2010

O lugar do anímico: experiência e ficção em Wittgenstein

por João Carlos Salles

Resumo

Com suas suspeitas sobre o estatuto do sujeito, Wittgenstein depara-se, em seus escritos posteriores às Investigações Filosóficas, com fenômenos que parecem afirmar o subjetivo e até o psicológico como condição da significação. É o caso da alternância na percepção de aspectos; uma figura ambígua como o pato-lebre, que ora vemos como pato, ora como lebre.

Esse emprego da expressão “ver como” diferenciar-se-ia do simples “ver”, pois com ele, à pergunta “O que você vê ali?” não se responderia com uma cópia do visto, uma vez que a mera reprodução e multiplicação especular do campo visual nada acrescentaria a quem fosse cego para o aspecto. A semelhança não se vê pela semelhança. Assim, com independência do que vemos, parecem distintas as regras de fechamento da significação e, mais ainda, as regras da expressão do próprio fenômeno, entretanto sempre estruturado.

Provocativamente, Wittgenstein nos ofereceu, para esse fenômeno sutil do notar, um aspecto, uma imagem das mais densas. Ele nos diz ser o problema da mudança de aspecto “duro como granito”. O anímico, que parece ser o lugar e a condição de tais mudanças, torna-se um adjetivo metafísico, ou seja, é empregado como resultante de uma confusão entre o conceitual e o objetivo.

Ao mesmo tempo que nos desenha a ameaça, Wittgenstein nos apresenta seu projeto de investigação: o “anímico” deve entrar em linha de conta apenas se não for um epíteto metafísico, mas, sim, lógico. Pensar as vivências de estados mentais (como a vontade, a percepção de aspectos, o eu etc.) em vez de suscitar a procura das causas de sua produção, a explicação de suas funções, tem doravante um interesse gramatical, pois relativo à constituição dos limites do significativo.

A separação entre ciência e filosofia é um traço permanente na obra de Wittgenstein, onde a experiência é tratada com tamanha generalidade que se torna uma contrapartida da lógica (ou da gramática), e não de uma ciência qualquer.

Wittgenstein, que não faz história natural dos conceitos e mesmo nos diz que a invenção de exemplos é essencial ao seu método, enfrenta de modo singular a tarefa de reduzir o anímico ao lógico.

Para um filosofo cuja obra é referência para o positivismo lógico e para a filosofia analítica, não deixa de ser supreendente seu modo terapêutico de investigação de essências, sua constante conjunção metódica de experiência e ficção.


Anímico não é para mim um / adjetivo / /

epíteto / / metafísico, mas sim um lógico.

Ludwig Wittgenstein, MS 173, p. 35r.

1.

O anímico, o mental, o subjetivo, tudo isso parece dar-se antes, dispor-se mesmo como condição da experiência. Assim, um elemento etéreo e dúctil torna-se o mais objetivo e fundante, como se coisa a mais aventureira fosse, entretanto, sempre a mais certa. Esta é uma imagem pregnante. Ela se cola ao fazer filosófico, como se fosse seu lugar mais natural. Ante qualquer dificuldade, ante qualquer mistério, um mistério ainda maior é invocado, como se a experiência mesma do pensamento coincidisse com o anímico e dele dependesse.

Um traço permanente da obra de Wittgenstein parece residir em sua resistência a qualquer psicologismo, não podendo, por exemplo, ao tempo do Tractatus, uma psicologia ter qualquer privilégio sobre qualquer outra ciência no que se refere à determinação do “território disputável da ciência natural” – uma de suas expressões para a circunscrição do campo do significativo, para a demarcação do espaço lógico. E, em tal demarcação, em se tratando das propriedades formais da verdade e não da mera possibilidade, concordaria ele com Frege, cabe discernir as leis do ser verdadeiro das meras leis do tomar algo por verdadeiro, estas próprias da psicologia.

