1992

O sono e a vigília

por José Américo Motta Pessanha

Resumo

Qual é a fronteira entre a história e a ficção?

Essa questão subentende dois temas: o da lógica e o da objetividade da história.

De início, cabe lembrar que Clio, antiga musa grega da história, é filha de Mnemônise (memória), irmã de Cronos (tempo), pai de Zeus. Assim, Clio é anterior ao reinado deste, que se destaca pela luminosidade ordenadora, racional; logo, é ela titã de uma era de insubmissão e violência. Não por acaso, tempo, memória e história questionam incessantemente o instituído, de modo a gerar constante tensão com o que há de unificador e sistematizante em Olimpo. Isso que permeia tanto as obras de logógrafos como Heródoto e Tucídides como as de historiadores atuais, escravos de antinomias, como a do verdadeiro e o falso ou do real e o simulacro, motivos filosóficos para Heráclito, Parmênides, Platão e teóricos atuais.

Não que tal condição seja privilégio da história. Ela é inerente a todo discurso que se pretende verdadeiro – ensina também a mitologia. Mais especificamente, a Teogonia de Hesíodo, principal tentativa de explicar o estado do cosmo grego de então (séculos VIII e VII a. C.), por meio de uma genealogia que justifica todos os seres, de modo a envolvê-los em razoabilidade, sem que Hesíodo, o pastor-poeta, abandone sua condição de vida: no sopé da montanha, entre ovelhas, como numa advertência confirmada pelas musas da Teogonia; elas “que, com a mesma desenvoltura com que proclamam verdades, contam mentiras inteiramente verossímeis”. Assim, é no horizonte mais distante da história que se anuncia a questão da ambivalência do discurso verdadeiro, tão perigoso quanto o mais perigoso sonho: o de que se está completamente acordado.

E assim não se está próximo de Descartes? Parcialmente – já que a hipótese cartesiana é ainda mais radical: a de que, tão mais cristalina seja a visão, tão mais iludido se está. É a dúvida no interior da evidência ou quando dois mais três não são cinco.

Nesse sentido, a linguagem também corre risco, pois, entre os modelos matemático e o argumentativo, ou ela delira, ou falha.

Já para Roland Barthes: entre mito, lenda, fábula, conto, novela… há a história. E entre James Bond e Napoleão, não muita diferença. Com Jean-Pierre Vernant, é preciso lembrar que, na Grécia antiga, o memorável cabia à poesia. Interessante é que, séculos depois, haverá vestígios disso em Platão, para quem o resgate das essências eternas resulta da “coerência simbólica” persuasiva mas não demonstrativa, já que vitalmente imaginante, inevitavelmente poética.

Oposto a Platão é Hegel, que pretende estabelecer a sucessão “necessária” dos fatos, pela descoberta de uma lógica histórica, Absoluta, o que soa absurdo para Gaston Bachelard e seu estudo sobre a estrutura da linguagem como determinante na impressão de sucessão temporal ou de “duração”, que, assim como apresentada por Henri Bergson, constitui o fluxo qualitativo que subjaz o sujeito ou o devir do “eu profundo” e suas estratos e automatismos, espaciais e pragmáticos.

Surgem então linguistas como Benveniste, Harris, Ruwet… e, com eles, a questão sobre – integradas retórica e belas-letras – o estilo discursivo da história. Isso que se estende a Wittgenstein, Perelman, Strawsson, Austin… para os quais o discurso histórico resulta da organização e correlação de inúmeras informações sobre uma época ou um personagem histórico, de modo a montar sequências narrativas a partir de elos causais.

Mas isso não é tudo. Afinal, num processo assim, impossível não imaginar, fabular. O historiador ainda é, pois, narrador. Do contrário, para quem mais apareceria Mnemosine? As musas? O historiador canta – e não é nas alturas divinas, mas na planície humana, “ao pé do Heliconte”.

 


O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro.

Machado de Assis [1]

Uma pergunta conduz estas reflexões: onde a fronteira — se é que ela existe — entre história e ficção? Ou, noutras palavras: entre as muitas formas de narrativa, onde situar a linha divisória — se é que ela pode ser traçada com nitidez — entre os diversos tipos de histórias inventadas e uma história que pretende ostentar estatuto de cientificidade, apresentar-se enquanto epistéme, inscrever-se entre as formas “sérias” de conhecimento, candidatar-se à conquista de alguma verdade exterior a seu próprio discurso, narrando e ao mesmo tempo explicando o objeto que aborda?

Esse tipo de indagação subentende duas questões cruciais: a da lógica e a da objetividade da história. Mas é imprescindível desde logo assinalar: o estatuto de cientificidade e o conseqüente valor da história — valor científico e não apenas literário — pressupõem questões mais abrangentes, como as distinções entre ficção e ciência, fantasia e verdade, variantes do binômio radical sono e vigília. Vale lembrar, recorrendo à mitologia grega: Clio, musa da história, é filha de Mnemosine, a titânica irmã de Cronos (pai de Zeus), ambos gerados por Gaia, a Terra, e Uranôs, os Céus. Tempo (Cronos), memória (Mnemosine) e história (Clio) são, assim, originariamente anteriores ao reinado dos olímpicos presidido por Zeus e sua luminosidade ordenadora expressa também em razão. Mais arcaicos, de estirpe titânica marcada por insubmissão e violência, tempo, memória e história incessantemente questionam o instituído e o fixado, mantendo tensa relação com a racionalidade olímpica, unificadora e sistematizante.[2] O titanismo que corre nas veias de Clio transparece na linhagem que parte dos logógrafos, Heródoto e Tucídides e chega aos historiadores atuais, sob forma de inquietante pendular entre verdadeiro e falso, real e simulacro, que preocupa os filósofos, de Heráclito, Parnênides e Platão a nossos dias.

Essa oscilação, contudo, é inerente ao discurso anunciador da verdade, ensina já a mitologia. Com efeito, no século VIII a.C., Hesíodo apresenta sua Teogonia como a Grande História: a narrativa que, a partir do Começo de tudo, mostra o aparecimento dos diferentes seres, inclusive deuses e humanos. Mitopoie-ticamente, a Teogonia procura justificar o estado atual do cosmo como resultado da situação primeira, originária, sucessivamente desdobrada por matrimônios, filiações, concatenadas gerações e eras. O nexo causal-explicativo surge sob a forma de genealogia: genealogia cósmica que enlaça todos os seres e lhes confere alguma racionalidade, pois fornece a “razão” — os ancestrais, os antecedentes, os genitores — da existência de cada um deles. Mais: essa Grande História, que torna justificável o presente e o envolve de razoabilidade, é apresentada por Hesíodo como comensurável à medida humana, pois inteiramente acessível à compreensão dos mortais. De fato, seu conteúdo lhe foi ensinado pelas Musas, enquanto ele — poeta-pastor — “apascentava suas ovelhas ao pé do Heliconte divino”.[3] Importante ressaltar: o desvelamento da verdade (alétheia) sobre a gênese de todas as coisas ocorre em meio às atividades cotidianas, sem que o poeta-pastor abdique de sua condição corriqueira de vida e trabalho, sem que abandone a dimensão humana. Por isso, é no sopé da montanha, não em seu cume, que a verdade sobre a origem de tudo lhe é desvelada. Mas essa desocultação da verdade contém uma advertência prévia, que pairará sobre todos os empreendimentos cognitivos, ao longo do tempo, freqüentemente reposta por filósofos. É que, logo em suas primeiras palavras, as Musas previnem: “Sabemos contar mentiras inteiramente semelhantes a realidades; mas sabemos também, quando queremos, proclamar verdades”.[4]

