1996

O dissenso

por Jacques Rancière

Resumo

O discurso dominante que identifica a racionalidade da política ao consenso e o consenso ao princípio da democracia esbarra em três paradoxos: enquanto a queda do império soviético é vista como vitória da democracia sobre o totalitarismo, a ideia do desenvolvimento das forças produtivas é retomada; enquanto a filosofia da necessidade se impõe como sabedoria política, glorifica-se o retorno do ator, do indivíduo; enquanto se celebra o consenso nacional partidário e os espaços supranacionais, reaparecem a guerra étnica, a exclusão, o racismo e a xenofobia.

O termo dissenso, longe de valorizar somente o antagonismo social e os conflitos, é a divisão do núcleo mesmo do mundo sensível que institui a política e sua racionalidade própria.

Vale lembrar que democracia, inicialmente um insulto, significa que governam especificamente os que não tem nenhum título para governar e não é o nome de um regime político, mas o nome de um desvio singular do curso normal dos assuntos humanos.

Como reformular o conceito de política? Ampliando o sentido habitual da noção da palavra polícia e associando a essa palavra à distribuição sensível dos corpos em comunidade, restringe-se o conceito de política preservando-a para designar o conjunto das atividades perturbadoras da ordem da polícia pela pressuposição de igualdade que manifesta-se pelo dissenso. A política, mais que um conflito de classes ou de partidos, é um conflito sobre a configuração do mundo sensível na qual podem aparecer atores e objetos desses conflitos.

Os sujeitos políticos existem como sujeitos, como capacidades pontuais e locais de construir em sua universalidade virtual aqueles mundos polêmicos que desfazem a ordem policial. Se a política é o desvio do curso normal da dominação, isso quer dizer que está sempre ameaçada de se dissipar. Ora, a forma mais radical desta dissipação é a confusão do seu contrário, a polícia.

O consenso quer suprimir a política, seu povo e seus litígios e substituí-los pela população, suas partes e os problemas de repartição dos esforços e das riquezas. Esses sujeitos têm sua figura mais pura, mais radical nos sujeitos estritamente identificados à sua raça, à sua etnia ou ao povo de deus.

As formas policiais de consenso prometem uma paz que não podem manter, pois jamais avaliam a dimensão de seus problemas profundos. A política repousa sobre o único princípio: a igualdade. Só que esse princípio só tem efeito por um desvio: o dissenso, ou seja, uma ruptura nas formas sensíveis da comunidade.


Sem dúvida nenhuma, o tema que escolhi implica a crítica do discurso atualmente dominante que identifica a racionalidade política ao consenso e o consenso ao princípio mesmo da democracia. Essa crítica parte da constatação de três paradoxos que marcam a atualidade política e teórica.

Primeiro paradoxo: a queda do império soviético foi saudada nas nações ocidentais como a vitória definitiva da democracia sobre seu adversário, o totalitarismo. Mas, ao mesmo tempo, essas nações retomaram por sua vez o próprio princípio do adversário vencido, a saber, a ideia de uma necessidade objetiva, a do desenvolvimento das forças produtivas, que impõe a coesão do corpo social e esvazia de sentido a concepção da política como escolha entre soluções alternativas. Sob o termo consenso a democracia é concebida como o regime puro da necessidade econômica. Um certo marxismo tornou-se assim a legitimação última da “democracia liberal’’.

Segundo paradoxo: no momento mesmo em que essa filosofia da necessidade se impõe quase que por toda parte como a última palavra em sabedoria política, vemos por outro lado triunfar na filosofia política e nas ciências sociais um discurso que glorifica o retorno do ator, do indivíduo que discute, que contrata, que age. No momento em que nos dizem que os dados são inequívocos e que as escolhas se impõem por si mesmas, celebra-se ruidosamente o retorno do ator racional à cena social. Quanto menos coisas há a discutir, mais se celebra a ética da discussão, da razão comunicativa, como fundamento da política. Há um quarto de século, víamos indivíduos partindo para criar núcleos de guerrilha, levando nos bolsos livros que proclamavam a supremacia da lei das estruturas sobre a autonomia dos sujeitos. Hoje, ao contrário, em todos os comitês oficiais, vemos pessoas carregando nos bolsos obras sobre o retorno do ator, da escolha e da autonomia, constatando que não há outra coisa a fazer além do que fazem nossos governos.

Terceiro paradoxo: no momento em que se celebra o consenso nacional dos partidos políticos e o advento dos grandes espaços supranacionais, reaparecem as formas mais brutais, mais arcaicas, da guerra étnica, da exclusão, do racismo e da xenofobia. O discurso oficial celebra a vitória da razão consensual sobre as formas arcaicas e irracionais do conflito político. Mas o que corresponde a essa suposta vitória da razão modernista é o retorno de um arcaísmo bem mais radical: o retorno da velha irracionalidade da lei do sangue. Habitualmente tais fenômenos são tratados em termos de atraso, de transição, de defasagem. São considerados como fenômenos de adaptação difícil e de resistência temporária às exigências da nova racionalidade. Minha hipótese é que existe, ao contrário, uma estrita solidariedade entre uma certa ideia da razão política e um certo retorno do irracional. Gostaria de mostrar que essas novas irracionalidades e a definição consensual da razão política são inseparáveis, precisamente porque o que chamam consenso é na verdade o esquecimento do modo de racionalidade próprio à política.

Sob o nome de dissenso, é portanto esse modo de racionalidade que tentarei pensar. A escolha desse termo não busca simplesmente valorizar a diferença e o conflito sob suas diversas formas: antagonismo social, conflito de opiniões ou multiplicidade das culturas. O dissenso não é a diferença dos sentimentos ou das maneiras de sentir que a política deveria respeitar. É a divisão no núcleo mesmo do mundo sensível que institui a política e sua racionalidade própria. Minha hipótese é portanto a seguinte: a racionalidade da política é a de um mundo comum instituído, tornado comum, pela própria divisão.