Os gestos em Wittgenstein, todos sabemos, são extremados. A epistemologia não pode ter privilégio na determinação de uma lógica, e o sujeito pode então ser anulado pelo próprio gesto que o exagera. Não é outra a lição por que Wittgenstein faz coincidirem a verdade do solipsismo e a do realismo, de uma linguagem qualquer em ordem (a única que podemos entender) com um mundo qualquer que se deixa dizer, dos limites da linguagem que significam os limites do mundo, um mundo meu para um sujeito que, todavia, não pertence ao mundo. Com isso, a verdade do solipsismo, indizível, coincide com sua negação – o que só é possível se ressignificados os termos e afirmada a interposição da linguagem, do canto que se impõe à boca que o articula. A afirmação do solipsismo é, assim, a mais surpreendente negação de uma experiência do pensamento anterior a sua expressão e que, não obstante, pode ser tomada como significativa.

2.

As suspeitas sobre o sujeito, sobre a relevância lógica de seu estatuto interior, se multiplicam pela obra; à medida que também essa imagem insidiosa se oferece a todo instante como solução, quando e onde é talvez, o maior problema. E são tantas as suspeitas, que sua obra pode, por vezes, saber a uma forma de externalismo em relação ao mental ou simplesmente a um behaviorismo.

Esse é o caso com a imagem da Significação como um corpo sólido, como se contido em uma caixa e a tão somente desdobrar-se pela experiência. Em sendo assim, conhecer o jogo de xadrez, saber o significado de bispos e torres, seria algo como já ter jogado todas as partidas, como se estas estivessem adormecidas no tabuleiro e virtualmente antecipadas na mente do jogador. Saber jogar é, de alguma forma, reconhecer, de sorte que mesmo o mais fraco dos jogadores teria pensado os lances que deveras jamais conseguirá fazer. Ora, essa imagem da significação, por forte que pareça e por muito que nos retorne, antes alimenta um paradoxo cético, a saber: só teríamos acesso a uma significação na circunstância de uma experiência finita, embora, por outro lado, termos compreendido a regra pareça implicar estarmos preparados para dar conta, com ela, de novas aplicações nunca pensadas, e de modo inequívoco. Uma regra qualquer (por exemplo, a regra da adição ou a simples regra por que associo uma palavra a um objeto) faria a ligação entre a experiência passada e novas aplicações. O problema é que a experiência passada pode sempre ser reinterpretada, sendo aparentemente necessária uma garantia anímica do significado unívoco da regra, uma memória do que nela é pensado, do que ela quer dizer, uma indicação segura do que é estar ou não em conformidade. O paradoxo torna-se então a paralisia desse mesmo sujeito, chamado a garantir a identidade da regra, mostrando-se ele aparentemente necessário e impotente para ser critério de si mesmo, uma vez que acreditar seguir uma regra não é, eo ipso, seguir uma regra.

O paradoxo parece dever-se à possibilidade mesma de se agregar uma interpretação adicional para a garantia de conformidade e, então, uma regra nunca determinaria uma ação, pois qualquer ação, mediante uma interpretação, poderia ser posta em conformidade com a regra. Se este é o paradoxo, sua raiz é a imagem mesma que vincula interpretação e intenção, sentido e sujeito. É simplesmente ilusório servir-se da referência a um inapreensível estado mental. Afinal, se a interpretação correta de uma regra depende de uma intuição secreta, ou não teremos medida alguma por que julguemos seu cumprimento ou deverá tal intuição materializar-se em alguma expressão simbólica, uma vez que, como o próprio Wittgenstein dirá nas Investigações, apenas em uma linguagem podemos querer dizer algo com algo. O tratamento do problema do seguir a regra – pelo qual a regra se manifesta em cada caso de seu emprego, em novas expressões simbólicas, na linguagem – mostra-se exemplar de um consistente gesto terapêutico, pelo qual se afirma um movimento sistemático de anulação do sujeito, com suas pretensas prerrogativas metafísicas – movimento que, todavia, coincide com a cuidadosa constituição da subjetividade, na justa medida em que ela pode ter relevância lógica, ou seja, em que pode importar para a demarcação dos limites do significativo.

