continuar desejando; o que significava continuar vivendo enquanto organismo e enquanto sujeito diferenciado. A manutenção do desejo é a manutenção de uma fala. O recalcado não quer se esgotar. Quer se repetir, e se repete inclusive nos traços que persistem iguais entre as várias escolhas, aparentemente tão diversas, que fazemos pela vida. Outra vez Safouan: “o traço que se repete no objeto secundário, independente de suas características gerais, faz com que [este objeto] seja para o desejante um significante do objeto primário” — e também, eu diria, um significante da identidade do próprio sujeito. O que nos remete a Nelson Rodrigues: “O que seria de mim sem as minhas obsessões?”.

Então, para além das considerações sobre a “mais-repressão”,[14] que associa todo o prazer às marcas da angústia, há uma parte do que chamamos angústia de prazer — essa que nos faz apelidar o orgasmo de “pequena morte” — que é a angústia ante a ameaça (imaginária) de esgotamento do desejo. Aqui, o desejo-de-ter-um-desejo-insatisfeito a que se refere Lacan (a respeito da histérica)[15] pode ser generalizado como o desejo de se manter um significante para a falta e, no limite, para o ser. Aqui, a angústia de prazer é também medo do vazio que representaria a plena realização do desejo, vazio que experimentamos parcialmente depois da obtenção de alguma coisa pela qual muito se lutou. São os vencidos que idealizam o sabor e a embriaguez da vitória, como escreve a poeta Emily Dickinson: “Vencer parece mais doce/ Àqueles que nunca vencem! Melhor saboreiam um néctar! Os que na sede esmorecem”.[16]

Assim também, estar diante da possibilidade de realização de um desejo é motivo de maior alegria do que tê-lo já realizado. A mesma Emily, poeta das grandes privações e das grandes renúncias, expressa o conhecimento deste fato da vida psíquica em outros versos: “Exaltação há de ser a partida/ de uma alma campesina ao mar/ Além do casario, além da costa/ Na eternidade, mergulhar. Criado entre montanhas, como nós/ Já entende o viajante agora/ A divina embriaguez dessa légua/ primeira, mar afora?”.[17]

A embriaguez divina é o gosto da primeira légua: exaltação ante o que já se anuncia, mas ainda não se tornou real — ante aquilo que ainda conserva, para além de sua realidade, seu imenso poder de sonho.

VI

Ao falar em desejo da realidade estou me referindo ao desejo de alguma coisa que, em sua totalidade, é inapreensível para o sujeito. As tentativas que fazemos durante a vida para apreender a totalidade do real devem ser interpretadas como manifestações do próprio desejo recalcado que volta e meia insiste em suas demandas de unidade, completude, totalidade.

O real para nós é tão impossível como o elefante para os sete cegos da fábula chinesa. O primeiro encontra uma pata e pensa que é uma palmeira. Outro apalpa uma presa e discorda — é um sabe. O terceiro encontra a cauda do elefante e afirma que o misterioso objeto é uma corda gigantesca — e assim por diante, de modo que nenhum dos sete é capaz de entender o que encontrou e mesmo a soma das “partes” encontradas por cada um não formaria jamais a ideia de que é um elefante.

Aceitando esta impossibilidade em relação à totalidade do real, gostaria de me referir na sequência a alguns fragmentos dela que constituem objetos privilegiados do desejo. A começar pelo Outro e seu misterioso desejo — e o Outro aqui é o fundamentado na pessoa da mãe ou seu substituto no amor da criança. É esse Outro de quem a própria sobrevivência física da criança depende — ou, antes disso, que teve poder sobre o próprio início de sua existência — que “torna o eu da criança pensável” , no dizer de Piera Aulagnier.[18]

Ao oferecer o seio ainda antes que a criança seja capaz de associar seu desconforto à fome, antes que ela seja capaz de representar o seio como objeto de seu desejo, a mãe antecipa alguma coisa para a criança. Ao supor que o pequeno recém-nascido “quer alguma coisa”, a mãe antecipa o Eu da criança[19] e lhe oferece o primeiro material real, externo ao psiquismo, que ela poderá daí por diante tomar como objeto complementar. Para Piera, “a mãe alimenta assim o Eu futuro da criança”[20] sobre o qual ela (mãe) idealiza um poder de interferir na realidade a fim de expressar e mais tarde realizar diretamente seus próprios desejos.