Sabe-se que os dois grandes modelos clássicos da razão política repousam sobre uma ficção de origem na qual a política é uma reunião de indivíduos ligados entre si, seja por sociabilidade natural, seja por necessidade de superar sua insociabilidade natural a fim de assegurar sua conservação. Reconhece-se, no primeiro caso, a figura aristotélica do animal político, no segundo, o modelo hobbesiano da luta de todos contra todos e do contrato que põe fim a ela. Ora, creio que a racionalidade própria da política não pode ser pensada a partir desses modelos, que estes devem ser vistos como um segundo momento, como reinterpretações da racionalidade própria da política. A política não é em primeiro lugar a maneira como indivíduos e grupos em geral combinam seus interesses e seus sentimentos. É antes um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro recorte do mundo sensível.

Tentarei portanto partir dos enunciados da filosofia política para tentar compreender o modo próprio da racionalidade política que eles recalcam ou reinterpretam. Começarei por um dos enunciados mais veneráveis, e aparentemente dos mais anódinos, da filosofia política. Tomo-o da definição do cidadão formulada por Aristóteles no livro III da Política: “Um cidadão em geral é aquele que participa do ato de governar e do de ser governado”. Essa definição pode nos parecer anódina por que a entendemos através dos temas banalizados da reciprocidade dos direitos e dos deveres de cada um e de todos. Mas cumpre ver que, em sua enunciação primeira, ela afirma algo propriamente inusitado: uma capacidade dos contrários, uma igual capacidade de ser o agente de uma ação e a matéria na qual ela se exerce. A lógica da ação de governar supõe normalmente o que a lógica de toda ação supõe: o exercício de uma potência própria do agente sobre uma matéria apta a receber seu efeito e somente a isso. Ela supõe por tanto uma potência específica do comando que se exerce sobre uma matéria, a qual apresenta propriedades que a dispõem especificamente a receber o efeito de tal comando. Supõe, em suma, o poder de uma superioridade determinada sobre a inferioridade que lhe corresponde.

É assim que o mestre de Aristóteles, Platão, estabelece no livro III das Leis uma lista dos títulos requeridos para governar à qual corresponde simetricamente uma lista dos títulos requeridos para ser governado. Sua enumeração compreende, em resumo, três grandes categorias. Há primeiro os títulos tradicionais de autoridade que se referem a uma diferença de natureza, uma diferença no nascimento: autoridade dos pais sobre os filhos, dos mais velhos sobre os jovens, dos nobres sobre a plebe, dos senhores sobre os escravos. Há a seguir o par de opostos que, para Platão, é o único pertinente para determinar as posições de governante e de governado, o da ciência e da ignorância. Há enfim, em último lugar, um título que vem romper a coerência da lista. É o que Platão chama ironicamente a escolha do deus: o sorteio para decidir os lugares de governante e de governado, isto é, para Platão, o regime do acaso, a democracia. A democracia representa, em relação ao conjunto da lista, uma aberração: o estado no qual não funciona nenhum par de opostos, nenhum princípio de repartição dos papéis. Para Platão, tal estado só pode significar acaso ou loucura.

A definição aristotélica do cidadão, portanto, é tudo menos anódina. Para que seja enunciável, é preciso primeiro que as lógicas naturais da ação de governar tenham se deparado com uma negação radical. A definição muito simples da reciprocidade cívica pressupõe, por trás dela mesma, uma ruptura de toda lógica do comando, de todo princípio da distribuição natural dos papéis em função das qualidades de cada parte. Essa ruptura lógica marcada por Platão corresponde a um escândalo prático sentido por todos os que se valem de um título positivo para governar: antiguidade, nobreza, competência, consideração ou riqueza. Esse escândalo tem um nome: chama-se democracia.

Democracia é uma daquelas palavras cuja carga simbólica originária esquecemos. Esquecemos que não é primeiramente o nome de um regime político numa classificação objetiva dos diferentes regimes, mas o nome de um desvio singular no curso normal dos assuntos humanos. Cumpre lembrar que o nome democracia foi inicialmente um insulto, um nome inventado não pelos democratas mas por seus adversários para designar uma coisa para eles grotesca e impensável. A democracia é o poder do povo, do demos. Mas o que se entende exatamente sob esse nome? O demos, em Atenas, é constituído primeiramente pelos pobres. Mas pobres não é simplesmente uma categoria econômica, relacionada a um nível de recursos; é bem mais uma categoria simbólica, uma posição no mundo daquilo que se vê e se considera: pobres são as pessoas reles, as que não possuem nada, nenhum título para governar, nenhum título de valor a não ser o fato de terem nascido ali e não alhures. Esse nome para nós banal significa portanto originalmente uma ruptura inédita, a instituição de um mundo às avessas para todos os que pretendem fazer valer um título para governar. Significa que governam especificamente os que não têm nenhum título para governar.

Assim, a reciprocidade cívica das posições de governante e de governado só é pensável como consequência dessa ruptura radical de toda lógica da dominação legítima. Aí se situa para mim o próprio da política, o núcleo primeiro de sua racionalidade específica. A política se apóia neste fundamento paradoxal que é a ausência de todo fundamento da dominação. Num certo sentido, a razão última da política poderia se resumir num único axioma: ninguém possui título para governar. Não há título para governar. O poder não pertence ao nascimento ou à sabedoria, à riqueza ou à antiguidade. Não pertence a ninguém. Nenhuma propriedade específica distingue os que têm vocação para governar dos que têm vocação para ser governados. A autoridade política não possui, em última instância, outro fundamento senão a pura contingência.