Com todas as suas conhecidas suspeitas sobre o estatuto do sujeito (como neste caso por que retira da interpretação a condição de conferir identidade a uma regra que porventura esteja sendo seguida), Wittgenstein depara com frequência, em seus escritos posteriores às Investigações filosóficas, com fenômenos que parecem afirmar o subjetivo e até o psicológico como condição da significação. É o caso da alternância na percepção de aspectos; uma figura ambígua como o pato-lebre, que ora vemos como pato, ora como lebre. Nesse caso e em assemelhados, nada se transforma e, não obstante, tudo é novo. Continuamos a ver, mas nosso mero ver (um estado) é também um pensar (uma atividade), como se-então vivenciássemos significações. Esse emprego extraordinário da expressão “ver como” diferenciar-se-ia do simples “ver”, pois com ele, à pergunta “O que você vê ali?” não se responderia com uma cópia do visto, uma vez que a mera reprodução e multiplicação especular do campo visual nada acrescentaria a quem fosse cego para o aspecto. A semelhança não se vê pela semelhança. Assim, com independência do que vemos, parecem distintas as regras de fechamento da significação e, mais ainda, as regras da expressão do próprio fenômeno, entretanto sempre estruturado.

Meio provocativamente, Wittgenstein nos ofereceu, para esse fenômeno sutil do notar, um aspecto, uma imagem das mais densas. Ele nos diz ser o problema da mudança de aspecto “duro como granito”. Com efeito, a imagem cifra bem uma ameaça. O anímico, que parece ser o lugar e a condição de tais mudanças, torna-se um adjetivo metafisico, ou seja, é empregado como resultante de uma confusão entre o conceitua! e o objetivo.

Ao tempo que nos desenha a ameaça, Wittgenstein nos apresenta seu projeto de investigação: o “anímico” deve entrar em linha de conta apenas se não for um epíteto metafisico, mas, sim, lógico. Com isso, o pensamento da experiência deve tornar-se um modo por que a experiência do pensamento pode tornar-se parte das condições da significação. Em outras palavras, pensar as vivências de estados mentais (como a vontade, a percepção de aspectos, o eu etc.) em vez de suscitar a procura das causas de sua produção, a explicação de suas funções, tem doravante um interesse gramatical, pois relativo à constituição dos limites do significativo.

A dissolução do enigma parece tornar-se enfim possível quando a forma passa a ser colhida por um espírito que não se move sem corpo, que pode então notar o aspecto como uma Äuberung, e logo como um critério da presença do fenômeno. Dessa maneira, Wittgenstein pode mostrar uma atividade, uma descrição de uma vivência visual segundo uma interpretação, sem precisar recorrer a uma subjetividade inefável – e também sem precisar negar sua presença. Não é um objeto interno que nos garante ser autêntica a vivência, nem ele fundamenta os jogos pelos quais podemos ensinar outrem a ver como. A percepção do aspecto e, digamos, sua natureza ou mesmo presença não se revelam or introspecção, cabendo então evidenciá-las em comportamentos específicos.

É ilustrativa desse recurso ao comportamento, como modo tão somente de fechar o arco da significação, a situação imaginada por Wittgenstein. Andamos pela estrada e algo nos salta à frente. Ora, nossa exclamação de reconhecimento (Um coelho!) é, ela mesma, enquanto expressão simbólica, não apenas um sintoma, mas sim, sobretudo, um critério da vivência visual. Mais ainda, a exclamação, que se nos impinge, é critério, tem duração, mas também é descrição e, por isso mesmo, expressão de um pensamento. Com isso, dissolve-se o enigma, sendo a diferença entre notar ou não notar um aspecto transposto no modo diverso como a pretensa experiência será expressa, ou seja, como será transposta em um comportamento que, então, é também linguagem. Pensemos, por exemplo, na reação diversa quando entendemos ou não entendemos uma piada. Ela se dá quando não coincide com um estado mental. Em uma saída um tanto behaviorista, o critério da vivência não poderia remeter ao que não fosse linguagem; de sorte que, enfim, o que vemos, o que estamos autorizados a dizer que vemos, o que conseguimos dizer que vemos já são significações.

