2005

O Estado e o músico popular: de marginal a instrumento

por Margarida Autran

Resumo

No início dos anos 70, por causa da ditadura militar, uma centena de músicos brasileiros, entre eles os mais representativos da produção musical da década anterior, se espalham por sete países de quatro continentes. No Brasil, o silêncio é quebrado apenas pelo som importado das guitarras elétricas, com graves consequências para a produção musical nacional. Na fase mais obscurantista do regime, a cultura era considerada um supérfluo e o músico popular era tido como um marginal, um elemento de alta periculosidade cuja produção passava obrigatoriamente pelo crivo da Polícia Federal.

Chico Buarque, o compositor mais visado pelo regime, declarou seu medo de mandar músicas novas para a censura, porque “a proporção era: de cada três músicas, liberam uma”. Com o passar do tempo, Chico descobriu uma série de artimanhas das quais ele e outros compositores lançaram mão para facilitar a liberação de suas músicas. Uma delas foi a invenção de um músico fictício, o Julinho da Adelaide. Mas nem sempre esses jeitinhos davam certo.

Nos anos 70, não havia clima para a criação artística e, mesmo quando estatisticamente os problemas com a censura se reduziram, seus efeitos sobre toda uma nova geração de criadores permaneceram irreversíveis. Podados em suas primeiras investidas, estes jovens fatalmente se enquadraram na autocensura.

O vazio da produção nacional foi então preenchido pela importação maciça de tapese matrizes estrangeiros e pela imposição de “imitações” compondo em inglês. A descaracterização da arte do Brasil resultou assim numa supervalorização de produtos culturais importados. Contudo, a partir de 1973/74, o desgaste do regime instaurado em 1964 obriga o Estado a adotar uma política de maior aproximação com as classes médias e setores mais descontentes. “Cultura também é desenvolvimento”, decreta o governo, sem abandonar os mecanismos de repressão que cerceavam cultura.

Gravadoras, através de seus advogados, barganham com o Departamento de Censura, que confia a eles o poder de dizer quais as músicas “graváveis” ou não. Esta forma mais sofisticada de repressão, que foge ao controle do compositor, e que é feita através de “pedidos, conselhos ditos de forma aparentemente afetuosa” por parte das multinacionais do disco mostra que, como não pode manter descontente a produção empresarial capitalista que sua política econômica propicia, o governo transforma as multinacionais em seus aliados, através de uma série de acertos, como a isenção do ICM em troca da impressão de propaganda oficial nas capas dos discos e da relativa delegação do mecanismo da censura.


No momento em que se iniciam os anos 70, Geraldo Vandré está em Paris, denunciado num IPM do 1º Distrito Naval, Caetano Veloso e Gilberto Gil estão em Londres, depois de passarem algum tempo presos no Brasil. Não são casos isolados: uma centena de músicos, entre eles os mais representativos da produção musical da década anterior, se espalham por sete países de quatro continentes, engrossando o contingente de brasileiros que, por absoluta falta de condições de continuar trabalhando em seu país, foram para o exterior. Seu êxodo faz parte de um processo mais amplo que atingiu a sociedade brasileira como um todo.

No Brasil, o silêncio ensurdecedor é quebrado apenas pelo som importado das guitarras elétricas, com graves consequências para a produção musical nacional. “A arte, até certo ponto, expressa um padrão determinado pela situação social e econômica da época. É possível que a grande arte ultrapasse as fronteiras desse determinismo, mas ele existe e tolhe uma porção de possibilidades artísticas”, enunciou Aldir Blanc sobre a crise que a música popular enfrentava (Revista Homem, setembro de 1977). Na fase mais obscurantista do regime, a cultura era considerada um supérfluo e o músico popular era tido como um marginal, um elemento de alta periculosidade cuja produção passava obrigatoriamente pelo crivo da Polícia Federal, que determinava se podia ou não ser divulgada. E, mesmo quando o desgaste do sistema levou o governo a procurar um diálogo com os artistas, o mecanismo da censura não foi desativado.

Em novembro de 1971, doze compositores enviam uma carta à direção do VI Festival Internacional da Canção cancelando sua participação no certame, alegando a impossibilidade de se fazer arte diante da “exorbitância, a intransigência e a drasticidade do Serviço de Censura”, que vetou as letras de músicas inscritas no festival. Dias depois, Chico Buarque, Tom Jobim e Sérgio Ricardo comparecem ao Dops do antigo Estado da Guanabara para depor em inquérito instaurado no Serviço de Censura Federal para “apurar responsabilidades na divulgação do manifesto contra aquele departamento”. A TV Globo, que havia levado a carta ao conhecimento das autoridades, encerrou naquele ano a promoção do FIC. Mas, apesar da repercussão do fato no exterior, o panorama não mudou.