O desejo desse Outro torna assim o Eu da criança pensável para si mesmo, e este pensar-se, enunciar-se, fica marcado pelo fato que lhe deu origem. Pensar “o que eu quero” fica sempre associado a uma certa tentativa de adivinhar “o que eu devo querer”, que é o mesmo que pensar “o que o Outro quer que eu queira”? Aqui estamos falando evidentemente sobre o narcisismo, tentativa de reter sobre o Eu a totalidade do desejo do Outro que passa pela necessidade de conhecer este desejo. E, uma vez que o desejo-do-desejo-do-Outro passa por tentar conhecer este desejo em sua totalidade (o que é impossível também — ele só se dá a conhecer em suas manifestações parciais), poderíamos afirmar que todo desejo, uma vez apartado de suas condições primárias, se torna um desejo-de-saber?

Seguindo o raciocínio da autora que vim citando neste trecho, a realidade se impõe logo de início para o sujeito como o lugar onde o Outro domina — a ponto de ter o poder de significar as próprias expressões do sujeito —, lugar onde impera o desejo do Outro. O desejo da realidade tem origem então na necessidade de conhecer o campo do desejo do Outro, dominá-lo, garantir-se quanto a ele; sua contrapartida é o medo do desconhecido, angústia ante aquilo que o Outro domina e eu não; angústia de ser tão pequena, tão insignificante no imenso campo de objetos desejáveis para o Outro onde eu não consigo saber qual é o meu lugar. Querer conhecer a realidade é querer me apoderar desse Eu misterioso e inapreensível — o Eu do Outro — do qual eu só conheço, e precariamente controlo, manifestações externas e parciais. Mais uma vez Piera Aulagnier: a primeira realidade que importa à criança é a exterioridade do Eu do Outro; o primeiro campo de objetos desejáveis é o campo dos objetos desejados pelo Outro (o que possibilita, se avançarmos um pouco mais, a introdução do “pai” e de todos os terceiros no campo do desejo da criança). O desejo de conhecer e investigar, carregado de erotismo desde a sua origem, é derivado do corte nessa relação dual primordial, mãe-criança. Querer a posse da mãe implica querer dominar o campo de ação do desejo materno.

VIII

Aqui deveríamos nos voltar imediatamente para a curiosidade sexual da criança, originada nesse mesmo desejo de posse em relação ao Eu materno. Mas antes há um outro objeto real, também externo ao psiquismo, que se impõe ao Eu da criança desde o início: seu próprio corpo. Corpo que a mãe investe, manipula, deseja e significa. Corpo em que acontecem todas as manifestações de necessidade, de desconforto e tensão que darão origem ao desconforto e à tensão psíquica, mas também lugar onde se dá o prazer, a queda de tensão, o repouso pós-descarga.

O encontro entre o Eu da criança e a realidade se faz, de acordo com a reflexão de Piera no texto que venho acompanhando neste ponto, através desses dois primeiros objetos — o Eu materno e o próprio corpo. Corpo que provoca na criança os primeiros sentimentos ambivalentes. Por um lado se revela fonte de prazer que a criança pode até certo ponto controlar com seus recursos auto-eróticos. Ao se sentir capaz de proporcionar prazer ao próprio corpo, a criança vem a conhecer um prazer de outra ordem, que poderíamos chamar de narcisista, pois advém da experiência de posse e de poder sobre esse bom objeto que ao mesmo tempo é dela e é manejável por ela. Corpo que é sentido pela criança como objeto possuído e não como seu próprio ser: dizer “eu tenho este corpo” traduz essa relação com mais precisão do que dizer “eu sou este corpo”.