Haveria a tentação de a partir disso fazer uma dedução simples, relativa à ausência de razão para a dominação nas formas da igualdade cívica. Mas o próprio da racionalidade política é que as deduções jamais se dão em linha reta, elas são sempre tortuosas. A política, em última instância, repousa sobre um único princípio, a igualdade. Só que esse princípio só tem efeito por um desvio ou uma torção específica: o dissenso, ou seja, a ruptura nas formas sensíveis da comunidade. Ele tem efeito ao interromper uma lógica da dominação suposta natural, vivida como natural. Esse efeito é a instituição de uma divisão ou de uma distorção inicial. Essa distorção é que é testemunhada pelas palavras aparentemente muito simples: demos e democracia.

O demos é, de fato, um ser muito singular, um ser duplo. Demos designa uma parte da comunidade, os pobres, isto é, as pessoas sem importância, mas também, ao mesmo tempo, a comunidade em seu conjunto, a cidade política em sua totalidade. Sob essa palavra, portanto, uma parte da comunidade se identifica ao todo da comunidade. Define-se assim um cômputo da comunidade enquanto desigual a si mesma, enquanto diferente da soma das partes que a constituem. A comunidade política não existe em virtude da reunião dos indivíduos e dos grupos. Existe a partir da identificação primeira de seu todo a um nada. O todo da comunidade política enquanto tal é o cômputo enquanto todo dos que não são nada.

Eis aí o que poderíamos chamar a fórmula lógica da comunidade, a fórmula de uma aritmética impossível que não cessou porém de se traduzir, levando em conta a política ao longo dos tempos, em palavras muito expressivas: por exemplo, quando o Terceiro Estado, durante a Revolução Francesa, constata que é ao mesmo tempo tudo e nada, ou quando a Internacional proclama: “Somos nada, sejamos tudo!”.

Essas fórmulas combatentes nos mostram que a identidade do todo e do nada define uma estrutura de injustiça específica. O demos não é apenas a parte que se identifica ao todo. É a parte que se identifica ao todo exatamente em nome da injustiça que lhe é feita pela “outra’’ parte: por aqueles que são alguma coisa, que têm propriedades, títulos para governar. Essa estrutura conflitual não deve ser pensada de maneira redutora, como o dado da luta social que se imporia como subestrutura da política. A luta de classes não está “sob’’ a política, não é a realidade da divisão e da luta que desmentiria a falsa pureza da política. A luta de classes, o cômputo polêmico enquanto um todo dos que são nada, é a própria política. A divisão do sensível pertence à definição mesma da política como modo específico da ação humana. O cômputo enquanto um todo dos que não são nada define uma comunidade que só pode ser uma comunidade do litígio.

Pode-se dizê-lo de outro modo: a política não advém naturalmente nas sociedades humanas. Advém como um desvio extraordinário, um acaso ou uma violência em relação ao curso ordinário das coisas, ao jogo normal da dominação. Esse jogo normal é a transição de um princípio de dominação a um outro. Há o velho princípio de dominação, o que remete a sociedade ao mito de suas origens: o poder do nascimento, isto é, da diferença no nascimento. É o poder dos nascidos antes, nascidos de outro modo, mais bem nascidos, sobre os que nasceram mal. E há o novo princípio, o que resulta das atividades da sociedade, o poder da riqueza que ordena a sociedade segundo a repartição de suas forças vivas, segundo os modos de produção da riqueza, as funções e as partes que ela define. A política advém nas sociedades como uma ruptura no processo de passagem de uma lógica da dominação a outra, do poder da diferença no nascimento ao poder indiferente da riqueza.

É o que poderia ilustrar uma das grandes reformas que inauguraram a democracia na Grécia antiga: a supressão por Sólon da escravidão por dívidas. Essa reforma constitui o núcleo primeiro da ideia do povo como reunião de homens “livres”, ou seja, no sentido mais elementar, dos homens que a lei da riqueza não pode excluir da vida pública, jogar na escravidão. Constitui a liberdade do povo como limite ao que pode a riqueza. Mas também assinala o fato de que o poder dos nobres, o poder do nascimento, é doravante o poder da riqueza, a força econômica dos proprietários de terras. Ela introduz assim um desvio na transição de um poder a outro.

Desse modo, a ruptura democrática não identifica o povo político a uma categoria sociológica, a parte laboriosa e sofredora da população. Identifica-o a uma função quase abstrata. O que o demos encarna é a parte dos que não têm parte. Não se deve dar a essa expressão um sentido romântico ou populista. Cumpre dar-lhe um sentido estrutural. O povo identifica-se ao todo da comunidade política por que o todo da política como forma específica da atividade humana é a inclusão dos que não são contados, ou seja, a destituição de toda lógica da dominação legítima, de toda lógica que conta as partes que cabem a cada um em função de suas propriedades e de seus títulos.

Minha hipótese supõe portanto uma reformulação do conceito de política em relação às noções habitualmente aceitas. Estas designam com a palavra política o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição. Proponho dar a esse conjunto de processos um outro nome. Proponho chamá-lo polícia, ampliando portanto o sentido habitual dessa noção, dando-lhe também um sentido neutro, não pejorativo, ao considerar as funções de vigilância e de repressão habitualmente associadas a essa palavra como formas particulares de uma ordem muito mais geral que é a da distribuição sensível dos corpos em comunidade.

Nem por isso o que chamo polícia é simplesmente um conjunto de formas de gestão e de comando. É, mais fundamentalmente, o recorte do mundo sensível que define, no mais das vezes implicitamente, as formas do espaço em que o comando se exerce. É a ordem do visível e do dizível que determina a distribuição das partes e dos papéis ao determinar primeiramente a visibilidade mesma das “capacidades” e das “incapacidades” associadas a tal lugar ou a tal função.

