2014

O discurso político

por Eugène Enriquez

Resumo

O discurso político é em sua essência mesma um discurso mentiroso. “Words, words, words”, dizia Hamlet. É o que se sabe desde Maquiavel, que desvelou as motivações e as formas da ação política. O homem político, que quer orientar, dirigir ou dominar um povo, procura hipnotizá-lo, fasciná-lo, persuadi-lo, convencê-lo em profundidade ou causar-lhe medo. Não pensa, pois, que o povo possa lidar com a verdade, mas que, ao contrário, deseja (como pensava Freud, aliás) ser protegido, assegurado, apoiado por um “bom pai”, um “bom poder”, um “responsável transcendente” e que na maior parte do tempo está dominado por crenças e iludido. Em realidade, o desejo do povo é mais complexo, já que integra também o discurso da verdade, cujos elementos reforçam suas crenças. Naturalmente (exceto nos regimes ditatoriais ou totalitários), o homem político não irá propor ou impor pensamentos e ações que sejam adiantados demais para as mentalidades e os valores populares. Deve adiantar-se somente um pouco e com prudência, já que este, como ele mesmo, é capaz de queimar o que há pouco adorava. Nem toda verdade é boa de dizer, portanto. Assim ele misturará, numa alquimia mais ou menos operante, verdade e mentira (deliberada ou por omissão). Ficará nas meias palavras, situação paradoxal por excelência. Se nos regimes democráticos ele é relativamente prudente, isso se deve a uma visibilidade permanente e aos meios de comunicação, que exigirão respostas imediatas a questões ou problemas sobre quais às vezes está pouco informado.

Ele, então, não poderia se refugiar no silêncio, pois assim ou renunciaria à sua autoridade, ou assumiria que é cúmplice dos fatos relatados pelos meios de comunicação. Daí a “linguagem estereotipada” ou, para usar um termo orwelliano, a “novilíngua”, que lhe é fornecida por seu partido político. Ela que lhe permitirá manter a dignidade e às vezes até responder com brilhantismo. Estando sempre em cena, obrigado a “aparecer” (se não em pessoa, em seu blog, twitter ou texto em geral), objeto de todas as inquisições possíveis, de todos os rumores imagináveis, ele nunca está protegido. Para se proteger, deve dizer o mínimo possível sobre suas ações presentes e futuras, que serão apresentadas com um caráter “vago”, a evitar toda visibilidade supérflua (ou seja: a que não o valoriza). Seu discurso será modulado de acordo com os seguintes momentos: a tomada do poder, o exercício do poder e o fim do poder.

Na disputa eleitoral, o homem político (seja qual for o nível a que aspira) mobiliza, através do discurso, suas próprias tropas instilando-lhes a confiança. Aos outros (opositores ou indecisos), aparece como o homem do momento (ou seja: dispõe de aptidões indispensáveis a ele). Ao mesmo tempo em que mantém o discurso afirmativo, ele denigre seus adversários, insistindo em seus limites e no caráter aventureiro ou utópico de seus programas.

No exercício do poder, quando a realidade, posta entre parênteses durante a campanha eleitoral, impõe-se, é preciso explicar a não realização das promessas, seja por causa de adversários, seja por causa da conjuntura internacional, seja por causa dos jogos das outras nações.

 a falta de tempo. Discurso sem autocrítica, pois a confissão de falhas pode levar seus partidários a duvidar dele. c. O fim do poder (seja qual for a razão). O homem político sublinhará os efeitos de sua ação, invocará a falta de tempo e os diversos obstáculos encontrados para desculpar o fato de não ter realizado tudo. Seu discurso permanecerá tão positivo e agressivo quanto antes e não mencionará, tanto quanto puder, as falhas do seu regime (os escândalos diversos, a corrupção, vício normal das sociedades que pregam a virtude). Naturalmente haverá diferenças quando o discurso for mais populista (arrebanhador, visando o povo unido), carismático (evocando um grande projeto e designando inimigos a combater), tecnocrático (evidenciando as únicas decisões racionais que se impõem para melhorar o país) ou mais cooperativo (visando o coletivo ao convocar a colaboração ativa do maior número de pessoas e ao buscar uma adesão afetiva). O discurso será também diferente conforme os períodos históricos (é mais fácil dizer a verdade quando tudo vai bem). As retóricas mudam mas a retórica permanece, e todos os meios de propaganda e de publicidade são empregados. Contudo, no momento atual se constata que o discurso político tem menos influência. As elites parecem separadas do povo e este não se sente mais, por diversas razões, representado por elas (crise da representação). Assim analisaremos, neste ensaio, os elementos e as formas do discurso capazes de provocar a crença e os que não têm mais efeitos (o discurso estando muito distante dos atos prometidos e das emoções sentidas). Já dizia Abraham Lincoln: pode-se enganar um homem o tempo todo, todos os homens por algum tempo, mas nunca todos os homens o tempo todo. Em contraponto, nos perguntaremos por que em certas circunstâncias excepcionais o discurso político severo e que está mais perto da verdade pode ser escutado e seguido (Churchill e De Gaulle), e também a importância de poucas palavras ou mesmo de silêncio no governo de homens que se lembram das palavras de Mêncio (discípulo preferido de Confúcio): “Os grandes homens, os povos não os conhecem pois se mostram pouco, os menos grandes, os povos os conhecem e cantam seus louvores.” O homem político sonha ser realmente “grande”?