Behaviorismo: Scheubliches Wort. Por horrenda que pareça a palavra, é aqui irrecusável em Wittgenstein uma maneira behaviorista de compreender a significação, mas trata-se decerto de um behaviorismo estranho, pois não nega nem afirma a existência de estados mentais, não nega nem afirma relações causais entre o físico e o psíquico, não reduz a completude, a saturação do gesto a seu resultado, nem pretende ter preferência diante de uma visão pneumática da significação ou do mental. Erigidas como teorias, a visão pneumática e a visão behaviorista seriam ambas ruins, mas ainda assim parece sobreviver um certo behaviorismo na afirmação frequente de o interior ter critérios externos, de a linguagem ser medida da linguagem, de coincidirem no essencial (e não no empírico) significação e comportamento. Com isso, porém, malgrado a ênfase no comportamento, Wittgenstein não menciona nenhum corpo. Ou melhor, é de duvidar que lhe importe algum corpo efetivo ou, ainda, seja sua ciência do corpo mais que uma ficção. Não obstante isso, com tal presença na significação, um corpo aparece em gestos, em gritos, às apalpadelas, em contato com formas, consistência, peso, temperatura, em contato com outros corpos, com outros olliares. Como nunca na obra, a necessidade de articulação do sentido parece solicitar sua presença como lugar de articulação do sentido, lugar de entrelaçamento entre linguagem e mundo.

3.

As causas interessam aos cientistas. Aos filósofos deve interessar a constituição mesma e anterior da experiência, sobre a qual, aliás, se tecem possíveis narrativas da causalidade. Com toda variação possível, essa separação estrita entre ciência e filosofia é um traço permanente da obra, de sorte que, em função disso, até o dogmatismo do Tractatus guarda uma semelhança de família com o “perspectivismo sem relativismo” da sua filosofia posterior. Em sua obra, a experiência é agarrada em tamanha generalidade, que se torna uma contrapartida da lógica (ou da gramática) e não de uma ciência qualquer. Em sendo assim, o mundo que então se tece como pedra de toque não se confunde com nosso mundo efetivo. Também por isso, experiência e ficção podem e devem se entremesclar, evitando, entre outras coisas, uma reificação do anímico e, sobretudo, respostas naturalistas ou cientificizantes para problemas filosóficos.

Afinal, os limites do que estamos dispostos a considerar significativo não são eles mesmos da ordem do significativo, e condições da ciência não podem ser estabelecidas por ela própria. Por outro lado, em certo sentido, a filosofia só pode operar esvaziando a experiência, como se retirasse peças velhas de um baú para, enfim, rememorar sua forma e capacidade. Com isso, o gesto filosófico ilumina todas as partes e nenhuma em particular, decidindo não quais são os fatos, mas sim o que podem ser.

Wittgenstein, que não faz história natural dos conceitos e mesmo nos diz que a invenção de exemplos é essencial a seu método, enfrenta de modo singular a tarefa de reduzir o anímico ao lógico. Nós nos voltaremos a suas artes de construção da experiência do pensamento por meio de uma de suas ficções: a da tribo dos escravos sem alma. Ou seja, uma tribo a ser escravizada e que, talvez por isso, governantes e cientistas garantem que seus membros não possuem alma, podendo ser utilizados para qualquer finalidade. O exemplo, à primeira vista, sabe a um extremo posicionamento behaviorista quanto à constituição de uma linguagem significativa.