Ao ampliar assim o conceito de polícia, proponho restringir o de política. Proponho reservar a palavra política ao conjunto das atividades que vêm perturbar a ordem da polícia pela inscrição de uma pressuposição que lhe é inteiramente heterogênea. Essa pressuposição é a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Essa igualdade, como vimos, não se inscreve diretamente na ordem social. Manifesta-se apenas pelo dissenso, no sentido mais originário do termo: uma perturbação no sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível, contável.

Essa “perturbação no sensível’’ pode ser ilustrada a partir da própria acepção ordinária das palavras política e polícia. O que se passa, com efeito, quando as forças da ordem são enviadas para reprimir uma manifestação política? O que se passa é uma contestação das propriedades e do uso de um lugar: uma contestação daquilo que é uma rua. Do ponto de vista da polícia, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação, por sua vez, a transforma em espaço público, em espaço onde se tratam os assuntos da comunidade. Do ponto de vista dos que enviam as forças da ordem, o espa ço onde se tratam os assuntos da comunidade situa-se alhures: nos prédios públicos previstos para esse uso, com as pessoas destinadas a essa função. Assim o dissenso, antes de ser a oposição entre um governo e pessoas que o contestam, é um conflito sobre a própria configuração do sensível. Os manifestantes põem na rua um espetáculo e um assunto que não têm aí seu lugar. E, aos curiosos que vêem esse espetáculo, a polícia diz: “Vamos circular, não há nada para ver”. O dissenso tem assim por objeto o que chamo o recorte do sensível, a distribuição dos espaços privados e públicos, dos assuntos de que neles se trata ou não, e dos atores que têm ou não motivos de estar aí para deles se ocupar. Antes de ser um conflito de classes ou de partidos, a política é um conflito sobre a configuração do mundo sensível na qual podem aparecer atores e objetos desses conflitos.

Para precisar essa especificação do dissenso fundador da política, proponho examinar um outro enunciado fundador e aparentemente sem problema da filosofia política. Penso na passagem do livro I da Política em que Aristóteles estabelece o signo da destinação naturalmente política do homem: de todos os animais, o homem é o único que tem a capacidade do logos, da palavra. A voz (phone) é comum ao homem e a outros animais que, como ele, exprimem por meio dela prazer ou sofrimento. Mas somente o homem tem a palavra, que permite manifestar o útil e o prejudicial e, em consequência disso, o justo e o injusto. Tudo parece portanto claro: quando se está diante de um animal que discursa, sabe-se que é um animal humano, portanto político. Mas, na prática, uma outra coisa é muito menos clara: como se reconhece exatamente como um discurso aquele ruído que o animal diante de nós faz com sua boca?. Esse reconhecimento não é, justamente, natural. Ele próprio supõe uma subversão da ordem normal das coisas. Aquele que recusamos contar como pertencente à comunidade política, recusamos primeiramente ouvi-lo como ser falante. Ouvimos apenas ruído no que ele diz.

É o que nos mostra um pensador francês do século XIX, Ballanche, ao reescrever à sua maneira o relato de uma das grandes narrativas fundadoras da querela política, a narrativa da secessão dos plebeus romanos no monte Aventino. No relato de Tito Lívio, os plebeus em revolta eram reconduzidos à ordem pelo discurso de um patrício, Menênio Agripa, que lhes explicava, através de uma fábula, a ordem social. Ele lhes explicava que a cidade era um grande corpo cujas partes eram todas solidárias. Nesse corpo, os braços plebeus e o centro vital patrício eram igualmente necessários, mas não evidentemente de igual dignidade. Eis aí uma perfeita fábula policial no sentido em que a entendo: uma fábula da boa distribuição de cada um em seu lugar e em sua função.

A originalidade de Ballanche é mudar o argumento da narrativa e seu sentido. Ele a transforma numa querela em que a questão é justamente saber se os plebeus falam ou não. Os plebeus, em seu relato, exigem um acordo com os patrícios. Os patrícios intransigentes respondem que isso é impossível, por uma razão muito simples. Um acordo liga duas partes que comprometem sua palavra. Mas, para comprometer sua palavra, é preciso tê-la. Ora, os plebeus não falam. É verdade que houve um emissário que foi ao local e assegura tê-los ouvido falar. Mas seus colegas lhe provam que é uma ilusão de seus sentidos, já que eles não podem falar. Sua pretensa fala não é mais que um som fugaz, uma espécie de mugido que é o signo da necessidade e não a manifestação da inteligência.

Todo o conflito e a insistência dos plebeus resumem-se então em provar que eles falam, e primeiramente devem prová-lo a si mesmos, para obrigar os outros a integrar em sua percepção do mundo sensível um dado que estes não têm razão alguma para perceber. A partir daí, o sentido mesmo do apólogo das fábulas e do seu núcleo sofre uma torção. De fato, a fábula explica aos plebeus sua necessária subordinação. Mas, para que eles aceitem essa fábula da desigualdade, é preciso primeiro que a compreendam. E, para que a compreendam, é preciso que sejam seres falantes iguais a todos os seres falantes. Os patrícios não podem provar-lhes a desigualdade necessária a não ser aceitando essa  igualdade primeira. A desigualdade só pode justificar-se ao preço de pressupor a igualdade.