Enquanto corpo-prazer, o corpo é o primeiro elemento da realidade que atrai para si e que torna possível e necessário o investimento que faz o Eu do que chamarei dimensão do real dos objetos.[21]

Mas, se eu havia situado o próprio corpo como objeto de uma relação ambivalente, é porque ele não é simplesmente lugar e fonte de prazer. O corpo sofre; e, se a criança se sente capaz de dominar parcialmente o prazer de seu corpo, nem por isso é capaz de dominar a dor e fazê-la cessar. A dor, a doença, o desconforto “separam” narcisicamente o sujeito de seu corpo: o corpo que sofre é um corpo que a criança rejeita, corpo autônomo que lhe proporciona uma experiência de desprazer do qual ela não pode se livrar. Odiar o corpo que sofre é complicado — a criança “sabe” que depende de existir “dentro” desse corpo para existir como objeto do amor materno.

É pela vida do sofrimento corporal […] que o corpo se imporá ao Eu como objeto real e exterior, não redutível a um simples “ser psíquico”, dotando de um sentido particular estes dois qualificativos que são “real” e “exterior”.[22]

A tentativa de o sujeito resolver sua ambivalência em relação ao objeto-corpo dá lugar à possibilidade de um terceiro tipo de experiência em relação a ele — a experiência de pensar o corpo. É a experiência de prazer que reforça o investimento do psiquismo em direção ao pensamento, já que essa atividade — pensar — se revela capaz de antecipar prazer e desprazer, evitar o segundo e proporcionar o primeiro.[23] Do mesmo modo, a ausência ou a escassa possibilidade de prazer real favorece o desinvestimento do pensamento em favor do retorno à atividade alucinatória. Nesse sentido, volto a insistir na ideia de que a extrema miséria é psicotizante. A miséria é uma experiência em que a introdução do Princípio de Realidade não parece vantajosa para o psiquismo, já que os recursos adquiridos a partir do fracasso do Princípio do Prazer não trazem de fato nada que substitua o prazer alucinatório. A realidade em situações de extrema miséria não se apresenta como um campo de objetos capazes de substituir a alternativa do prazer alucinatório, nem como um campo que atraia investimentos externos ao narcisismo, capazes de salvar o Eu da Pulsão de Morte.

Essa foi, por exemplo, a intuição genial de Glauber Rocha ao criar os personagens do seu Deus e o Diabo na terra do sol. São personagens psicóticos adaptados, à sua maneira, à situação implacável da vida no Nordeste brasileiro. Eles investem na morte, em fantasias messiânicas sobre a vida em “outro mundo” — um mundo diferente do mundo real onde nenhum investimento vale a pena. É quando perde suas últimas cabeças de gado, suas últimas possibilidades reais de sobrevivência, para uma instância tirânica que ele não é capaz de controlar ou evitar, que Manuel, personagem interpretado por Geraldo del Rey, se entrega ao transe místico e às fantasias megalomaníacas sobre a terra prometida anunciadas pelo simulacro de Antônio Conselheiro criado por Glauber na figura de Sebastião, o padre negro. Também Antônio das Mortes só sabe plantar cadáveres na terra de onde a vida não brota, e Corisco, o que restou do homem que um dia teria sido companheiro de Lampião, totalmente identificado com seu ídolo morto, discursa delirantemente sobre sua chegada triunfal ao reino do Outro Mundo. É na morte e em suas representações que investem os personagens de Glauber Rocha, numa situação em que a vida não tem nada a oferecer para sustentar seus investimentos. Neste filme de 1964 (em cuja análise não posso me aprofundar aqui), o jovem Glauber, então com 24 anos, retratou o Nordeste brasileiro num quadro não realista, mas psicótico: um lugar mergulhado na psicose da miséria.

