2014

O silêncio é mais que o silêncio

por João Carlos Salles

Resumo

Por que é preciso quebrar o silêncio? Em que condições se quebra o silêncio, quando não há razão natural alguma para isso, e quais as implicações desse ato, ou gesto fundante? Parece haver uma mudança de qualidade entre estruturas ligadas, elementos articulados da linguagem, que podem ser significativos, embora não pareça haver razão qualquer, uma vez desmembrada a peça articulada, para o vínculo entre os elementos do mundo e os elementos de linguagem primários e simples, dos quais contudo é feita a peça composta.

O que nos faz, então, associar um nome a um objeto, ou seja, um nome simples a um objeto simples, sem que haja razão qualquer para isso?

Estamos diante de uma questão cara ao Tractatus, a saber, a de ser preciso fazer a ligação entre nomes e objetos, ligação que, essencialmente, seria arbitrária e logo subjetiva, como se, não havendo sujeito algum, precisaríamos inventá-lo, supô-lo, quer como empírico, quer como transcendental, enquanto fonte primeira da significação. E que tal sujeito poderia fazer tais escolhas mesmo quando não há razão ou causa alguma para elas.

Parte do método de Wittgenstein é a invenção de exemplos, de sorte que certas analogias se quebrem e outros desenhos significativos se mostrem possíveis. Esse é o caso da pergunta de Wittgenstein pela possibilidade de uma linguagem privada, exemplo que julgamos servir como ficção autoterapêutica para o problema da relação entre nome e objeto.


1

Sou do Recôncavo Baiano, de Cachoeira, cidade com tradição de imprensa e de retórica, na qual cada efeméride sempre foi ocasião para filarmônicas e discursos. Por isso mesmo, nesse ambiente, não deixava de ter valor de prédica moral, de contenção, o mote familiar extremo e muito estranho de a palavra ser de prata, enquanto o silêncio, de ouro. Lembro ainda hoje, em uma dessas ocasiões ávicas, criança, ter sido escolhido para proferir um discurso. Debruçamo-nos sobre o tema dias a fio, meu pai e eu, munidos de dicionários e modelos de discursos. Após muito e cuidadoso trabalho, parimos cinco linhas, as mais polidas e buriladas, que, ademais, na cerimônia, para decepção geral, sorvi de um só gole, de sorte que, quando todos imaginavam que mal estava por começar o discurso, já o havia terminado.

Orgulho-me ainda hoje daquela contenção, da ideia enfim de que o silêncio só deve ser quebrado por boas razões – o que talvez explique o paradoxo de ser professor de filosofia, de viver da palavra, de afastar a morte pela fala, pela narrativa, e ser, também, wittgensteiniano, sempre prisioneiro do célebre aforismo, muito mal compreendido, que, como verdade elevada e necessária, como orientação para o pesquisador e conclusão da pesquisa sobre os limites da significação, como junção misteriosa entre uma demonstração filosófica e uma orientação quase moral, afirma que nos devemos calar sobre aquilo que não podemos falar.

Com efeito, o Tractatus Logico-Philosophicus pode sim ser visto como uma iniciação ao silêncio, como bem o pontuou, já no título de seu belo livro sobre Wittgenstein, meu colega e amigo Paulo Roberto Margutti Pinto. Afinal, o livro se estrutura por uma ausência, a de uma segunda parte que, sendo a mais importante, não foi nem poderia ser escrita, embora seja seu ponto de equilíbrio (ou, quem sabe, seu abismo) o aforismo que lhe abre o caminho e o encerra: “Sobre o que não se pode falar, deve-se calar”. Esse pano de fundo (a um tempo, sombra e destino) termina por condenar o campo do significativo e sua demarcação quase à irrelevância, ao tempo que, por oposição, o relevante não se deixa traduzir em proposições. Um livro que pretende traçar os limites do significativo e lhe mostra a estrutura como que de dentro, confronta-se pois com o pano de fundo do silêncio essencial que também o atravessa.

Por outro lado, devemos admitir, o inefável se diz então no Tractatus de muitas maneiras, é flagrado em diversos niveis, direta ou alusivamente, pela exibição do paradoxo de enunciar a própria forma da proposição por meio da qual algo se enuncia ou, por exemplo, no aforismo que congela a impossibilidade de dizer algo sobre os objetos, logicamente simples. Em vista de tantos aspectos do inefável, nosso objetivo é apenas explicitar uma de suas aparições, em meio à negatividade dessa obra deveras palavrosa em relação ao que não se pode dizer.[1] De todo modo, todo o limite palavroso das ciências, todo o conjunto de verdades, que jamais toca nossos problemas essenciais de vida, tem como condição de seu sentido um telos de silêncio.