Eis a primeira lição que as Musas ensinam a Hesíodo e ele repassa aos mortais: a fonte da verdade é a mesma fonte da falsidade. Ou, glosará Platão mais tarde: o ser habita junto do não-ser, seu sósia.[5] E é diante da tênue fronteira entre o-que-é e o-que-não-é (mas parece ser) que se constrói o discurso que Hesíodo escuta e repete, intermediário entre as Musas e os homens. Sua Grande História mitopoiética, ao mesmo tempo cosmogonia, teogonia e história da humanidade,[6] estabelece o horizonte mais distante para a historiografia. E mostra: a

ambivalência é inerente à construção do discurso verdadeiro, tenso e frágil fio desenrolado entre verdade e falsidade. Clio, por origem e natureza, ocupa o espaço de embate entre mito e ciência, onde, a partir do sono atávico, constrói argumentativamente seu direito à vigília.

Os primeiros filósofos gregos insistem sobre a tensão que palpita no âmago do discurso que persegue a verdade. Heráclito de Éfeso proclama:

Deste logos sendo sempre os homens se tornam descompassados quer antes de ouvir quer tão logo tenham ouvido; pois, tornando-se todas [as coisas] segundo esse logos, a inexperientes se assemelham embora experimentando-se em palavras e ações tais quais eu discorro segundo [a] natureza distinguindo cada [coisa] e explicando como se comporta. Aos outros homens escapa quanto fazem despertos, tal como esquecem quanto fazem dormindo.[7]

O descompasso apontado por Heráclito é o que separa a vigília do logos único e universal, que ele anuncia, do sono que entorpece os homens e lhes oferece múltiplos sonhos, inclusive o mais perigoso porque mais cativante: o sonhar que se está acordado. Todos esses sonhos vários e particulares, distantes da vigília do logos, são tecidos com palavras e ações: as muitas teceduras narrativas da ilusão.

Mas, pode-se indagar, e o próprio logos universal do qual Heráclito, altaneiro e solitário, se apresenta como arauto, ao proclamar: “Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar tudo é um” (DK 50)?[8] Qual a garantia de que sua pretensão de luminosa e vigilante unidade não é o sonho mais profundo e mais perverso?

A questão é fundamental em Platão. O prisioneiro da caverna (República, livro VII, 514a), enquanto não faz a conversão do olhar, só conhece o que lhe é apresentado pelo teatro da ilusão: as sombras dos simulacros artefeitos que, iluminados por fogo artificial, são projetados no fundo da caverna. Enquanto não descobre a engenhosa montagem — a fonte luminosa está às suas costas, fora de seu âmbito de visão —, o prisioneiro permanece preso ao ilusionismo que o fascina e subjuga pela repetição, pela homogeneidade da linguagem sem contradição ou alternativa. A narrativa visual e auditiva das sombras e dos ecos que se sucedem[9] é a única que apreende, a única que, portanto, parece existir, a única “realidade” percebida: o prisioneiro é prisioneiro porque prisioneiro da ilusão convincente, prisioneiro de uma retórica de imagens que se impõe e coage pela monotonia e pela monologia do discurso, que, desde sempre aparecendo como único, propõe-se com a naturalidade do que existe-aí, como real.

Após a conversão do olhar, a libertação se processa não apenas pela inicial descoberta da situação de engodo, mas sobretudo pela criação e pelo uso das múltiplas formas de linguagem, correspondentes aos diversos objetos apreendidos nas sucessivas etapas do itinerário da sombra à luz, da repetição escravizante do mesmo (discurso) à variedade libertadora. Inicia-se, assim, uma dialética de imagens que, no seio da multiplicidade, propicia a progressiva cura/iluminação da alma, enquanto constrói a ascese rumo ao Belo, ao Bem, ao Um (re)conquistado e não dado ou imposto, e — agora sim — à Realidade. Entre muitas outras coisas, isso significa: a conversão da ilusão à verdade pressupõe a travessia de todo o território das linguagens — oceano imenso, repleto de obstáculos, perigos e encantações, a ser percorrido por Odisseu —, pois o (re)conhecimento do real — pátria distante, Ítaca desejada — é o prêmio final do adiado retorno, num permanente navegar por imagens buscando o além-da-imagem, o além-de-toda-linguagem que a linguagem procura atingir, sem jamais alcançar plenamente: como o exato valor da raiz de 2 que √2 indica sem desvelar.[10]

A matemática parece confirmar: o verdadeiro valor, a exata verdade, é meta final, não ponto de partida. Mas Platão também percebe: dar a versão verdadeira dos fatos resulta de uma luta ferrenha com outras versões, incompletas ou equivocadas. De fato, traçar o verdadeiro retrato do filósofo — Sócrates — exige distingui-lo do sofista, do fazedor e vendedor de simulacros. Mas isso não é fácil. Primeiro, porque há uma generalizada e antiga versão que apresenta Sócrates como mais um sofista. Aristófanes contribuíra para o fortalecimento dessa imagem, que acaba “oficializada” pela condenação de Sócrates à morte. E o que Platão tenta com seus escritos é justamente contrapor à história oficial outra história: a versão supostamente verdadeira dos acontecimentos, o retrato fiel da vida, das ações e do pensamento de seu mestre. Mas a maior dificuldade para realizar esse projeto — distinguir o filósofo (Sócrates) do sofista, separar a verdade da falsidade — advém sobretudo da íntima relação que os vincula indissoluvelmente. De fato, ambos lidam com as mesmas substâncias: as palavras, phármakon que tanto serve de remédio quanto de veneno. Ambos são mestres na arte sutil de enredar a alma do ouvinte-paciente-educando no processo de cura e/ou encantação por meio do discurso. Se o filósofo é o não-sofista — como procura mostrar o próprio Sócrates ao se defender diante da Assembléia dos heliastas[11] —, eles podem às vezes usar os mesmos recursos e até defender as mesmas teses, trocando aparentemente de lugar, numa desconcertante coreografia de idéias.[12] E é necessário reconhecer a interligação profunda entre ser e não-ser (enquanto alteridade), e com esforço distinguir imitação de simulacro,[13] para afinal justificar que retratos tão aparentemente semelhantes sejam — mas por um triz! — diferenciados. Diferenciados, sim, porém nunca separados: passam a conviver como verso e reverso da mesma moeda, em indestrutível tensão gerada pela constante possibilidade de permuta de lugar entre o mesmo e o outro.