Comecemos de maneira abrupta e provocadora (ainda que, mais adiante, venhamos a nuançar nossa afirmação): o discurso político, isto é, o discurso do homem político que quer chegar a uma função de poder (e, na maioria das vezes, a mais alta função) é, em sua essência, um discurso mentiroso. “Words, Words, Words”, já dizia Hamlet. “Bibelot d’inanité sonore”, reforçava o poeta Stéphane Mallarmé. E é o que todos sabemos desde que Maquiavel, diferentemente dos grandes antigos como Platão e Aristóteles que queriam encontrar a melhor forma de governo, revelou as motivações e as formas da ação política, mostrando que, por trás de todos os discursos, mesmo os aparentemente mais generosos, se ocultavam sempre a força e o desprezo.

O homem político que quer dominar, dirigir, orientar um povo (naturalmente esses três termos não são equivalentes), tenta hipnotizá-lo se isso lhe parece possível, persuadi-lo, convencê-lo a fundo, fazer com que o amem ou pelo menos se identifiquem com ele e seus projetos, ou, ao contrário, provocar seu medo e sua submissão voluntária – ele não pensa que o povo (ou, se acharem que o termo é muito enfático, a população ou, então, as pessoas comuns, isto é, as que utilizam a linguagem da vida cotidiana [Wittgenstein]) tem gosto pela verdade, mas sim que deseja (como o pensava Freud, aliás, e muitos pensadores pessimistas) ser protegido, nutrido, acarinhado, apoiado por um bom pai, um bom poder, um fiador transcendente, e na maior parte do tempo é movido por crenças e embalado por ilusões.

Façamos desde já uma nuança nessa descrição. Todo mundo pode citar homens políticos mais ou menos importantes que têm a coragem de dizer a verdade e de não adular o povo.

Podemos lembrar o discurso imortal de Péricles aos atenienses, que não se privou de admoestá-los e mesmo de abalar suas certezas; os discursos de Cícero contra Catilina ou contra Marco Antônio, que fizeram que este último, furioso, mandasse executar o brilhante orador; ou, nos tempos modernos, o grande discurso de Churchill à nação inglesa após a derrota da França e quando a Grã-Bretanha era a única a combater a Alemanha nazista (“não posso vos prometer senão sangue, suor e lágrimas”); ou ainda o de De Gaulle (discurso totalmente aberrante, se pensarmos bem, pois enquanto Churchill, primeiro-ministro, era bem conhecido dos ingleses, De Gaulle, “general de brigada a título temporário”, era praticamente desconhecido da massa dos franceses e não podia ter ideia alguma da ressonância do seu discurso), convocando a prosseguir a guerra e a resistência. Os casos citados são de homens de poder que não amam o poder pelo poder, mas apenas têm o desejo e a vontade de prestar um serviço à grande maioria de seus concidadãos. Nisso, são “seres de convicção” (Max Weber), seres corajosos que souberam adotar um “falar verdadeiro”, a que os gregos antigos denominaram parrésia. Eles sabiam que o “falar verdadeiro” só é possível na democracia, isto é, num regime em que não há um único orador (o homem político), mas no qual todos têm o direito e o dever de tomar a palavra. Voltaremos adiante a falar do discurso de verdade e suas condições. Vemos já que ele implica a coragem de quem o pronuncia e também uma concepção da política em que não se busca agradar, adular, em suma, exercer seu domínio, mas simplesmente dizer a verdade quaisquer que sejam os riscos, e aceitar que os outros (o povo, a população, as pessoas comuns) possam exprimir seus pontos de vista, responder a esse discurso e agir segundo suas próprias convicções. Compreendemos igualmente que esse tipo de discurso possui mais eco quando acontece em circunstâncias excepcionais, às quais ninguém tem a possibilidade de se furtar.

Nas circunstâncias da vida cotidiana, o que o povo reclama não é, em realidade, nem um discurso de verdade nem um discurso mentiroso, mas somente (e isso é essencial) um discurso que defina um propósito e que trace um caminho. Somente tal discurso pode provocar a confiança no orador e a crença nele, e às vezes em suas promessas. Pois o homem comum tem necessidade de crer numa fala, mesmo sabendo bem, em seu foro íntimo, que quem lhe fala é um tanto arengador. No homem comum há sempre uma reserva que o impede, felizmente, de confiar em todos os elementos às vezes maravilhosos que lhe são apresentados; no entanto, ele os escuta calorosamente, os pesa, os avalia de acordo com suas convicções e sua maneira de pensar e viver a vida. Ele não é uma massa maleável. Tem seus pontos rígidos, suas arestas. O que lhe permite não ser uma marionete cujos cordões são puxados pelo homem político. Mas isso só é possível na democracia. Num regime ditatorial ou totalitário, o discurso solitário do homem político (só ele tem o poder da palavra) exige que os ouvintes creiam (perinde ac cadaver [à maneira de um cadáver]) totalmente, plenamente, no conjunto da mensagem proferida, que se identifiquem com a pessoa que o emite e que não possam ter outros pensamentos, outras razões de agir senão as que escutou. Não pode agir de outra forma, e isso por duas razões que marcam a diferença essencial entre esses regimes e a democracia:

1) No caso dos regimes totalitários, a existência de uma “novilíngua” como a que Georges Orwell menciona em 1984[1], ou da LTI, a língua do Terceiro Reich que Victor Klemperer[2] analisou. Uma língua particular, específica, que tem por característica fazer desaparecer as nuanças, uma língua dura, insensível, imperiosa, ligada apenas ao coletivo (à tribo de que faz parte), amarrada, fixa, uma língua da organização, cheia de duplicidade, de mentiras, que deve assegurar a subordinação, a diluição, o apagamento do indivíduo no grupo.