“A arte está anêmica, irada e medrosa. Os artistas não se preocupam mais com a beleza ou com a verdade de uma obra, mas com sua viabilidade. O Brasil, país tropical de cores vivas, vê sua arte tomar uma cor pastel”, afirmou Ailton Escobar, ao denunciar o desinteresse do governo para com a cultura e sua opção pelo esporte como plataforma política para conquistar o grande público (Jornal do Brasil, 1°/1/1973). Quando o disco Banquete dos mendigos, do qual constam velhas composições como Oração de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi, e Asa branca, de Luiz Gonzaga, e cuja venda reverteria em benefício de instituições mantidas pela ONU, é apreendido em todo o território nacional (1975), o diretor do Departamento de Censura, Rogério Nunes, justifica: “As músicas do disco, interpretadas por vários autores, entre os quais Chico Buarque, Paulinho da Viola, Raul Seixas, Edu Lobo e Gal Costa, têm conotações políticas desfavoráveis ao governo.”

“O problema é que estou com um medo danado de mandar músicas novas para a censura, porque a proporção está: de cada três músicas, liberam uma. É claro que cheguei à autocensura. Mas, dentro desse limite que já me coloquei, eu acho que ainda tenho campo para fazer o negócio. Esse tipo de música que eu tenho feito, que para mim é uma coisa nova, é a razão de ser de fazer um disco novo. Elas estão dentro de limites que eu acho que, no espírito da Censura, podem passar. Agora, se eles me fizerem recuar mais ainda, eu paro”, ameaçou Chico Buarque (Veja, setembro de 1971).

Embora tenha sido o compositor mais visado pela Censura, Chico não parou. E, com o passar do tempo, descobriu uma série de artimanhas das quais ele e outros compositores lançaram mão para facilitar a liberação de suas músicas. Uma delas foi a invenção de um músico fictício, o Julinho da Adelaide, que por ser desconhecido não enfrentava tantos problemas. Graças a Julinho da Adelaide, Chico conseguiu lançar Chama o ladrão e Você não gosta de mim, esta inspirada num incidente verídico: um policial, que foi à sua casa com uma intimação, no elevador pediu um autógrafo para a filha. Mas nem sempre esses jeitinhos davam certo. “Nesses casos, a gravadora, que encaminha a música para a Censura, teria que ser um cúmplice, mas descobri que, na verdade, a gravadora abria o jogo. Tinha medo de represálias e boicotava meu talento de simulador” (Homem, setembro de 1977).

Ainda não se tem uma estimativa total do número de letras vetadas ou mutiladas durante a década (só nos quatro últimos meses de 1972 foram proibidas 170), mas cabe ressaltar alguns casos em que a ação da censura atingiu as raias do absurdo, como o veto a poemas musicados de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, a proibição da música Ministério da Economia, composta em 1940 por Geraldo Pereira, sambista falecido em 1954, e a quase suspensão de um concerto de música de câmara promovido pela Pró-Arte, sob o pretexto da não identificação de nomes estrangeiros que constavam do programa (eram Haydn, Bocherini e Scarlatti).

Nos anos 70, não havia clima para a criação artística e, mesmo quando estatisticamente os problemas com a censura se reduziram, seus efeitos sobre toda uma nova geração de criadores permaneceram irreversíveis. Podados em suas primeiras investidas, estes jovens fatalmente se enquadraram na autocensura. Para eles, o certificado de liberação era algo tão normal quanto a carteira de identidade. “Para mim, para uma geração que se criou quase sem censura, é chocante ter que mandar textos, às vezes íntimos — toda criação requer uma entrega muito particular — para um funcionário examinar, dizer se pode ser divulgado ou não. Com o garoto que surge agora não é assim. Por isso tem tanta gente compondo em inglês, pois é mais fácil passar”, constatou Chico Buarque (Veja, outubro de 1976).

Na verdade, as coisas não se deram de forma tão simples. Diante do massacre que sofreu a música popular brasileira, abafada pela repressão, a indústria fonográfica precisava criar novos produtos para abastecer um mercado em acelerada expansão, devido à política de concentração de renda. Seu crescimento nos anos 70 foi de 15% ao ano, em média, colocando-se no final da década como o sexto mercado fonográfico do mundo.