Na abertura da Modernidade, Descartes prossegue na exploração da ameaçadora possibilidade de que todo conhecimento se dissolva em ficção, de que a mesma vigília seja apenas outra forma de sonho. A hipótese cartesiana é particularmente cruel porque não identifica necessariamente ilusão e sombra, verdade e luz. Ao contrário, instala a ameaça de engano no seio da claridade máxima, imaginando a possibilidade de estarmos mais iludidos quando, escapando à instabilidade e à insegurança da caverna sensível, ascendemos ao patamar das evidências matemáticas, puramente inteligíveis. Afinal, a escalada pode conduzir a outra prisão, a rampa por onde o prisioneiro procura escapar da caverna pode levar a outro aposento da mesma caverna, o despertar na claridade pode ser um falso despertar: pode ser a entrada num pesadelo cristalino, num alumbramento alucinatório, feito só de evidências perfeitamente concatenadas. Enquanto faz pairar essa terrível ameaça — o tempo de se percorrer as três primeiras de suas Méditations métaphysiques —, Descartes estende a dúvida metódica ao imaginário luminoso, de construção lógica, reino da univocidade e da dedutividade de modelo matemático. E se a grande armadilha nos aguarda, emboscada, fora da caverna escura? E se é na luz que nos perdemos? E se estamos mais enganados justamente quando acreditamos nas idéias claras e distintas, nas indubitáveis evidências matemáticas do tipo 2 + 3 = 5?

Naturalmente, é fácil e até prudente duvidar do que nos fornece informações sombreadas de incerteza e nos induz freqüentemente a erros: as sensações, a memória, a imaginação. Mas o que Descartes propõe agora é estender a dúvida à extensão máxima, torná-la hiperbólica, para — intencional embora provisoriamente — questionar a objetividade correspondente às idéias claras e distintas, base da epistéme racionalista clássica. Para tanto, utiliza uma hipótese: de que poderíamos estar à mercê de um Deus enganador ou de um malin génie, que nos fariam errar justamente quando temos certeza. E se para Deus 2 + 3 não fazem 5? E se à certeza subjetiva, sustentada pela evidência, não corresponde uma realidade objetiva, perfazendo a adequação que parece indispensável à verdade? E se essa certeza nos prende em nós mesmos, alucinados? E se o grande erro — suprema malícia, suprema malignidade reinante sobre o mundo — é o homem acreditar no meio-dia da razão que lhe revela objetos inteligíveis, banhados por luz puríssima, sem qualquer vestígio de sombra, mas irreais? E se a Luz a que nos entregamos, fascinados, é a máscara maldosa e irônica da Treva?

É bem verdade que a hipótese do Deus enganador acaba por indicar ao menos uma certeza que resiste a qualquer dúvida, pois se reforça à custa do próprio engano: o cogito surge aqui fortalecido pela dúvida extremada, pois agora sei que existo pelo menos enquanto penso meus enganos, existo enquanto ser pensante-enganado e durante o tempo em que penso meu engano. E, mais Deus me enganara, mais se reafirma a existência de meu enganado pensamento. Falta, porém, recuperar todo o resto, sobretudo a veracidade e a objetividade dos conhecimentos claros e evidentes.

Analisando esse momento decisivo da construção do cartesianismo, no qual outra vez ocorre o confronto entre sono e vigília, entre ficção e ciência, Henri Gouhier mostra que a ampliação da dúvida, a ponto de invadir o reino da clareza matemática, depende da utilização de dois recursos complementares mas distintos.[14] O primeiro é uma hipótese — a do Deus enganador (le Dieu trompeur) — que poderia nos enganar porque a verdade não é para ele o que parece ser para nós. O segundo é um artifício metodológico, uma fábula, um mito metodicamente pessimista, capaz de criar uma situação ontológica radical que conduz ao desespero epistemológico,[15] pois o gênio maligno, malicioso (malin génie), sistematicamente se compraz em nos enganar, mostrando-nos o falso sob a aparência do verdadeiro.[16] Ambos os recursos contribuem para questionar a veracidade das evidências intelectuais, para abalar a tranqüilidade da “luz natural” da inteligência. Possuem, porém, diferentes origens e naturezas, exigindo portanto diferentes antídotos. O Dieu trompeur pode, com efeito, ser apenas uma imagem equivocada do verdadeiro Deus, gerada pela precariedade dos conhecimentos humanos; essa imagem errônea pode depender tão-somente de minha ignorância sobre a natureza divina, ser “o verdadeiro Deus confusamente conhecido”. Por isso, basta corrigir meu pensamento, submetê-lo a um processo ortológico, para provar a existência de Deus como ser perfeito — e, portanto, não enganador —, desfazendo a ameaça contida na primeira hipótese: o Deus veraz garante a veracidade das idéias claras e distintas.[17] Imaginá-lo como enganador fora apenas fruto de ignorância provisória, que alimentara dúvida também provisória.

Já o artifício do malin génie é de outra ordem: porque artifício, é criação minha, ficção minha, artifício meu, sem qualquer segredo para mim, seu autor. Assim sendo, não basta provar racionalmente a existência de Deus, como ser perfeito e conseqüentemente veraz, para desmontá-lo. Justamente porque gerado intencional e artificiosamente por mim, o gênio maligno provém de outra instância e requer outro tipo de exorcismo: enquanto ficção, depende da vontade (de criar) e da imaginação que se põe a serviço dessa vontade. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, exatamente porque depende da vontade e da imaginação é que não é possível, uma vez engendrado, destruí-lo por meio de argumentos racionais. Enquanto narrativa mítica inserida no contexto de meditações metafísicas, o artifício do malin génie permanece imune ao tratamento ortológico que desfizera a hipótese do Dieu trompeur, pois não se sustenta, como este, no vazio do conhecimento, na ignorância a respeito da verdadeira natureza de Deus, mas na presença de um ato intencional de criação ficcional. Narrativa mítica interposta elipticamente na trama de rigorosas reflexões tecidas pela “ordem das razões” que preside a construção do cartesianismo, o gênio maligno resiste ao exorcismo apenas racional: somente pode ser vencido por outro ato mitopoiético, que substitua o mito pessimista, que ele representa, por outro mito, de natureza contrária. O “imoralismo transcendental” que instaurara,[18] desestabilizando o trabalho da razão dedutiva e corroendo os alicerces do ideal cartesiano de mathesis universalis, necessita da contrapartida de um Deus existente não apenas enquanto veraz, mas também enquanto bom. Com efeito: o otimismo garante a veracidade das idéias claras e distintas, impedindo que a matemática seja luminoso sonho que passa por vigília. E, porquanto otimismo, possui raízes morais, possui “razões” exteriores ao território da razão pura, como Kant mostrará exaustivamente. A bondade de Deus é o único antídoto eficaz para a malignidade do gênio: somente o bom Deus é capaz de exorcizar o malin génie. Descartes não demonstra essa bondade: ela é “um dado de seu inconsciente metafísico”.[19] Mas ele não a demonstra, também, porque ela pertence a outra ordem de razoabilidade e de linguagem, que ultrapassa e antecede historicamente a construção da razão matemática, demonstrativa: o bon Dieu e o malin génie são personagens de antiqüíssimas sagas mitopoiéticas, nelas respondendo por genealogias já descritas por Hesíodo — a linhagem da luz e a linhagem da sombra, os filhos do Dia e os filhos da “Noite tenebrosa” que, sozinha, gera “Sono e com ele toda a raça dos Sonhos”.[20] Descartes não demonstra a bondade de Deus porque o bon Dieu, na verdade, é protagonista de uma narrativa teogônica e cosmogônica, não a conclusão de um raciocínio; ele é simplesmente criado, posto aí pela vontade otimista, entrando no enredo por determinação do “autor” (Descartes, mas enquanto porta-voz de longa tradição cultural que passa pelo Salvador cristão). Surge como o herói que dá combate ao tradicional adversário, ao malicioso e perverso Príncipe das Trevas. Sua entrada em cena garante o happy end de uma luta e de um confronto que filosofia, literatura, cinema reiteradamente rememoram, resgatando remotíssimas raízes míticas e religiosas.[21]