Quando o corpo da criança sofre, seja por doença ou privação, todo o seu Eu fica ameaçado pelo ódio que ela sente pelo corpo. Só uma fala materna apaziguadora pode ajudar a criança a estabelecer uma relação não-persecutória com o corpo que sofre. É a mãe que, ao cuidar do corpo doente ou faminto da criança como um objeto que ainda é digno do seu amor, desculpabiliza esse corpo pelo sofrimento, aos olhos da criança. É o discurso amoroso da mãe ao acalentar o corpo sofrido da criança que lhe possibilita separar corpo e dor, corpo e privação, e perceber que o sofrimento, embora venha do corpo, se deve a alguma outra coisa externa a ele. É a fala da mãe sobre esse corpo que sofre que possibilita à criança pensar nele como objeto bom e mau, e assim superar a situação em que se via prisioneira de um corpo inimigo e odiado.

Mas para isso é preciso que a mãe represente alguma garantia contra o sofrimento, e que se sinta também ela, a partir de sua própria relação com a realidade, confiante (e capaz de transmitir confiança) de que o corpo é uma morada razoavelmente boa para se estar neste mundo, e de que o mundo é uma morada razoavelmente boa para o corpo. Imaginemos agora uma mãe mergulhada em miséria, para quem o próprio corpo também é lugar de sofrimento e privação, para quem as dúvidas sobre as possibilidades de sua criança em relação à realidade são idênticas ou maiores do que as da criança que sofre. No que depender dela, são pequenas as chances de essa criança vir a estabelecer uma relação de pensar seu corpo e a realidade que o faz sofrer. Incapaz de simbolizar o corpo e a realidade da qual esse corpo faz parte, a criança miserável estará condenada a viver à mercê do corpo, à mercê de uma realidade concreta e impensável, à mercê das psicoses como saídas ainda viáveis para a sua vida antes da última porta, que é a morte.

IX

Uma vez que o próprio corpo e o Eu do Outro são os primeiros objetos da realidade que se apresentam ao psiquismo, e uma vez que todo desejo em relação a esses objetos, estando apartado do domínio do Princípio do Prazer, é um desejo-de-saber sobre eles e assim dominar o prazer que vem do corpo e que vem do Outro, estamos em pleno terreno da investigação sexual infantil. A curiosidade sexual infantil é o desejo-de-saber sobre o desejo do Outro e a falta no Outro, sobre a natureza do desejo e da falta no próprio sujeito. É, em si mesma, uma curiosidade “filosófica” — voltada para o ser, a origem, a diferença, a falta; mas, impossibilitada de chegar às suas últimas consequências — já que a criança não tem condições de acesso aos mistérios do gozo sexual em função de sua própria imaturidade biológica —, essa curiosidade se deriva para o desejo-de-saber da criança em relação aos outros mistérios da vida, da natureza e da cultura.

No texto em que procura entender a origem do espírito investigativo de Leonardo da Vinci, Freud supõe três destinos possíveis para a curiosidade sexual infantil: a inibição neurótica, a transformação obsessiva da curiosidade num substituto para a própria atividade sexual adulta, e, por fim, seu destino “mais perfeito”[24] — quando

a libido escapa à repressão sublimando-se desde o princípio em ânsia de saber e incrementando o instinto de investigação, já muito intenso por si mesmo.

Aqui, embora Freud não se detenha a explicar o conceito que nomeia, nos deparamos com o “instinto de investigação” como uma pulsão erótica parcial, acrescido de energias consideráveis que provêm da libido sexual desviada de seus fins — mas não reprimida totalmente.