É uma dedução “elementar’’. Mas, para que tenha efeito, é preciso que se instaure uma cena de conflito. E essa cena não é apenas a oposição de dois grupos, é a reunião conflituosa de dois mundos sensíveis: o mundo em que os plebeus não falam e o mundo em que falam. É isso o que chamo dissenso: não um conflito de pontos de vista nem mesmo um conflito pelo reconhecimento, mas um conflito sobre a constituição mesma do mundo comum, sobre o que nele se vê e se ouve, sobre os títulos dos que nele falam para ser ouvidos e sobre a visibilidade dos objetos que nele são designados. O dissenso não é a guerra de todos contra todos. Ele dá ensejo a situações de conflito ordenadas, a situações de discussão e de argumentação. Mas essas discussões e argumentações são de um tipo particular. Não podem ser a confrontação de parceiros já constituídos sobre a aplicação de uma regra geral a um caso particular. Com efeito, devem primeiro constituir o mundo no qual elas são argumentações. É preciso primeiro provar que há algo a argumentar, um objeto, parceiros, um mundo que os contém. E é preciso prová-lo na prática, ou seja, fazendo como se esse mundo já existisse.

Assim, na fábula do Aventino, a posição patrícia define um recorte do mundo sensível entre os homens da fala e os homens da voz. A secessão plebéia revela um outro recorte do sensível, em que os plebeus são também homens da fala que têm algo a discutir com os patrícios. A argumentação lógica é então, ao mesmo tempo, uma manifestação estética, no sentido original do termo, a manifestação do mundo sensível no qual ela é considerada como um argumento que expõe uma questão visível. Em relação ao mundo existente, esse mundo não existe. Cumpre portanto fazer com que seja visto, e que seja visto como correlato do outro. A prática do dissenso é assim uma invenção que faz com que se vejam dois mundos num só: o mundo em que os plebeus falam e aquele em que não falam, o mundo em que aquilo que falam não é nenhum objeto visível e o mundo em que o é. Assim pode se explicitar, no meu entender, a racionalidade da ação política. Ela é a ação que constrói esses mundos litigiosos, esses mundos paradoxais em que se revelam juntos dois recortes do mundo sensível.

Para tomar um exemplo simples, podemos examinar o que esteve em jogo, por exemplo, na constituição do que se chamou movimento operário. E não quero falar aqui de luta revolucionária, mas do que está em jogo na simples constituição de uma discussão pública sobre a questão salarial. Também aí esquecemos a violência simbólica que o simples fato de colocar o salário como objeto de uma discussão pública pôde representar. Esquecemos que essa conjunção banal de palavras foi o confronto violento não apenas de interesses mas de mundos contraditórios. Com efeito, tradicionalmente o espaço do trabalho era um espaço doméstico. No livro I da Política, Aristóteles opõe a forma específica do comando político a todos os outros comandos que funcionam na cidade. Assim ele opõe duas ordens: a ordem política, que é a do comando do igual sobre o igual, e a ordem doméstica — ou despótica —, em que um indivíduo se encontra naturalmente em posição de poder sobre os demais: como pai, marido, mestre etc. Essas duas ordens heterogêneas concernem a relações diferentes e dependem de leis diferentes. A partir daí, ocorre com essa distinção o mesmo que com a oposição da fala e da voz. Para recusar a uma categoria de seres, por exemplo os trabalhadores ou as mulheres, o estatuto de seres políticos, basta constatar que eles pertencem a essa ordem doméstica que é o contrário da política. E, para que as coisas mudem, não é suficiente que se passe da casa à fábrica e do escravo ao trabalhador juridicamente livre. Na lógica policial da repartição dos espaços e das funções, o trabalhador livre permanece membro apenas do espaço doméstico. O espaço do trabalho é um espaço privado em que um indivíduo nomeado empregador propõe condições a um número n de indivíduos que — cada um por sua conta — as aceitam ou as recusam. Consequentemente, se esses indivíduos interrompem juntos o trabalho, se pedem para negociar com o empregador e, mais ainda, com o conjunto dos empregadores suas condições de trabalho, se levam essa questão ao Estado e à opinião pública, eles pedem algo impossível, que não tem sentido. Seu movimento portanto só é audível como um ruído de corpos sofredores irritados, ruído que a intervenção da autoridade pública deve fazer cessar.

Tal é a lógica de uma ordem policial. De seu ponto de vista, os operários que pedem que a remuneração do trabalho seja um assunto público, discutido publicamente, falam num mundo que não existe e de coisas que não existem, coisas para cuja enunciação eles não possuem nenhum título. A política operária consistiu em construir a relação desses mundos separados: não somente em obrigar o outro à discussão mas em provar que entre o mundo público da fala e do debate e o mundo “privado” do trabalho havia uma relação, e que portanto o vínculo igualitário, constitutivo de um mundo comum, podia operar. Consistiu não apenas em provar logicamente esse vínculo mas em construí-lo numa encenação.

Tomemos o exemplo do movimento operário francês do século XIX. Ele se construiu inicialmente estendendo entre esses dois mundos o mais tênue dos vínculos, um quase nada, uma pequena frase, relíquia da grande ruptura revolucionária de 1789, dizendo que todos os franceses eram iguais perante a lei. Uma simples frase, portanto, mas precisamente uma simples frase jamais é uma simples frase. Ela tem a força que sujeitos lhe dão, a força do que eles podem construir com ela. No caso, essa inscrição mínima da igualdade que a própria Carta monárquica fora obrigada a pôr em seu frontispício tinha a força de construir uma cena de litígio, um mundo duplo. Nessa cena, os operários podiam fazer duas coisas ao mesmo tempo: de um lado, ao aplicar a frase igualitária ao universo do trabalho, estabeleciam a comunidade dos mundos não comuns do trabalho e da fala comum. Eles discutiam um objeto comum com aqueles mesmos que não o reconheciam e não se consideravam como parceiros numa discussão. De outro, manifestavam o erro dos que não reconheciam a existência desse mundo comum que eles haviam provado. Construíam assim um mundo paradoxal em que faziam como se os patrões ou o Estado fossem seus parceiros numa discussão, ao mesmo tempo em que denunciavam o fato de que estes se recusavam a sê-lo.

