1990

O estranho caso de José Matias

por Renato Mezan

Resumo

Atingir o objeto do desejo produz satisfação e, quando o objeto não pode ser atingido, as consequências podem ser graves, dependendo da intensidade do desejo, do tipo de obstáculo encontrado e da maneira pela qual se cria ou não se cria uma satisfação substitutiva. O terreno privilegiado no qual a psicanálise vai situar a problemática do desejo é a chamada “teoria das neuroses”. Do ponto de vista da teoria do desejo, porém, não parece haver aqui nenhuma novidade: os desejos buscam satisfação, esta lhes é negada por tal ou qual circunstância, e isso conduz à busca de satisfações substitutivas, neste caso os sintomas da neurose.  Em sua obra, Freud também trata dos que fracassam ao obter êxito e esta é uma das mais curiosas descobertas da psicanálise: a de que existem pessoas que, ao se cumprir um desejo, não podem tolerar sua felicidade, ficam em pânico e acabam se privando de gozar a satisfação que imaginavam buscar, agindo de modo a destruir as condições que tornariam possível desfrutar do que obtiveram.

Será este o caso do personagem-título do conto de Eça de Queirós, “José Matias”? José Matias parece ter se inspirado no destino daqueles que “fracassam com o êxito” pois, depois de acalentar um longo amor platônico por Elisa,  não consegue “realizar” uma união com sua amada mesmo quando todos os obstáculos são anulados.

 


Ao concluir a interpretação do sonho da injeção em Irma, Freud formula numa sentença lapidar o “novo conhecimento” que resulta do seu trabalho: “o sonho se mostra como uma realização de desejo”.[1] E como essa tese vai ser reafirmada ao longo de todo o livro, podemos considerá-la o eixo fundamental da argumentação, não apenas porque resume o essencial da posição do autor, mas ainda porque da necessidade de defendê-la contra objeções aparentemente justificadas vão surgindo os contornos da teoria que a torna plausível. Por exemplo, não parece à primeira vista que todos os sonhos sejam realizações de desejo; mas assim pensamos porque não distinguimos entre o conteúdo manifesto de um sonho — a sequência de imagens de que nos lembramos ao acordar — e seu conteúdo latente, isto é, os pensamentos e desejos a partir dos quais ele se formou. Mas, se todo sonho é uma realização de desejo, por que não enuncia claramente o desejo que o anima? Porque uma censura se opõe à manifestação direta deste, tornando-o irreconhecível mediante os mecanismos do “trabalho do sonho”. Nesse caso, devemos supor que o desejo e a censura correspondem a forças psíquicas capazes de entrar em conflito; mas como e onde tal conflito ocorreria? Precisamos agora imaginar um “aparelho psíquico” com tais e quais características, de cujo funcionamento em determinadas condições vai surgir um sonho… Tomando assim as objeções como alavancas para desenvolver sua hipótese, Freud vai refinando-a paulatinamente, e nesse movimento faz mais que elucidar os enigmas do sonho: lança as bases de toda a armação conceitual da psicanálise.

Não é difícil perceber que a ideia de desejo é a mola mestra da construção freudiana. No entanto, ao tentar determinar com mais nitidez o que ela significa, vemo-nos a braços com uma grande multiplicidade de ocorrência e de variações: o índice remissivo de A interpretação dos sonhos registra várias centenas de passagens em que é empregado o termo desejo. Por um lado, é compreensível que assim seja, se essa noção é de fato central no raciocínio de Freud; por outro, o leitor sente-se um pouco desorientado, e busca distinguir algumas constantes em meio a tanta diversidade. Uma pista pode ser encontrada no próprio acoplamento das palavras desejo e realização: um desejo é algo que busca realizar-se, e nesse processo se depara com diversos tipos de obstáculos. A originalidade de Freud não reside certamente em ter enunciado esse truísmo; eu a veria antes na radical renovação trazida pela psicanálise à concepção do desejo, bem como no mapeamento extraordinariamente preciso dos obstáculos que se antepõem à sua efetivação. E o primeiro passo dessa renovação consiste exatamente em localizá-lo no sonho, isto é, numa modalidade do funcionamento psíquico à qual a psicologia acadêmica nunca dera importância, negando mesmo que ela possuísse qualquer sentido.

Na seção C do capítulo VII, intitulada “Sobre a realização do desejo”, Freud retoma sua descoberta fundamental: “Certamente estranhamos que o sonho não deva ser nada exceto uma realização de desejo, e não apenas devido à contradição que decorre do sonho de angústia. Depois que os primeiros esclarecimentos obtidos pela análise nos ensinaram que atrás do sonho se ocultam sentido e valor psíquico, nossa expectativa não era de modo algum que esse sentido tivesse uma determinação tão unívoca. Segundo a definição de Aristóteles — correta, mas insuficiente — o sonho é a continuação do pensamento durante o sono, enquanto dormimos. Ora, se nosso pensamento cria durante o dia atos psíquicos tão diversos — juízos, conclusões, refutações, expectativas, propósitos etc. —, por que deve ser obrigado de noite a se limitar à produção de desejos?”[2] A resposta a essa pergunta conduz a uma série de desenvolvimentos, dos quais quero mencionar brevemente um ou dois. Existem sonhos em que o desejo está mais disfarçado que em outros, e nos quais só podemos descobri-lo após minuciosa análise. Isso significa que há desejos mais “visíveis” que outros, e Freud atribui essa diferença ao lugar psíquico em que se forma cada desejo individual: pode haver desejos conscientes, desejos pré-conscientes e desejos inconscientes, estes últimos sendo inconscientes, ou porque foram reprimidos após uma breve permanência na consciência, ou porque sempre foram inconscientes, já que encontram na consciência ou nos ideais do indivíduo uma oposição tão forte que torna impossível seu reconhecimento como desejos próprios, “meus” desejos. Mas essa circunstância não os impede de continuar existindo, nem de visar a satisfação: esta será simplesmente produzida por meios tão sinuosos, que já não a poderemos discernir nas imagens do sonho sem o auxílio da interpretação.

Dessa topologia dos desejos, Freud deduz que apenas o desejo inconsciente possui força bastante para suscitar um sonho, embora para isso necessite apoiar-se num outro, aparentemente anódino e consciente ou pré-consciente, que lhe servirá de veículo ou de máscara para atravessar a barreira da censura. Nessa operação, a força psíquica que se exprime na censura faz valer seus direitos, impondo ao desejo inconsciente uma série de transformações que o esvaziam do seu sentido original e o tornam irreconhecível. Vocês vêem que a tese fundamental do livro — o sonho é uma realização de desejo — é compatível com — e mesmo exige — uma teoria bastante complexa do funcionamento psíquico, que envolve as ideias de transposição, de defesa, de localidades mentais, de disfarce e ocultamento do sentido, etc. Mas o que nos interessa nesta breve visita à Interpretação dos sonhos é sublinhar que Freud designa por “desejo” atos psíquicos que podem ser localizados em qualquer das instâncias que compõem o aparelho psíquico: há desejos conscientes (ser professor, por exemplo), desejos pré-conscientes (o desejo de dormir), desejos inconscientes (humilhar e se vingar do pai). Disso decorre a ideia de uma composição de desejos, já que um desejo inconsciente e repudiado pela censura deve combinar-se com um desejo inofensivo para formar um sonho. Por esse motivo, a satisfação proporcionada a esse desejo inconsciente deve ser uma satisfação substitutiva, análoga, porém não idêntica à que o gratificaria de modo completo. E isso porque entre os obstáculos com que pode se deparar a realização do desejo devemos contar, além dos que a realidade externa impõe, também e sobretudo as barreiras colocadas pela censura interna: quando dormimos, não há impedimentos que provenham da “realidade”, que justamente é colocada fora de ação pelo sono.

Essas considerações preliminares têm a sua importância, na medida em que se tornou lugar-comum dizer que a psicanálise define o homem pelo desejo. A palavra tomou um sentido cada vez menos específico, a ponto de designar algum tipo de carência essencial, uma versão psicanalítica do velho tema religioso e filosófico da finitude. Esse não é o sentido original que Freud dá ao termo Wunsch:  não teria sentido deduzir sua ambição de ser professor em Viena, ou o banal desejo de dormir, de algo tão portentoso quanto a imperfeição ontológica que nos afeta enquanto seres mortais… A inflexão do sentido freudiano rumo à ideia da finitude consubstancial com o ser humano provém da elaboração de Lacan, que por sua vez remete à problemática do desejo na Fenomenologia do espírito de Hegel. É nesta obra que o nascimento da consciência de si a partir da consciência perceptiva é determinado como desejo; o problema é que o vocábulo empregado por Hegel não é jamais Wunsch, e sim Begierde, que quer dizer “desejo violento”, “concupiscência”. Numa nota à sua tradução da Fenomenologia, Jean Hyppolite precisa: “traduzimos Begierde por désir, e o termo nos parece dever ser tomado em sua significação mais geral”.[3] E, em seu livro Genèse et structure de la “Phénoménologie de l’esprit”de Hegel, o mesmo Hyppolite explica assim o sentido hegeliano da Begierde:

O desejo é este movimento da consciência de si que não respeita o ser mas o nega, ou seja, aqui se apodera concretamente dele e o faz seu […]. O objeto individual do desejo, este fruto que vou colher, não é um objeto posto na sua independência; podemos também dizer que enquanto objeto do desejo, ele é e não é; é, mas logo já não será; sua verdade é ser consumido, negado, para que a consciência de si, através desta negação do outro, se reúna consigo mesma. Daí o caráter ambíguo do objeto do desejo, ou melhor, a dualidade do fim visado pelo desejo (…). O fim do desejo não é, como se poderia crer superficialmente, o objeto sensível — este é apenas um meio — mas a unidade do Eu consigo mesmo. A consciência de si é desejo; mas o que dela deseja, sem o saber ainda explicitamente, é ela própria, é seu próprio desejo, e é por isso que ela só poderá se atingir a si mesma encontrando outro desejo, outra consciência de si. A dialética teleológica da Fenomenologia explicita progressivamente todos os horizontes deste desejo que é a essência da consciência de si. O desejo visa os objetos do mundo, depois um objeto já mais próximo de si mesmo — a Vida — enfim outra consciência de si; é o desejo que busca a si próprio no outro, o desejo de reconhecimento do homem pelo homem.[4]

Sabemos que Lacan vai tirar um imenso partido dessa ideia de Hegel, vindo a definir o desejo, em sua teoria, pela célebre fórmula: “o desejo do homem é o desejo do outro”. Não nos compete hoje estudar as implicações desse conceito; quero apenas sublinhar que ele coloca enormes problemas para a tradução e para a compreensão do que Freud, em sua teoria, entende por Wunsch. No livro em que enuncia os princípios da nova e polêmica versão das obras completas de Freud que está sendo realizada sob sua direção, Jean Laplanche argumenta em favor da tradução desse termo por “souhait”, reservando “désir” para Begierde e seus derivados, que aparecem muito raramente nos escritos de Freud.[5] Ora, souhait é para nós “vontade”, o termo menos expressivo e forte de uma série que contém “anelo”, “anseio”, “aspiração”, desejo” e outros. Num fascinante Dicionário de sinônimos da língua portuguesa, o professor Rocha Pombo ilustra: “tem-se vontade de sair cedo de casa (sem fazer disso grande questão); tem-se desejo de possuir algum bem que nos agrada ou nos encanta; sente-se anelo do Céu ou de coisas excelentes, muito altas ou muito difíceis; tem-se anseio por alguma coisa que nos apaixona; alimentam-se grandes aspirações que raramente se realizam”.[6] Estamos assim diante do embaraço da escolha… tanto mais que Wunsch pode ser empregado em locuções como auf Wunsch (a pedido), nach Wunsch (à vontade, sem limite), Gückwünsche aussprechen (formular votos de felicidade), isto é, presta-se a várias das acepções que Rocha Pombo distingue tão cuidadosamente. Frente a esta impossibilidade de fazer coincidir as franjas semânticas das diversas línguas, creio que o mais indicado é traduzir o Wunsch de Freud por “desejo”, respeitando o uso consagrado. Mas por isso mesmo cabe-nos tentar resolver o problema ali onde ele se encontra, isto é, no pensamento de Freud e nos seus escritos, e não no dicionário. Pois o que recolhemos da nossa rápida incursão pela Traumdeutung é precisamente que, nas mãos de Freud, esta palavra nada rara na língua — desejo — vai se tornando progressivamente um conceito, isto é, um termo homônimo da palavra usual, mas cujo conteúdo é construído de modo a se afastar consideravelmente do sentido familiar do vocábulo “comum”.