Em Zettel, estranhíssima coleção de parágrafos, nosso exemplo de ficção é introduzido no parágrafo 528 como uma Hilfskonstruktion, uma construção auxiliar, sem que fique claro o contexto de seu emprego. O exemplo da tribo parece sugerir, não tendo contexto, que a mera supressão da alma não tornaria por si inverossímil que tivéssemos linguagem ou pudéssemos ser instruídos. Um dado adestramento tornaria tal tribo capaz de cálculo ou de atos que costumamos associar à reflexão. Entretanto, dada a suposta supressão do anímico, caso nos assaltasse a imagem de que, nesse caso, deveria haver algum processo subterrâneo nesses simulacros de autômatos, reagiríamos. Ou seja, dada a suposição inicial, por mais que tentados pela imagem a nós corriqueira, se alguém expressasse a opiníão de que, ao fim e ao cabo, tais seres teriam algum tipo de alma, simplesmente riríamos dele. E, de modo ainda mais sofisticado, não se tornaria mais forte aquela estranha suposição filosófica, mesmo se tais seres usassem expressões que denotam entre nós a vivência anímica de uma significação e nos relatassem, por exemplo, para explicar suas escolhas, algo como “quando ouvi a palavra banco, ela significou para mim…”, ou o que seja. Dada a suposição inicial, perguntaríamos antes pela técnica de emprego da palavra “significar”, e não precisaríamos deduzir para além disso.

Assim meio ao acaso, em Zettel o exemplo de ficção ganha em generalidade. Parece comprovar todo combate ao mentalismo, além de dar uma expressão quase caricatural de como a significação se determina pelo uso e não por remissão a alguma intenção, ou interpretação etc. Ganhando em generalidade, o exemplo perde, porém, em força ou em precisão – o que, em filosofia, costuma ser o mesmo. O exemplo, acreditamos, pode nos dizer mais, se o reencontramos em seu solo originário e não nessa espécie de livro dos seres imaginários, que é o Zettel. Porém, a que serve o esboço desse exemplo (uma construção fictiva, um esboço provisório), que seria um meio para tornar claro e inteligível um desafio mais complexo e próximo demais de nós? A resposta parece simples: esse recurso ilustrativo, essa ficção, ou seja, uma construção auxiliar de Wittgenstein, se tem algum interesse para além do literário, visa esclarecer aspectos conceituais.

Os três parágrafos de Zettel foram extraídos de um conjunto bem mais amplo do TS[1] 229. Com isso, vemos a construção ser auxiliar no sentido de fornecer um modelo, um esboço, capaz de aprofundar uma especulação já descrita anteriormente, pela qual atos anímicos, como a preferência, podem ser determinados por um processo de aprendizagem e, assim, cifrados em um comportamento, em que linguagem e ações se articulam. Isso já teríamos pelo simples recuo ao TS 229. Entretanto,caso voltemos ao MS[2] 130, logo vemos mais precisamente qual o grupamento a ser levado em conta.

Aquela construção auxiliar agora faz parte de um conjunto de observações iniciadas no dia 26 de maio de 1946. Temos assim um bloco bastante bem delimitado, a solicitar uma exegese mais cuidadosa. O simples retorno ao TS 229 já seria por si muito útil, pois mostra a ligação entre o exemplo de ficção e o problema imediato a que, como uma Betrachtung, o exemplo vem, digamos, responder. Mais imediatamente, ao modo como uma significação pode ser aprendida. No exemplo, como podemos distinguir “banco” (móvel) de “banco” (instituição financeira)?; ou, pelo contrário, como reconheço quando se trata da mesma palavra? O exemplo, então, com todo o seu malabarismo, reduzir-se-ia à questão: como poderíamos ensinar a uma criança dessa tribo expressões psicológicas e, em específico, vivências de significações, de sorte que reconheçamos em seu comportamento que, por exemplo, uma regra está sendo seguida e, enfim, que essa tribo pode realmente servir, como suposto, a qualquer finalidade.

É preciso, porém, devolver o exemplo a um contexto mais amplo, inclusive para que não venhamos a compreendê-lo como uma manifestação a mais de simples behaviorismo. A paisagem muda, o exemplo traz alguma novidade e força caso percebamos agora um corte exatamente no parágrafo anterior a essa oposição e que funciona como seu contexto. No MS 130, a divisão é clara. Após ter usado esse caderno, sobretudo para esboços de aula e não exatamente para anotações, Wittgenstein anota enfim uma primeira data (26 de maio de 1946) e inicia um novo curso de anotações.