Klemperer escreve que “tudo na LTI era discurso, tudo devia ser palavrório, intimação, galvanização”: “tu és nada, teu povo é tudo”. O termo filosofia é execrado, assim como inteligência e objetividade. A valorização da ação é permanente. A vida se define pela rapidez mecânica, pelo automatismo. O indivíduo isolado não tem mais valor algum, existe apenas como peça de um sistema, de uma máquina.

Quanto a Orwell, ele escreve o seguinte sobre a “Novilíngua”: “A Novilíngua se diferenciava de todas as outras línguas pelo fato de seu vocabulário se reduzir em vez de aumentar a cada ano […] o que se exigia, por razões sobretudo políticas, eram ‘palavras breves’, no sentido evidente de que podiam ser pronunciadas rapidamente sem despertar um mínimo de eco no espírito do indivíduo[…] É o anatômico, o orgânico, o automático, o mecânico que se queria privilegiar, buscando fazer da linguagem articulada um problema de laringe sem a intervenção dos centros cerebrais mais elevados”[3].

2) A condição indispensável que os ouvintes (portanto, os homens comuns que devem apenas escutar, que não têm o direito de falar, que devem ter os ouvidos bem abertos e o cérebro totalmente disponível) interiorizem os termos do discurso e se transformem em bons soldadinhos, sempre prontos a escutar as ideias e a executar as ordens enunciadas por aquele que tem o direito à palavra. Nessas condições, os ouvintes não podem ter pensamento próprio, não pode haver jogo de palavras, exercício da fantasia, criatividade. Essas línguas impedem imaginar, refletir, sonhar. Elas têm por finalidade bloquear todo pensamento descontrolado (são um dos modos mais poderosos do poder de controle) e mesmo a reflexão mais sumária.

Felizmente, não estamos (pelo menos aqui, neste momento histórico) submetidos a regimes que têm por língua apenas a do poder mais exorbitante, que exige apenas a submissão mais vil e servil. Mas não nos alegremos depressa demais. Pois veremos que em nossas democracias atuais começam a aparecer discursos codificados, éléments de langage, como se diz em francês, que não favorecem realmente a liberdade de pensamento das pessoas. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

Enquanto isso, voltemos à democracia tal como a conhecemos durante muito tempo. O homem político democrático não deverá propor (e menos ainda impor!) poderes e ações que sejam muito avançados em relação às mentalidades e aos valores do povo (ou de sua maioria); digamos, em relação ao seu imaginário social prevalente (definiremos de forma mais precisa esse termo mais adiante). Ele deve se adiantar (caso contrário irá propor apenas ideias bem conhecidas e não poderá provocar nem fervor nem entusiasmo), mas ligeiramente e com prudência. Sabe que o povo, como ele próprio, é suscetível, pronto a reagir negativamente se o pressionam, e capaz de queimar num dia o que adorou por certo tempo (inúmeros exemplos históricos nos mostram que o povo é versátil e tem vontade de se vingar – e vinga-se com frequência – quando sente que foi vergonhosamente enganado), e que nem toda verdade é boa de dizer num momento histórico se essa verdade ainda não é audível. O homem político, então, numa alquimia mais ou menos operativa, misturará verdade e mentira por omissão. Dirá as coisas pela metade, situação paradoxal por excelência. Mas, se pensarmos bem, veremos que essa situação é frequente na vida cotidiana. De fato, não queremos ferir os amigos, os pais, os filhos. E por essa razão nunca dizemos completamente o que pensamos, para não nos arriscar a magoar aqueles que amamos.

Aliás, o dizer pela metade, como pensa a maior parte dos psicanalistas, é a modalidade normal (embora paradoxal) com que nos exprimimos.

O homem político nos anos que precedem o final do século XX (ou seja, antes dos anos 1980) se reportava a uma concepção muito bem descrita pelo grande historiador Ernst Kantorowicz em seu livro Os dois corpos do rei, mesmo se não conhecesse esse livro importante que parece interessar-se apenas, à primeira leitura, por uma ficção derivada da teologia política medieval, mas que, como veremos, é essencial (ou foi essencial) ao funcionamento do Estado moderno. A teologia política medieval foi a matriz ideológica do Estado moderno, segundo a qual o reino é um organismo único que tem por cabeça o corpo do rei. A estilística da realeza (vestuário, insígnias e selos) deve exprimir o caráter paradoxal da dupla natureza do corpo do Rei, que existe à imagem do Cristo ressuscitado, ao mesmo tempo humano e supra-humano, mortal e imortal. Donde o adágio bem cohecido “o Rei está morto” (o Rei enquanto ser humano) “viva o Rei” (enquanto função simbólica que encarna o corpo do Estado, função, essa, imortal).