Estamos aqui na delicada fronteira entre dois territórios integrantes da racionalidade — o da razão pura e o da razão prática mas também na encruzilhada entre duas ordens de linguagem: a linguagem de modelo matemático, que tende à formalização e privilegia a evidência, a construção more geométrico e a prova analítica, coagente; e a linguagem jamais inteiramente formalizável, de modelo jurídico, litigante, estrutura argumentativa e dialógica, que visa à persuasão.[22] A primeira constrói-se com vocação — ou delírio? — de intemporalidade, como monólogo da “razão divina”, à luz da eternidade: esta é sua hybris, sua desmesura, a segunda se reconhece e se quer como razão humanizada, múltipla e contingente, relativa e relacional: esta sua nietzschiana modéstia.[23] Do ponto de vista lingüístico, também não passa por aqui a fronteira entre dois reinos: o da sintaxe e o da pragmática?

Na abertura de seu famoso ensaio sobre a análise estrutural das narrativas, Roland Barthes começa por advertir sobre a variedade prodigiosa de gêneros que integram essa categoria. De fato, ela é constituída tanto por linguagem articulada (oral ou escrita) quanto por imagem (fixa ou móvel), por gesto ou “pela mistura ordenada de todas essas substâncias”,[24] apresentando-se enquanto mito, lenda, fábula, conto, novela, epopéia, história, tragédia, drama, comédia, pantomima, quadro pintado, vitral, cinema, quadrinhos, conversação etc. Como se vê, a história aparece aí no meio de artefatos de linguagem nos quais prepondera o trabalho criativo da imaginação (pessoal, social, cultural), no território sob a jurisdição das Musas. É bem verdade que o texto de Barthes em nenhum momento nos autoriza a afirmar que ele esteja se referindo à história com pretensão de cientificidade — à História— e não apenas às histórias fictícias. Essa indistinção, todavia, já diz o principal. O que Barthes pesquisa — a estrutura das diversas formas de narrativa, a organização das seqüências, o papel das distensões e distorções de signos ao longo das histórias etc. — refere-se a qualquer narrativa, portanto a qualquer narrativa histórica: fictícia, fabulosa ou supostamente científica. Isso parece indicar que não é no nível narracional que essa distinção, se existe, pode ser estabelecida. Sem dúvida, quando trata das personagens, das dramatis personae ou actants, Barthes prefere focalizar o James Bond do Goldfinger. Mas alguma coisa mudaria se se tratasse de Péricles ou Napoleão?

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer: antes do surgimento de uma história “científica”, o memorável era atribuição da poesia. A função poética, nos antigos gregos, era presidida por Mnemosine, a mãe das Musas. Como mostra Vernant, “possuído pelas Musas, o poeta é o intérprete de Mnemosine, como o profeta, inspirado pelo deus, o é de Apolo”.[25] Poesia e adivinhação possuem estreita afinidade nas confrarias de aedos da idade arcaica: aedo e adivinho têm em comum o mesmo dom de “vidência”, privilégio pago com o preço dos olhos. Cegos para a luz, vêem o invisível. Só que o adivinho vê o futuro, o que não é ainda, enquanto o poeta, sob a proteção de Mnemosine, vê o passado, o que não é mais. Porém, é imprescindível assinalar: a memória mítica, como em Hesíodo, desatada pela proteção das Musas e de Mnemosine, é aquela que “reintegra o tempo humano na periodicidade cósmica e na eternidade divina”.[26] Não procura resgatar o tempo humano, vivido e perdido, antes romper as malhas e cadeias desse tempo “horizontal” — a cronologia dos eventos —, para retornar ao Aion,[27] ao “sempre” que caracteriza a vida dos deuses, ao tempo que não envelhece, ao mítico Começo, ali onde a anamnesis (reminiscência) platônica colocará, mais tarde, a morada do ser imutável: além das vicissitudes temporais do plano empírico, no “alhures” em que se daria, afinal, a (re)união da alma com o divino e com as divinas essências das coisas, subordinadas ao supremo Bem, o tão adiado objeto de amor e (re)conhecimento.

Importante também assinalar que o desenvolvimento de uma mitologia de Cronos, ao lado da de Mnemosine, corresponde a um momento de profunda crise na cultura grega (cerca do século VII a.C.). A crise se expressa por meio da nova imagem de homem correspondente ao nascimento da poesia lírica. Abandona-se o ideal heróico das antigas epopéias e cultivam-se os valores ligados diretamente à vida afetiva individual, submetida às oscilações das circunstâncias. A vida emocional, os prazeres, as dores, o amor e a morte, o implacável curso da vida que rola incessantemente em direção ao fim, são os temas que substituem a visão e o canto sobre a renovação cíclica do universo.[28] E é a partir de então que correntes religiosas e filosóficas — geralmente vinculadas à linhagem órfico-pitagórica — passam a explorar dois caminhos: um que ressalta a negatividade do tempo onde transita a existência humana, outro que convida ao abandono da temporalidade — por meio de algum tipo de purificação —, em busca do Aion, o divino “sempre”.

Do mesmo modo que os temas éticos fundamentais — como o da possibilidade do ensino ou transmissão da areté (virtude/virtuosismo/excelência/mestria) — foram primeiro desenvolvidos no âmbito da poesia exortativa, também a concepção de tempo e história foram atribuições primeiro da mitopoiesis. Muitas transformações culturais serão necessárias, na Grécia antiga, para que esses temas transmigrem da poesia para a prosa, manifestando maior teor de racionalização.[29] É o que ocorre, no caso da areté, com a sofística e os vários socráticos.