Essa forma de dialogismo distingue-se do modelo habermasiano da razão comunicativa. Não que seja necessariamente mais violenta. Sua racionalidade é que é diferente. Com efeito, o modelo comunicativo da razão política supõe uma certa lógica da situação de fala. Dois locutores se vêem confrontados e são levados, pela própria lógica da confrontação, a ultrapassar seu ponto de vista limitado. São obrigados a explicitar as normas que os guiam, a experimentar seu caráter contraditório ou não contraditório. São assim levados a universalizá-las tendencialmente e a se aproximarem um do outro nesse movimento de universalização. O núcleo dessa lógica é a prova da contradição performativa: se um dos parceiros se recusa a ouvir o que o outro diz ou a justificar o que ele próprio diz, entra em contradição com o que sua posição mesma de discutidor requer, ele próprio não se reconhece como locutor racional.

Esse modelo é certamente satisfatório para o espírito, mas creio que nenhuma situação de interlocução política forte lhe corresponda. Pois, para que haja contradição performativa, é preciso que a situação de fala já esteja constituída com seus locutores e seus objetos. Ora, o próprio do dissenso político, como vimos, é que sempre pelo menos um dos elementos da cena não está constituído: seu lugar, seu objeto, os sujeitos aptos a falar dele etc. Consequentemente, o interlocutor dissensual fala em dois mundos ao mesmo tempo e a relação argumentativa entre esses dois mundos não é dada senão pela invenção conflitual. Não há contradição na posição dos patrícios. Há a lógica sensível de um mundo, e o problema é construir pela fala um outro mundo sensível. A contradição performativa não funciona porque a própria cena da fala é contraditória, resultado da conjunção de dois mundos heterogêneos.

Isso não quer dizer que a razão ou o universal se encontrem ausentes. Pelo contrário, eles têm aí um duplo trabalho. Assim, o universal da igualdade, da lei ou dos Direitos do Homem não está presente simplesmente como a regra à qual o particular deve se submeter. Está presente uma segunda vez, na potência de construir casos em que ele seja singularizado, posto à prova de sua contradição. A atualidade nos mostra muito bem, com efeito, o que é um universal desprovido dessa potência, os Direitos do Homem, por exemplo, quando se tornam apenas os direitos da vítima que se lamenta, os direitos dos que são incapazes de fazer valer um direito. O universal em política está ligado à potência expansiva de sua singularização. Ele é colocado em funcionamento por obra de sujeitos específicos.

Isso me leva ao último ponto essencial na definição da racionalidade dissensual da política e que diz respeito à definição do sujeito político. Se a política começa com o cômputo litigioso dos não-contados, isso implica que os sujeitos políticos em geral só existem por sua distinção em relação a qual quer grupo social, a qual quer parte da sociedade ou função do corpo social. O que os constitui é o próprio litígio. Os sujeitos políticos são potências de enunciação e de manifestação do litígio que se inscrevem como algo a mais, algo sobreposto, em relação a qualquer composição do corpo social. Eles o são inclusive quando trazem o mesmo nome que as partes do corpo social. Marx foi quem melhor formulou essa natureza dissensual do sujeito político, ao dizer do proletariado que era uma classe da sociedade que não era uma classe da sociedade. É verdade que ele próprio deu uma interpretação limitativa à sua fórmula. Para Marx, o proletariado é uma exceção no sistema das classes sociais, o produto da decomposição última da sociedade. Proponho, de minha parte, dar à fórmula um sentido geral e positivo: um sujeito político, uma classe em luta como sujeito político, é sempre um operador de desclassificação, uma potência de desfazer a estrutura policial que põe os corpos em seu lugar, em sua função, com a parte que corresponde a essa classe e a essa função. É nesse sentido que se deve, no meu entender, radicalizar a idéia da classe que é uma não-classe.

É o que exprime à sua maneira um contemporâneo de Marx, o revolucionário francês Louis Auguste Blanqui, ao ser leva do ao tribunal por insurreição. Por ocasião do processo, o procurador lhe pergunta, como de costume, sua profissão. Blanqui responde apenas: “Proletário”. O procurador então exclama: “Isso não é uma profissão”. Blanqui replica: “É a profissão de 30 milhões de franceses que vivem de seu trabalho e que são privados de direitos políticos”. Para mim esse diálogo ilustra exatamente a oposição entre polícia e política. Do ponto de vista da polícia, que é o do procurador, a sociedade se compõe de partes e de funções. Uma profissão é um ofício. Ora, “proletário” não é um ofício, e, além do mais, o acusa do Blanqui não é nem um trabalhador manual nem um miserável. Mas Blanqui lhe responde com uma definição estritamente política: “proletário’’ não quer dizer trabalhador manual ou pobre. Proletário não designa uma parte real do corpo social. Proletário designa o sujeito de um combate que identifica a questão operária àquele cômputo dos não-contados em geral que é o princípio da política. Os proletários não são os trabalhadores manuais ou as classes laboriosas. São a classe aberta dos não-contados que só existe através das formas de manifestação pelas quais ela se faz contar.