Mas vocês devem estar estranhando um pouco o caminho que tomei para lhes falar do desejo sob a óptica de Freud. Pois ele não afirma a universalidade do desejo sexual? E onde está essa característica, naquilo que lhes disse até agora? Vocês esperavam, talvez, que eu abordasse o desejo incestuoso, os desejos de morte, os desejos edipianos… É verdade que Freud fala, e muito, desses desejos. Mas também é verdade que, em seu pensamento, a noção de desejo não parte dessa esfera de problemas como de um a-priori. De modo que, para ir com calma, podemos começar com essa ideia em essência simples: o desejo visa sua realização ou sua satisfação, e, como no exemplo do sonho, tropeça nessa via com dificuldades de várias ordens. Ora, se assim for, a concretização de um desejo deve trazer ao indivíduo uma sensação de prazer, já que o desejo insatisfeito é vivido como uma tensão interna; a satisfação consiste precisamente em suprimir essa tensão, alcançando o objeto capaz de acalmá-la. Introduzimos desse modo, na questão do desejo, um novo termo: o objeto. Este é, por enquanto, aquilo que aplaca ou satisfaz o desejo; definição bastante vaga, porém, e que podemos tentar refinar. Sabemos que atingir o objeto produz satisfação, e, quando o objeto não pode ser atingido, as consequências podem ser graves, dependendo da intensidade do desejo, do tipo de obstáculo encontrado, da maneira pela qual se cria ou não se cria uma satisfação substitutiva… Vocês já adivinharam: o terreno privilegiado no qual a psicanálise vai situar a problemática do desejo é a chamada “teoria das neuroses”.

Uma das formulações mais precisas que a esse respeito encontramos na obra de Freud é a que abre o capítulo II de um artigo de 1916, “Certos tipos de caráter descobertos pelo trabalho psicanalítico”:

O trabalho psicanalítico nos ofereceu uma proposição: os homens adoecem de neuroses em consequência da recusa. Entende-se aqui a recusa de satisfação para seus desejos libidinais, e é preciso um desvio mais longo para compreender a proposição. Pois para o surgimento da neurose necessita-se um conflito entre os desejos libidinais de uma pessoa e aquela parte de seu ser a que denominamos seu ego, que é a expressão de suas pulsões de auto-conservação e contém seus ideais quanto a seu próprio ser. Tal conflito patógeno só ocorre, assim, quando a libido quer se atirar a caminhos e finalidades superados e condenados de há muito pelo ego, que ele proibiu para todo o sempre, e a libido só faz isso quando lhe foi retirada a possibilidade de uma satisfação ideal conforme ao ego. Com isso, a privação, a recusa de uma satisfação real, torna-se a primeira condição para o surgimento da neurose, embora esteja longe de ser a única.[7]

Isso já soa mais familiar. Encontramos aqui alguns velhos conhecidos: os desejos libidinais (notem o plural), o conflito psíquico, o ego e seus ideais, a divergência entre as finalidades da libido e as exigências tanto do ego quanto da realidade, a noção de Versagung (que costuma ser traduzida como “frustração”, mas que significa fundamentalmente “recusa”), a ideia de que, para que ocorra um efeito psíquico — no caso o surgimento de uma neurose — é necessária uma série de condições que interagem umas com as outras, somando-se ou inibindo-se reciprocamente. Do ponto de vista da teoria do desejo, porém, não parece haver aqui nenhuma novidade: os desejos — aqui libidinais — buscam satisfação, esta lhes é negada por tal ou qual circunstância, e isso conduz à busca de satisfações substitutivas, neste caso os sintomas da neurose. Mas prestemos atenção: esse parágrafo introduz um capítulo intitulado “Os que fracassam ao obter êxito”, e esta é uma das mais curiosas descobertas da psicanálise: a de que existem pessoas que, ao se cumprir um desejo longamente acalentado, reagem da forma mais extravagante — não podem tolerar sua felicidade, ficam em pânico e acabam se privando de gozar a satisfação que imaginavam buscar, agindo de modo a destruir as condições que tornariam possível desfrutar do que obtiveram. Freud estuda longamente, nesse artigo, os casos de Lady Macbeth e de Rebecca West, uma personagem do drama de Ibsen, Rosmersholm. São mulheres que ousaram chegar ao crime para conseguir o que queriam — ser rainha ou casar-se com o ex-patrão — e que, ao atingir seus objetivos, literalmente desmoronam, delatando-se como culpadas e renunciando, portanto, a usufruir daquilo que tanto haviam almejado.

Mas não vejo interesse em reproduzir para vocês a análise que Freud propõe dessas histórias. Shakespeare e Ibsen não são os únicos a poder ilustrar essa singular constelação, e, para lhes dar uma ideia de como o desejo é situado pela psicanálise freudiana, penso que o melhor é apoiar-me numa história de vida, nas atribulações de um indivíduo às voltas com seus desejos e com suas dificuldades. Razões de discrição me impedem aqui de recorrer a exemplos tirados do meu trabalho como psicanalista; a exemplo de Freud, contudo, isso pode ser contornado se recorrermos à literatura. Existe um conto de Eça de Queirós — “José Matias” —[8] no qual o personagem parece ter se inspirado no destino daqueles que “fracassam com o êxito”. Vamos nos permitir tratá-lo como se fosse uma pessoa de carne e osso, no que aliás seremos auxiliados pela precisão e pela finura com que Eça recapitula sua infeliz biografia.

I

Recapitula, porque a cena se passa no enterro de José Matias. O narrador, amigo do falecido, vem prestar-lhe a derradeira homenagem; encontra outro amigo, convida-o a partilhar a carruagem de praça que tomou, e no caminho do cemitério vai contando as peripécias que marcaram a vida do defunto. José Matias morreu pobre e bêbedo, mas fora moço elegante, airoso, herdara terras e rendas da mãe e de um tio visconde. E como foi sua decadência? Mortos os pais, havia ido morar com esse tio, general aposentado; na casa vizinha, vivia a bela Elisa, a sublime e divina Elisa, casada com o conselheiro Matos Miranda, doente e trinta anos mais velho que ela. Ele a avista e concebe um amor “forte, profundo e absoluto”. Durante dez anos, se escrevem e se vêem na casa de uma amiga comum, tia-avó do personagem. Mas isso é tudo; jamais trocaram um beijo sequer, quanto mais… Um dia, morre o conselheiro. E José Matias abala-se para o Porto, para não dar margem a mexericos; só que passam os meses, o luto da viúva termina, e nada do José Matias regressar a Lisboa. Elisa se casa de novo, com Torres Nogueira, homem de vastos e vigorosos bigodes negros. Ela bem que tentara se aproximar do ex-vizinho, mas debalde; este não queria vê-la nem ouvir falar de casamento, de modo que, na flor dos trinta anos, a moça acaba por ceder aos apelos do outro e vem morar com ele na mesma casa de antes. José Matias volta a viver com os olhos postos nela, mas agora sua existência é atormentada pelos ciúmes: começa a jogar e a beber, estonteia a cidade com suas extravagâncias, e observa Elisa a distância, sempre buscando vê-la na janela ou no terraço da casa vizinha. Mais sete anos se passam, e o Torres Nogueira, acometido de moléstia incurável, vem a morrer. Novo luto, e desta vez é Elisa quem se afasta para a quinta de uma cunhada no interior. Ali vem a conhecer outro moço, que a mulher abandonara; amam-se apaixonadamente, ele a instala numa casa em Lisboa e vai morar na outra extremidade da mesma rua. Arruinado pelo jogo e pela vida desregrada, José Matias passa a frequentar uma taverna em frente à casa da amada; de um portal cômodo, observa-a todas as noites, e ela lhe retribui os olhares silenciosos… Mas ele não se satisfaz com isso. Sem se fazer notar, segue durante o dia o amante de Elisa, vigiando-lhe todos os passos, zelando pela fidelidade dele à sua “deusa”! E assim se passam mais três anos, até que, combalido pela fome e pela doença, este que fora outrora um guapo mancebo é encontrado uma madrugada “estirado no ladrilho, todo encolhido no jaquetão delgado, arquejando, com a face coberta de morte, voltada para as varandas de Elisa”.

Estranha história! O narrador, filósofo e comentador de Hegel, autor de um “Ensaio sobre os fenômenos afetivos”, vai salpicando o relato com hipóteses sobre os motivos de tão desarrazoado comportamento. Seu diagnóstico pode ser assim resumido: o moço, que já nos tempos de Coimbra havia chamado a atenção dos colegas por sua “horrenda correção”, seria um caso perdido de hiperespiritualismo, atacado de uma “inflamação violenta e pútrida do espiritualismo”, um “ultra-romântico loucamente alheio às realidades fortes da vida”. Ao saber que José Matias havia se recusado a casar com Elisa, na época da primeira viuvez, bem que tentou “esfuracar o ato com a ponta de uma psicologia que expressamente aguçara”. Em vão: “já de madrugada, estafado, concluí, como se conclui sempre em filosofia, que me encontrava diante de uma causa primária, portanto impenetrável, onde se quebraria, sem vantagem para ele, para mim ou para o mundo, a ponta do meu instrumento!”. Pobre narrador…, diríamos nós, do alto de nossa psicologia moderna; seu instrumento não era dos mais afiados, ignorante que estava das descobertas da psicanálise! Que aguardasse mais trinta anos e lesse “Os que fracassam ao obter êxito”: lá encontraria, preto sobre branco, a teoria que lhe faltava, o instrumento para penetrar nas causas primeiras. Mas acautelemo-nos, pois nos volta à memória a resposta ferina que Freud deu certa vez a seu ex-discípulo Stekel. Este, procurando justificar certas ideias suas que contradiziam a psicanálise, havia dito ao mestre que “um anão nos ombros de um gigante vê mais longe do que este”. Ao que Freud retrucou: “Sim, mas um piolho na cabeça de um astrônomo não enxerga coisa alguma”.

Mesmo assim, não custa experimentar algumas hipóteses, para ver aonde elas nos conduzem. Pois o diagnóstico do narrador não nos esclarece muito: ele se limita a classificar o heroi na categoria dos “ultra-românticos”, ou no máximo a pretender que sofria de uma “inflamação pútrida do espiritualismo”. A metáfora médica não basta como conceito, já que nada diz sobre o que seja tal espiritualismo, nem sob quais condições ele pode se “inflamar”, nem, sobretudo, de que modo a suposta inflamação produz precisamente estes e não outros efeitos sobre o comportamento do rapaz. A bem dizer, o narrador aventa duas outras possibilidades. Falando da felicidade serena com que José Matias suportara a castidade da relação com Elisa durante a vida do primeiro marido, o autor do “Ensaio sobre os fenômenos afetivos” postula que o moço “nascera desvairadamente espiritualista”. Questão de constituição, diríamos hoje em linguagem mais empolada: a força das pulsões desse homem, ou a fraqueza delas, determinou seu destino. É evidente que a constituição assim incriminada não é mais que uma petição de princípio, uma causa ad hoc que faz pensar na virtude dormitiva contida em certos alimentos e que, segundo um autor lembrado por Kant, seria a responsável pelo sono de quem os ingerisse. A outra hipótese é igualmente descartável: descrevendo o caráter suave e manso de José Matias durante os anos em Coimbra, o narrador se admira de que o amigo fosse o único intelectual daquela geração a não rugir com as misérias da Polônia e a permanecer insensível frente à ferida de Garibaldi. Mas não era um sádico, não demonstrava dureza ou egoísmo: “toda a sua inabalável quietação parecia provir de uma imensa superficialidade sentimental”. Parece que estamos aqui diante de uma causalidade suficiente, mas isso não se confirma: a superficialidade sentimental é apenas outro nome da “inabalável quietação”, sem que possamos atribuir à primeira a origem da segunda. Para o psicanalista, ambas são apenas traços de caráter, talvez sintomas — que W. Fairbairn descreveu com o nome de “esquizoidia”, o que, desligado de considerações de outra ordem, tampouco nos faz avançar muito na elucidação do problema.