Quais são as condições que permitem que o impulso de investigação sexual, desviado de sua finalidade, seja sublimado e elaborado na forma do espírito de investigação capaz de orientar toda a atividade, da infância até a vida adulta? Primeiro, que a sexualidade não tenha sido reprimida em sua totalidade: “[…] a repressão quase completa da vida sexual não oferece as condições mais favoráveis para o exercício das tendências sexuais sublimadas”[25]. Do contrário, “o caráter prototípico da vida sexual acaba por impor-se, çomeçam a paralisar-se a atividade e a capacidade de tomar resoluções rápidas, e a tendência à indecisão e à reflexão obsessiva se faz notar de um modo perturbador […]”. Freud está, portanto, diferenciando aqui a atividade investigativa intensa mas dotada de mobilidade e liberdade, característica dos processos sublimatórios, da atividade obsessiva e repetitiva que é consequência da repressão.

Em segundo lugar, uma condição estreitamente vinculada à primeira: a rebeldia em relação à autoridade paterna (e materna) que possibilita à criança não só continuar desenvolvendo sua atividade sexual nos limites do que seu corpo lhe solicita e permite, mas principalmente seguir no exercício das suas indagações e da sua atividade reflexiva. Da independência maior ou menor em relação à autoridade depende a maior propensão, ou à livre investigação, ou à acumulação de saber já constituído — o que são dois destinos totalmente diferentes da pulsão. “Aquele que disputa alegando a autoridade utiliza mais a memória do que a inteligência”, disse o próprio Leonardo.[26] Mas quem desafia a autoridade paterna e as verdades estabelecidas pelos que o antecederam tem de ser capaz de viver o desamparo da orfandade, caminhar com os próprios pés e errar sozinho. A terceira condição para o livre desenvolvimento da atividade investigativa é, portanto, a capacidade de o sujeito admitir sua pequenez e desamparo diante do mundo desconhecido, isto é: aceitar para si a mesma condição de incerteza, de desconhecimento da verdade que um dia foi capaz de perceber em seu(s) pai(s) e que lhe permitiu libertar-se de seus dogmas. Ser capaz de reviver a desproteção e o sentimento de ignorância da infância diante do mundo, sem ter de necessariamente reviver a condição concreta da castração infantil, que não permitiu à criança ir muito longe sozinha em suas investigações — esta seria a condição do investigador adulto, munido de mais recursos do que a criança para dar vazão ao seu desejo da realidade, mas ainda assim admitindo sua pequenez diante da totalidade do real.

Por outro lado, aquele que mantém as autoridades paternas num lugar de saber absoluto pode ser capaz de estudar, acumular conhecimentos e transmiti-los, mas permanece inibido para criar alguma coisa a partir da experiência e da livre reflexão. Aqui eu situaria o investigador na mesma vertente libidinal do criador e na vertente oposta à do erudito, segundo a concepção freudiana já citada sobre os dois destinos possíveis da pulsão desviada de seus fins: o destino da sublimação, mais afastado da repressão sexual, pois mantém uma relação fértil, de interpenetração e troca entre o sujeito e a realidade, e o destino da neurose obsessiva, que substitui a relação de troca pela de acumulação, mais aparentada com as conformações anais da libido. O poeta irlandês Yeats retrata o erudito como um compilador asséptico dos versos que o poeta apaixonado escreveu com o próprio sangue:

Cabeças calvas, esquecidas dos pecados

Calvas cabeças velhas, doutas, de respeito,

Editoram , com versos anotados,

Poemas que os jovens, estorcendo-se no leito,

Rimaram, a sofrer do amor a crueza

Para incensar o ouvido ignaro da beleza. […][27]

Ainda resta dizer que a curiosidade e a investigação sexual não se esgotam com a possibilidade da prática sexual concreta. Pelo contrário, assim como alguma liberdade no exercício da sexualidade é condição da sublimação, a maior liberdade imaginativa e investigativa é capaz de aliar-se à atividade sexual multiplicando as possibilidades de prazer ali onde os corpos, mesmo explorados até seu limite, podem nos dar tão pouco — e, se explorados para além do seu limite estão arriscados à destruição e à morte, a última fronteira da perversão.