Os sujeitos políticos não existem como entidades estáveis. Existem como sujeitos em ato, como capacidades pontuais e locais de construir, em sua universalidade virtual, aqueles mundos polêmicos que desfazem a ordem policial. Portanto são sempre precários, sempre suscetíveis de se confundir de novo com simples parcelas do corpo social que pedem apenas a otimização de sua parte. Se a política é um desvio singular do curso “normal’’ da dominação, isso quer dizer que está sempre ameaçada de se dissipar. Ora, a forma mais radical dessa dissipação não é o simples desaparecimento, é a confusão com seu contrário, a polícia. O risco dos sujeitos políticos é confundir-se de novo com partes orgânicas do corpo social ou com esse próprio corpo. Foi o que aconteceu exemplarmente no sistema soviético quando o sujeito político proletário foi identificado ao corpo glorioso do homem novo. É o que acontece, de maneira completamente diferente, nos sistemas consensuais contemporâneos.

Em que consiste, com efeito, o chama do consenso? Em seu enunciado ordinário, a sabedoria consensual apresenta-se como uma tese sobre a evolução do político resumida na seguinte idéia: a antiga forma da política, a do conflito, caducou. A forma moderna é a do concerto, para lidar, entre parceiros responsáveis, com os dados objetivos da situação que se impõe a todos. Segundo essa interpretação, as perturbações das democracias e as catástrofes totalitárias resultaram do fato de que os problemas reais da sociedade eram recobertos pelo jogo de sujeitos fictícios e por seus combates de fantasmas. Seres abstratos, fantasmáticos — classes, povo, proletariado, luta de classes —, impediam a identificação dos atores reais e dos problemas objetivos da situação. Hoje, teríamos finalmente nos desembaraçado desses fantasmas, desses sujeitos excedentes, e poderíamos identificar exatamente o papel desempenhado pelas diferentes partes do corpo social e os problemas a resolver para assegurar sua coesão e sua prosperidade.

O consenso não é portanto simplesmente a opinião razoável de que é melhor discutir do que brigar, e a busca de um equilíbrio que distribua os papéis da melhor maneira — ou da menos má —, de acordo com interesses de cada parte. O consenso é a pressuposição de uma objetivação total dos dados presentes e dos papéis a distribuir. É um sistema perceptivo que identifica o povo político à população real e os atores políticos às partes do corpo social. É essa identificação que operam exemplarmente as sondagens de opinião. Estas efetuam uma redução permanente que nos apresenta uma igualdade irredutível entre a soma total das opiniões enunciáveis e a soma total das partes da população. E também, ao decompor esse total, ao nos dizer quais partes da população privilegiam esta ou aquela “opinião’’, definem uma população estritamente idêntica à redução dos grupos de interesses e das classes etárias. Em suma, o consenso suprime todo cômputo dos não-contados, toda parte dos sem-parte. Ao mesmo tempo, pretende transformar todo litígio político num simples problema colocado à comunidade e aos que a conduzem. Pretende objetivar os problemas, determinar a margem de escolha que comportam, os saberes requeridos e os parceiros que devem ser reunidos para sua solução. Disso supõe-se decorrer a composição dos interesses e das opiniões no sentido da solução mais razoável.

Aqui, infelizmente, o consenso se depara com um daqueles paradoxos que eu mencionava no começo: os atores sociais chamados a assumir suas responsabilidades para o tratamento concertado dos problemas são sobretudo convidados a verificar que a solução “mais razoável’’ é na verdade a única solução possível, a única autorizada pelos dados da situação tais como os conhecem os Estados e seus especialistas. O consenso então não é nada mais que a supressão da política. Os Estados consensuais apresentam à sua maneira essa supressão. Apresentam-na como um desapossamento do poder da autoridade estatal em proveito da iniciativa dos atores sociais. Apresentam-se eles próprios como Estados “modestos”, que renunciam a suas prerrogativas para deixar que se opere no núcleo da sociedade a adaptação ótima dos interesses e dos direitos. Mas na verdade os Estados exercem essa “modéstia” muito menos em relação a si próprios que em relação à política. O que eles tendem a fazer desaparecer não é seu próprio poder, é a 
cena política de exercício do dissenso. O último traço de sua “modéstia” é interiorizar de antemão nossa impotência em face de uma necessidade que os ultrapassa e que obviamente deve nos ultrapassar ainda mais. Apresentam-se a nós como submissos a uma necessidade que doravante se situa acima dos Estados, representantes locais de um governo mundial que define as regras do jogo que se impõe a cada um. Esse governo mundial imaginário é, em última análise, o governo mundial da riqueza, governo inencontrável que determina as margens ínfimas de redistribuição local cuja gestão ótima requer o consenso. O que uns chamam modéstia do Estado, outros, fim da política, é então a reabsorção total do político pelo estatal. O Estado gestionário funciona como representante local do governo sem centro da riqueza, um governo ausente ao qual ninguém pode pedir contas.

O pensamento consensual estabelece que as infelicidades diversas da modernidade ocorreram por causa do reinado nefasto da vontade política e de suas ficções. Estabelece como equivalente da razão uma espécie de niilismo. Para ele, a sabedoria é não mais querer, é conformar-se ao saber inconsciente e ao querer obscuro da riqueza que se valoriza. Nessa sabedoria niilista, a razão política deve ser definitivamente protegida contra seu próprio excesso. Deve ser impedida de querer por meio dessa razão passiva, desse grande automatismo da lei do capital, que é uma razão sem sujeito, um grande querer inconsciente que comanda uma multidão de pequenas razões locais, estritamente confinadas a exercícios de repartição dos benefícios e dos sacrifícios, de adaptação entre o fluxo e o refluxo das riquezas e os movimentos dos corpos sociais. A sabedoria consensual repete de bom grado que o sono de uma razão embriagada por sua força engendrava os monstros da guerra. Opõe a isso a figura “modesta” de uma letargia da razão: um sono sem sonhos que deve engendrar a paz.