Considerações de qual ordem? Vocês concordarão em que não é possível proceder como o narrador, e simplesmente catalogar o infeliz personagem como um espécime da classe dos “que fracassam ao obter êxito”. E isso não somente porque a classificação nada explicaria desse destino único, mas principalmente porque não há motivo algum para supor que a viuvez de Elisa tivesse significado para José Matias um “êxito”. Tal ideia recorreria de imediato o bom senso educado pela difusão da psicanálise: eles se amam, o marido morreu, estão dadas as condições para um desenlace (ou enlace) feliz; mas o José Matias pertence à categoria dos que fracassam com o êxito, de modo que, em vez de arranjar uma esposa, arranja uma neurose! Esta é a opinião do narrador, na noite em que conduz à estação o amigo que viaja para o Porto: “um ano de luto, e depois muita felicidade e muitos filhos… é um poema acabado!”. Isso pressupõe que fosse desejo de José Matias desposar Elisa, de onde a espantosa desilusão que se apodera do narrador ao saber que ela vai casar com o tal Torres Nogueira, e, mais ainda, que José Matias é que não quisera o matrimônio. E dê-lhe madrugadas insones…

É que o narrador descura alguns dados de grande importância e que, no entanto, conhece, já que os transmite a nós. Cito-o:

Invejei aquele homem na janela, hirto na sua adoração sublime, com os olhos, e a alma, e todo o seu ser cravados no terraço, na branca mulher calçando as luvas claras […]. E este enlevo, meu amigo, durou dez anos, assim esplêndido, puro, distante e imaterial! […] Não duvide! Algum aperto de mão fugidio e sôfrego, sob os arvoredos de d. Mafalda, foi o limite exaltadamente extremo que a vontade lhes marcou ao desejo. O meu amigo não compreende como se mantiveram assim dois frágeis corpos, durante dez anos, em tão terrível e mórbido renunciamento… Sim, decerto lhes faltou, para se perderem, uma hora de segurança ou uma portinha no muro. […] Mas, na castidade deste amor, entrou muita nobreza moral e muita finura de sentimento. O amor espiritualiza o homem — e materializa a mulher. Essa espiritualização era fácil ao José Matias, que (sem nós desconfiarmos) nascera desvairadamente espiritualista, mas a humana Elisa encontrou também um gozo delicado nessa ideal adoração de monge, que nem ousa roçar, com os dedos trêmulos e embrulhados no rosário, a túnica da Virgem sublimada. Ele, sim, gozou neste amor transcendentemente desmaterializado um encanto sobre-humano. E durante dez anos […] caminhou, vivo e deslumbrado, dentro do seu sonho radiante, sonho em que Elisa habitou realmente dentro da sua alma, numa fusão tão absoluta que se tornou consubstancial com o seu ser! Acreditará o meu amigo que ele abandonou o charuto, mesmo passeando solitariamente a cavalo pelos arredores de Lisboa, logo que descobrira na quinta de d. Mafalda que o fumo perturbava Elisa?[9]

Essa passagem é uma espécie de concentrado do conto, e para o psicanalista ela contém algumas informações preciosas. Diga-se, aliás, que não fosse a generosidade de Eça ao descrever com esse grau de minúcia o comportamento de José Matias, nossos esforços estariam fadados ao mesmo destino que o instrumento noturno do narrador. Pois é só com esse tipo de material, com os detalhes aparentemente banais da vida, com as referências casuais a eventos, lembranças e fantasias passadas ou presentes — é só com esse tipo de material que o psicanalista pode contar, para apreender algo do funcionamento psíquico de seus pacientes (e, é claro, de si mesmo). O que o narrador conta ao amigo enquanto acompanham o enterro equivale ao que chamamos de “associações livres”: são lampejos em meio a um relato mais ou menos ordenado, com suas idas e vindas e comentários paralelos. Mas, dirão vocês, o José Matias não profere uma única palavra durante a história inteira! Como é possível analisar um defunto, e ainda por cima mudo? Convenhamos que não é tarefa simples, mas invoco duas observações em favor do meu exótico procedimento. Primeiramente, este exercício de interpretação não é dirigido ao interessado, mas a vocês, e não tenta tornar consciente o inconsciente do falecido com vistas a alguma mudança que poderia ocorrer nele, ao se apropriar dessa parte de sua história que o determina à sua revelia; visa apenas ilustrar como se pode compreender o desejo numa perspectiva psicanalítica, apanhado como está nas malhas do discurso, dos sintomas e das fantasias. Em segundo lugar, o narrador conta a história de José Matias por assim dizer de dentro, descrevendo o que o personagem faz e sente como se estivesse em sua própria pele. E é graças a essa profusão de detalhes, no seu recorte e nas configurações que eles desenham ao se superpor uns aos outros que se podem perceber certas constantes, certos vetores que transportam significações, e desse modo formular algumas hipóteses que nos permitam compreender a quais exigências internas obedece o funcionamento psíquico do indivíduo que assim procede, sente e pensa. Se quiserem ser clementes, considerem que estamos numa situação semelhante à de uma supervisão: aqui também há uma narrativa feita por alguém que não é o paciente, e, do que lhe é comunicado, o supervisor infere certas possibilidades suscetíveis de descrever com alguma coerência a que condições está sujeito o funcionamento psíquico de um terceiro. A supervisão decerto não se limita a isso, mas tal não é o nosso tema. Deixemos assim os paralelos, sempre curtos, e reconheçamos francamente que aqui nos entregamos a um exercício de psicanálise “aplicada”, horror dos horrores!

Mas não é preciso corar. Nosso objetivo é simplesmente brincar com o método psicanalítico, abstraindo dele a componente que vem para o primeiro plano num tratamento real — a análise da transferência —, mas conservando seus princípios, e sobretudo seu modo peculiar de trabalhar com os elementos de um relato. Pois, se não estamos no consultório, não é grave deixar de lado um aspecto do método que, de qualquer modo, só poderia ser utilizado dentro dele… Essas justificativas me parecem oportunas, porque não é raro ouvirmos que “a psicanálise só pode ser praticada no enquadramento analítico”. Isso é verdadeiro se estivermos falando de um tratamento, e ainda assim o que seja precisamente esse enquadramento é tema de muita discussão. Mas mesmo na obra de Freud encontramos textos fundamentais para a compreensão do que é a psicanálise, e que não se referem diretamente à famosa “clínica”, embora se apoiem constantemente nos “resultados do trabalho analítico”. Basta lembrar A interpretação dos sonhos, Totem e tabu, “Uma neurose demoníaca no século XVII”, “Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci” e dezenas de outros textos, sem esquecer o artigo sobre os tipos de caráter do qual mencionei algumas linhas. De sorte que, se não nos propomos a obter resultados terapêuticos que de todo modo seriam inúteis para o falecido, nem é nosso alvo sondar os complexos de Eça de Queirós, mas, se queremos apenas utilizar os conceitos da teoria psicanalítica para elucidar a dinâmica de um indivíduo singular, podemos deixar os puristas esbravejar sozinhos e nos dedicar sem culpas ao nosso jogo de armar.

II

Eu dizia que a passagem citada acima contém para o psicanalista algumas indicações preciosas, e que o narrador descurara um dado importantíssimo ao supor que fosse o desejo de José Matias casar-se com Elisa. Na verdade, ao formular sua hipótese o narrador despreza quase tudo o que nos diz nesse trecho, e por esse motivo podemos considerá-la totalmente equivocada, mesmo antes de saber que o moço vai recusar a mão da bela viúva. Pois ele nos fala de “enlevo” do encanto sobre-humano que José Matias gozou “nesse amor transcendentemente desmaterializado”. Será esta uma ilusão do narrador? Não: em outras passagens do conto, o estado de José Matias durante os dez primeiros anos é qualificado de “felicidade serena”, cuja unidade perfeita é comparável à de um “cristal que por todos os lados rebrilha”. De modo que as considerações sobre os “frágeis corpos” e sobre o “terrível e mórbido renunciamento” são perfeitamente descabidas, podendo ser atribuídas sem medo à fantasia do narrador (à sua contratransferência?!). O mesmo vale para a teoria de que “faltou-lhes decerto uma hora de segurança ou uma portinha no muro para se perderem”. Tampouco se sustenta a oposição entre vontade e desejo, que supõe ser o desejo o de união carnal, e a vontade uma faculdade de deliberação que oporia um freio a tal desejo, tido por condenável ou por inconveniente. Nem o ego de José Matias lhe impõe considerações extraídas do “princípio de realidade”, nem seu superego veta a satisfaço libidinal que estaria supostamente ávido por obter. Ao contrário, tudo indica que o desejo de José Matias — qualquer que fosse — permaneceu absolutamente gratificado ao longo destes dez anos, que ele viveu em estado de graça precisamente porque as circunstâncias reais em nada lhe foram desfavoráveis, sendo mesmo correto considerá-las “conformes ao ego”, para usar a expressão de Freud.

Mas isso só nos coloca mais problemas. Pois que desejo é esse, que se satisfaz de maneira tão esdrúxula? Podemos suspeitar que se trata de um desejo inconsciente, embora obviamente nada disso seja explicitado na narrativa. É aqui que se mostram preciosas as indicações que o narrador deixa escapar na passagem que mencionei. Em primeiro lugar, o heroi escancara as vidraças da janela e se entrega, absorto, à adoração sublime de uma branca mulher calçando as luvas claras, adoração comparada à de um monge que não ousa tocar a Virgem nem mesmo com os dedos embrulhados no rosário. A segunda indicação importante está no fim do trecho, quando nos é dito que José Matias caminhou por dez anos “dentro do seu sonho radiante, sonho em que Elisa habitou realmente dentro da sua alma, numa fusão tão absoluta que se tornou consubstancial com o seu ser”. Maneira de dizer que o heroi incorporou o objeto do seu amor, colocando-o para dentro de si e o tornando “consubstancial com o seu ser”. A incorporação é um mecanismo que a psicanálise situa nas fases mais arcaicas da vida psíquica, na fase ou na forma de se relacionar com o objeto qualificada como “oral”. E essa ideia soará menos arbitrária se nos recordarmos que, em consequência dessa fusão, José Matias larga o charuto, sob a racionalização de que o fumo perturbava Elisa. Pois, se estava longe dela, para que abster-se de tabaco? É que justamente não estava longe dela; havia incorporado ou introjetado sua imagem, e assim não apenas ela estava ali, no cavalo, com ele ou dentro dele, mas ainda se tornava desnecessário o recurso a outro objeto oral para efetuar a introjeção: de onde a renúncia sem problemas ao dito charuto.

Mas, durante estes dez anos, José Matias não permaneceu inativo. O narrador nos informa de que “criou modos novos, estranhos, derivando da alucinação”. Por exemplo, passa a cear sempre no Café Central, com a mesa profusamente iluminada e juncada de flores; redecora seu quarto, mandando forrá-lo de seda clara e retirar umas gravuras clássicas de “sátiros ousados e ninfas rendidas”. Instala para Elisa, que jamais ia à ópera, um camarote em que figura com destaque uma poltrona branca de cetim. E por aí vai, gastando a rodo, desbaratando com o amor de uma mulher “a quem nunca dera uma flor” a quantia polpuda de sessenta contos de réis. De modo que esse homem, tão comedido na época dos seus estudos, vai passando por uma série de modificações no seu modo de agir, modificações que o narrador relaciona ao sonho da “presença real da divina Elisa no seu ser”. Notem que tais modificações não são aleatórias: parece necessário que haja sempre muita luz, muita claridade, em situações tão diversas quanto as da “branca mulher calçando luvas claras”, o camarote, o quarto e a mesa da ceia. A retirada das gravuras indica que para ele se tornara repulsiva até mesmo a representação convencional do sexo, banalizada nas imagens de faunos e ninfas. Podemos assim supor com razoável probabilidade que não há só castidade e espiritualismo no quadro psíquico do personagem, mas um conflito que conduz a uma inibição da sexualidade genital, e que essa inibição vai se agravando com o correr dos anos. Também parece razoável sugerir que tal inibição poupa precisamente o ato de ver, e mesmo que o reforça, como se a intensidade sexual refluísse toda ou quase toda para uma configuração em que prevalece a pulsão visual. E neste caso poderíamos deixar de nos surpreender com a modalidade de realização de desejo que José Matias repete incansavelmente durante dez anos, a contemplação à distância de uma mulher que pertence a outro homem, e contemplação que se torna possível, na forma específica que assume (a “adoração hirta”), graças a uma fusão, ou, como diríamos, a uma introjeção desse objeto, que, no entanto, não atinge as proporções de uma identificação completa: José Matias não se torna “feminino” por causa dela.

Não estamos, certamente, diante de um comportamento que possa ser qualificado de doentio, mas também não é o que seria esperável de um adulto jovem. Digamos que tal constelação parece refletir uma infantilização do personagem, uma regressão a modos de funcionamento mais precoces. Mas, para sustentar essa hipótese, seria necessário sabermos algo da infância dele, ou pelo menos construir uma ideia plausível acerca das vivências ou dos processos que teriam canalizado sua libido para esses “caminhos” e esses “fins”. Aqui, Eça foi cruel com o psicanalista: há muito poucos indícios para nos orientar nessa direção. Tentemos, mesmo assim, agrupá-los e ver o que é possível extrair deles.

Dos pais de José Matias sabe-se apenas que morreram quando estudava em Coimbra, primeiro o pai, depois a mãe, “delicada e linda senhora” que lhe deixa de herança 50 contos. Não se fala de irmãos, e parece certo que não existiram, já que a mãe lhe deixa o que deve ter sido toda a fortuna do pai. Tampouco soa como ironia do narrador a caracterização da mãe como “linda e delicada” o que é útil, posto que Elisa será descrita como belíssima, como a sublime beleza romântica da Lisboa de então: “alta, esbelta, ondulante, cabelos negros, lustrosos e ricos, uma carnação de camélia muito fresca, olhos negros, líquidos…”. Até o filósofo, laborioso anotador de Hegel, lhe rimou um soneto da primeira vez que a avistou! Além disso, o termo delicado é usado pelo narrador para adjetivar o “gozo delicado” da moça com a adoração monástica que lhe votava José Matias. Se somarmos a isso a referência à Virgem, mãe de Deus, tais indícios apontam no sentido de que algo desta mãe é reencontrado, após a morte dela, no aspecto físico e no temperamento de Elisa: eis aí algo que, se puder ser apoiado por outros indícios, nos daria uma pista sobre a relação infantil do heroi com a sua mãe.