Nesse contexto, a posição de Platão é peculiar e decisiva, estreitamente vinculada à sua filosofia da linguagem. Mas, se a questão da virtude é central nos diálogos e pode receber o tratamento racionalizador da maiêutica, da prosa argumentativa, e até ser iluminada pela utilização do método hipotético “dos geômetras”,[30] jamais a questão da história será tratada “cientificamente”. Por um lado, porque a história dos eventos humanos está irremediavelmente imersa na temporalidade, na concretude, na singularidade, no empírico; pertence definitivamente ao nível da doxa, como conjectura ou, no máximo, crença;[31] enquanto a epistéme se guarda para o permanente, o universal, o intemporal. Por outro lado, porque a concepção platônica de anamnesis, embora a serviço do resgaste das essências eternas, articula-se a outro tipo de provável: a “simbólica coerente” dos mitos, simbólica a-matemática, persuasiva mas não demonstrativa, inevitavelmente imaginante, inevitavelmente poética. Por mais que aí as imagens tramem uma forma de plausibilidade, nunca são apenas alegóricas, “resistindo” à total tradução em conceitos a serviço da demonstratividade. É que o tempo dos mitos platônicos é realmente mítico e os mitos históricos ou genéticos em Platão são narrativas tautegóricas.[32] Utilizando várias formas de linguagem, correspondentes a vários tipos de objetos e de conhecimentos, Platão indica, pela tautegoria das imagens de certos mitos — como os históricos ou genéticos —que a história não se desprende jamais da criação imagética.

É bem verdade que Platão distingue entre mito e discurso (supostamente) verdadeiro sobre o passado. A respeito dos acontecimentos relativos às guerras médicas e à guerra do Peloponeso, decisivos para Atenas, Platão jamais utiliza o vocábulo mito. Mas é esse o vocábulo que usa para, nas Leis, referir-se, por exemplo, à fundação e à queda de Tróia, ou ao modo de vida dos Ciclopes.[33] Por outro lado, o termo mitologia aparece, em Platão, sempre ligado a poiesis, tanto na acepção de “contar mitos” quanto na de “fabricar mitos”.[34] O mito se distingue da história não apenas porque é rememoração da Origem por abandono da seqüência ou cronologia “horizontal” de eventos do tempo humano; distingue-se também porque não possui — nem pretende — qualquer rigor, qualquer precisão de datas ou épocas: bastam-lhe expressões indefinidas, indicações vagas do tipo “uma vez”, “era uma vez”, que aparecem em diálogos como República (II, 359d 1; x, 614b 4), Protágoras (320c 8), Fedro (259b 6).[35] É que Platão reconhece: o mito é jogo (paidiá);[36] situa-se nos domínios da persuasão (peitho);[37] sua linguagem é de natureza retórica, ainda que essa retórica complemente e reforce a epistéme. O que faz do mito um “jogo sério”.

Já o discurso (supostamente) verdadeiro sobre o passado busca a segurança da escrita e o rigor das informações. Justamente por isso, permanece nas armadilhas da escrita, inferior à oralidade, para Platão (Carta VII, Fedro), e nos limites do factual, que não pode ser objeto de ciência. Mais: vive na ilusão de uma causalidade feita de enlaces retroativos, que supõe que a realidade do agora pode ser explicada pela longa cadeia dos antes. É exatamente esse tipo de causalidade que Sócrates-Platão rejeita no Fédon, ao fazer a crítica da maneira jônica de pensar, representada por Anaxágoras. A essa maneira de explicar remontando aos antecedentes, mecânica e horizontalmente, contrapõe-se a “segunda excursão” proposta por Sócrates: a ascese rumo aos modelos atemporais, sede da realidade de direito e não somente de fato, onde habita “o melhor” também para a ética e a política.[38] Eis por que o discurso (supostamente) verdadeiro sobre o passado é simulacro de verdade, não verdade. Esta é exclusiva do nível epistêmico, conquistado pela “conversão” à causalidade vertical, que conduz aos paradigmas, por meio de ascese teorética (“método dos geômetras”) e erótica (Banquete).

A ascese platônica não pode dispensar os mitos. A efetivação da epistéme enquanto (re)encontro subjetividade/objetividade em nível de perfeita estabilidade e permanência supõe a ultrapassagem do plano empírico e da temporalidade das vivências humanas. O eu epistêmico desabrocha além do circunstancial, do efêmero, do temporal: “lá”, no reino do Aion, na eternidade. Ou seja: porque o objeto do conhecimento perfeito é atemporal — as essências —, o sujeito desse conhecimento precisa possuir a mesma característica de atemporalidade, pois “o semelhante conhece o semelhante”. E porque as essências são “formas”, destituídas de corporeidade, o que as conhece no sujeito deve ser igualmente incorpóreo: o sujeito epistêmico é a alma. A existência da alma enquanto incorpórea e imortal surge, assim, como condição para a possibilidade da ciência. E esta, por sua vez, somente pode ser entendida como reminiscência, como recuperação de uma situação que escapa aos limites da temporalidade, como retorno vertical ao “sempre”. Todavia, as “provas” ou argumentos racionais sobre a existência e a imortalidade da alma não são jamais exaustivos: o que fundamenta a possibilidade da ciência não pode ser provado cientificamente. E é aqui que os mitos desempenham o papel de condicionantes da construção científica. Com efeito, a narrativa mítica parece possuir em Platão papel coadjuvante, porém imprescindível, na busca ascensional da verdade, pois integra o jogo dialético que, utilizando como modelo o “método dos geômetras”, interliga hipóteses por meio da relação condicionado/condicionante. É como se se pensasse: posto que faço ciência — em particular as matemáticas, aparentemente estáveis e universais — consigo conhecer o puramente inteligível, que transcende o empírico e o factual; mas essa escalada que empreendo desde minha condição terrena, corpórea, histórica, rumo ao perene e ao imutável, aponta para um além de essências permanentes, para o território das puras e plenas significâncias, para as significações essenciais e modelares perseguidas pelo mais alto nível de intelecção, no ápice do empreendimento epistêmico; sugere, assim, que sou mais do que este eu empírico que tem sensações fugazes, relativas e mutáveis; sugere que há em mim mais do que um corpo imerso na contingência, nas vicissitudes do concreto e do temporal, capaz de apreender apenas o efêmero e o imediato; sugere que existe em mim minha própria alma, esse eu epistêmico que dura mais que meu corpo, que existe antes dele e pode a ele sobreviver, apto, portanto, a alcançar objetos de conhecimento imunes à corrupção da temporalidade. Enfim: sugere que conhecer desde agora o que é permanente e estável — as matemáticas — pressupõe em mim algo que permanece e não existe só agora: pressupõe que conhecer é (re)conhecer, anamnesis. A preexistência da alma em relação ao corpo surge, desse modo, como hipótese (mítica) condicionante do fato de se fazer matemática, entendida como desvelamento da estrutura recôndita do mundo, como descoberta de sua harmonia oculta.

Ou seja, no jogo entre hipóteses, que caracteriza a ascese dialética, o mito aparece como sustentáculo do fato de se fazer ciência (matemática). Na verdade, o mito que sustenta a matemática é um mito tornado “funcional” por Platão: é aquele que se mostra indispensável para justificar a efetividade da construção científica, é o mito exigido pela matemática que, desse modo, indiretamente o ilumina e condiciona. Parece haver, em Platão, aliança e cumplicidade entre epistéme e narrativa mítica, entre duas ordens de imagens — as do mito e as da matemática —, que se articulam na superação do empírico e do temporal, para construção dessa metamatemática que é, afinal, a dialética ascendente.