O parágrafo inicial elenca bem melhor o que está em jogo, o que pode ser esclarecido pelo exemplo de ficção, ou seja, está em jogo a possibilidade de se manter o conteúdo da experiência sem remissão necessária ao anímico. Com isso, temos enunciada a tarefa bem ambiciosa de enfrentar o anímico, mas tornando-o parte do processo de determinação da significação e não sua fonte. Eis a lista de conteúdos da experiência – que, no MS 130, na página 147, ocorre como a anotação inaugural de um novo momento teórico – de mais um programa de investigação wittgensteiniano:

O “conteúdo” da experiência, da vivência: eu sei como são as dores de dente, conheço dores de dente, sei como é ver vermelho, verde, azul, amarelo, sei como é sentir pena, esperança, terror, -alegria, aflição, desejar fazer algo, recordar ter feito algo, ter a intenção de fazer algo, ver um esboço alternadamente ora como cabeça de um coelho ora como cabeça de um pato, tomar uma palavra em um significado e não em outro etc. Eu sei como é ver a vogal a cinza e a vogal u violeta-escuro. Sei também o que significa repassar-me essas vivências. Quando o faço, não me estou encenando tipos de comportamento ou situações. Sei assim, portanto, o que significa repassar-me vivências? E que significa isso? Como posso explicar isso a outrem, ou a mim mesmo?

Vemos que tal ficção, longe de ser um testemunho de behaviorismo, serve ao propósito de explicitar a invenção mesma do anímico na construção dos conteúdos da experiência, dos limites gramaticais da objetividade, servindo à transformação do anímico em um epíteto lógico, como o explicita essa lista de temas, que pode ser considerada um projeto renovado de exame dos limites não mais definitivos da significação.

4.

Exemplos e argumentos isolados, que bem podem servir a outros propósitos argumentativos, adquirem um sentido ainda mais rico no contexto da obra. E, a nosso ver, mediante esse contexto, fazem a investigação epistemológica reencontrar-se com a própria história da filosofia. Assim, alguns traços recorrentes do método de Wittgenstein, como o combate à introspecção, a análise não naturalista, a variação de exemplos, podem reforçar a ideia de continuidade teórica da obra, dando um novo sentido a expedientes como o dessa Hilfskonstruktion.

Em primeiro lugar, a invenção de exemplos parece ser um expediente metódico essencial. Em outubro de 1948, Wittgenstein anota que nada seria mais importante que a construção de conceitos de ficção, que nos ajudem a compreender os nossos próprios conceitos[3]. Ora, podemos bem considerar uma tal invenção sistemática um expediente fenomenológico, naquele sentido muito próprio em que Wittgenstein afirma fazer fenomenologia. Com isso, parece dizer-nos que seu alvo não são relações externas, relações causais por que se produzem os eventos. Interessar-lhe-iam antes as relações internas e, logo, o modo de articulação do sentido de um fenômeno. Essa perspectiva fenomenológica encontra-se presente em seus textos sobre a percepção e, em particular, sobre as cores, mas se volta muito diretamente a toda constituição do campo da experiência e, com isso, à possibilidade de determinação mais ampla de seu conteúdo.

Em território próprio da psicologia, pode então pretender dela afastar-se por completo. Não lhe interessa afinal a produção da cor ou mesmo a produção da impressão de uma cor, mas sim a lógica dos conceitos de cor – essa lógica que, afirma, não agarramos ou aprendemos pelos olhos. Nesse sentido, a Hilfskonstruktion ganha pleno sentido. Ela parece fixar na experiência o que nos interessa, da perspectiva de uma investigação de es­ sências, um modo de investigar que, como diria Husserl, não precisa distinguir a realidade de que temos experiência da realidade fingida na livre intuição da fantasia.