Do pai, Albuquerque, só sabemos o nome; mas há diversas informações sobre o tio, o visconde de Garmilde, general “sempre de bigodes terrificamente encerados, as calças flor de alecrim desesperadamente esticadas pelas presilhas sobre as botas coruscantes, o chicote debaixo do braço com a ponta a tremer, ávida de vergastar o mundo”. Coisas do aprumo militar, dirão vocês; mas não é curioso que José Matias seja descrito pelo narrador como uma versão atenuada do tio Garmilde, nos detalhes do vestir e da personalidade, como se esse tio fosse um forte modelo identificatório? Desde a primeira página, o traço mais saliente do rapaz é “sua elegância sóbria e fina”: “nunca uma poeira estouvada nos sapatos”, “nunca um pêlo rebelde do cabelo ou do bigode fugido daquele rígido alinho que tanto nos desolava”. Matias é um destro cavaleiro, o tio é general da cavalaria (o chicote); e, num outro momento do conto, o heroi sai a cavalo (já sabemos que passeia assim pelos arredores de Lisboa), desta vez com um “imenso chicote”, conduzindo uma caravana de prostitutas para saudar o nascer do sol. Para o psicanalista, esses detalhes sugerem duas ideias: alguma identificação do menino com o tio, e um temperamento rígido, beirando o excesso, José Matias nunca se altera, não se comove com a Polônia nem com Garibaldi (símbolo da luta contra a opressão e a autoridade), é suave, cordial e mansamente risonho. Não é escandaloso ser assim: mas, somados ao apuro exagerado no vestir, esses atributos sugerem um caráter com traços obsessivos, de onde a hipótese de que tal caráter tenha algo a ver com a repressão de intensos impulsos agressivos de origem anal. O quê, dirão vocês, isto é demais! Podem sorrir, se quiserem; a correlação entre o caráter obsessivo e o erotismo anal foi estabelecida por Freud em 1908, e vem sendo regularmente comprovada pela psicanálise há oitenta anos. A ideia é simples: existem no ser humano tendências ligadas à pulsão agressiva e à dominação; o protótipo do domínio sobre um objeto é o controle que cada um de nós aprendeu a exercer sobre seu intestino. A formação reativa consiste na inversão dessas tendências no nível manifesto, para melhor desembaraçar-se delas, que, no entanto, permanecem ativas no inconsciente; assim, o asseio, a meticulosidade e uma relação complicada com o dinheiro — que pode ser mais tingida de avareza ou de prodigalidade, o importante sendo o caráter compulsivo desses traços — correspondem a tendências e fantasias de conteúdo oposto, frente às quais a consciência manifesta extrema repugnância. A intensidade das defesas é assim proporcional à intensidade dos fatores inconscientes que elas precisam bloquear. A agressividade reprimida poderia ser, por essa peculiar lógica das compensações, a verdadeira fonte daquela “superficialidade sentimental” a que o narrador atribuía os hábitos exageradamente comedidos, e a serenidade beirando a indiferença, que tanto chamavam a atenção dos seus colegas em Coimbra. Mas tal conflito, se existir, não poderia deixar de produzir sequelas: e estas vão aparecer na indecisão de que dá mostras José Matias, primeiro na descrição do narrador — “boca indecisa de contemplativo” — e depois na dúvida angustiada à qual sucumbe no Porto, enquanto espera passar o luto de Elisa: “que hei de fazer? que hei de fazer?”, repete ele, incapaz de deliberar quanto ao seu futuro.

Eis aqui, portanto, um homem jovem sobre cuja história pulsional podemos levantar algumas conjeturas convergentes. Filho único de um pai rico e de uma mãe linda e delicada, parece ter sido submetido a uma dose incomum de repressão na época em que as tendências anal-sádicas estavam em maior atividade. Como isso ocorreu é impossível dizer; mas não é absurdo supor que algum conflito intenso se deu nessa época, criando condições para a identificação com o tio militar, talvez como forma de derivar essa agressividade para uma finalidade menos perigosa, mas certamente deixando marcas no caráter da criança e nos sintomas relativamente benignos da época de estudante (final da adolescência). A inibição da agressividade vai de par com uma inibição da virilidade; isso é repetidamente acentuado pelo narrador, através do detalhe pitoresco dos pêlos atribuídos aos personagens masculinos. José Matias é louro e seu bigode é crespo; o tio tem bigodes terrificamente encerados, o conselheiro Matos Miranda suíças grisalhas, o segundo marido de Elisa fartos bigodes negros associados repetidamente à saúde e ao vigor sexual, e o amante do fim ostenta uma bela barba escura num rosto “sólido e branco”. É inegável a ênfase na pilosidade dos machos, e o seu espectro vai justamente dos pêlos louros e moles de José Matias (ele deixa crescer a barba no fim da vida: “barba rala, indecisa, mole, suja…”), passando pelas suíças grisalhas do marido e pelos bigodes encerados do general, rumo à barba escura do amante, para atingir o clímax na grossa bigodeira preta do Torres Nogueira, “que apetecia mais à carne de Elisa do que o buço louro e pensativo de José Matias”. Nessa escala José Matias se encontra indubitavelmente no extremo menos abertamente másculo. Não é fora de propósito, assim, discernir através dos termos empregados pelo narrador uma forte inibição da sexualidade genital. Se não for muito ousado aproximar essa peculiaridade da figura “linda e delicada” da mãe, será lícito concluir que em José Matias podemos vislumbrar uma tendência homossexual inibida quanto ao fim, porém suficientemente intensa para impedir-lhe qualquer contato físico com o sexo oposto. Esta hipótese soará menos esdrúxula se nos lembramos de que, mortos os pais e financeiramente independente, o que faz é ir morar com o velho tio Garmilde (solteiro? viúvo? não sabemos, mas em todo caso sem filhos, já que o rapaz herda dele mais 50 ou 60 contos)… Quase imediatamente, apaixona-se platonicamente pela mulher do vizinho, e vive dez anos em estado de graça, num amor sem dúvida nobre e casto, mas do qual está com certeza excluída qualquer satisfação física.

Ora, dirão vocês: agora é o psicanalista quem argumenta de modo preconceituoso, exigindo do pobre Matias que tivesse tido um caso com a Elisa Miranda! Não é o que se censurava na psicologia rombuda do narrador? Sinto decepcioná-los, mas não é o mesmo. Pois, se o que lhes propus tem alguma possibilidade de corresponder à dinâmica pulsional do personagem, devemos concluir, contrariamente ao narrador, que não é em absoluto casual que ele tenha escolhido como objeto de paixão a bela mulher de um homem idoso, e que durante estes famosos dez anos o tenha respeitado carinhosa e escrupulosamente. Para o narrador, “aquele digno diabético, tão grave, sempre de cachenê de lã escura, com suas suíças grisalhas e seus ponderosos óculos de ouro, não sugeria ideias inquietadoras de marido ardente, cujo ardor, fatalmente e involuntariamente, se partilha e abrasa”. Mas ele interpreta a atitude respeitosa do jovem para com o velho no sentido de um “magnânimo desdém pela presença corporal do Miranda no templo onde habitava sua deusa”; essa interpretação não convence, e não convence por dois motivos. Primeiro, o digno diabético podia não ser um marido ardente, mas nas fantasias de José Matias o que ele faz com Elisa é exatamente o mesmo ato a que se dedica incessantemente, isto é, olhar para ela: “o velhote podia contemplar Elisa desapertando as fitas da saia branca”. Há, portanto, a ideia de uma relação sexual, porém — como seria de esperar — conforme ao modelo do que é para Matias uma relação sexual, aquela mesma que lhe dá tanto prazer: olhar um corpo branco, uma saia branca, uma poltrona branca. Segundo porque, quando morre esse venerável cidadão, a reação do heroi nada tem de magnânimo nem de desdenhoso, sendo comparada ao contrário a “um terremoto de incomparável espanto”. José Matias entra em pânico, seu olhar é descrito como inquieto, ansioso, aterrorizado, e decide incontinenti viajar para o Porto, a pretexto de que era mais “delicado” passar longe da viúva os meses de luto fechado. O pretexto é isso mesmo, um pretexto; estamos diante de uma reação catastrófica, de pavor frente a algo que parece ter sido desencadeado pelo falecimento do marido de Elisa. E o próprio narrador é quem nos diz do que se trata: visitando o amigo na volta do enterro do conselheiro, surpreende-o a mirar fixamente as janelas fechadas da casa onde agora habita uma Elisa livre; e o que Matias vê à sua frente não é mais uma casa, é “a jaula mal segura onde se agita uma leoa”. Esse detalhe me parece ser a chave para compreender toda uma série de aspectos da singular conduta de José Matias.

III

Pois a morte do bom Miranda tem para ele o sentido de um verdadeiro trauma. Tudo muda em sua vida a partir desse instante; após a viagem do Porto, ele já não será o mesmo; nem sombra da “felicidade serena” para mitigar sua agitação. É como se o afastamento do velho reativasse algum obscuro temor infantil, que até então havia podido ser neutralizado ou contido pela presença dele. E a frase do narrador nos permite vislumbrar qual pode ter sido esse temor: na jaula em frente, a leoa que se agita não é outra senão a viúva. O pavor de José Matias, se tomarmos ao pé da letra a imagem da leoa, parece ser que esta o vá devorar, assim como devorou o marido. Metaforicamente, a fome da leoa parece estar associada à sensualidade transbordante da viúva; mas não creio que esta seja a melhor hipótese. Nada, no comportamento anterior da moça, justifica a ideia de que agora fosse saltar sobre o vizinho em busca de satisfação sexual. Penso que a imagem da leoa ganha em ser lida literalmente, e que alude ao risco de ser devorado pela mãe, se consentirmos em ver na figura de Elisa um substituto disfarçado da imago materna.

Existe algum elemento da história que possa vir em apoio dessa hipótese? Partamos da fantasia atribuída pelo narrador a José Matias, segundo a qual “Miranda podia ver Elisa desapertando as fitas da saia branca”. Vimos que isso significa uma versão arcaica da relação sexual, daquilo que ocorre entre um casal na intimidade. A predominância dessa ideia inconsciente em variados contextos da vida e da maneira de amar de José Matias sugere que se trata de uma teoria sexual infantil, da teoria que teria organizado o universo de desejo do menino que o personagem foi: quando um casal está junto, o homem olha para a mulher e esta lhe retribui o olhar. Ver é aqui, se me permitem a expressão, “comer com os olhos”, no sentido figurado, mas também no sentido literal: ver é igual a ter relações, e ter relações é igual a comer. Daí que passa o tempo a “cravar os olhos, e a alma, e o ser todo” na carnadura fresca e nos olhos negros da bela Elisa. Mas a morte do marido produz nele tamanho abalo que somos levados a nos perguntar: quem come quem nesse cenário inconsciente? À primeira vista (!), come quem olha fixamente, e a adoração de Matias por Elisa realiza de modo disfarçado a fantasia de estar com ela à maneira oral, de “pô-la para dentro”, de “comê-la”. Mas atenção: surge a imagem da leoa, e simultaneamente o jovem, presa de um pânico incontrolável, toma o primeiro trem para longe da jaula que mal a segura. Agora é ele quem corre o risco de ser “comido”, e assim se justifica a fantasia que lhe atribuí há pouco: o marido não morreu de pneumonia coisíssima nenhuma, foi é devorado pela leoa insaciável que se oculta atrás das janelas da casa vizinha. Parece ter ocorrido assim uma significativa alteração nesta sinonímia inconsciente ver = comer = ter relações sexuais: de sujeito da cena, Matias passa a se imaginar objeto comível/visível, o que explica por que precisa sair precisamente do raio visual da viúva (= viajar para outra cidade). O que gostaria de examinar agora é a qual origem podemos atribuir essa súbita transformação; eu a veria numa identificação precoce do menino com a mãe. Mas vamos por partes, a fim de verificar se essa ideia é plausível ou se precisamos descartá-la.

Que a forma privilegiada de satisfação pulsional de José Matias é olhar fixamente para uma mulher que não lhe pertence me parece suficientemente demonstrado. O que é novo, se meu argumento estiver correto, é que essa modalidade de satisfação condensa diversos elementos da sua sexualidade infantil. José Matias é filho único de uma “senhora linda e delicada”, que em nada se assemelha a uma leoa; mas isso não constitui obstáculo, já que deduzimos de suas incisivas defesas caracteriais uma forte combinação de tendências agressivas. A imagem da leoa pode ter se formado pela projeção dessa agressividade na mãe, sob um modo predominantemente oral, e isso nos dois aspectos que segundo Freud e mais especialmente segundo Karl Abraham caracterizam as finalidades sexuais orais: sugar e morder. Não parece muito arriscado supor, nesse menino, uma fixação oral intensa e duradoura, se atentarmos para a proliferação de sintomas “orais” que ressaltam do seu comportamento: além de investir quase exclusivamente na mulher “vista”, ele fuma desbragadamente, lê com voracidade, morre de bebedeira, necessita sempre muita luz ao comer, manda retirar gravuras que representam visivelmente sátiros e ninfas se divertindo… O olhar “cravado”, “penetrante”, representa uma condensação das duas finalidades orais: por um lado, equivale à sucção desenfreada, e por outro visa assegurar-se de que essa sucção não matou o objeto, que o seio continua existindo (postado na janela, no caso do adulto voyeurista). Trata-se, portanto, de um ato que simultaneamente satisfaz a pulsão libidinal e alivia a angústia produzida pela modalidade específica dessa satisfação: a de que o objeto esvaziado, maltratado, mordido e despedaçado se volte contra o agressor para persegui-lo de dentro — pois, se o objeto está “fora” e “vivo”, isso significa que não está “dentro” nem “morto”. Mas essa eventualidade pode ocorrer — de onde a necessidade de reiterar seguidamente o mesmo ato e assim dar início, sempre de novo, ao mesmo ciclo. Olhar fixamente significa, portanto, “eu sou a leoa” e “ela é a leoa”, conformemente à ausência de contradição que vigora no inconsciente.