Já o discurso (supostamente) verdadeiro sobre o passado permanece na horizontalidade e na temporalidade dos fatos, jaz no plano da facticidade onde se constrói a multiplicidade relativizante da doxa, onde jamais se produz a epistéme. O mito legítimo, tautegórico, a abordar temas que escapam definitivamente à demonstração racional, oferece-se como justificativa plausível para a incontestável existência da ciência do permanente e do atemporal (“as matemáticas”). Está, a seu modo, a serviço da verdade. Serve de patamar imprescindível na subida que o amante da sabedoria deve empreender para tentar alcançá-la. Ou, pelo menos, para dela ir se aproximando, como quem busca o valor de pi ou da raiz de 2: justa medida a escapar sempre, abeirada por falta ou excesso.

Mas a propiciar o senso de incompletude e aproximação, de insatisfação e avanço, que incentiva as múltiplas artimanhas das linguagens movidas pelo apolíneo ideal de claridade e justeza. Ao contrário das narrativas “históricas” dos mitos, que na verdade apontam para a a-historicidade do objeto que desvelam e reinstauram, a narrativa histórica que pretende ser um discurso verdadeiro sobre o passado a ciência da história — não possui valor epistêmico para Platão: tece-se no nível dos simulacros e não dos modelos, limita-se às opiniões e jamais atinge a certeza, prende-nos à caverna das ilusões por meio de um espetáculo de sombras regido pela seqüência de episódios, pela sucessividade contingente do tempo.

O modelo hegeliano pode ser visto como o oposto do platônico.[39] Hegel pretende justamente estabelecer a sucessão necessária dos acontecimentos, pela descoberta da lógica que comanda a história: lógica absoluta porque do Absoluto. A Fenomenologia do espírito tem por objetivo nada menos que mostrar como os princípios e mecanismos da Lógica — sobretudo o princípio de negação e de negação da negação — dirigem o processo que atravessa e liga Natureza e Cultura, passado, presente e futuro. Sem inspiração de Musas, antes apostando na completa racionalidade do real, Hegel retoma o projeto hesiódico da Grande História; seu logos, ao contrário da narrativa do poeta-pastor, não repete a lição recebida dos divinos imortais, não é logos modestamente mediador: assume a hybris de se apresentar como espaço de ex-posição do Absoluto. Comparada não a obras do longínquo passado, mas confrontada com as de seu tempo, a Fenomenologia do espírito revela semelhanças com os grandes romances do século XIX, pois, afinal, traça a trajetória e as peripécias de um herói, um Julien Sorel, que utiliza todas as circunstâncias e oportunidades em proveito de suas metas. Só que, no caso, o protagonista central — na verdade único — é o Espírito Absoluto que se nega para se reencontrar mais plenamente, que se multiplica e se dispersa aparentemente, apenas para ter melhor — ter “para si” — a consciência de sua identidade e de sua unidade. Um Odisseu cuja Ítaca é ele próprio, começo e fim de inumeráveis disfarces e ardis.

A visão hegeliana da história está regida pelas noções de totalidade, continuidade, acidentalidade aparente (nunca essencial), necessidade (jamais contingência real). E propõe um desafio: só existe sentido na História se ela for única e unidirecional, se seu sentido for único e absoluto. Se, afinal, for a História do Absoluto. Uma questão crucial, porém, se coloca: como entender a possibilidade de construção de um discurso humano — no caso, o hegeliano — capaz de desvelar esse sentido? Como escrever uma nova Teogonia que não seja um grande mito cosmogônico, antes um discurso estritamente racional e (supostamente) verdadeiro, que junta tempo e lógica, história e epistéme?

Mostra Feuerbach: isso é possível porque astucioso é não só o Espírito, como pretende Hegel, mas sobretudo o próprio Hegel. A atribuição de uma lógica à História (justifica-se a maiúscula), ou seja, o estabelecimento de uma ciência da História com base na logicidade do real enquanto ele mesmo histórico e racional[40] resulta de uma série de pressupostos:

É necessário reconhecer: a filosofia hegeliana toma apenas o tempo — e não também o espaço — como forma da intuição sensível, que está na base da construção do conhecimento. Apóia-se no “tempo que exclui e não, simultaneamente, também (n)o espaço que tolera”.[41] Essa mutilação da proposta kantiana faz com que o sistema hegeliano conheça somente subordinação e sucessão, ignorando completamente a coordenação e a coexistência. É verdade, reconhece Feuerbach, que o último momento do processo histórico é sempre, segundo Hegel, a totalidade que integra em si os outros momentos. Mas, como esse último momento constitui, ele também, uma existência temporal determinada, marcada pela particularidade, “não pode integrar em si as outras existências sem esvaziá-las do sangue que faz a vida das existências independentes, sem despojá-las, assim, da significação que somente têm em sua liberdade absoluta”.[42] Conseqüência: a História converge toda para esse momento privilegiado em que o hegelianismo desvenda-lhe o sentido e a lógica tão longamente ocultados. Porta-voz do próprio Espírito Absoluto, o hegelianismo surge, assim, como o logos desse Espírito enquanto consciente de Si. Se a gestação do discurso desvelador processou-se ao longo do tempo e precisou de todo o tempo para completar-se, servindo-se de discursos que o antecederam e que disseram apenas incompletamente o que agora é mostrado por inteiro — eis como a história das idéias é fundamental, pois casulo da verdade. Mas porque o telos único desses múltiplos discursos preparatórios somente agora é perfeitamente revelado — eis como o hegelianismo é a verdade subjacente àqueles discursos, verdade que eles não expressavam por completo, embora anunciassem. Desse modo, a importância que Hegel atribui à história da filosofia advém de que a filosofia é essencialmente histórica e de que a verdade é filha do tempo, sim, mas possuindo um sentido lógico enquanto direcionada para o ponto conclusivo de sua longa trajetória: ali, no logos hegeliano, onde afinal o Espírito se desmascara e se ex-põe e se diz com absoluta franqueza, no encontro tão adiado consigo mesmo, na apoteose da autoconsciência. Apoteose, mas — como assinala Feuerbach — Fim do Mundo: Juízo Final especulativo.[43] Em Hegel, telos exibe sua dupla significação originária: meta e consumação.[44]

A unidirecionalidade totalizadora da História conduz, no caso particular da história da filosofia, a várias conseqüências, apontadas por especialistas.[45] A principal talvez seja a redução de toda a história das idéias à condição de preparação histórica do hegelianismo, que surge então com a força inelutável de um Destino. É bem verdade que qualquer história da filosofia — no sentido de explicação histórica da filosofia — possui uma filosofia, explícita ou implícita, que a pré-determina.[46] Porém, o que cabe indagar aqui é por que a história do pensamento filosófico, em Hegel, é um canto de cisne, como o mencionado por Sócrates no Fédon: canto anunciador da morte, da consumação.[47] Ou, como prefere Feuerbach, o anúncio do juízo Final especulativo.