O Estado se forjou, num primeiro momento, à imitação da Igreja. Nela encontrou suas fontes de legitimação e um dispositivo de representação. O que permitiu, progressivamente, o poder absoluto do Rei que encarna em seu corpo real, e sobretudo em seu corpo simbólico, o conjunto do Estado. Daí a famosa fórmula: “O Estado sou eu” empregada por Luís XIV. Mas, como diz Louis Marin, que estendeu o trabalho de Kantorowicz em seu livro Le portrait du Roi [O retrato do Rei], se o Rei dispõe da força absoluta e se esta deve poder se exercer, ela deve também ser posta em reserva, retida. Essa retenção, que é o chamado permanente da força a se exercer, efetua-se por um distanciamento, por uma representação. Assim a força deve se ostentar, se representar, para não precisar se exercer. A função da simbólica real, de seus signos, de suas narrativas, de sua pintura, é implantar em toda parte a evidência palpável da autoridade do rei: o dispositivo representativo tem por função transformar a força em autoridade, representando-a e legitimando-a. Em última instância, como escreve Louis Marin, “representação e poder são da mesma natureza”[4]. Mas não estamos mais sob o poder real e o poder que se exerce sobre nós não é absoluto.

Certamente. Mas a grandeza do livro de Kantorowicz e do comentário de Louis Marin foi ter mostrado que todos os Estados modernos, mesmo os mais republicanos, derivam de maneira mais ou menos direta, com ligeiras modificações, desse modelo. Um presidente na França, nos Estados Unidos, no Brasil pode morrer ou simplesmente ser derrotado nas eleições, ou mesmo não poder se apresentar numa nova eleição, mas a função presidencial, ela, permanece (salvo em caso de golpe de Estado, mas os golpistas não podem, justamente, representar o Estado e a República. A ditadura pode durar muito tempo, mas um dia os golpistas – na maioria das vezes militares – são obrigados a deixar o poder).

Uma consequência da função presidencial é que toda pessoa que a cobiça ou que a exerce, mesmo durante pouco tempo, tem para o público, a população, um caráter sagrado. É uma pessoa como outra qualquer, mas, uma vez presidente, eleva-se acima das outras, carrega insígnias específicas, representa a Nação e o Estado, possui um poder soberano que lhe vem, dessa vez, não de Deus e da Igreja, mas da eleição pelo povo. E ela deve se comportar segundo certo protocolo. Mesmo se deseja estar próxima do povo, sabe ou aprenderá depressa que não deve ser muito familiar com as pessoas, pois estas perderão progressivamente a estima que devem ter pela função presidencial e, portanto, a estima pela Nação e pelo Estado.

Para tomar apenas exemplos franceses, ninguém (nem mesmo sua esposa) tratava De Gaulle por tu, e mesmo um presidente socialista como François Mitterrand era tuteado apenas por raros amigos. Ele mantinha a distância necessária para ser respeitado.

Nem todo mundo, naturalmente, quer ser presidente. Mas vejam bem que todo aquele que se apresenta a uma eleição (deputado, prefeito, governador, vereador) aceita participar dessa atmosfera sagrada, que é o objetivo de todos os que serão investidos de confiança pelo povo. Em suma, até os anos 1980 mais ou menos, em todos os países democráticos (deixemos de lado os golpes de Estado), as pessoas que lutavam por um cargo político e tinham um discurso político se comportavam segundo o esquema acima: saber dosar proximidade e distância, saber utilizar uma linguagem em que se misturavam verdades, mentiras por omissão e muitas vezes promessas imprudentes.

As coisas mudaram brutalmente por duas razões principais. O triunfo do neoliberalismo praticamente no planeta inteiro (são raros os países que escapam a ele) e a revolução tecnológica dos meios de informação.

O triunfo do neoliberalismo teve uma significação profunda que ainda não foi avaliada por todo mundo. Ao dizer que era preciso tomar o caminho da globalização, ao generalizar e ao facilitar as trocas internacionais de bens, de serviços e de pessoas, ao instaurar um capitalismo industrial, ao dizer que o Estado, nessas condições, deveria ser um Estado modesto que interviesse o mínimo possível no mundo dos negócios, ao querer que os Estados fossem administrados como empresas (donde o aparecimento do termo governança em lugar de governo: governo significa que homens concretos governam; governança – palavra abstrata – significa que há técnicas e métodos para governar e que basta aplicá-los corretamente), salvo, naturalmente, para as funções chamadas ainda regalianas (as do rei): a polícia, o exército, a justiça, os assuntos estrangeiros; ao querer, portanto, transformar um Estado obeso, isto é, que intervém em todos os problemas da nação (o que era a definição do Estado que antes não era considerado como obeso, mas simplesmente como soberano; ao agir assim, o neoliberalismo minou os fundamentos do Estado moderno, tal como se constituiu desde o século XVIII; retirou-lhe seu caráter sagrado e, consequentemente, os signos sagrados dos que o faziam funcionar ou que o dirigiam. Os funcionários, estimados até então como grandes servidores do Estado, tornaram-se de uma hora para outra pessoas pouco competentes, demasiado numerosas, ocupadas em instituições que não deviam mais estar sob a tutela do Estado. Com isso não se tem mais um Estado obeso (termo, aliás, com conotação de desprezo), não se tem mais sequer um Estado modesto: tem-se um Estado exangue, que perde aos poucos suas prerrogativas, retiradas, de um lado, pelas grandes instituições internacionais (o FMI, o Banco Mundial, a OMC) e, de outro, pelas grandes empresas internacionais ou multinacionais que, cada vez mais, querem dar e dão ordens ao Estado para a satisfação de seus próprios interesses, e também, em alguns casos (como a Comunidade Europeia), por comissários não eleitos, apaixonados pelo neoliberalismo (a Comissão de Bruxelas).