Mas por que “eu sou a leoa” e não, “eu sou o leão”? De onde poderia provir tal fantasia identificatória? Talvez José Matias tenha sido longamente amamentado pela mãe, que nesse caso teria gratificado abundantemente o desejo oral do seu filho, contribuindo para fixá-lo nessa modalidade de satisfação. Ou talvez, ao contrário, a “delicada” senhora não tivesse muito leite, e por esta ou aquela circunstância a criança tenha sofrido frustrações importantes em seus primeiros meses de vida. Em ambos os casos, privação excessiva ou gratificação excessiva, o que é importante é o fator “excessivo”, já que ambas poderiam produzir o mesmo efeito, a saber, uma fixação oral de grande intensidade. Isso deixando de lado, para simplificar, a contribuição da própria criança para essa situação, sob a forma de fantasias que elaborariam essa circunstância real e deixariam bastante longe qualquer conformidade com aquilo que a crônica familiar poderia ter guardado quanto aos acontecimentos daqueles tempos distantes. Não se trata evidentemente de pesquisar documentos de arquivo, mas de tentar construir um modelo cujo funcionamento possa dar conta da singularidade do comportamento observável, através de mecanismos que obedeçam à lógica geral do funcionamento psíquico. Neste sentido, a fixação oral da qual estou fazendo tanto caso representa uma condição de possibilidade para exercer efeitos à distância, suficientemente disfarçados e conformes às exigências de uma personalidade adulta, efeitos que eu discerniria precisamente nos sintomas que enumerei. Tal fixação teria sido acompanhada no registro narcísico, pela introjeção de uma figura materna ameaçadora, com os traços de uma “leoa mal segura na jaula”: como isso é possível? Se pensarmos na agressividade reprimida do menino, que pudemos estabelecer com razoável grau de probabilidade, podemos inferir que essa agressividade não é indiferente à constituição de uma figura materna dessa espécie. Teriam existido, neste caso, fantasias oral-sádicas importantes, centradas talvez na devoração, e que posteriormente, quando a criança aprendeu a distinguir os animais, poderiam ter se concentrado na figura da leoa como seu emblema ou seu significante. Em todo caso, parece que existe uma representação inconsciente apta a ser simbolizada por esse animal. Aterrorizada pela imagem fantasmática de uma mãe devoradora, a criança não poderia nem tomá-la como objeto nem ser para ela um objeto, já que manter com tal representação relações no plano do objeto equivale a ser devorado por ela. Ao invés disso, suponho que José Matias tenha regredido da escolha de objeto à identificação, e se identificado com essa mãe, porém de modo muito peculiar: não se torna sexualmente feminino, não é um homossexual, mas essa homossexualidade permanece latente, encoberta pela modalidade de satisfação pulsional que toma como caminho o olhar fixamente. É como se nele algo se opusesse à identificação completa com a mãe imaginada; deste conflito entre “ser como a mãe” e “ser como o pai” — da solução, portanto, do seu complexo de Édipo — vai resultar uma marcada inibição sexual. Ele nem se afasta das mulheres, nem se aproxima delas, mas mantém um equilíbrio através do olhar fixo, cravado nelas. Essa inibição sexual é correlativa da inibição da agressividade, deixando traços no seu caráter “indeciso” e “contemplativo”, o que quer dizer, ao pé da letra, imóvel (= paralisado entre duas tendências antagônicas, ou entre tendências e defesas simétricas em localização e intensidade) e… que gosta de olhar. A agressividade infantil de origem oral e anal vai ser assim neutralizada por defesas caracteriais que se expressam por “superficialidade sentimental” e “inabalável quietação”, pela ausência da paixão pelas causas que mobilizam a juventude do seu tempo para as lutas contra o opressor, pela “indecisão” e por outros aspectos do seu temperamento que parecem aqui encontrar um ponto de origem comum. Paralelamente, a inibição da sexualidade genital parece provir de uma regressão bastante estável a formas atenuadas da sexualidade pré-genital, que confluiriam para o investimento da visualidade nas modalidades que já conhecemos.

Qual poderia ser o elemento que freou a identificação completa com a mãe e a consequente escolha de um objeto homossexual, isto é, o pai? Aqui, obviamente, estamos no terreno das conjeturas, e o único critério para avaliar sua plausibilidade é a congruência ou não com os elementos de que já dispomos. Se o menino passou por algum conflito do tipo que procurei circunscrever, parece lógico supor que tal conflito não envolveria apenas a figura da mãe, mas também a figura do pai. Esse conflito precisaria responder a certas condições: pois da solução dada a ele resultou algo que impediu a identificação completa com a mãe, isto é, que permitiu ao menino atravessar de algum modo o complexo de castração. Precisaríamos supor um acontecimento ou uma sucessão de acontecimentos capazes de ser “metabolizados” pela fantasia como significando que ser como a mãe é perigoso, mas ser como o pai também é perigoso, embora menos. Isso teria o efeito de bloquear a via regressiva rumo à posição feminina, mas sem ter força suficiente para impelir o menino rumo à identificação com o pai e assim à predominância da masculinidade no plano sexual. Ou seja: algo na posição feminina parece ter sido suficientemente temível para provocar repulsa e favorecer uma identificação parcial com o pai. Que essa identificação masculina existe é indubitável, não só porque o personagem se interessa por Elisa, mas ainda porque, como vimos, copia traços do tio familiar — a elegância, o bigode, a meticulosidade, o interesse pelos cavalos etc. É como se a tendência a se identificar com o pai tivesse sido bloqueada pela tendência passiva a se identificar com a mãe, disso resultando uma espécie de inércia nesse setor e a derivação do modelo identificatório para o tio, provavelmente disponível já na infância.

Tentemos nos representar as etapas dessa evolução. O momento mais precoce a que podemos recuar é o do canibalismo infantil, que teria sido acentuado por uma dose incomum de frustrações orais, quer por experiências de privação, quer por alguma sensação de insuficiência e de angústia vinculada a essa esfera. Em sua forma seguinte, ligada às pulsões anais, essa agressividade teria suscitado conflitos que culminaram na sua inibição mediante o estabelecimento de defesas no nível do caráter, e no retrocesso a uma forma oral de destruição do objeto, valendo-se da ambiguidade inerente à introjeção: o objeto incorporado é simultaneamente destruído e conservado no interior daquele que o destrói. A formação de compromisso que resultou dessas operações — o investimento exclusivo na pulsão de ver — é de ordem tão monolítica, que sugere a concorrência de várias tendências para esse desfecho: às tendências orais e anais que mencionei teriam assim se agregado tendências provenientes da fase fálica. Podemos imaginar esse menino muito curioso por saber a respeito das coisas sexuais, procurando “ver claro” nesses portentosos enigmas, e talvez procurando também ver diretamente os órgãos sexuais de alguma menina ou mulher. Tal interesse sexual direto poderia ter sido coibido por uma ameaça de castração, de acordo com o esquema clássico; ele refluiria assim para uma satisfação “neutra” ou inofensiva, a de ver à distância. Esse aspecto de “distância” parece ter sido importante, já que a “superficialidade sentimental” é outro nome da distância emocional. A ameaça de castração teria assim tido efeitos catastróficos, apresentando talvez o pai como uma figura ameaçadora e com quem a identificação não teria sido possível de modo satisfatório; por outro lado, a tendência à identificação com a mãe teria sido satisfeita pela formação do desejo de “olhar penetrantemente” (= comer com os olhos); em todo caso, esta também não se cumpre completamente. É como se o menino tivesse pensado algo assim: “se ser como minha mãe significa ser castrado/devorado pelo meu pai, então é melhor não ser igual a ela”. Mas o caminho da escolha heterossexual de objeto não pôde ser seguido até o fim, em função da pregnância da imago materna, simultaneamente cobiçada e temida (a leoa aterrorizadora/a senhora “linda e delicada”). De modo que, dilacerado entre essas possibilidades, o menino não pôde decidir-se por nenhuma delas e acabou por reprimir qualquer interesse físico, quer por homens, quer por mulheres. Dessa conturbada história, teriam resultado tanto as inibições afetivas assinaladas pelo narrador quanto a inibição sexual que procurei delimitar.

Tudo isso pertence, como é óbvio, ao reino das hipóteses. Mas não custa verificar se essas hipóteses nos auxiliam a compreender o que se passa na vida desse homem. Suponhamos que sua história pulsional tenha sido mais ou menos parecida com nossa reconstituição, o que se seguiria disso? Nosso José Matias vai para Coimbra, forma-se e não exerce a profissão em que se diplomou. Mortos os pais, sem perspectivas de casamento, financeiramente seguro pela herança que recebeu, talvez tenha se perguntado o que fazer da sua vida. O convite do visconde para ir morar com ele vem a calhar, e, se algum problema se havia colocado quanto à relação com as mulheres, este é instantaneamente resolvido quando divisa a vizinha na janela. Existem aqui dois aspectos: a predisposição de José Matias e as características específicas dessa mulher, que a tornam apta a ser investida como objeto por alguém com essa disposição. Comecemos pela segunda vertente: Elisa é linda como a mãe, e sobretudo já é de outro homem, isto é, satisfaz uma condição fundamental do regime de desejo próprio a José Matias — a de se poder compor com a enorme inibição sexual que o singulariza. Na cena da realidade aparece assim um objeto conforme às especificações do roteiro inconsciente, simultaneamente próximo dos traços mais tranquilizadores da mãe e distante dos seus aspectos ameaçadores, que pode ser vista sem risco de punição pelo pai, exatamente porque é inacessível enquanto estiver casada com outro. José Matias não poderia ter tido mais sorte! O que o narrador interpreta como “magnânimo desdém” pelo marido diabético é na verdade a condição de realização do desejo inconsciente — poder fartar-se de observar uma mulher, mantendo-a na distância exata para ser apetecível sem se tornar perigosa. Mas esse exercício constante do desejo não deixa de ser arriscado: a frequência com que ele é gratificado e a intensidade mesma dessa gratificação fazem ressurgir em surdina ecos dos antigos conflitos edipianos, centrando-os agora no que convém chamar de “retorno do reprimido”. E surgem então os “modos estranhos” em José Matias, sintomas ainda leves que sugerem a reativação gradativa do conflito infantil: são as ceias profusamente iluminadas, a redecoração do quarto, a retirada das gravuras que apresentam demasiado obviamente o que é a satisfação erótica genital, a poltrona branca no camarote da ópera, os gastos desmedidos… Esses atos e práticas não são todos equivalentes entre si. Creio que devemos atribuir importância central ao detalhe da luz e à significação do branco, que retornam insistentemente ao longo do conto todo. Eles parecem ligados a alguma condição do desejo infantil reprimido, associando-se à pregnância do olhar como modo de satisfação pulsional. O fato é que, saciado amplamente o desejo oral, José Matias não precisa mais do charuto e deixa o hábito de fumar. Mas a relação da luz/claridade com seu desejo reaparece num vínculo deslocado: é a ceia, o ato de comer, que passa a incluir/exigir essa condição, num jogo sobredeterminado com a satisfação sexual e com as possibilidades reais oferecidas a um rapaz do seu nível social.

E isso dura dez anos! Dez anos de um “gozo sobre-humano”, de uma adoração de monge… Adoração, observaria o psicanalista matreiro, provém de os-oris, o termo latino para “boca”. E, viajando no dicionário, encontramos logo abaixo a palavra orama, como em cinerama ou panorama, que é um vocábulo grego para a esfera… visual. A adoração é, portanto, a forma em que se condensam os desejos orais e sua realização visual. Tudo isso garantido pela inacessibilidade de Elisa, casada com o bom Matos Miranda; de forma que não é de admirar que o falecimento desse honrado cavalheiro tenha tido para José Matias o efeito de um “terremoto de incomparável espanto”. O narrador está a léguas disso, ele que, voltando do enterro de Miranda, se detém na casa do visconde para levar ao amigo a “força moderadora da filosofia”. Moderadora, sabe-se lá, do suposto desejo do Matias pela viúva! De onde sua perplexidade frente à reação deste último: agitado, aterrorizado, ele não desprega os olhos da janela fechada do vizinho, presa da mais terrível ansiedade. Por quê? Nossa hipótese sugere uma resposta: porque acaba de desaparecer a condição que possibilitava a realização impune do desejo inconsciente. Elisa não é mais, agora, inacessível: é como se a antiga imago da mãe devoradora tornasse a revestir-se de vida e de eficácia. O trauma teria neste caso provocado uma regressão às fantasias orais arcaicas, estas mesmas que, durante o período precedente, haviam podido ser controladas e elaboradas em diferentes conexões, produzindo os traços de caráter e as modalidades de satisfação pulsional que já conhecemos.

O fato é que José Matias passa fora de Lisboa os meses do luto, presa de uma dúvida atroz: “que hei de fazer? que hei de fazer?”. Essa dúvida é acompanhada por um recrudescimento da libido oral: no hotel, o rapaz passa os dias “lendo muito”, bebendo cerveja gelada, fumando até a hora de se vestir para “ir jantar na Foz”. Também se recusa a ver Elisa, que, apaixonada, o assedia com cartas e visitas. Essas atitudes sugerem que está em atividade um violento conflito, que o psicanalista identificaria como de natureza pulsional: a angústia suscitada pelo desejo sexual é tão intensa que desemboca numa espécie de fobia, o objeto de amor tendo se convertido em objeto de temor. Mas aqui se trata de uma fobia larvar, inibida, que não chega a se constituir plenamente: pois não há a aparição de um objeto substitutivo, como o cavalo do pequeno Hans. O que põe fim aos tormentos do heroi é um fato da realidade exterior: Elisa cede aos rogos do senhor Torres Nogueira e acaba por se casar com ele. E o que faz o Matias? Retorna à casa do tio, que entrementes falecera, e recomeça o namoro à distância com aquela mesma moça que, quando a tivera disponível, tanto o assustava!