A técnica tl.e multiplicação de exemplos é aqui uma herança do pensar matemático, do pensar lógico, cujo procedimento, entretanto, deve ser aplicado ao que pareceria próprio da psicologia. Como o matemático, devemos nos abster em psicologia de qualquer juízo sobre a realidade efetiva:

Certamente, realidades da experiência podem servir a seu proceder, mas não é a título de realidades que lhe servem, nem elas têm para ele o valor de tais. Diante dele, têm só o valor de exemplos arbitrários, que podem ser arbitrariamente modificados na livre fantasia, assim como poderiam servir igualmente realidades retiradas da fantasia, como, aliás, costuma ocorrer.[4]

A natureza que interessa à investigação de essências é, pois, uma natureza possível em geral, uma natureza que pode ser representada, mesmo que os limites do possível e, logo, do representável não possam ser dados de uma vez por todas.

Outros traços fenomenológicos, ou seja, de investigação de essências, conformam o contexto teórico-metodológico das observações sobre a filosofia da psicologia, no que tange à construção do que estaríamos dispostos a considerar como relativo às condições da significação. A investigação é lógica e não metafísica, ou seja, não confunde o conceitua! com o sachlich. Nesse sentido, o naturalismo, se aplicado à filosofia, pode ser uma expressão metafísica em sentido extremado. Ao contrário, uma investigação filosófica é uma investigação conceitual, nunca devendo reduzir o conceituai a uma história natural dos conceitos. Nesse caso, o naturalismo próprio de uma certa filosofia da mente lhe seria talvez repulsivo, pois pensar segundo conceitos de processos fisiológicos, assim como pensar em termos estritamente anímicos, é altamente perigoso para a elucidação de problemas conceituais na psicologia. Pensar em hipóteses fisiológicas induziria em nós, por vezes, falsas dificuldades e, por vezes, falsas soluções. A melhor cura para isso, diz Wittgenstein a certa altura, é o pensamento, também ficcional, de que não sei ao certo se as pessoas que conheço realmente têm um sistema nervoso[5]

Por isso mesmo, é em sentido forte que a investigação do conteúdo da experiência coincide com um programa de redução do anímico ao lógico, ou seja, um programa de análise das condições da objetividade, entre as quais, enquanto condições não extralinguísticas, podem ser elencados usos gramaticais de estados psicológicos. Se o metafisico consiste em confundir uma investigação conceitual com um sachlich, o lógico jamais as confunde, mesmo quando se serve de materiais empíricos, ou melhor, menos ainda quando se serve de tais materiais. E aqui, sistematicamente, na construção do conteúdo da experiência, na construção do campo em que nossas proposições sobre estados mentais e assemelhados podem ser significativas, deve ser afastada toda pretensão de fazer da causalidade o único modo de fixar o sentido de noções psicológicas. Como insiste Wittgenstein, as causas da produção de impressões, as explicações mecânicas – essas podem interessar ao psicólogo.

A nós, urdida nossa investigação em um campo lógico, voltada às condições gramaticais da experiência, só podem interessar os conceitos e sua posição no conjunto dos conceitos da experiência, importando distingui-los por outras medidas, como sua duração ou não, sua localidade ou não – com o que decidimos a margem de liberdade para seu uso e eventual combinação[6]. Dessa forma, sabemos bem que, em Wittgenstein, os estados psicológicos serão classificados de maneira variada e multidimensional, em relação a lo­ calidade, duração, vontade etc., de sorte que uma nova tábua de categorias é construída, todas elas servindo a seu reposicionamento enquanto elementos constitutivos do espaço lógico das vivências psicológicas.

O anímico é especialmente lógico porque os conceitos psicológicos são singularmente complexos. Mais que conceitos da mecânica, por exemplo, eles estão fundamente entremesclados em nossas vidas. Mais ainda, eles informam a realidade que, por sua feita, servem para descrever ou explicar. E, com muito mais força, o espaço lógico em que se situam nossos conceitos psicológicos (esse que arma o conteúdo da nossa experiência) é multidimensional, como bem o afirmam Gordon Baker e Peter Hacker[7].