Assim o Estado vem definhando (embora não fosse isso que Marx esperava quando falou do definhamento do Estado) e as pessoas que dele se encarregam vêem desaparecer seu poder soberano e seu caráter sagrado. Quanto à revolução tecnológica, sua consequência foi questionar estes dois elementos fundamentais sobre os quais se apoiavam tanto os indivíduos quanto as sociedades: o tempo e o espaço.

Com as técnicas modernas de comunicação tão conhecidas e que me abstenho de nomear, tudo se passa, como dizem, em tempo real, o que significa que todas as transações financeiras ocorrem em microssegundos, que se pode comprar e vender produtos fictícios (que não se possui, portanto ter lucros e perdas enormes, sem nenhuma ligação com qualquer troca de mercadorias), que todos podem saber no mundo inteiro o que se passou ou o que está se passando no mesmo instante, que todos podem estar conectados (idealmente) com todos, e que as redes de espionagem permitem conhecer praticamente tudo o que as pessoas fazem, dizem ou pensam. O mundo vive no instantâneo, no efêmero. Assim os grandes projetos de longo prazo desaparecem. Sabe-se cada vez menos o que se passará amanhã e isso, paradoxalmente, num momento em que se dispõe das melhores técnicas para se informar de tudo. Cada dia pode reservar sua surpresa, boa ou má. Em uma palavra, o mundo não é mais previsível. E quando o mundo é imprevisível, a angústia cresce entre os pequenos e o atrativo do ganho se torna desmesurado entre os grandes.

Quanto ao espaço, os meios de transporte habituais (trens, automóveis, aviões) se aperfeiçoaram a tal ponto que todo mundo pode esperar conhecer um dia o mundo inteiro. Só restam turistas que vão indiferentemente à Tailândia, à ilha Maurício e às Maldivas. E, quanto aos meios eletrônicos de comunicação; eles permitem deslocalizar as empresas, externalizar serviços a milhares de quilômetros da matriz, fazer teleconferências, conhecer em detalhe a cartografia das regiões mais longínquas. Podemos saber, graças aos satélites espiões, o que se passa a milhares de quilômetros, e matar sem problemas indivíduos em seus esconderijos. Durante o século XX fomos aos poucos tomando consciência de que o mundo se encolhia, de que países distantes poderiam um dia ser explorados. Não fazíamos ideia de que progressivamente estaríamos todos, mais ou menos, numa série de redes que nos permitem saber tudo muito depressa (e também agir com extrema rapidez), assim como ser objeto do saber e do agir dos outros.

Quando o espaço e o tempo desaparecem, os pontos de referência habituais dos seres humanos se diluem. Pode-se assim compreender que, em reação, as pessoas comuns se recolhem em si mesmas, em suas famílias, aldeias, regiões, para se apegar a realidades palpáveis e a um universo bem conhecido e favorável no qual se sentem bem (em casa, dizem as pessoas). Então, quando o Estado não é mais sagrado, quando se pode saber acerca de tudo, a situação do homem político não é mais a mesma. Esse homem, encarnação de uma espécie de sacralidade, que sabia manter com outrem a aparência de certa distância e certa proximidade, torna-se subitamente um homem nu, bem mais que o resto da população, pois está numa situação de visibilidade permanente e não possui mais os signos, os emblemas que faziam dele um homem acima dos outros e em relação ao qual se requeria respeito, consideração e deferência.

Aliás, ele não pode escapar a essa visibilidade, pois o mundo se transformou e exige a visibilidade constante de todos os que aspiram ao poder (e mesmo, com frequência, dos que prefeririam permanecer invisíveis, pois sabem que “para ser feliz é preciso viver escondido”).

Nossos novos regimes democráticos, nascidos do neoliberalismo e da invenção tecnológica incessante e acelerada, fizeram, assim, do homem político um ser nu constantemente exposto às questões e às reações das pessoas comuns.

A mídia, cada vez mais numerosa, vai se agitar o tempo todo, e certamente ainda mais em período eleitoral. Assim, os discursos que o homem político pronunciará serão marcados com o máximo de prudência. Pois tudo que ele dirá (e mesmo se conversar apenas com amigos aos quais terá recomendado o silêncio – o que se chama falar em off) poderá lhe ser reprovado; por isso deve adotar, para não se prejudicar, o que na França se chama elementos de linguagem ou une langue de bois [linguagem estereotipada], isto é, termos bem escolhidos juntamente com seus assessores políticos, marqueteiros, membros do seu partido, termos que lhe permitirão em todas as ocasiões poder dizer alguma coisa que pareça ter sentido (mas que não tem, pois então não estamos muito longe da novilíngua), responder de maneira correta, inteligente, sem verdadeiramente se comprometer, dando a impressão de ter escutado a pergunta feita ou a interlocução que lhe foi endereçada.