IV

Mas acabaram-se os dias da “serena felicidade”. Torres Nogueira não é um velho diabético, mas um homem vigoroso, cuja vitalidade sexual se expressa nos vastos “bigodes negros”. E esses bigodes são um espinho na carne do contemplativo Matias, que se consome em ciúmes e em fantasias sobre o que se passa no “leito excelente de Elisa”. É para sacudir a pungência desses tormentos que ele dá início a uma série de extravagâncias, que por um ano vão escandalizar os lisboetas. Uma delas é mencionada com incredulidade pelo narrador: “uma ceia oferecida a trinta ou quarenta mulheres das mais torpes e sujas, apanhadas pelas negras vielas do Bairro Alto e da Mouraria, que depois mandou montar em burros, e gravemente, melancolicamente, posto na frente, sobre um grande cavalo branco, com um imenso chicote, conduziu aos altos da Graça para saudar a aparição do sol!” Esse ato sintomático parece condensar toda uma gama de fantasias, realizadas simultaneamente e de modo disfarçado, mas cuja pressão parece ter chegado a um ponto intolerável, posto que obriga o personagem ao que chamamos de acting out ou passagem ao ato. As prostitutas “torpes e sujas” representam a mulher degradada pela sexualidade e ao que tudo indica são uma materialização da imagem denegrida de Elisa, que agora se empolgava com o seu brutamontes de bigodes negros. Sua nova vida sexual é imaginada, ao que parece, em termos de algo “sujo”, tanto no sentido moral quanto no sentido fecal. Os detalhes da ceia e da “aparição do sol” sugerem que, além dessa significação “atual”, existe uma determinação mais arcaica para essa figura feminina: ela provavelmente lança raízes nas fantasias infantis acerca da mãe erotizada, que Freud estudou em seu artigo “Sobre a degradação mais comum da vida amorosa”. Essa degradação consiste na cisão do objeto sexual em duas partes, uma abertamente sensual, outra que acolhe toda a ternura do sujeito. Trata-se de homens que não podem, por impedimentos internos, realizar suas fantasias sexuais com as mulheres que amam; vão por isso em busca de outras, em geral de condição social inferior, que desejam, porém não amam. Tal parece ser o caso de José Matias no episódio das prostitutas, a quem faz cumprir as indicações do roteiro inconsciente ao qual estão fixadas as especificações do seu desejo; “comer” e “luz”. A famosa ceia significa assim um coito oral que se conclui pela estranha procissão matutina, na qual o rapaz, identificado com o tio militar (o chicote, o cavalo branco, a “gravidade”), as conduz até os altos da Graça. Na sua própria ritualização estilizada, esses gestos testemunham uma característica infantil, e exorcizam aquilo mesmo que simultaneamente realizam.

“Mas todo este alarido não lhe dissipou a dor, e foi então que, nesse inverno, começou a jogar e a beber!”[10] O jogo e a bebida vêm assim cumprir uma função que não escapou ao arguto autor dos “Ensaios sobre os fenômenos afetivos”: são prazeres substitutivos. Mas não são aleatórios, embora não seja óbvio, à primeira vista, o motivo pelo qual um indivíduo que passa os dias “com os olhos e a alma cravados no terraço fatal” precise correr à noite para “jogar freneticamente” e “cear com jorros desesperados de conhaque e de champanha”. É à psicanalista Piera Aulagnier que podemos recorrer aqui, a fim de elucidar a relação entre o jogo, a bebida e a situação psíquica do personagem cuja trajetória estamos acompanhando. Ela observa que o jogo e a droga, de modo geral, proporcionam um tipo de prazer do qual está excluído o corpo sexual do outro. No caso do jogo,

o Eu busca uma situação na qual goza do seu encontro com o acaso, um acaso anônimo e negado. […] O jogador desloca sobre este fragmento minúsculo da realidade que é o pano verde (ou a bola que gira) sua impossibilidade de poder prever qual será seu destino, a resposta que encontrará seu próprio projeto identificatório. Esta paixão por aquilo que se denominam os “jogos de azar” manifesta o quão intolerável para o Eu é aceitar a dúvida, os limites daquilo que se pode conhecer ou prever do seu futuro ou de suas vicissitudes (…). E, quer ele ganhe quer perca, ser-lhe-á necessário recomeçar de novo, para se reassegurar de que pode adivinhar antecipadamente a resposta.[11]

Este é bem o caso de José Matias, para quem a morte de Miranda e a irrupção de Torres Nogueira foram demonstrações brutais de sua impossibilidade de controlar o destino. Uma definição adequada do trauma, a meu ver, não enfatizaria a violência de um dado acontecimento, mas o efeito que ele pode ter sobre uma pessoa. Esse efeito é bem menos função da intensidade intrínseca do evento (se me permitem essa expressão) e muito mais função da maneira como o indivíduo o acolhe em si, num contexto plurideterminado em cujas malhas o evento vai adquirir uma série de significações. A morte do primeiro marido de Elisa e o casamento dela com o segundo são traumáticas para José Matias porque se inscrevem como abalos num dado equilíbrio psíquico, feito de sutis balanceamentos entre fantasias, defesas, angústias, traços de caráter e investimentos objetais. Quando se rompe esse balanceamento, instaura-se a tensão e surgem as tentativas de restaurar o equilíbrio perdido: é isso que significa, em termos simples, o célebre “princípio do prazer”. No caso de José Matias, a brutalidade das soluções a que recorre prova que o conflito que elas devem aplacar é de enorme violência, justificando que falemos, mais que em “tensão” ou em “desprazer”, num verdadeiro pânico interno. E esse pânico sobrevém na medida em que, como indica Aulagnier, o seu “projeto identificatório” se encontra gravemente ameaçado, ou seja, o conjunto de representações pelo qual ele se pensa e se define como “eu”, como si próprio, está em crise. Esta é outra maneira de dizer o que afirmei algumas páginas antes, ao falar da identificação dele com a mãe devoradora/leoa. É como se a solução dada ao conflito identificatório — ser a leoa, ser o leão ou ser a presa — tivesse sido desmanchada pelo trauma da morte do velho, repetida pela morte do tio visconde com quem se identificara. Essas morte parecem representar a concretização de seus desejos de morte frente ao pai, desejos que, por inevitáveis que sejam na constelação edipiana, têm neste caso específico a significação de deixar a mãe agir à solta. Em outros termos, a morte do Miranda e em grau menor a morte do tio só constituem traumas porque intervêm num contexto específico que as significa assim — do mesmo modo que o cristal só se quebra se for atingido, mesmo que de leve, no ponto em que se cruzam suas linhas de cristalização. Frente a tamanha catástrofe psíquica, José Matias busca recompor seu equilíbrio com medidas proporcionais à intensidade do “terremoto” — e é por isso que seus atos agora são mais graves que nos dez primeiros anos. O hábito de jogar é “escolhido” porque adequado para negar a vulnerabilidade que há pouco se impôs com tanta virulência: jogar significa aqui “não sou vítima do acaso, mas senhor dele; nada pode me acontecer”.

E essa fantasia onipotente implica a não-necessidade, justamente, do corpo do outro para obter o prazer sexual. É uma atividade auto-erótica; já notamos que José Matias cultiva o prazer solitário, no sentido de que lhe basta ver Elisa à distância, sem precisar — et pour cause tocá-la. Seguindo a sugestão de Aulagnier, poderíamos dizer que esse prazer nunca é posto à prova, nunca corre o risco de ser desmentido ou intensificado pela realidade da ação do seu objeto, com as características e peculiaridades que esse objeto — a outra pessoa — poderia apresentar. É que o objeto aqui é um objeto interno, projetado sobre um suporte externo (Elisa). A clivagem entre ambos, que é o regime específico do objeto no caso individual de José Matias, faz que ele se imagine como senhor absoluto desse objeto interno, para fugir ao confronto com a possibilidade de privação e de dor inerentes ao contato real com o objeto “externo”. Por isso, o prazer “depende aqui exclusivamente da atividade psíquica do sujeito, unicamente dos seus pensamentos”,[12] isto é, do total controle sobre o objeto, que é simultaneamente total ausência de controle sobre esse mesmo objeto. A componente anal da libido expressa-se aqui sob a forma do “controle onipotente”, e provavelmente é dessa mesma componente que provém a ideia de convidar as prostitutas “sujas e torpes” para a famosa ceia que tanto escandalizou Lisboa.

Pois bem: esse sistema que realiza ao mesmo tempo finalidades eróticas e defensivas funciona para José Matias durante mais sete anos, até que “subitamente desapareceu de todos os antros de vinho e de jogo”. E por quê? Vocês já perceberam: o Torres Nogueira está agonizando! A realidade, mais uma vez, vem impor a este homem um trauma de severas proporções. O segundo marido de Elisa desce à cova, e agora os acontecimentos vão se precipitar. Elisa vai passar o luto no interior, ali conhece o “apontador de Obras Públicas” abandonado pela esposa, e retorna a Lisboa como amante desse homem, “belo moço, sólido, branco, de barba escura, em excelentes condições de quantidade para encher um coração viúvo”. José Matias passa a frequentar uma taverna das proximidades, e ali, à noite, posta-se num portal para a cerimônia do olhar. Mas a esse jogo — que inclui, como sempre, o detalhe da luz, aqui representada pelo cigarro que acende a fim de que Elisa saiba que ele está ali — vai se acrescentar um novo elemento, não menos estranho. Se de noite fica ali, no portal propício, durante o dia segue como uma sombra o apontador, “a mirar, a farejar o homem… depois não o largava, cautelosamente, como um larápio, rastejando de longe no seu rastro”. O narrador interpreta essa curiosa conduta como um requinte de devoção e de espiritualismo: José Matias estaria zelando pela fidelidade do amante, para verificar se ele se mantinha fiel ao corpo da mulher que, sem o saber, dividia com o heroi. O psicanalista, talvez menos preocupado com a fidelidade, veria nesse comportamento uma outra determinação. José Matias transfere para o apontador a mesma obsessão visual em que consiste a realização de seu desejo por Elisa, do que concluímos que esse homem tem para ele o sentido de um objeto sexual idêntico e intercambiável com a mulher. Em outros termos, a homossexualidade latente fica agora mais próxima da consciência, embora, conformemente à inibição geral que caracteriza a sexualidade do personagem, ela não chegue às vias de fato, e mesmo permaneça um pouco aquém daquilo que ele se permite com Elisa: pois não chega a trocar olhares com o amante dela, cuidando-se precisamente para não ser visto. A vergonha diante dessa possibilidade sugere que o grau de repressão dessa homossexualidade é suficiente para bloquear o ato, mas não para o impedir de interessar-se “em ato” pelo homem. E um indício da maneira pela qual ele se protege da eclosão da tendência homossexual nos é proporcionado pelo fato de deixar crescer a barba, identificando-se assim com o amante de Elisa, que ostenta no rosto branco uma bonita barba escura. Notem que essa identificação com aqueles que vivem com Elisa não é nova: no tempo de Matos Miranda, atribuía a este o mesmo prazer visual de que gozava então (“via Elisa desapertando as fitas da saia branca”); no tempo de Torres Nogueira, o vigor sexual deste último fora caricaturado nas extravagâncias de que a ceia com as prostitutas (trinta ou quarenta!) é o exemplo mais notório.

Pois José Matias não pôde nunca decidir-se, se nossas hipóteses estiverem corretas, entre ser como o pai ou ser como a mãe, entre ser sexualmente masculino ou feminino. A cada passo num sentido, corresponde um passo no sentido contrário, resultando desse movimento de vaivém a inibição que o caracteriza e a canalização do desejo para uma formação de compromisso, isto é, ver o objeto, comê-lo com os olhos, sem jamais se aproximar concretamente dele. Quando essa possibilidade se materializa através da morte dos maridos, assistimos a uma agravação do conflito, através do recurso a objetos que se tornam objetos de necessidade (não pode viver sem jogar, nem sem beber). Mas tais objetos têm, como assinala Piera Aulagnier, a característica de comportar um risco de destruição do próprio sujeito, pela doença física ou pela ruína social. Disso depreendemos que são investidos tanto pelas pulsões sexuais quanto pelas pulsões de destruição, que neste caso funcionam paralelamente, na situação a que os psicanalistas chamam de “desintrincação pulsional”. É graças a esse objeto que apresenta a particularidade de corresponder às duas pulsões que se pode operar uma intrincação momentânea, porém frágil e precária, em virtude do estado de conflito que opõe permanentemente Eros a Tanatos.[13] É essa a situação que procurei descrever há pouco, falando da quantidade ponderável de agressividade que se podia inferir das maneiras peculiares pelas quais Matias se relaciona consigo mesmo, com os outros e com o mundo à sua volta. Tudo indica que, em seu caso, a intrincação pulsional deu-se de modo tardio e precário, cedendo às pressões que, em minha hipótese, devem ter se intensificado pouco antes de conhecer Elisa, já que é através da relação com ela que elas são afastadas novamente, e de modo bastante estável para perdurar por dez anos. E o que ocorreu antes de conhecer Elisa? Seus pais morreram. É a esse fato, e à maneira como ele repercutiu na organização psíquica do personagem, que creio ser possível atribuir a sucessão de eventos que vai marcar sua vida dali para a frente. Isso equivale a centrar suas reações num luto impossível frente aos objetos edipianos; para justificar essa ideia, devemos agora estudar brevemente o que significa, na psicanálise freudiana, a ideia do infantil.