O vazio da produção nacional foi então preenchido pela importação maciça de tapes e matrizes estrangeiros e pela imposição de “imitações”, como Chrystian, que não é outro senão José Pereira da Silva; os parceiros Paul Brian e Harry Thompson, aliás Sérgio Sá e Ary Piovezani; Steve McClean, na carteira de identidade Hélio da Costa Manso; Terry Winter, que não é outro senão o paulista Thomas William Standem (também compositor de músicas nordestinas sob o apelido de João Tomé e de músicas francesas assinando-se Marcel Denin) e outros, todos compondo em inglês.

A descaracterização da arte do Brasil resultou assim numa supervalorização de produtos culturais importados, a ponto de, em 1976, o então diretor geral da Fonograma, André Midani, declarar que o futuro da música popular brasileira estaria no rock.

Contudo, a partir de 1973/74, o desgaste do regime instaurado em 1964 obriga o Estado a adotar uma política de maior aproximação com as classes médias e setores mais descontentes, em busca de uma nova base de apoio. “Cultura também é desenvolvimento”, decreta o governo, dentro desta nova perspectiva. E o ministro da Educação, Ney Braga, subitamente “preocupado com a aparente decadência da música popular brasileira e interessado em detectar as causas dessa crise”, ordena ao Departamento de Assuntos Culturais (DAC) que faça sondagens entre compositores, pesquisadores e órgãos de produção e divulgação da música para estabelecer diretrizes da ação oficial nesta área.

“Houve a aproximação com Ney Braga porque havia um interesse grande do governo em ser simpático, em conquistar a simpatia popular, o que só pode ser feito através de artistas ou jogadores de futebol”, revelou Maurício Tapajós, um dos músicos que participaram de uma comissão ouvida pessoalmente pelo ministro, em janeiro de 1975.

Essa reformulação na área da cultura era uma imposição do momento que se atravessava. “A sociedade dirigente não pode fundamentar seu papel apenas nas forças coercitivas”, analisou o teatrólogo Paulo Pontes. “A partir de determinado momento, se ela aspira à continuidade, ela tem que ganhar a consciência da maioria das pessoas. Porque, senão, se criará um fosso intransponível entre a consciência da maioria e os projetos das classes dirigentes” (Veja, maio de 1976).

O novo plano de Ney Braga era uma ponte sobre o fosso, mas a manutenção da coerção garantia o controle estatal. E quando as sondagens do Ministério da Educação constataram os graves problemas do mercado de produção e consumo, concluindo que “se não for tomada uma providência, a força criativa da música brasileira desaparecerá”, a principal sugestão encaminhada ao ministro por sua equipe foi a criação de um órgão para cuidar especialmente da música (popular e erudita). Isso seria facilitado com a instalação no Rio de Janeiro da Fundação Nacional de Arte, a Funarte, entidade encarregada de recolher recursos para incentivar o trabalho dos compositores, apoiar pesquisadores, financiar gravações eminentemente culturais e ainda fiscalizar o cumprimento das leis sobre divulgação e fabricação de discos, já que as principais dificuldades destacadas pelo Departamento de Ação Cultural do Ministério foram o não cumprimento do decreto que fixa a execução da música brasileira nas rádios e televisões e o fato de que 70% do mercado de discos estavam dominados pela música estrangeira.

Assim, enquanto o Estado decide organizar a produção cultural, entre os compositores a visão era a de que a situação só poderia melhorar caso fossem resolvidos “ou pelo menos atenuados” os problemas de direitos autorais e censura. Desorganizados como categoria profissional, com seus sindicatos — como todos os outros — desativados, eles ainda contavam com a agravante de ter a categoria dividida entre os sindicatos de músicos e os de compositores. Quanto às Ordens dos Músicos, os órgãos normativos da profissão, tanto a federal quanto as regionais permaneciam há muitos anos nas mãos de um mesmo grupo. Em São Paulo, o presidente da Ordem, Wilson Sândoli, era também o presidente do Sindicato, aonde chegou como interventor. No Rio, para não ficar atrás, Adelino Moreira era presidente da Sbacem (Sociedade Arrecadadora de Direitos Autorais) e do Sindicato dos Músicos. Assim, se o profissional reclamar com seu sindicato de que sua sociedade o rouba, estará duas vezes reclamando com a mesma pessoa.

“Cada Ordem regional é composta por 21 diretores, renovados em um terço por ano”, explica Maurício Tapajós. “Se conseguirmos formar uma chapa de 14 heróis, entre titulares e suplentes, e ganhar a eleição, no ano seguinte temos que ganhar de novo para conseguir a maioria. E mesmo aí é preciso ganhar nos outros estados para chegar à Ordem Federal, caminho que demanda anos de consciência do músico em todo o Brasil.”