É preciso dizer em sua defesa que ele não apenas está nu, não apenas está sozinho, mas que também pode ser bombardeado (o termo não é forte demais) por perguntas sobre problemas ou acontecimentos que não conhece, de cuja existência fica sabendo no momento, e lhe é impossível, a menos que aceite cair no ridículo, não responder imediatamente, como se conhecesse perfeitamente o problema ou a situação. Se por acaso (ou por aberração) ele se refugia no silêncio, se responde de forma visivelmente evasiva, se tenta fugir da situação, então os que lhe perguntam pensarão que não tem autoridade alguma, solidez alguma, ou que é cúmplice dos atos mencionados pela mídia, ou ainda que é um homem cheio de duplicidade.

A partir do momento em que quiser entrar na política, ele terá de tomar consciência de que estará constantemente em cena, sob a luz dos projetores, e deve não somente aparecer, mas parecer à vontade, dando a impressão de que domina a si mesmo e domina a situação. Aliás, ele está sempre no palco, mesmo quando não está presente, em pessoa. De fato, está presente em seus e-mails, seu facebook, seu blog, seu twitter, seus SMS,  seus textos. Perseguem-no em toda parte, ele é objeto de todas as inquisições possíveis, de todos os rumores imagináveis. Nunca está protegido. Assim, terá de aprender a se proteger ou a dizer o mínimo possível sobre suas ações presentes ou futuras, que apresentará com um caráter vago, resguardando-se de toda visibilidade supérflua (pois quem é visível demais, quem é people demais como Hillary Clinton e diz, numa entrevista, que usava calcinhas fio dental, ou como Michel Rocard, na França, que confessou não detestar “uma pequena felação”, perde muito prestígio nos dias de hoje), a não ser aquela capaz de valorizá-lo, embora mantendo uma aparência modesta e, principalmente, sem arrogância.

Naturalmente ele poderá ser criticado quando seu discurso for demasiado oco, demasiado vago, pois o povo pensará então que o homem político tem apenas uma personalidade diáfana que não se pode pegar (ele será visto como uma personalidade apagada, como se diz de uma foto apagada quando carece de nitidez); mas ele também sabe que, se for muito categórico, muito afirmativo, correrá o risco de chocar, de provocar um protesto coletivo e de se fazer devorar. Seu caminho é estreito, está sempre entre Cila e Caríbdis. Precisa ter suficiente inteligência e presença de espírito para não cair num lado ou no outro.

Isso quer dizer que o político (o homem político) não pode pronunciar senão um discurso asséptico? Seria ir longe demais e, apesar dos riscos que existem (e também porque na maior parte do tempo ele não quer admitir que a sociedade mudou, que os ouvintes querem também se tornar locutores e contraditores, que o povo não atribui mais um caráter sagrado aos homens políticos), ele tentará essa aventura incerta. Seu discurso ou seus discursos terão uma importância particular no momento da tentativa de tomada do poder (a campanha eleitoral).

Nas sociedades democráticas, o poder depende da eleição (qualquer que seja o nível de poder ao qual o político quer chegar).

Por seu discurso, o político deverá mobilizar primeiro as forças do seu partido. Tarefa longe de ser fácil, pois, antes de ser designado como candidato, ele precisou previamente confrontar-se com outros candidatos possíveis em seu próprio partido. Nem sempre os candidatos vencidos terão o desejo de se aliar ao candidato escolhido e colocar suas forças a serviço dele. Pôde-se constatar, em todos os países e em todas as épocas, que alguns candidatos afastados procuraram, sem violência e não frontalmente, mas por boatos, ironias e mexericos, lançar em descrédito o escolhido e favoreceram a vitória do candidato adversário.

O político, portanto, terá que ter suficiente carisma para se impor (em todos os grupos existe a tendência a querer que todos os indivíduos sejam iguais e conformes ao mesmo modelo) em seu clã, e só o conseguirá prometendo aos vencidos certo número de favores como compensação por suas derrotas. Se não o fizer, ele também será vencido, a menos que sua personalidade seja tão esmagadora, tão incomum, tão popular na sociedade, que não tenha necessidade de fazer compromissos que mais tarde vão prejudicar sua ação.

Pode-se já verificar, nessa prévia, que seu projeto para o bem do povo (!) tem pouco peso. Uma vez escolhido e relativamente bem-aceito, ele mobilizará suas próprias tropas multiplicando conferências, publicidade, televisão, fóruns, encontros etc., insuflando-lhes seu entusiasmo. Tem necessidade de que todos os membros do seu partido, não só os militantes habituais, mas a massa de adeptos e simpatizantes, se lancem ao trabalho e multipliquem suas ideias, convicções e competências no âmbito da população concernida. Todos devem estar a postos, 24 horas por dia, para que o nome do candidato se imponha ao conjunto da população. Isso significa que o político, apesar de sua prudência, deve ser um homem de convicção (ou pelo menos parecer tal, pois no mundo do espetáculo é preciso se mostrar espetacular) que possui uma enorme confiança em si, nos homens que o cercam e nas técnicas de comunicação que utilizam; desse ponto de vista, as primeiras campanhas à presidência de Obama e de Lula são exemplares.