A atividade sexual propriamente dita não é simplesmente uma ocupação do corpo. É também linguagem, investigação, criação de significados, troca simbólica; também é, para além do aspecto orgânico da pulsão — e a pulsão faz o limite entre o orgânico e o psíquico — herdeira legítima do desejo de saber. Investigação, no próprio corpo e no corpo do outro, sobre a falta, o desejo alheio, os mistérios do prazer, os limites do ego e da consciência — limites entre a fantasia e a realidade. Investigação jamais satisfeita, que pede retorno e repetição — e se há um aparente esgotamento do interesse sexual por um longo período da vida de uma pessoa devemos pensar antes em recalque ou depressão do que em saciedade. Investigação que é condição, mas também consequência do amor: “Nessuna cosa si puó amare nè odiare si prima no si ha cognition di quella”, escreveu Leonardo da Vinci, o investigador.[28]

Investigação que nasce, na criança, em consequência da impossibilidade de realização completa do ato sexual, mas não se esgota quando essa realização se faz possível; do mesmo modo que a fantasia, outra substituta tão poderosa do prazer sexual concreto, não se esgota e sim acompanha a prática da sexualidade na vida adulta. A fantasia, fruto de uma parcela da atividade psíquica que não renunciou ao Princípio do Prazer, fica fortemente associada à sexualidade desde a origem, já que esta, sobretudo na infância, mantém um forte componente auto-erótico que não depende das exigências da realidade para se satisfazer.[29] Se, por um lado, isto permite à pulsão sexual manter-se parcialmente livre das exigências da realidade para se satisfazer, por outro, fica evidente que é nas fantasias sexuais, mais submetidas ao domínio do Princípio do Prazer, que se engancham a onipotência infantil e o narcisismo. O que tem uma vantangem e um preço.

A vantagem: a aceitação sexual pelo outro, o investimento erótico do outro sobre o sujeito, a experiência erótica compartilhada — que une corpo-prazer e corpo-pensado — proporcionam as experiências mais prazerosas da vida, capazes de compatibilizar elementos de realidade e fantasia sem grandes conflitos.

O preço: sendo o lugar onde ficou encastelado grande parte do que restou do narcisimo infantil, o sexo é também lugar de nossa maior fragilidade. Lugar onde a recusa do outro, a frustração, a incapacidade de conquista, nos ferem mais profundamente. Não é por acaso que é no lugar da sexualidade que situamos, antes mesmo de simbolizá-los, os significantes da potência e da castração: mas este é um tema bem mais complicado e o estou somente enunciando aqui.

X

Encerrando, não posso deixar de mencionar o que nos remete à psicanálise: o psiquismo, ou pelo menos uma parte dele, também se constitui em objeto de desejo-de-saber para si mesmo dada a sua cisão original. A dualidade do aparelho psíquico permite que uma parte — a consciência com seus recursos secundários de atenção, pensamento, etc. — se debruce sobre a outra, o inconsciente, para indagar o que acontece “lá”. E já que, como mencionamos, é próprio da energia do recalcado a tendência a se deslocar e se “ligar” — procurar seus representantes — é como se pudesse haver entre estes dois aspectos do psiquismo um acordo para tentar burlar a angústia, marca que assinala o recalque para a consciência. Como se (e por enquanto é melhor ficar no como se) o inconsciente desejasse “se dar a conhecer” e a consciência, apesar das resistências conhecidas, desejasse se apropriar dessa realidade interna inacessível, essa parcela do Eu que parece não lhe pertencer e determinar seus destinos com desígnios tão insondáveis como eram antigamente os desígnios de Deus.

Este desejo-de-saber voltado para o próprio psiquismo nos remete à análise. E nos remete outra vez ao sonho, à persistência dos traços do sonho na memória da vigília e ao desejo que o sonho realiza — desejo de sinalizar a existência do desejo inconsciente.