Ao lado das muitas causas históricas, políticas, filosóficas já empregadas para explicar o caráter apocalíptico da Razão Absoluta do hegelianismo, não se pode esquecer: Hegel pensa como narrador. É ainda Feuerbach quem o percebe: A filosofia hegeliana é de fato o sistema mais perfeito que jamais existiu. Hegel realmente consumou o que Fichte desejava, mas não soube consumar, pois Fichte concluiu somente por um dever ser e não por um fim idêntico a si mesmo.[48]

Essa perfeita circularidade sistemática alcançada por Hegel explica-se, porém, enquanto empreendimento da e na linguagem:

[…] O pensamento sistemático não é o pensamento em si, o pensamento essencial: é apenas o pensamento que se expõe. Quando exponho meus pensamentos, eu os transponho no tempo; o que em mim é simultâneo, julgamento dominando a sucessão, torna-se então uma seqüência temporal. O que devo expor, coloco-o como não existindo, faço-o nascer diante de meus olhos, faço abstração do que ele é antes de ser exposto.[49]

Mais adiante, Feuerbach esclarece:

Demonstrar é simplesmente mostrar que o que digo é verdadeiro; simplesmente retomar a alienação (Entäusserung) do pensamento na fonte original do pensamento. Desse modo, não se pode conceber a significação da demonstração sem se referir à significação da linguagem. A linguagem nada mais é que a realização da espécie, a colocação da relação do eu e do tu, destinada a representar a unidade da espécie pela supressão de seu isolamento individual. Eis por que o elemento da palavra é o ar, o meio vital mais espiritual e mais universal. Assim, a demonstração somente encontra seu fundamento na atividade de mediação do pensamento para outrem.[50]

Por isso,

toda demonstração é […] não uma mediação do pensamento no e para o próprio pensamento, mas mediação realizada pelas vias da linguagem entre o pensamento, na medida em que é meu, e o pensamento de outrem, na medida em que é dele.[51]

E mais:

[…] os gêneros de demonstração e de silogismo não são formas da razão em si, formas do ato interno do pensamento e do conhecimento; são apenas formas de comunicação, gêneros de expressão, apresentações e representações, manifestações do pensamento.[52]

Feuerbach desata o liame estabelecido por Hegel entre estrutura de pensamento e estrutura do real; nega que a racionalidade do pensamento seja a mesma da realidade; dissocia subjetividade de objetividade; sacode o hegelianismo para que desperte do “sono dogmático” que o acometera ao rejeitar as advertências de Kant; separa a temporalidade do pensamento da temporalidade das coisas, do tempo do mundo. E mostra: também o pensamento sistemático é acontecimento de linguagem; seu tempo é o tempo do discurso, não o tempo cósmico; a alteridade com que se defronta não é a alteridade do objeto, é, antes, a alteridade do outro, do tu; ex-posto, põe-se sempre em declarada ou tácita dialogia.[53]

Conseqüentemente, para Feuerbach, as características do pensamento sistemático de Hegel precisam ser referidas à estrutura narrativa de seus textos. É enquanto narrador que ele institui uma seqüência ininterrupta, ferreamente lógica — de logicidade dialética — dos eventos históricos. Atribuir essa logicidade ao real — poderia acrescentar Perelman[54] — é apenas recurso altamente persuasivo, recurso retórico. O continuísmo que marca a visão hegeliana da história fundamenta-se na linguagem: é a continuidade que a linguagem entretece a partir do múltiplo, do simultâneo, do disperso. Por sua vez, o desfecho — telos ou consumação dessa História única e unidirecionada — não passa de simulação: artimanha de escritor que, desde o começo de sua narrativa, já lhe conhece o final. É, na verdade, esse final que predetermina toda a obra, desde o início, como um secreto encontro marcado. Insiste Feuerbach: Hegel descobre aquilo de que já tem certeza, sua incerteza é apenas formal, seu não-saber apenas ironia. E se isso vale para a Fenomenologia do espírito é porque vale, antes, para a Lógica:

A idéia absoluta era uma certeza absoluta para o pensador Hegel, mas para o escritor Hegel era uma incerteza formal. Essa contradição entre o pensador liberado da necessidade, dominando a exposição, e para quem a causa é entendida, e o escritor submetido à necessidade e à sucessão temporal que coloca como formalmente incerto o que para o pensador é certo, essa contradição objetivada é o processo da idéia absoluta, que pressupõe o ser e a essência, mas de modo tal que eles já pressupõem na verdade a própria idéia. Essa é a única explicação suficiente da contradição que existe entre o começo real da Lógica e seu começo verdadeiro, que se encontra somente no fim. Em seu foro íntimo, Hegel tinha a idéia absoluta por certeza; nisso ele não era crítico, nem cético; mas a idéia devia se provar ela mesma, ser subtraída aos limites da intuição intelectual subjetiva, devia ser também para outrem. A prova tinha, assim, significação ao mesmo tempo essencial e inessencial; a prova era uma necessidade: a idéia devia se provar, pois ela não é tal senão se provando, mas ao mesmo tempo essa prova era supérflua para a certeza interna de sua verdade. A expressão dessa necessidade supérflua, ou dessa indispensabilidade supérflua, ou dessa superfluidade indispensável é o método hegeliano, eis por que nele o começo é o fim, e o fim o começo; eis por que o ser nada mais é que a idéia em sua imediatez; eis por que o não-saber de si da idéia, no começo, é apenas, do ponto de vista da idéia, um não-saber irônico.[55]

Lúcido e demolidor, Feuerbach golpeia o coração da doutrina hegeliana da Razão e da História. Ataca em ambas a simultânea e interdependente pretensão de absoluto, que expressa sua hybris. Põe em primeiro plano, para julgá-lo, o escritor Hegel, mestre do suspense. Com isso, desabsolutiza, juntas, lógica e história. E desloca a questão da história para o território da linguagem, suas tramas e artimanhas.

Noutra época — já em pleno século XX — e noutro contexto de idéias, Gaston Bachelard retoma a crítica ao historicismo continuísta e à absolutização do tempo e da história. E ressalta o papel decisivo das estruturas da linguagem na produção de equívocos sobre a temporalidade da consciência e a sua relação com os objetos de conhecimento. A atitude combativa de Bachelard lembra a de Feuerbach em suas críticas implacáveis a Hegel. Mas, agora, o adversário visado é Henri Bergson.

Bachelard contrapõe-se frontalmente à concepção bergsoniana de durée, fluxo qualitativo continuo que seria o estofo mais profundo da subjetividade: permanente devir do moi profond, subjacente às estratificações e aos automatismos do espacializado e pragmático eu superficial. Num perigoso salto metafísico — que refaz a clássica tentativa de desvelar o cerne da objetividade a partir de pressupostos subjetivos —, Bergson acaba, inclusive, por atribuir análoga natureza à intimidade das coisas. Nelas, também, o élan vital constituiria o âmago oculto, magma vivo, puro processo, puro vir-a-ser, cuja expansão, impulsionada pela evolução criadora, leva afinal ao esfriamento e à coagulação espacializante da superfície, fragmentada em múltiplos objetos. No fundo, porém, enquanto physis dinâmica: a duração interna das coisas. Desse modo, tanto na subjetividade quanto na objetividade, a relação tempo/espaço tende a ressurgir sob a forma de outras oposições: profundidade/superfície, móvel/estático, contínuo/descontínuo, liber-dade/determinismo, criatividade/automatismo.