2

Uma anedota bastante conhecida conta que Albert Einstein não falou até os cinco anos de idade. Os pais preocupados com o filho, provavelmente idiota, até o dia em que, no jantar, ele teria dito: “A sopa está quente demais!”. “Meu Deus!”, exclamaram os pais, “e por que você não falou antes?” “Ora, simples,,, respondeu nosso gênio, “até então tudo estava em ordem”. Moral da história. Parece ser preciso ter alguma razão para falar, para quebrar o silêncio.

E esse é meu ponto, hoje. Por que é preciso quebrar o silêncio? Em que condições se quebra o silêncio, quando não há razão natural alguma para isso, e quais as implicações desse ato, ou gesto fundante? Permitam-me, pois, nesse espírito, recuar a um mistério, que acompanha a história da filosofia, tendo sido já enunciado por Platão. Parece haver uma mudança de qualidade entre estruturas ligadas, elementos articulados da linguagem, que podem ser significativos, embora não pareça haver razão qualquer, uma vez desmembrada a peça articulada, para o vínculo entre os elementos do mundo e os elementos de linguagem primários e simples, dos quais contudo é feita a peça composta:

[…] os elementos primeiros, por assim dizer, a partir dos quais somos compostos, nós e as demais coisas, não teriam explicação, pois cada um deles somente poderia ser nomeado, em si e por si, não sendo possível dizer nada mais deles, nem que são, nem que não são [2].

O que nos faz, então, associar um nome a um objeto, ou seja, um nome simples a um objeto simples, sem que haja razão qualquer para isso? Alguns pensariam em associações naturais entre as características do objeto e as características, por exemplo, de sons com que os nomearíamos. Assim, parece natural que usemos sons aveludados para formas arredondadas e sons consonantais mais abruptos, quem sabe, para um paralelepípedo, como se houvesse uma cumplicidade secreta entre palavra e coisa. Basta um instante de reflexão para encontrar muitos contraexemplos, que fazem tal relação saber a artifício e revelam mesmo como relações aparentemente determinadas por laços causais fisiológicos ou físicos (como a divisão do espectro por nomes para cores) dependem de acasos de nossas culturas. Porém, estamos pensando, aí, como se a base da linguagem fosse a metonímia, ou outra qualquer figura de linguagem, e como se o mais natural dos sons fosse uma onomatopeia.

Sendo isso verdade ou não, lidamos com coisas passíveis de descrição, por um lado, e com sons ou desenhos que, para guardá-los ou representá-los, de alguma forma visível ou velada, os imitariam. Não é esse caso que apavora o empirista. Para vislumbrar o abismo mesmo da significação, é preciso pensar um campo imenso sem acidentes, um mapa anterior aos mapas, para sentir com o empirista (ou com o extremo racionalista) o desespero de não encontrar algo como um traço, uma marca, dispostos que estejam entre o arbítrio e a necessidade. Ao empirista, parece não haver sequer sujeito, sem que haja uma marca. No caso do simples, antes de formar-se a proposição, é preciso escolher quando não há razões para escolhas e diferenciar o que não pode ser agarrado por nenhuma diferença. No caso da proposição, é como ver sua possibilidade sem que se dissipe a mais extrema neblina.

Por razões estritamente lógicas, podemos pensar, como Platão, na necessidade de decomposição da linguagem e do mundo, chegando a seus elementos primários e simples. Nesse caso, esbarramos com um limite, uma mudança de qualidade na relação de afiguração. Estruturas complexas do mundo e da linguagem, além de terem vinculação entre seus elementos, comungam também uma forma, que localiza enfim as peças no jogo da representação. Isso, porém, não se aplica aos próprios elementos, que não se correspondem também por suas formas, de sorte que se substituem, sem que exatamente se representem. Afinal:

Dois objetos [a saber, objetos simples] da mesma forma lógica – desconsideradas suas propriedades externas – diferenciam-se um do outro apenas por serem diferentes.

Ou uma coisa possui propriedades que nenhuma outra possui, podendo-se então, sem mais, destacá-la das outras por meio de uma descrição e indicá-la; ou, pelo contrário, há várias coisas que possuem todas as suas propriedades em comum, sendo então impossível apontar para uma delas. Pois se uma coisa não é distinguida por nada, não posso distingui-la, pois, caso contrário, ela passaria a estar distinguida[3].