Ainda falta mencionar, mesmo que seja apenas para anunciar sua importância, um subproduto fundamental do desejo da realidade: o desejo de atuar sobre o real e suas determinações. Interferências concretas que fazemos sobre o campo da realidade até mesmo quando nos sentimos incapazes de simbolizá-la; interferências que quando se dão no contexto de uma análise são tidas como atuações indesejáveis, impeditivas do bom curso do processo analítico mas que, assim como o sintoma, devem ser consideradas como expressões possíveis do desejo de cura.

Agir sobre as circunstâncias concretas da realidade, procurar modificar o mundo, além de compreendê-lo, é tarefa humana fundamental que visa, na expressão de Aulagnier, “fazer do mundo um lugar onde o prazer seja possível”.[30]

(*) Este trabalho contou com a participação integral da psicanalista Maria Marta Assolini. Desde as primeiras fases de estudo e reflexão, até a elaboração do texto definitivo, sua contribuição foi decisiva, na forma de sugestões, referências teóricas, críticas, esclarecimentos e uma total disponibilidade para conversas amistosas e exigentes, sem o que “O desejo da realidade” não teria passado de uma vaga intuição para mim. A ela este texto é dedicado.

Notas

  1. Expressão utilizada por Freud na conclusão do texto “Os dois princípios do funcionamento mental (1910-1911)” in Obras completas, Madrid, Biblioteca Nueva, 1973, v. II, p. 1638. “[…] Mas haveremos de guardar-nos muito bem de aplicar aos produtos psíquicos reprimidos a valoração da realidade, e não conceder beligerância alguma às fantasias, enquanto produção de sintomas, por não tratar-se de realidades; como igualmente de buscar uma origem diferente ao sentimento de culpabilidade por não encontrar nenhum delito real que o justifique. Estamos obrigados a servir-nos da moeda corrente no país que exploramos,ou seja, em nosso caso, a moeda neurótica.” Ampliei por minha conta o alcance da expressão considerando que o próprio Freud naquela ocasião já havia estendido os limites de suas observações sobre o funcionamento psíquico para além das fronteiras do “país dos neuróticos”.
  2. Para essa questão, além do texto de Freud citado acima, é interessante o texto de Moustapha Safouan, O fracasso do princípio do prazer, Campinas, Papirus, 1988. Na página 29: “A decepção [com a satisfação alucinatória] ensina o psiquismo a suspender seu passo frente ao objeto desejado, até que algo lhe assegure que a presença deste objeto não é a de um logro ou mesmo de uma simples alucinação. Assim é que o princípio do Prazer se acha não limitado, ainda menos contestado, mas mais exatamente subordinado a um outro Princípio que faz com que não seja suficiente que o objeto seja ‘agradável’ para que se tente ou para que se enseje apossar-se dele. É preciso que esse objeto tenha uma outra propriedade, a de ser real ou de existir realmente”.
  3. A descrição de como o psiquismo desenvolve as chamadas faculdades mentais — seus recursos para obter prazer sob o comando do Princípio da Realidade — está no texto de Freud, “Os dois princípios…”, in Obra completas, p. 1639.
  4. Freud, “Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci”, in Obras completas, v. II, p. 1584-5.
  5. A expressão é de Piera Aulagnier no texto “O eu e a realidade”, in Os destinos do prazer, Rio de Janeiro, Imago, 1985, p. 97.
  6. O que não invalida o prazer possível na experiência com o desconhecido, acrescida da gratificação narcisista para o Eu, que se enriquece ao incorporar novos objetos, novas representações ao repertório de suas identificações.
  7. Os sonhos de Freud sobre Roma e sua interpretação baseada na rivalidade (reprimida) em relação ao pai, estão no capítulo V de A interpretação dos sonhos (“Material e fontes dos sonhos”), in Obras completas, v. I, p. 464-5.