As categorias são vagas e se entrecruzam, sendo um desvio essencialista fixar um conceito em uma dada categoria ou rede de categorias. Incorreríamos em dogmatismo essencialista, em má fenomenologia, se fixarmos essências ao termo do trabalho filosófico e registrarmos, e. g.: “Compreensão não tem duração”; ‘Ver é um estado”; “Percebemos sem lugar”; “Critérios e sintomas se distinguem”. Sim, essas seriam boas proposições, pareceriam até sofisticadas, mas nesse campo tudo que, ao fim e ao cabo, podemos dizer tão somente pode ser certo, sem mentira e muito variável.

Enfim, marca a reflexão de Wittgenstein, que cuidadosamente evitou o naturalismo, uma recusa sistemática da introspecção. Não há risco maior que o de buscar a resposta em um interior insondável, a ser agarrado por alguma observação. Nesse caso, o anímico se agarraria como instância metafisica e não como modo de articulação da significação. Essa recusa da introspecção, sim, é um dos alimentos mais sólidos de sua atividade ficcional, sendo emblemática de como pode pretender recusar, ao mesmo tempo, o mentalismo e o behaviorismo. Com isso, em vez de a Hilfskonstruktion estar servindo à formulação de certas teses, parece que antes nos alerta a olhar em outra direção ou alude ao motivo de olharmos tão fixamente em uma só direção. A terapia, assim, não é a apresentação de uma resposta ou de uma verdade, mas antes a lembrança de que outras perguntas podem ser formuladas. Para um filósofo cuja obra é referência para o positivismo lógico e para a filosofia analítica, não deixa de ser surpreendente seu modo terapêutico de investigação de essências, sua constante conjunção metódica de experiência e ficção. E deve frustrar em muito a quantos pretendam respostas científicas para problemas filosóficos ou julguem que filosofia e ciência distinguem-se apenas em grau e não em natureza. Os que desconhecerem ou minimizarem sua pregação contra o americanismo, contra as trevas talvez técnicas de nosso tempo, ou ainda sua afirmação no Tractatus de que, mesmo se todos os problemas científicos estiverem um dia resolvidos, nossos problemas de vida não terão sido por isso sequer tocados, esses devem mesmo estranhar traços essenciais de seu pensamento, como a vertigem autoterapêutica de seu trabalho. E talvez até se decepcionem como alguns dos membros do Círculo de Viena que, em romaria, acorreram à pequena aldeia austríaca em que lecionava a crianças, querendo debater com ele questões técnicas do Tractatus, e o encontraram bastante arredio a homens de espírito tão científico e bem mais disposto a recitar poemas de Rabindranath Tagore.

Referências bibliográficas

BAKER, G. P. & HACKER, P. M. S, “The Grammar of Psychology: Wittgenstein’s Bemerkungen uber die Philosophie der Psychologie”, in SHANKER, Stuart, Ludwig Wittgenstein: Critica! Assessments, London: Routledge, 2000, pp. 352-372.

HUSSSERL, Edmund, Renovación del hombre y de la cultura, Barcelona: Anthropos, 2002. WITTGENSTEIN, Ludwig, Wittgenstein’s Nachlass: The Bergen Electronic Edition, Oxford: Oxford University Press, 2000.

Notas

  1. As siglas MS e TS são uma convenção usada na descrição do espólio de Wittgenstein. TS está por datiloscrito (Typescript) enquanto MS está por manuscrito. 
  2. Id. 
  3. Cf. MS 137, p. 78b. 
  4. Edmund Husserl, Renovación del hombre y de la cultura, p. 14. 
  5. Cf. Ms 144 do espólio de Wittgenstein, p. 72. 
  6. Cf. MS 137, p. 120b. 
  7. Cf. The Grammar of Psychology, p. 369. 

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