Esse espanto, a necessidade de uma vontade para começar o jogo, de uma decisão entre o feno e a água, encontra uma fórmula extrema em como Wittgenstein desenha a relação entre nome e objeto, se considera dos ambos simples. Também Thomas Hobbes já pensara nesse momento de arbítrio, de pura convenção, pelo qual pode começar o cálculo e ser inventada a necessidade – necessidade que, como a verdade ou a falsidade, só pode começar com a linguagem. Os homens distinguir-se-iam dos animais famintos, incapazes de se lembrar do esconderijo de suas sobras de comida, porque podem marcar arbitrária e voluntariamente seu terreno com um objeto sensível. Nessa função, o sensível se aparta do sensível,

a fim de, através dele, lembrar-se de alguma coisa passada, quando esta mesma coisa for novamente objeto da sua sensação. Como os homens que passam por um rochedo no mar estabelecem alguma marca para se lembrar do perigo que então correram.[4]

A ausência de marcas afeta, para além da possibilidade da nomeação, o enunciado de quaisquer proposições, como se estas se elevassem também de um silêncio primordial. Temos na literatura um bom exemplo de um mapa que nada imita, nada representa, pois é antes condição de todos os mapas. Foi-nos dado por Lewis Carroll, em seu poema “A caça ao Turpente”:

Campainha por todos era admirado:

Altivo, sereno, gentil!Solene também! Que era sábio e honrado

Se via só pelo perfil!

Comprara amplo mapa mostrando o mar

Sem o mínimo sinal de terra:

A tripulação gritou vivas ao ar:

“Com um mapa assim ninguém erra!”

“Pra que serve o equador do Sr. Mercator,

Seus trópicos, polos, monções?”

Perguntava o do sino. A resposta, com tino:

“São meras pueris convenções!

“Feios feito quiabos, com ilhas e cabos,

Esses mapas nos dão calafrio.

Campainha é o maior, nos comprou o melhor:

Um completamente vazio!”[5].

Com um mapa assim não se erra, e menos ainda se acerta, não sendo afinal a folha em branco mapa algum, mas antes a condição silenciosa de qualquer mapa, o mapa antes do mapa, a pura condição bidimensional, a condição formal em que se podem pôr e encontrar todas as coordenadas, sem que isso tenha sido ainda feito, sem que qualquer boca banguela, qualquer acidente geográfico limitasse a possibilidade de esse mapa in dicar outra coisa[6].

3

Como imagem importante na história da filosofia, a renascer de forma inesperada, temos a aparente necessidade de um sujeito de fazer essas ligações, como se fora um resíduo inalienável de qualquer significação.

Essa imagem, solicitada pelo próprio Tractatus, faz coincidir (por vezes, inadvertidamente) a autoterapia wittgensteiniana de suas posições primeiras com uma revisão de pontos essenciais da história da filosofia. Temos a comunhão dessa ideia, de um sujeito que pode e precisa escolher o início da significação, com a de uma alma que pensa antes de ter linguagem, que sobretudo dialoga consigo mesmo e só tem a linguagem como uma coisa segunda, efeito de uma queda, de um deslizamento ao plano da expressão e ao contato com o outro. Remonta assim à ideia de um pensamento separado do próprio corpo do sujeito, nutrido em uma dimensão recôndita – imagem comum a muitos empiristas e racionalistas. Temos a imagem de um sujeito que transforma uma seta em uma indicação de direção, dois traços superpostos em um sinal de igualdade, um som em um conceito, como se o pensar do sensível, em cada um desses casos, fosse anterior ao sensível.

Estamos diante de uma questão cara ao Tractatus, a saber, a de ser preciso fazer a ligação entre nomes e objetos, ligação que, essencialmente, seria arbitrária e logo subjetiva, como se, não havendo sujeito algum, precisaríamos inventá-lo, supô-lo, quer como empírico, quer como transcendental, enquanto fonte primeira da significação. E que tal sujeito poderia fazer tais escolhas mesmo quando não há razão ou causa alguma para elas, sendo enfim ser sujeito o ter essa capacidade. Nesse caso, a psicologia ou a epistemologia parecem vir em socorro da lógica, antecipando-se a obra do acaso aos ditames da necessidade.

Lembremos ser parte do método de Wittgenstein a invenção de exemplos, que parecem escandir o problema além dos contextos mais familiares, de sorte que, nesse ambiente extremo, quase de antropologia de ficção, certas analogias se quebrem e outros desenhos significativos se mostrem possíveis. Esse é o caso da pergunta de Wittgenstein pela possibilidade de uma linguagem privada, exemplo que julgamos servir como ficção autoterapêutica para o problema da relação entre nome e objeto, caso ambos sejam logicamente simples.