V

Toda neurose toma sua forma manifesta no momento em que o complexo de Édipo deveria se dissolver, momento em que o investimento dos Eus paterno e materno não deve desaparecer, mas se modificar por decantação das demandas a eles dirigidas, e pelo desejo de encontrar novos destinatários para aquelas que já não se podem dirigir a eles. A neurose é efetivamente um compromisso entre a recusa de operar esta diferenciação dos destinatários e a preservação da repressão da componente sexual na demanda dirigida aos pais. Repressão que permite ao Eu não mais saber que é dos seus pais que ele esperava um prazer sexual, no próprio instante em que preserva este mesmo desejo graças à fixação que se opera […]. A sintomatologia neurótica eclode quando o Eu investiu o Eu de um outro, porque o acreditava capaz de satisfazer a demanda infantil, o que comprova que ele apenas trocou de destinatário, sem por isso modificar o que esperava em resposta às suas primeiras demandas. Que o amem, que o protejam, como ele queria ser amado e protegido pelos pais, e que juntamente com isso lhe seja proporcionado prazer sexual. Pedido irrealizável, porque o outro não pode ser a mãe e o parceiro sexual, o pai e o amante, o filho e o objeto do gozo. É por isso que o conflito neurótico concerne seletivamente ao registro sexual […], embora seja impossível separar registro narcísico e registro objetal (todo conflito que surge no segundo tem forçosamente consequências no primeiro e vice-versa). (…) É este conflito que torna o gozo aleatório ou impossível. Ocorre com frequência que esta impossibilidade chegue a uma disjunção parcial: uma parte de agressividade se separa do sexual e tentará se realizar, quer por uma conduta agressiva frente ao outro, quer por uma conduta auto-agressiva. Mas é preciso acrescentar que esta agressão é sempre induzida pela recusa oposta pelo outro ao prazer que se esperava: não posso ser simultaneamente mãe e amante, pai e namorado, filho ou filha e parceiro sexual (…). Na neurose, a pulsão de morte só pode triunfar porque o Eu recusa o sofrimento que resultaria da ausência de um prazer ao qual ele não quer renunciar, enquanto justamente a realização de um tal prazer tropeçaria na culpa de ter transgredido a proibição do incesto.[14]

Esse texto denso e um pouco longo resume, em termos teóricos, o percurso que acabamos de fazer. A conduta de José Matias, se ao longo do conto vai se tornando cada vez mais estranha do ponto de vista do bom senso, apresenta do ponto de vista da psicanálise uma lógica implacável. Os atos que pratica perdem sua esquisitice se os considerarmos determinados pelo agravamento progressivo de um conflito fundamental, conflito que provavelmente data da sua infância e que pudera ser manejado de modo relativamente eficaz até um dado momento da história do personagem. A partir daí, o que observamos é o retorno do reprimido e tentativas cada vez mais desesperadas de fazer frente a esse ataque interno, tentativas que por sua vez contêm porções cada vez maiores daquilo mesmo que eles visam impedir que aconteça. É a definição mesma do sintoma segundo a psicanálise que vemos ilustrada pelo conto de Eça de Queirós. Se Freud tem razão no que escreve no trecho que abre “Os que fracassam ao obter êxito”, o conflito neurótico surge quando uma satisfação libidinal é negada pela realidade; a libido busca então caminhos reprovados pelo ego, disso resultando a formação dos sintomas (ainda que, lembremo-nos, essa condição não seja a única). A hipótese que parece mais plausível aqui é que a “satisfação recusada pela realidade” seja representada pela morte do primeiro marido, que fez a libido do personagem refluir para modos de satisfação “reprovados pelo ego” e desencadeou a fase do retorno do reprimido. Mas devemos pressupor que esse trauma não é o primeiro, que de certo modo ele repete um outro, se consentirmos em ver na figura do conselheiro um substituto paterno. Penso que a morte dos seus pais representou para José Matias um trauma ou um primeiro momento de trauma, se quisermos concordar com a ideia freudiana de que são necessários dois acontecimentos separados no tempo para constituir um trauma (o segundo reagindo sobre o primeiro e lhe conferindo a significação traumatizante). Ora, é aqui que o texto de Aulagnier nos parece luminoso. Tudo indica que as “demandas dirigidas aos pais” por José Matias permaneceram imunes à “decantação” que teria podido modificá-las e tornar possível a escolha de um objeto sexual que não fosse a cópia-xerox desses mesmos pais. A paixão dele por Elisa tem todas as características de um amor infantil, ou melhor, de um amor de adulto que regrediu a posições infantis e busca preservá-las com os meios à disposição de um adulto. O conflito neurótico não “eclode” com a morte do primeiro marido, mas muito antes, antes ainda da morte dos pais, em algum momento da infância que será reativado pela morte dos pais, para ser manejado de modo satisfatório nesta ocasião e só vir a tomar forma visível quando do falecimento do conselheiro Miranda. A seleção da vizinha como objeto de paixão, com efeito, é já sinal de que algo não vai bem com a vida sexual desse rapaz, embora essa dificuldade só ganhe relevo à luz do que acontece depois. Em outras palavras, é uma primeira solução para o conflito infantil reativado, notável, aliás, pela eficácia, mas que já pressupõe em certa medida o retorno do reprimido, caso contrário, não haveria por que buscar solução para um conflito inexistente ou adormecido. Como diz a psicanalista francesa, esse conflito concerne tanto ao registro objetal quanto ao registro narcísico, isto é, implica também uma problemática no plano das identificações. Como a identidade é também uma identidade sexuada, as peripécias do que denominei “homossexualidade latente” de José Matias merecem reter toda a nossa atenção, como retiveram sem dúvida a do narrador: este não deixa de observar que no tempo de Torres Nogueira o moço se consumira de ciúmes, ciúmes de Elisa porque o outro “lhe ensinara o que é um homem” — ou por que ela é quem podia desfrutar da virilidade morena do antigo “pegador de touros”?

O importante é que, num caso como no outro, as “primeiras demandas” parecem ter se imposto com extrema intensidade, de modo que as diferentes etapas da biografia do jovem são na verdade diferentes figuras da repetição. E aqui cabe um esclarecimento quanto à fórmula um pouco esquemática de Aulagnier, quando ela afirma que “a agressão é sempre induzida pela recusa do outro ao prazer que se esperava”. Na história de José Matias, não parece ter existido esse elemento, a menos que consideremos a morte dos dois maridos como sinal dessa recusa. Isso combinaria bem com a ideia da homossexualidade latente, mas a meu ver seria parcial; pois à recusa do outro devemos somar, como explica Freud na sequência do artigo sobre os que fracassam ao triunfar, a “recusa interna”, isto é, uma privação imposta pelo ego que torna impossível realizar o luto do objeto perdido e, portanto, igualmente impossível o gozo daquilo que aparece na cena da realidade. É o que acontece com José Matias. E, para compreender bem este ponto, convém tomar as coisas por outro ângulo, deixando-o agora de lado e solicitando à teoria psicanalítica que nos esclareça algumas das relações que, segundo ela, unem o desejo ao objeto, à fantasia, à lembrança e às defesas. Pois toda a construção que lhes apresentei repousa sobre o pressuposto de que o desejo infantil, embora reprimido ou disfarçado, exerce influência à distância sobre os caminhos da libido na vida adulta, ainda que essa influência não seja absoluta. É esse pressuposto que se trata de fundamentar, para concluir nosso trajeto de hoje.

Um ponto de partida para esta breve excursão pela metapsicologia é a ideia de que o desejo não é um dado original da natureza humana, mas se forma como resultado de uma série de processos. Uma vez formado, contudo, ele obedece a certo modelo que possui força coercitiva, um protótipo eficiente, se assim podemos designá-lo; ou talvez seja melhor dizer que ele constitui esse modelo, ao qual deverão se conformar as experiências posteriores para poderem ter o sentido de “realização de desejo”. A descrição do processo pelo qual se forma esse protótipo encontra-se numa das mais famosas passagens de A interpretação dos sonhos. Tendo afirmado que o aparelho psíquico não pode se manter por muito tempo livre das excitações impostas pelas grandes necessidades do corpo, Freud prossegue dizendo que a criança faminta chorará ou esperneará, até que uma modificação ocorra graças à ajuda de uma pessoa adulta.

A criança experiencia então a vivência de satisfação, que suprime a excitação interna. Uma parte essencial desta vivência é o surgimento de certa percepção (a comida, no exemplo), cuja imagem mnêmica fica daqui por diante associada com o traço mnêmico da excitação da necessidade (Gedachtnisspur der Bedurfniserregund). Ao surgir numa próxima vez esta necessidade, ocorrerá, graças à ligação estabelecida, um movimento psíquico que quer reinvestir a imagem mnêmica daquela percepção e provocar a própria percepção, isto é, reproduzir a situação da primeira satisfação. Tal movimento é o que denominamos desejo; a reaparição da percepção é a realização de desejo, e o reinvestimento total da percepção a partir da excitação da necessidade o caminho mais curto para a realização de desejo. Nada nos impede assim de assumir um estado primitivo do aparelho psíquico, no qual este caminho é tomado de modo tal que desejar se completa num alucinar. Esta primeira atividade psíquica visa assim a uma identidade de percepção, a saber, a repetição daquela percepção que está vinculada à satisfação da necessidade.[15]

Esta passagem é capital para compreendermos o que é o desejo na óptica da psicanálise freudiana. Em primeiro lugar, ele é um movimento psíquico que não visa um objeto exterior — este é visado pela necessidade e depois pela pulsão —, mas sim algo que está no interior da psique: a imagem mnêmica da percepção que acompanhou a satisfação da necessidade. O que o desejo visa é “reinvestir a imagem mnêmica daquela percepção e provocar a própria percepção”. É evidente que a percepção percebeu algo que ocorreu fora do sujeito (a chegada da comida, no exemplo), mas ela foi acompanhada por uma sensação interna que deixa um traço; a imagem mnêmica dessa percepção e da sensação concomitante estão na memória do sujeito. Isso porque a passagem da excitação deixa um traço, que vai ser associado com a imagem mnêmica da percepção satisfatória. O desejo depende, portanto, de uma associação que precede e condiciona sua existência, que lhe mostra um caminho, e que é uma associação entre traços e imagens, entre representações psíquicas. Ele visa por isso reproduzir um estado de satisfação que é sempre anterior, e aquilo que surge na cena da realidade só cumpre essa condição (de objeto do desejo) se corresponder de algum modo à imagem mnêmica cuja reprodução é procurada. O objeto externo tem então de se conformar com essa imagem para poder ser investido, para ganhar significação psíquica; mas isso implica que nenhum objeto externo satisfará jamais plenamente a condição mencionada, posto que aquela percepção, causa da imagem mnêmica que polariza o desejo, não pode ser repetida: é única e pertence ao passado. Se assim for, a segunda vivência de satisfação já proporciona uma satisfação que devemos qualificar como substitutiva. Além disso, o desejo é uma atividade psíquica, e como tal não permanece imune às regras que governam tal atividade: o modelo quase desencarnado que Freud nos apresenta aqui vai se complicar consideravelmente, à medida que forem sendo por ele introduzidas outras dimensões do funcionamento mental.

Não é minha intenção estudar, a esta altura, a evolução desse modelo ao longo da vida do homo psychanalyticus, nem ao longo da obra de Freud. Basta dizer que mesmo em A interpretação dos sonhos essa noção do desejo vai ser ampliada e detalhada, porém sempre remetendo ao que é o seu núcleo, a ideia do desejo infantil. A pregnância do passado atua sobre as nossas experiências, fazendo que elas se apóiem umas nas outras e introduzam ao mesmo tempo novas figuras do desejável. Estas mantêm com as primeiras uma relação que poderíamos dizer determinada por um normógrafo, aquele instrumento que permite desenhar em escala maior ou menor uma figura já dada. Essa comparação não é exata, porém: pois nessas “novas figuras do desejável” entra sempre um elemento novo, algo que provém da experiência, e que de uma maneira ou de outra entra em ressonância com os protótipos infantis. Estes exercem perenemente uma atração sobre o novo, mas não exigem a conformidade completa: digamos que os objetos do desejo, e em especial do desejo sexual, são balizados por esses protótipos (que Freud chamava de Vorbilde), inclusive no grau de disparidade tolerável entre o novo objeto e o modelo que nele se materializa aproximativamente.