  8. Jacques Lacan, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 111 e 223 (“Essa relação é interna. O desejo do homem é o desejo do Outro. Será que não há, reproduzido aqui, o elemento de alienação que lhes designei no fundamento do sujeito como tal?”). Essa ideia — o desejo-do-desejo-do-Outro, a alienação fundante do sujeito — está enunciada no texto “O estágio do espelho como constitutivo das funções do eu”, in Écrits, Paris, Seuil, 1968.
  9. Freud, em A interpretação dos sonhos, cap. VII, item c, define o desejo como impulso que parte da recordação da satisfação da necessidade e busca a reprodução dessa experiência. Se o desejo é a recordação (reiterada) de um percurso psíquico, vale dizer que seu campo também é o das representações. Safouan (cit.), inspirado em Sócrates, afirma que o desejo não é uma reprodução da imagem do objeto, é “produção da sua ausência”. O que vale igualmente para o prazer: “o sujeito encontra prazer nas representações porque encontra nelas o suporte de suas identificações” — ideia que tentei desenvolver no exemplo da Europa.
  10. Freud, “Mais além do princípio do prazer”, in Obras completas, v. III, p. 2507.
  11. Ana Cristina César, A teus pés, São Paulo, Brasiliense, 1983.
  12. Aqui me apoio em Moustapha Safouan, op. cit.
  13. Moustapha Safouan, op. cit.
  14. Estou me apropriando livremente do termo criado por Herbert Marcuse em Eros e civilização para me referir rapidamente à teoria reichiana sobre a angústia de prazer, segundo a qual esta teria origem nos sentimentos de culpabilidade incutidos no sujeito desde a infância a partir da educação repressiva e punitiva da sexualidade (ver A função do orgasmo). No caso, a “mais-repressão” a que se refere Marcuse seria esta parcela a mais do recalque, que varia segundo as condições de cada sociedade, e que é responsável pelas associações entre prazer e culpa, prazer e punição — geradoras de angústia. Não estou em absoluto invalidando a ideia reichiana sobre a angústia de prazer, mas apenas tentando diferenciar, até onde é possível, a ação dos “demônios de fora” e dos “demônios de dentro”.
  15. A expressão se encontra em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 19, a respeito do desejo na histeria.
  16. Extraídos de Uma centena de poemas, trad. Ada de Oliveira Gomes, São Paulo, Edusp, 1985, p. 39 (poemas 67 e 76).
  17. Ibidem.
  18. In Os destinos do prazer, p. 96
  19. Ibidem, p. 96.
  20. Ibidem, p. 98.
  21. Ibidem, p. 100.
  22. Ibidem, p. 101.
  23. Freud, “Os dois princípios…” in Obras completas, v. II, p. 1639. “A decepção ante a ausência de satisfação esperada motivou logo o abandono desta tentativa de satisfação por meio da alucinação, e para substituí-la o aparelho psíquico teve de decidir-se a representar as circunstâncias reais do mundo externo e tender à sua modificação real” (grifo meu).
  24. Freud, “Uma recordação infantil de…” , in Obras completas, v. II, p. 1587.
  25. Idem, ibidem, p. 1617.
  26. Idem, ibidem, p. 1611.
  27. Extraído de Poemas de W. B. Yeats, trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos, São Paulo, Art Editora, 1987, p. 87.
  28. Freud, “Uma recordação infantil”, in Obras completas, p. 1583.
  29. Freud, “Os dois princípios…”, in Obras completas, p. 1640. “À consequência de tudo isto, se estabelece uma relação mais estreita entre o instinto sexual e a fantasia por um lado, e os instintos do eu e as atividades da consciência, por outro. Esta relação se faz muito íntima, tanto nos indivíduos são como nos neuróticos […]. A ação continuada do auto-erotismo permite que a satisfação em objetos sexuais imaginários, mais fácil e rápida, seja mantida em substituição da satisfação com objetos reais, mais trabalhosa e retardada.” Aqui eu acrescentaria que a satisfação sexual imaginária no se mantém apenas em substituição ao objeto real, mas também em acréscimo, na presença dele.
  30. Piera Aulagnier, in Os destinos do prazer, p. 97.

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