Na época, só no Rio de Janeiro havia 22 mil músicos inscritos na Ordem, mas 17 mil não exerciam a profissão e apenas 5 mil tinham condições de votar. E quando, já em 1978, foi formada uma chapa só com músicos profissionalmente atuantes (Antônio Adolfo, Luizão, Aquiles do MPB-4, Airton Barbosa, Beth Carvalho, Dori Caymmi e Luiz Gonzaga Júnior), pouco mais de mil eleitores compareceram às urnas. Articulada e legalizada em apenas uma semana, a chapa teve uma vantagem de 60 votos no Grande Rio, mas perdeu no resto do estado, reduto da situação, por mais de 400.

Diante da dificuldade de atuar dentro das entidades de classe oficiais, no final de 1974 um grupo de profissionais criou a Sociedade de Música Brasileira, Sombras. Formada para agrupar independentemente autores, criadores e intérpretes de música ou letra (não era preciso pagar nada para participar), a Sombras, sociedade civil sem caráter lucrativo, tinha como princípio fundamental preservar, estudar e divulgar a música brasileira e defender os direitos por ela gerados.

A ideia não era nova e foi precipitada pela expulsão de um grupo de artistas de sua sociedade arrecadadora, a Sicam, simplesmente porque eles pediram uma prestação de contas, único direito dos compositores constante nos estatutos da sociedade. A arrecadação e distribuição de direitos autorais sempre foi um ponto de estrangulamento no exercício da profissão, sendo feita por um grande número de sociedades particulares, que reuniam entre seus filiados tanto os autores como os editores — ou seja, as gravadoras. Todas elas possuem suas próprias editoras, que abocanham 33% dos direitos sobre a obra. E embora ninguém seja obrigado a editar uma música para gravá-la, dificilmente vai conseguir fazer um disco se não der esta parceria à gravadora/ editora.

A distribuição dos direitos era feita de maneira arbitrária pelas arrecadadoras, que fixavam um “salário” irrisório aos autores, alegando a dificuldade de controlar a execução e venda de suas músicas em todo o país, tarefa delegada a seus fiscais. Diante do enorme volume de dinheiro manipulado pelas sociedades, fato constantemente denunciado pelos prejudicados, o governo decide intervir, criando o Conselho Nacional de Direito Autoral, com a finalidade de normatizar e fiscalizar esta atividade. Subordinado ao CNDA é criado também o Ecad, Escritório de Arrecadação de Direitos Autorais, órgão executivo formado pela junção das entidades arrecadadoras. Seu sistema de arrecadação e distribuição deveria ser feito eletronicamente, pelo Serpro, através da Caixa Econômica Federal, evitando-se assim possíveis desvios. Entretanto, embora aprovado pelo Congresso, o projeto encontrava-se estagnado em Brasília, desde 1973.

A Sombras contribuiu decisivamente para acelerar a vigência da lei que criou aqueles órgãos, mas não conseguiu que funcionassem como deveriam, ou seja, que a arrecadação não passasse pelas mãos dos fiscais. Como o Ecad era formado pelos mesmos homens que controlavam as arrecadadoras, eles conseguiram que apenas 30% da arrecadação fosse feita por amostragem enviada pelas rádios e televisões, quando deveria passar gradualmente para 50%, 70%, até que todo o sistema do Serpro fosse implantado. Os 5% de erro previstos pelo Serpro formariam então um fundo de reserva de direitos autorais, para atender aos músicos a quem a distribuição não enquadrasse.

Já no governo Figueiredo foi nomeada uma comissão para apurar as falhas do CNDA, o que motivou a demissão de todos os seus membros. Os substitutos seriam nomeados diretamente pelo presidente da República.

Quanto à Sombras, embora tivesse sua representatividade de classe admitida não só pelos músicos como pelo governo, foi desativada. O incêndio do MAM, onde ficava sua sede, queimou toda a sua documentação e arquivos. Além disso, sua diretoria (Tom Jobim na presidência, Hermínio Bello de Carvalho como vice, Aldir Blanc, Vitor Martins, Gutemberg Guarabira, Gonzaguinha e Macalé compondo a diretoria) não conseguiu legalizar a entidade nem promover outra eleição até o final do mandato de dois anos. “Não havia renovação”, admite Maurício Tapajós, o secretário executivo. “Todo mundo estava muito feliz com seis ou sete trabalhando para 22 mil que não faziam nada. Mitos ou não mitos, eles não tinham paciência para ficar atrás de uma mesa cuidando de processos. Não tem poesia.”