Mas, para mobilizar bem as pessoas do seu partido, e para que estas representem seu nome e seu projeto no conjunto da população, é preciso ainda que seu projeto e suas ideias tenham consistência. Para tanto, é ne cessário que seu programa como um todo se identifique com o imaginário social de sua sociedade.

Por imaginário social queremos dizer que, num dado momento histórico, a população é permeada por certo número de fantasmas e desejos que se estruturam de maneira mais ou menos completa, numa série de imagens positivas e motoras. Para dar um exemplo simples, embora caricatural, um homem (ou uma mulher) que disputasse o poder supremo na França ou no Brasil e se limitasse a dizer que vai manter todas as coisas como estão e que não fará nenhuma mudança, praticamente não teria chance alguma de ser eleito. Isso porque o termo mudança tornou-se, desde os anos 1950, o mais usado num mundo em transformação perpétua, e substituiu o termo progresso, menos valorizado desde que se sabe que o progresso acarreta danos (poluição, aquecimento climático, destruição do meio ambiente etc.). Qual é o imaginário social de nossas sociedades depois de 1980?

Não é um imaginário unificado. Ele comporta contradições. Examinemos primeiro os elementos convergentes e, a seguir, os divergentes.

1) Nos anos anteriores a 1980, o imaginário social estava repleto de imagens criadas pelas ideologias dominantes. Ideologia do capitalismo social que devia trazer o bem-estar para todos, entre os dirigentes dos países capitalistas. Ideologia do comunismo que devia culminar no triunfo do proletariado mundial e no fim da exploração, entre os dirigentes dos paí ses comunistas. Ideologia terceiro-mundista entre os povos emergentes antigamente colonizados ou lançados à periferia.

A ideologia do capitalismo era combatida pela ideologia comunista em todos os países capitalistas nos quais havia uma classe operária importante e em todos os países antigamente colonizados ou periféricos. O que provocou, nesse último caso, a reação da ditadura militar.

Desde a queda da União Soviética e o desaparecimento (ainda incompleto) da ideologia comunista, os povos desconfiam cada vez mais das ideologias fortes (inclusive da ideologia capitalista, embora o capitalismo tenha obtido mais sucesso que o comunismo em conquistar o mundo).

O imaginário social atual em nossas novas sociedades carrega as imagens e os sonhos (renovação da utopia) de uma sociedade globalmente unificada, suficientemente coesa apesar de numerosas desigualdades que devem desaparecer com o tempo; portanto, sociedade sem conflito maior, sem luta de classes. Uma sociedade, em suma, da classe média.

Uma sociedade em movimento na qual, se a economia tem um lugar preponderante, os problemas de saúde, de educação e de meio ambiente são levados em consideração.

Uma sociedade mais fluida, mais flexível, mais líquida e menos burocrática que as antigas sociedades, mais aberta, em suma, na qual cada um pode, se desejar, se tiver as competências e se estiver disposto a assumir riscos, realizar seus projetos de vida.

Uma sociedade em que cada um tem direito ao prazer, ao sol, ao sexo, à música, à dança, ao repouso bem merecido. Uma sociedade, enfim, na qual a comunicação e a informação se generalizaram e na qual o máximo de pessoas se interconecta.

Um homem político deve assim, em seus discursos, apresentar-se como um agregador, alguém que zela pela unidade da nação, uma nação dinâmica, aberta, em que cada um pode se realizar e ter direito ao prazer, uma sociedade em que os problemas econômicos, de educação e de meio ambiente devem ser tratados. Ele proporá ideias e um programa nesse sentido e, se tiver uma boa retórica, se demonstrou em seus atos que sabe falar a verdade, que tem uma boa parrésia, será escutado e acreditado. Mas se pronunciar esse mesmo discurso e nunca fez antes o que quer que seja em favor da unidade da nação, ou em favor da educação ou do bem-estar dos cidadãos, será acusado de má parrésia e falsidade e seu discurso cairá no vazio. A condição para ser eleito é que o homem político já tenha dado, no passado, provas de sua ação. E mesmo que o povo saiba que ele não poderá cumprir todas as suas promessas, admite também que ele fará tudo o que puder. Se for um homem totalmente novo, como foi Obama, então precisará ter uma força de convicção e de confiança em si e nos outros tão sólida que seja impossível não confiar nele (Yes we can!).

2) Contudo, há elementos divergentes no imaginário social atual (naturalmente cada país há de modular esse imaginário à sua maneira). Citemos os principais:

  • As imagens de autonomia e de responsabilidade se opõem às antigas imagens de heteronomia, sempre presentes, nas quais cada um é encarregado por sua família ou pelo Estado.
  • A responsabilidade individual e o individualismo favorecem o egoísmo e entram em luta contra o esforço coletivo, a crença no coletivo e a convivialidade.
  • A coesão da sociedade é prejudicada se as desigualdades aumentam. Ora, é o que acontece atualmente: os ricos (países e indivíduos) se tornam mais ricos e os pobres mais pobres.
  • A mudança contínua favorece a inovação, o dinamismo, mas engendra o temor, a angústia e a perda das referências habituais.