Como exemplo extremo de ficção, a pergunta não se volta a casos triviais de privacidade. Cada um de nós pode falar sozinho, pode encorajar-se ou admoestar-se, sem que, todavia, tenhamos situação semelhan te à descrita por Wittgenstein no § 243 das Investigações filosóficas. Seria essencial à privacidade da linguagem a ser investigada que, nela, alguém anotasse suas sensações e estados de espírito, que pudesse indicar, por exemplo, com o sinal S uma sensação imediata e indescritível, à qual tivera acesso no seu íntimo. Nesse caso, as palavras se refeririam ao que apenas o falante dessa linguagem pode saber, no caso, “suas sensações imediatas, privadas. Um outro, pois, não pode compreender essa linguagem”. Desse modo, é essencial ao exemplo de ficção da linguagem privada que (i) a sensação registrada seja, por definição, indescritível e (ii) que outra pessoa, não tendo como saber de que experiência se trata, não poderia compreender tal linguagem.

É trivial alguém admoestar-se a si mesmo, ou encorajar-se a todo instante. Isso é trivial e o fazemos bem em nossa linguagem costumeira, não sendo disso que se trata. Temos sim, como exemplo de ficção, o enigma de uma linguagem privada em sentido estrito, uma que outrem não entenderia, porque animada pela nomeação de sensações, por definição, inexplicáveis, imediatas. Nesse caso, a objeção fundamental é que, sem critérios externos, sem um contexto da regra e sem exemplos de sua aplicação, o indivíduo não entenderia ele mesmo a linguagem que ele próprio teria inventado, ou melhor, não teria qualquer padrão para a aplicação da palavra S que ele anotara, digamos, em um diário privado, sendo desprovido tal diário privado de qualquer sentido, não bastando, em último caso, acreditar seguir uma regra para que tal regra se constitua como tal e esteja sendo seguida.

Alguns pensam que o argumento da linguagem privada seria um modelo de tratamento para toda interioridade, como se em todos os casos estivéssemos na condição de nos levantarmos sem apoio pelos cabelos. Com isso, porém, perde-se o específico de seu alvo, pois este remonta exatamente àquela situação extrema de nomeação, àquela situação primeira (inefável e, não obstante, essencial), que é condição de toda significação futura, mas é essencial silêncio.

A distinção corrente entre um primeiro e um segundo Wittgenstein esmaece o labor de uma obra que renova sua unidade debruçando-se sobre si mesma, retomando elementos centrais de sua argumentação. Vimos acima que uma ligação arbitrária entre nome e objeto é a condição mínima da representação, colocando-se como necessária antes mesmo de os nomes se comportarem como nomes, ou seja, em uma proposição, com a qual é possível dizer como estão relacionados os correspondents objetos da nomeação, e não exatamente o que seriam tais objetos. A armação do Tractatus parece depender de uma posição de fé, qual seja, a possibilidade da nomeação no mais puro estado, sem qualquer sentido, pela simples ligação de nome a objeto, de sinal a referência. Ora, é exatamente isso que o célebre argumento da linguagem privada questiona, submetendo ao mais duro ataque a ideia tradicional de um pensamento anterior à linguagem, de uma operação da alma em diálogo prévio e essencial consigo mesma. No início, não pode estar o silêncio, mas antes um ruído. Não a solidão, mas sim um solo mais rude e menos privado, no qual palavras e ações se entrelaçam.

Não por acaso, portanto, o § 243 é praticamente contíguo ao § 239, que apresenta o clássico problema da nomeação de cores, tomada como simples. As divisões tradicionais e artificiais das Investigações, como se contidas entre os §§ 243-315, esmaecem essa proximidade óbvia com o § 239 – proximidade que, todavia, se levada a sério, altera e torna preciso todo o significado do “argumento”, sendo este uma negação daquela condição metafísica e lógica, já enunciada no Teeteto. O argumento contra a possibilidade de uma linguagem privada em sentido estrito opõe-se, pois, à tradição que faz subsistir, como condição da significação, um resíduo laborioso e subjetivo, uma ação que vive antes e dá vida à explicação, que liga nome e objeto, mas num recôndito lógico, sem que tenhamos razão alguma para isso. Um sujeito que pensa, portanto, antes de ter linguagem, ou que, em seu silêncio prévio, como leitor dos mapas ainda não escritos, parece ter uma linguagem privada, dialogando primeiro ·consigo mesmo, antes de se pôr no mundo ou de dialogar com os outros. Em sentido estrito, não dialogamos privadamente, assim como a mão direita não doa à mão esquerda o dinheiro que efetivamente lhe entrega.