Infelizmente não há sono sem sonho. O consenso quer suprimir a política, seu povo e seus litígios arcaicos. Quer substituí-los pela população, suas partes e os simples problemas de repartição dos esforços e das riquezas. Mas o povo político e seu litígio não desaparecem sem resto. Quando se quer suprimir o povo dissensual da política pela população consensualmente gerida, vê-se aparecer em seu lugar um outro povo, mais antigo, mais intratável, o povo da etnia que se declara incompatível com a etnia vizinha. Quando se quer substituir a condução política dos litígios pelo tratamento gestionário dos problemas, vê-se reaparecer o conflito sob uma forma mais radical, como impossibilidade de coexistir, como puro ódio do outro.

Esse é o terceiro dos paradoxos, na situação atual do mundo e da Europa em particular, que eu evocava no início. Em países como o meu, onde reina a razão consensual, vê-se reaparecer, em lugar do conflito “arcaico’’ das classes, a forma pura do ódio racista ou xenófobo que visa o outro como tal. Em países da Europa do Leste onde nos prometiam uma democracia realista, que tirasse as lições da catástrofe totalitária, vemos aparecer as formas mais radicais da guerra étnica. Não creio que esses desencadeamentos novos da etnicidade ou do racismo na Europa consensual e supranacional possam se explicar nos termos cômodos de problemas de transição ou de resistência à mudança. Pois, entre a sabedoria consensual e a loucura étnica, há pelo menos um ponto essencial de concordância, a saber: o princípio identitário. O consenso não quer mais sujeitos divididos e divisores característicos da política. Em seu lugar, quer partes reais do corpo social, corpos e grupamentos de corpos claramente enumeráveis, claramente constituídos em sua identidade. Ora, esses sujeitos bem identificados, muito semelhantes em sua 
identidade, têm sua figura mais pura, mais radical nos sujeitos estritamente identificados à sua raça, à sua etnia ou ao povo de Deus. Lá onde desaparecem as formas de tratamento político do litígio, aparecem em seu lugar as figuras irreconciliáveis da identidade e da alteridade. Por exemplo, em vez da figura política do operário e do proletário, aparece o imigrado, identificado apenas por sua raça e pela cor de sua pele, pela identidade nua do Outro, aquele que faz ruídos e não participa do mundo da fala.

Assim, quando o desvio político retorna à linha reta da distribuição policial das partes e dos papéis, o que temos não é apenas o governo modesto e gestionário da riqueza. O que temos é o face-a-face entre as duas lógicas da dominação: a lei da riqueza e o princípio da diferença no nascimento. E chegamos a este último paradoxo: é a lógica da diferença no nascimento que se coloca como contestação ao governo da riqueza. É seu princípio de alteridade radical que pretende ser a única forma de expressão do dissenso político. Lá onde liberais e socialistas concordam em dizer que não há mais nada a fazer senão o que deve ser feito, quando muito, talvez, aumentar esta taxa em vez de diminuir aquela outra, o vazio da política é ocupado por aqueles que vêm dizer: como não? há alternativas, escolhas a fazer. E a primeira é despachar os indesejáveis, os que não são como nós e destroem nossa identidade.

O que concluir daí quanto ao tema da crise da razão? Podemos nos interrogar sobre a validade do conceito de crise em geral e sobre sua aplicação a este ou àquele domínio particular. Mas, de todo modo, a razão política, a razão dissensual tal como procuro defini-la, tem a especificidade de estar sempre à beira de seu desaparecimento. Essa razão, com efeito, não é a razão dos Estados, não é a dos indivíduos ou grupos que buscam se entender para otimizar seus interesses respectivos. É a razão de atores ocasionais e intermitentes que constroem aquelas cenas singulares em que o próprio conflito é que produz uma comunidade. Essa razão está assim cercada de abismos, sempre ameaçada de desaparecer, seja sob a forma da ultra política, a guerra, seja sob a forma infra política, a gestão estatal dos interesses com postos dos grupos sociais.

Quando uma razão desaparece, não se cai ipso facto no irracional. Cai-se numa outra razão. O problema é então saber se essa razão substitutiva é capaz de fazer o trabalho da primeira. Diz-se com frequência que é preciso renunciar às ilusões românticas em favor de um realismo mais modesto e mais seguro. Mas a palavra realismo pode ser a mais ilusória de todas, se não disser de qual real ela pretende ser a medida. O retorno atual de fenômenos massivos de desligamento e de exclusão sociais, de racismo e de guerra étnica nos assinala isto: as formas do conflito político e da luta de classes foram formas civilizadoras e integradoras. Elas fizeram recuar as alteridades irredutíveis, misturaram populações heterogêneas, integraram em comunidades nacionais indivíduos e grupos vindos de diversos lados. Em suma, fizeram o trabalho hoje solicitado a especialistas do “trabalho social”. Argumentar em favor do dissenso não é portanto argumentar em favor das formas heróicas do combate político e social de ontem. O problema se coloca diferentemente. Há coisas que um modo de razão pode fazer e que um outro não pode fazer em seu lugar. As formas políticas do dissenso foram formas de luta contra essas perturbações que agitam indivíduos e grupos a partir do sentimento da identidade ameaçada e da alteridade ameaçadora. À sua maneira elas pacificaram um certo número de pulsões de angústia, de ódio e de morte. Hoje as formas policiais do consenso prometem uma paz que não podem manter, pois jamais avaliaram a dimensão de seus problemas profundos.

Não se pode renunciar a uma razão senão em favor de uma outra capaz de fazer melhor o que a anterior fazia. Esse não é o caso da proposição consensual. Eis por quê, fora de toda nostalgia, penso que não devemos nos decidir pelo desaparecimento dessa razão política que resumi na palavra dissenso.

Tradução de Paulo Neves

 

 

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