O político, portanto, deverá encontrar palavras para pregar ao mesmo tempo a autonomia e a necessidade de certa heteronomia, o individualismo e a convivialidade, para lutar contra as desigualdades, sem amedrontar demais os dominantes, e para tranquilizar as pessoas quanto a um futuro dificilmente previsível. É provável que nesse momento, para satisfazer o maior número de pessoas, para ter uma eficácia imaginária e também simbólica (pois é preciso manter as estruturas e ao mesmo tempo adaptá-las), o homem político seja obrigado, às vezes contra sua vontade, a não dizer verdadeiramente o que pensa e a adotar uma novilíngua, uma linguagem estereotipada aceita por todos.

Para ter sucesso, ele precisará igualmente aparecer aos outros que não são do seu clã (os opositores, os indecisos, os sem partido) como o homem para a situação (o que significa que ele possui as qualidades indispensáveis para responder a essa situação, mas não é um ser superior suscetível de arrogância).

Enfim, ele há de denegrir seus adversários de maneira elegante (caso contrário suas diatribes podem se voltar contra ele), insistindo em seus limites pessoais e no caráter aventuroso ou utópico de seus programas.

ALGUMAS PALAVRAS EM CONCLUSÃO

Quando o homem político for eleito, ele continuará às vezes a falar. Mas nesse momento o importante para o povo são os atos e não mais as palavras. As pessoas comuns vão comparar continuamente os atos com as promessas, a personalidade do eleito com a do candidato. E de qualquer maneira, seja qual for o carisma e o talento do político, ele necessariamente decepcionará. Nessa decepção reside o não dito de todo poder. Ninguém pode cumprir todas as promessas, pois o Real está aí e o Real é o que acontece e que ninguém previu. São todos os obstáculos (naturais: por exemplo, tsunami, terremotos, tufões, tornados; financeiros: as crises que sobrevém quando tudo parece correr bem (1929-2008); políticos: o exemplo recente da Primavera Árabe que abalou não só o Oriente Médio, mas o equilíbrio mundial etc. Em realidade, todo poder acarreta decepção e não pode ser de outro modo, pois o político não é um deus, ainda mais em sociedades em mudança e em mutação contínua. O político fará o que pode. Jogará a culpa nos obstáculos, nos opositores. Mas nunca fará autocrítica, pois toda confissão se voltaria contra ele. Não esqueçamos que os povos detonam com frequência o que adoraram, pois não gostam de ser sido trapaceados. Se apesar de tudo julgarem que ele fez o possível, então será reeleito, mas com menos entusiasmo – os casos de Mitterrand, Obama e Lula -, e menos se esperará dele.

Mas se o povo tem a impressão de que tudo vai de mal a pior, que não há mais piloto no avião, se as desigualdades e a corrupção aumentam, se os gastos públicos são suntuários e não permitem uma diminuição da pobreza, então o povo se manifestará despachando-o (Nixon, Collor), interpelando de diferentes maneiras o governo (proclamação, manifestação, panfletos, artigos) para exprimir seu descontentamento, ou preferindo escolher qualquer outro na nova eleição (Sarkozy).

De qualquer maneira, em nossas sociedades de palavra totalmente liberada graças às redes sociais, o homem político não é mais o único a falar e deve contar com a palavra, com as críticas e as observações de todos. Deve desconfiar de seus belos discursos que produzirão não só decepção, mas amargura. Além disso, como vimos, as pessoas são cada vez menos crédulas, não se contentam simplesmente com boas palavras. Não querem ser consideradas imbecis ou marionetes. Querem ser livres e viver numa sociedade em que seus méritos sejam reconhecidos. Pensando bem, o declínio e a queda previsível do homem político importante, que falava de fora da sociedade ou que dominava do alto a sociedade, talvez seja uma coisa boa. As pessoas comuns com sua linguagem cotidiana terão cada vez mais coisas a dizer e a fazer (exemplo: as revoluções árabes). E os grandes homens políticos serão os que souberem ouvir os novos discursos das pessoas comuns e adaptar sua conduta aos sonhos e aos fantasmas de seus povos.

Lembremos as palavras de Lie-Tsé (um grande sábio taoísta): “Os grandes soberanos, os povos não percebem sua existência; os menos grandes, os povos se apegam a eles e cantam seus louvores”. Concordamos com ele. O grande homem político futuro será aquele que não tiver necessidade de felicitações do povo, pois saberá escutar suas mensagens e agir de modo a satisfazer a maior parte de seus desejos e necessidades (todos eles seria impossível), sem se engrandecer e com a modéstia que convém a um homem de convicção.

Resta uma pergunta: os homens políticos atuais querem ser realmente grandes?

Tradução de Paulo Neves.

Notas

  1. George Orwell, 1984, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  2. Victor Klemperer, LTI: a linguagem do Terceiro Reich, Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.
  3. Sobre George Orwell e Victor Klemperer, consultar o texto de Claudine Haroche “Desvio do pensamento e da cultura nas Novlínguas (Klemperer, Orwell, Canetti)”. Rio de Janeiro: Ágora, 2013, vol. XVI, n. 2, pp. 217-34.
  4. Sobre “O corpo do rei”, ver o livro de Christian Salmon, La cérémonie cannibale de la performance politique, Paris: Fayard, 2013.

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