Outro saldo da Sombras, que conseguiu iniciar um processo de conscientização do profissional de música, foi o Projeto Pixinguinha, o mais importante da administração Ney Braga para o setor. O projeto surgiu de uma ideia de Hermínio Bello de Carvalho, baseada no sucesso da série de shows Seis e meia, levada ao palco do Teatro João Caetano, no Rio, entre 1976 e 78. Em dois anos (1978/79), o Projeto Pixinguinha realizou 1.468 espetáculos, levados a diversas capitais do país, onde foram vistos por mais de um milhão de pessoas. Para Hermínio, seu coordenador, os principais resultados foram a formação de plateias, a motivação para a criação de projetos semelhantes fora do eixo Rio-São Paulo e o fato de ter colocado ao alcance do povo artistas antes “inatingíveis”, alguns por serem caros, outros por serem novos, e ainda aqueles que estavam esquecidos, “sepultados pelo sistema”.

Com ingressos subsidiados, diz Hermínio, os espetáculos atingem um público que antes não tinha acesso a apresentações ao vivo. É a “conscientização das massas” através do poder da música, que “se alastra, projeta-se em círculos energéticos, é uma coisa feito aquele samba que fiz com Paulinho (da Viola), feito um mar se alastrou”, justifica.

É inegável que o Projeto Pixinguinha divulgou em todo o país a música popular, basicamente aquela produzida no Rio e em São Paulo, criando um novo mercado de trabalho para o profissional. Mas, pelo menos nesse primeiro momento, deixou de fora as manifestações regionais, cuja riqueza é incontestável. Este aspecto seria abordado pela Feira Pixinguinha, destinada a promover os autores de outras regiões. Entretanto, com a saída de Ney Braga, uma drástica redução de verbas adiou o novo projeto.

A iniciativa do Estado de traçar os caminhos da cultura nacional é o aspecto mais importante da segunda metade da década. Toda produção cultural passou a depender, direta ou indiretamente, do poder público, pois o empresário privado não tem condições de competir com a máquina estatal, “O que sobra é uma pequena fatia do bolo, e está todo mundo brigando para disputar”, diz Albino Pinheiro, o criador do Seis e meia e da Banda de Ipanema. Ele adverte que o fundamental, que é mexer na legislação da cultura popular, coisa que só o poder público pode fazer, não foi feito. E conclui: “Isto é um reflexo de toda a realidade brasileira.”

Entre as reivindicações não atendidas estão o controle na importação de matrizes estrangeiras, o apoio à indústria nacional, a observância do decreto que estipula a percentagem de execução obrigatória de música brasileira, a isenção de taxas para importação de instrumentos por músicos profissionais e estudantes de música, a inclusão do ensino da música popular nas escolas de 1° e 2° graus e, principalmente, a liberdade de expressão.

“Hoje a tendência é para a vaselinagem”, denunciou Aldir Blanc, em 1977, em depoimento à revista Homem, revelando que as gravadoras, através de seus advogados, barganham com o Departamento de Censura, que confia a eles o poder de dizer quais as músicas “graváveis” ou não. Chico Buarque e Edu Lobo confirmam esta forma mais sofisticada de repressão, que foge ao controle do compositor, e que é feita através de “pedidos, conselhos ditos de forma aparentemente afetuosa” por parte das multinacionais do disco.

Esta nova maneira de agir mostra que, como não pode manter descontente a produção empresarial capitalista que sua política econômica propicia, o governo transforma as multinacionais em seus aliados, através de uma série de acertos, como a isenção do ICM em troca da impressão de propaganda oficial nas capas dos discos e da relativa delegação do mecanismo da censura.

Exemplificando esta “barganha industrial”, Aldir Blanc cita uma carta, com cópia nos arquivos da RCA, na qual o advogado da gravadora afirma a Brasília que “os equívocos saídos no disco Galo de briga não mais acontecerão este ano”, pois a gravadora seria mais comedida no lançamento seguinte do compositor. “É preciso gerar dinheiro, a roda não pode deixar de girar”, diz Aldir. “Eles se propõem a olear ainda mais essa roda. Isso tem um preço para o criador, para a cultura e, consequentemente, para aquele que ouve.”

No final da década, quando a canção política retoma timidamente o espaço drasticamente fechado desde que Vandré puxou, no Maracanãzinho, o coro de 100 mil pessoas que cantavam o seu Caminhando, e o tema da anistia é abordado pelos compositores populares, é bom lembrar que o povo brasileiro só estará anistiado quando puder cantar livremente.

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