4

Há várias figuras do inefável em Wittgenstein. Atentamos aqui apenas para uma delas, que julgamos fazer desdobrar sua obra em gesto de extrema autoterapia e crítica da filosofia. A lição do argumento da linguagem privada, da possibilidade de uma fala significativa anterior ao jogo da significação, mostra todo o radicalismo da posição de Wittgenstein em relação à história inteira da filosofia. Não há afinal um solo de conhecimento anterior a todos os solos, um ponto axial que sintetizaria todos os métodos, uma razão enclausurada a aguardar sua queda na linguagem, enfim um olhar divino que, não tendo sido alcançado, já se dispunha antes, como se fora o sentido futuro da justificação e como pedra de toque do conhecimento.

E, na pergunta mais funda pela natureza do conhecimento, acreditamos, a filosofia nos reconcilia com toda a tradição do pensamento ocidental, inclusive no gesto por que se opõe a ela, e nos convida a participar desse desafio incerto e aberto. Afinal, assim como andar é interromper quedas, é uma suspensão da negatividade primeira das quedas, falar é quebrar silêncios, sendo a frequentação do mundo condição até de nossa voz mais interior. E isso não nos faz menos humanos, não nos faz sair de nós mesmos, faz animar dentro de nós algo que já é coletivo, da mesma forma que, estando em um contexto, implicando seguir regras, paciência é um jogo que não jogamos sozinhos.

Notas

  1. Uma confissão. Devia fugir do tema do inefável, até por ele ser previsível para um wittgensteiniano. Entretanto, tanto por ser wittgensteiniano, quanto por ser de Cachoeira, não consegui. Fui tragado mais uma vez por esse fundo que não se expressa e, todavia, é condição de expressão, por esse ponto de vista do eterno, que se materializa na urdidura da mais simples proposição e também se aninha na visão do mundo como totalidade. Dessa forma, em minha fala sobre o silêncio, procuro, entre o didatismo e o espanto, fazer não exatamente uma lista de itens inefáveis, mas sim destacar alguns essenciais itens inefáveis, detendo-me em muito no necessário simples (que, como tal, não pode ser enunciado), a partir do qual se esboça outro inefável, a forma lógica (que, ao se mostrar, tampouco se deixa dizer), deixando adivinhar o ponto em que solipsismo e realismo devem coincidir, a dimensão de valores irredutíveis a fatos, na qual, fora do mundo mesmo, se encontrariam o místico, o estético e o ético. O que, então, esse momento mínimo de quebra do silêncio e como o silêncio é condição da palavra? Em que sentido a quebra do silêncio tem, ao menos, urna importância filosófica em Wittgenstein? O desafio é, então, abordar uma questão deveras técnica, não perdendo porém o horizonte do que pode ser relevante; abordar, com o devido rigor (e, de preferência, na melhor tradição exegética), problemas conceituais que desafiam nossa visão da realidade e importam para nossa ação.
  2. Platão, Teeteto, Lisboa: Gulbenkian, 2005, p. 303.
  3. Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, São Paulo: Edusp, 1994, 2.0233-2.02331.
  4. Thomas Hobbes, A natureza humana, Lisboa: Imprensa Nacional, 1983, p. 75. Temos aqui a ideia de um sujeito subjacente, que pode decidir, julgar, escolher, arbitrar, mas que tampouco pode mostrar sua presença, diferenciar seu fluxo natural de sensações, sem marcas sensíveis. Uma questão técnica insinua assim uma importante imagem na história da filosofia, imagem que não deixa de perseguir o próprio Wittgenstein, sempre a insinuar a necessidade de um sopro anímico como condição primacial da significação. No primeiro Wittgenstein, a imagem de um sujeito chamado a fazer sozinho as ligações primeiras entre nomes e objetos.
  5. Lewis Carroll, A caça ao Turpente, São Paulo: Interior Edições, 1984, pp. 37-39.
  6. Um debate como esse, que parece obrigar a ver o que não pode ser visto e a distinguir o indistinguível, bem situa a aflição de Wittgenstein em campo semelhante ao das aflições de outros filósofos, bem instalando sua obra no campo da história da filosofia. Entre essas aflições, lembro a que suscitou a ficção do olho microscópico (imaginada por Locke), que faria coincidir a possibilidade de ver dada somente pela razão (que opera uma divisão infinita de uma reta composta de pontos cada qual invisível) e a visão efetiva disso que não se deixa ver. Mesmo no limite, nunca sendo o mesmo, razão e visão se cortejariam, vendo então as causas e dominando as demonstrações, que, pois, mais que inferidas ou intuídas, seriam ambas passíveis de explicação, de sorte que, nesse limite, indução e dedução diriam o mesmo e da mesma forma.

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