Por que aproximativamente? Porque a evolução psíquica, embora apresente certas regularidades, está longe de ser linear. O que caracteriza a mecânica da alma a que Freud denominou metapsicologia é a pluralidade de dimensões, que podem se compor ou se inibir reciprocamente, como vimos no início desta conferência, ao falarmos do sonho e dos desejos que nele se realizam. Realizam-se na dimensão da fantasia, ao abrigo dos obstáculos externos — representados pela regulação social da agressividade e pela lei do incesto —, mas não ao abrigo dos obstáculos internos, que caem sob a égide do desprazer. A lei do desprazer faz que um dado processo psíquico seja interrompido por um processo de sentido contrário, sempre que sua consecução ameace produzir desprazer. Isso se paga com uma série de inibições, e a depender do grau e da intensidade dessas inibições, o funcionamento mental pode ficar severamente comprometido. A passagem de Freud que mencionei há pouco sugere que o núcleo das fantasias de desejo são acontecimentos reais que sucedem na vida da criança; mas, se dermos crédito à ideia de um desenvolvimento não-linear, não há motivo para supor que esses acontecimentos produzam efeitos “diretos”, seja qual for a significação que outorgamos ao termo diretos. Devemos contar com a predisposição constituída pelo sistema em cuja periferia vão suceder esses acontecimentos: nesse sistema, estão registradas certas constantes próprias a cada indivíduo, em função do que já viveu, do que o faz sentir angústia, do que lhe proporcionou prazer. Um acontecimento é algo que rompe, momentaneamente, o equilíbrio desse sistema, que deve se reorganizar para incluí-lo em si. A essa reorganização podemos chamar “elaboração”, inscrição numa rede associativa que decompõe e recompõe incessantemente os diferentes aspectos do acontecimento. Desse ponto de vista, todo acontecimento é um pequeno abalo, um “momento de provação” que vai se inscrever numa sequência temporal de experiência porque solicita a libido e deixa uma impressão, um traço mnêmico, como diz Freud. É esse traço que vai ser investido por movimentos pulsionais, vai ser ligado a outros traços, vai entrar em configurações múltiplas e em incessante movimento. Disso resulta a formação de algo como um grão psíquico, a partir do qual vão se formar as “fantasias de desejo”. A fantasia aparece assim como uma espécie de esquema fundamental, cujos traços é possível inferir dos atos que visam, por caminhos tortuosos (tortuosos por causa das defesas internas), encontrar um objeto que corresponde de uma forma ou de outra às determinações que o constituem. Como as próprias fantasias estão por outro lado submetidas ao processo de combinação e recombinação engendrado pelo funcionamento do aparelho psíquico e pela história singular de cada um de nós, não é de admirar que entre os atos visíveis, os sintomas que os sustentam e os modelos inconscientes que estão na base de uns e de outros a distância possa ser por vezes imensa; mas ao menos em tese seria possível, pela análise e pela via regrediente dos pressupostos e dos pressupostos dos pressupostos, encontrar algo próximo desse grão fundamental, desse esquema que organiza de maneira incrivelmente complicada — mas não aleatória — o modo pelo qual nós amamos e odiamos. Parafraseando Einstein, para quem “Deus é sutil, mas não maldoso”, poderíamos dizer que na psicanálise o que vemos pode parecer absurdo, mas jamais o é. Na prática do tratamento analítico, é através da transferência e da repetição dos padrões infantis favorecidas pela neutralidade do analista e pelas condições específicas do “enquadramento” que podemos ter algum acesso a esses modelos, protótipos ou esquemas, que nos governam à nossa revelia e que, na história de cada qual, podem ter contribuído para engendrar um sofrimento excessivo e desnecessário.

A fantasia inconsciente é assim o cenário em que se repete e se realiza o desejo eternamente vivo da criança que cada um de nós foi, e que o sonho nos faz reencontrar a cada noite, como diz Freud, “viva com todos os seus impulsos”. Por esse motivo, a representação fantasmática não é nem pode ser um mero decalque do percebido, mas uma incitação a agir, a buscar na cena da realidade exterior meios e modos de alcançar um objeto que se assemelha ao desejado. Por esse motivo, também, Freud pode afirmar que a reprodução das impressões da infância é em si mesma uma realização de desejo. Disso decorre que o infantil na psicanálise não é somente o resíduo do que ocorreu quando éramos pequenos, nem apenas algo anacrônico, imaturo, que deveria ser abolido pelo acesso à “normalidade adulta”. O que observamos, ao contrário, é que demasiado frequentemente o adulto odeia essa criança que traz dentro de si, procura massacrá-la com exigências estapafúrdias, e no fundo a teme porque sabe que ela continua a desejar o que sempre desejou. O infantil corresponde à influência exercida sobre a vida pulsional e fantasmática pelos traços inapagáveis das impressões precoces. Essa influência, imune ao processo secundário e, portanto, à ação devastadora do tempo, origina-se da captação das pulsões em formas pradigmáticas, exemplares, que determinam atrações e repulsas. Tais formas, no dizer de Maurice Dayan, “constituíram-se a partir de experiências contingentes, mas se emanciparam dessas experiências e se tornaram matrizes de novas experiências; e os efeitos da repressão, que as mantêm como uma zona psíquica separada, inacessível à consciência do sujeito, ao mesmo tempo as protegem da degradação que decorreria de sua inclusão nos fluxos associativos do processo secundário”.[16] É assim que se explica o fato paradoxal de que justamente aquilo que mais solicitou e mais comprometeu a libido da criança não seja aquilo de que ela se recorda na vida adulta, mas aquilo que insiste nos seus atos e nos seus sintomas. São esses os elementos que, pelo avesso, fornecem o único acesso possível ao que em psicanálise denominamos o infantil. Dessa situação decorrem, como disse, a concepção freudiana da transferência e as regras básicas da arte de analisar, mas esse não é nosso tema de hoje. O que importa assinalar é que mesmo no tratamento analítico podem ocorrer situações que manifestam uma incoercível compulsão à repetição desse infantil, que por vezes se cristalizam numa neurose de transferência virtualmente inanalisável. É o que Freud nos diz numa passagem de Além do princípio do prazer, que nos permitirá retornar à história de José Matias:

Ao contrário [de criança que exige incansavelmente a repetição da mesma história, porque o reencontro da identidade é em si mesmo fonte de prazer], no analisado aparece claramente que a coerção a repetir na transferência os acontecimentos de sua vida infantil se coloca de qualquer modo fora e acima do princípio do prazer. O paciente se conduz então de modo absolutamente infantil e nos mostra que os traços mnêmicos reprimidos de suas experiências vividas originárias não estão presentes nele no estado ligado, e de fato são, em certa medida, inaptos ao processo secundário. É também a esta ausência de ligação que eles devem sua capacidade de formar, por conjunção com os restos diurnos, uma fantasia de desejo que compete ao sonho apresentar de maneira figurada.[17]

Nesse texto se opõem traços mnêmicos de duas espécies: os que estão “ligados” e os que estão “desligados”, o que não quer dizer inativos, mas dissociados, e em regime de mobilidade permanente. Esses traços não constituem e não podem constituir lembranças verbalizáveis. A este respeito, o comentário de Maurice Dayan é muito preciso e de grande utilidade para nós:

São sequelas de impressões deixadas pelas experiências “originárias”, que puseram à prova uma libido não-desenvolvida […]. Esses traços, sedimentos de impressões não-objetiváveis, não são suscetíveis de uma composição mnemônica pré-consciente. Prestam-se ao contrário a conjunções anacrônicas com sequelas de impressões muito mais tardias, especialmente estes “restos diurnos” mobilizados pela atividade onírica. Mas se submetem de bom grado à repetição compulsiva, retorno traumático do mesmo que assinala uma conduta “absolutamente infantil” […]. Este infantil na repetição, que tem como condição a indisponibilidade do traço para o ato da lembrança, é uma figura da instância mortífera, na medida em que se comporta como representante livre do pulsional, separado da vida psíquica, sexual e social do adulto.[18]

Ora, é precisamente esse tipo de traços mnêmicos que parecem ser demoniacamente eficazes na existência de José Matias. Um deles nos chamou a atenção: o elemento “branco” ou “luminoso”, que retorna nos mais variados contextos e em especial nas fantasias sobre Elisa, além do “rosto branco” do último homem que dorme com ela. Se as análises que mencionei fazem sentido, estamos diante de um fator do gênero “livre”, algo que insiste em se reproduzir, ou melhor, que atrai inelutavelmente o desejo, mesmo que com o risco da morte se perfilando no horizonte; algo que parece se localizar aquém de todo desejo formulável na fantasia ou na lembrança. Até aqui é possível retroceder, na tentativa de compreender a gênese das condutas tão extravagantes deste personagem; o resto se perde em brumas impenetráveis. Por que ”branco”? Por que “luminoso” ? Não sabemos, e de nada adiantaria questionar José Matias a esse respeito… Apenas podemos fazer uma conjetura formal, no sentido de que esses aspectos devem ter estado de algum modo associados às experiências originárias, aquelas cujos traços se tornam matrizes de fantasia e pivôs da identificação. Em quais poderiam ter sido essas experiências mesmo a imaginação reconstrutiva do psicanalista precisa se deter: é certo apenas que elas foram de algum modo traumatizantes, não porque tenham sido excepcionalmente violentas, mas porque assumiram o sentido de choques na frágil organização da criança que os viveu.

É nessa perspectiva que se tornam imagináveis as hipóteses que sugeri anteriormente, acerca das fantasias, das identificações e das origens da inibição sexual que caracteriza nosso heroi. Ao que parece, este não pôde fazer o luto dos seus primeiros objetos, nem desprender-se das formas de satisfação pulsional que então se organizaram. Bem ou mal, a vida o poupou até a época em que morreram seus pais. Essas mortes ativaram nele os velhos conflitos enlaçados ao complexo de Édipo e a tudo o que a isso se vincula. É a esses conflitos e às tentativas para resolvê-los que podemos associar os eventos da sua triste existência, a partir do momento em que vai habitar com seu tio. Regime singular de um indivíduo singular: agradeçamos a Eça de Queirós a descrição detalhada daquilo a que chamou “a complicada sutileza desta paixão”. É desse estofo que são feitos os nossos desejos, e a psicanálise nos ajuda a lançar um pouco de luz sobre a trama inacreditavelmente complexa em que eles são tecidos. Eu disse “um pouco de luz”?! Não sorriam.., e quem quiser que conte outra.

Notas

[1] A interpretação dos sonhos, cap. II, Studienausgabe (SA)II, p. 140; Biblioteca Nueva, (BN) I, p.421.

[2] Idem, cap. VII, seção C, SA II, p. 525; BN I, p. 680.

[3] Hegel, La phénoménologie de l’ esprit , Paris, Aubier Montaigne, tomo I, p. 147, n. 6.

[4] Jean Hyppolite, Genèse et structure de la Phénoménologie de l’esprit de Hegel, Paris, Aubier Montaigne, 1946, pp. 153-5.

[5] Jean Laplanche et alii, Traduire Freud, Paris, PUF, 1989, artigos “Désir”, “Souhait”, “Plaisir”, “Désirance” e outros.

[6] José Francisco da Rocha Pombo, Dicionário de sinônimos da língua portuguesa, Rio de Janeiro, 1914, p. 237.

[7] “Certos tipos de caráter descobertos pelo trabalho psicanalítico”, SA X, p. 236, BN III, p. 2416.

[8] Eça de Queirós, Obra completa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, v. II, p. 1233-47. Agradeço a Yvoty de Macedo Pereira Macambira a sugestão de trabalhar com esse conto. Como ele é curto, não multiplicarei as indicações de página nas citações que se seguem, todas extraídas ipsis litteris da narrativa.

[9] “José Matias”, pp. 1236-7.

[10] Idem, p. 1243. A esse respeito, o narrador fala de “vida espicaçada pelas Fúrias”. “Fúrias” é o nome dado pelos romanos às Erínias, divindades gregas arcaicas que vingam os crimes de sangue, em especial do sangue dos pais derramado pelos filhos. Junito Brandão esclarece que eram, depois de Hesíodo, três as Erínias ou Fúrias: Alektó, “a que não pára, a implacável”; Tisífone, “a que avalia o homicídio”; Megera, “a que inveja, a que tem aversão por” (Mitologia grega, Petrópolis, Vozes, 1986, v. I, p. 207). O mesmo diz Paul Harvey em seu Dicionário Oxford de literatura clássica, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987, p. 241. A alusão literária do narrador sugere que essa agitação do personagem não é indiferente à agressividade e ao ódio frente à figura da mãe, estudados por Conrad Stein em As Erínias de uma mãe, São Paulo, Escuta, 1988. Como essas extravagâncias sucedem também à morte do conselheiro e do visconde, talvez tenham algo a ver com os desejos de morte frente ao pai e com o remorso inconsciente suscitado por sua aparente realização.

[11] Piera Aulagnier, Les destins du plaisir, Paris, PUF, 1979, p. 178.

[12] Idem, p. 184.

[13] Idem, p. 185.

[14] Idem, p. 187-9.

[15] Freud, A interpretação dos sonhos , cap. VII, seção C, SAII, p. 539; BN I, p. 689.

[16] Maurice Dayan, Inconscient et réalité, Paris, PUF, 1985, P. 397.

[17] Freud, Além do princípio do prazer, cap. V, SA III, p. 245-6; BN III, p. 2524.

[18] Maurice Dayari, op. cit., p. 405.

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