Mas o ponto de partida da construção bergsoniana e sua principal sustentação — é a natureza da consciência, dissociada em dois níveis. O que está em jogo é a recuperação da condição espiritual da consciência — ainda que apenas em sua dimensão “profunda” —, em contraposição às teses do materialismo reducionista que predomina no tempo de Bergson. Os atos de consciência são tidos, então, como epifenômenos redutíveis à estrutura física do sistema nervoso e, em particular, do cérebro. Apreender o significado da memória ou da afasia, por exemplo, seria desvendar seu mecanismo e localizá-lo, num modo de explicação que sempre reduz o temporal ao espacial, o espiritual ao. corpóreo.

A primeira batalha de Bergson contra o biologismo e o evolucionismo materialistas somente será vencida se for possível mostrar que a duração é um “dado imediato da consciência”. Enquanto dado imediato, sua condição de pura durée torna-a inapreensível, de maneira adequada, por instrumentos técnicos ou teóricos que se instituem no espaço e pressupõem a descontinuidade: nem pode ser localizada (no cérebro), nem capturada por conceitos que fatalmente espacializam, tendendo à clareza geometrizante, e por isso sempre estancam o que é processo, paralisam a mudança, estilhaçam o contínuo, matando o vivo e reduzindo o movente e o temporal ao espacial e ao inerte.[56]

A captação imediata da duração exige, todavia, que se rompa, primeiro, a crosta do eu superficial, socialmente construído e adaptado à sobrevivência. A esse plano fragmentário, norteado pela procura do útil, corresponde a memória-hábito e seus mecanismos treinados para a ação rápida e eficiente, para o êxito. O intelecto articulador de conceitos claramente definidos — e conseqüentemente isolados — é adequado à apreensão dessa organização mecânica da superfície do eu, mas inteiramente incapaz de apreender a natureza intrinsecamente móvel e mutável, puramente qualitativa e contínua do devir característico do eu profundo. Toda vez que se pretende captar essa vitalidade que transita — rio subterrâneo —, acaba-se por imobilizá-la: o que é processo temporal surge fixado num instantâneo falsificador de sua essência, numa presentificação sempre insulada e factícia, fotograma arrancado à seqüência. Por isso, somente por via direta, intuitiva, segundo Bergson, pode-se apreender a fluência incessante do “eu que dura”. Aqui é o reino da pura vivência, não mais da sobrevivência. E apenas uma mémoire-souvenir, memória que é relembrança não automatizada nem pragmática, “inútil” memória encharcada dos elementos emocionais das vivências, pode resgatar o vécu e os liames que atam indissoluvelmente — no fundo da consciência — o presente ao passado.[57]

A refutação, por Bachelard, das teses bergsonianas contesta-lhes o ponto de sustentação: a duração jamais é dado imediato da consciência. Dado imediato é o instante, a duração só é apreendida secundariamente, enquanto construção. Afirma Bachelard: “Meu ser somente toma consciência de si no instante presente”.[58] E o caráter dramático do instante está em existir entre dois nadas, entre o que não é mais e o que não é ainda. Descontínua, a fileira dos instantes nunca é imediatamente apreendida como fluxo inconsútil, antes sempre esfacelada: cada instante faz-se presente em sua irremissível solidão.[59] Esse instante que se faz presente — que é consciência instantaneamente presente a si mesma — é instante de tomada de consciência, que não é ato de memória, mas ato de atenção, atenção ligada à vontade: o que se cumpre plenamente no instante de criação (científica ou artística). Já o estabelecimento dos vínculos entre instantes essencialmente separados é construção, artifício posterior, “fabulação” da memória e da imaginação:

O espírito, em seu trabalho de conhecimento, apresenta-se como uma fileira de instantes nitidamente separados. É ao escrever a história que, artificialmente, como todo historiador, o psicólogo aí coloca o liame da duração.[60]

Apoiado em Roupnel,[61] mas sobretudo em Einstein, Bachelard mostra que tanto no nível psíquico quanto no físico a realidade primária e absoluta do tempo é o instante. Donde a necessidade de se inverter a perspectiva dos historicismos tradicionais: “É preciso […] tentar compreender o passado pelo presente, longe de se esforçar por explicar o presente pelo passado”.[62] O novo historicismo preconizado e exemplificado por Bachelard em suas obras sobre história da ciência é, assim, marcado pela descontinuidade, pelo senso de ruptura: aquele que é demonstrado pela ciência ao refazer-se a partir de suas bases, como o “novo espírito científico” instaurado pela física quântica, pela teoria einsteiniana da relatividade ou pelas geometrias não-euclidianas.

Bachelard esclarece: a concepção de tempo enquanto dividido em instantes descontínuos conduz não a uma filosofia da ação — como a bergsoniana —, mas a uma filosofia do ato. Porque a vida não é duração, antes a descontinuidade dos atos, é necessário estar atento à originalidade, à singularidade, ao pormenor, ao acidental.[63] Por isso, ao contrário de Bergson que traça, em A evolução criadora, uma espécie de imensa tela impressionista, tentando apreender, embora imprecisamente, o conjunto da realidade, o universo enquanto panorama, Bachelard prefere, em nome da filosofia do ato, da psicologia da atenção e da vontade, da nova física e sua fenomenotécnica,[64] a roupneliana doutrina do acidente como princípio: o que não apenas se opõe a Bergson, como nega toda a tradição continuísta e absolutizante da história, que culminara em Hegel.

Importante enfatizar: o artifício do psicólogo — “como todo historiador” — é o de colocar o liame da duração onde, na verdade, existe descontinuidade essencial. Mas ele faz isso ao contar ou escrever a história: ele o faz enquanto escritor. Seu artifício, percebe Bachelard, é facilitado e sugerido pelo continuís-mo que tece a linguagem natural, espontânea, do dia-a-dia:

Não se pode falar sem empregar todos os advérbios, todas as palavras que evocam o que dura, o que passa, o que se espera. Na própria discussão se é forçado a dizer: “longamente”, “enquanto”, “durante”. A duração está na gramática, na morfologia tanto quanto na sintaxe.[65]

E é natural que assim seja. Afinal, a linguagem natural é arcaica, pré-científica, povoada de resíduos míticos, que resistem nas raízes de seus vocábulos. Possui metafísicas substancialistas e continuístas subjacentes, abriga latentes ideologias. É linguagem que originariamente serviu para louvar deuses e cantar sua eternidade, para enaltecer o absoluto, o Aion, o divino “sempre” em sua contínua e sereníssima atemporalidade. Fazer ciência com ela — sobretudo a nova ciência que se sustenta na pluralidade dos “racionalismos setoriais”, na captura do eventual, no acidental enquanto princípio — requer inevitavelmente que se contrarie sua índole. Eis por que Bachelard transfere os devaneios continuístas e substancialistas para territórios que lhe são adequados: o campo poético e o campo filosófico, que falam também de obscuras mas imprescindíveis “verdades”, penumbrosas ou noturnas, escapando ao meio-dia da imaginação apolínea, formal ou formalizadora, exata ou em incessante busca de exatidão. Para Bachelard, esses dois territórios de imaginação e de linguagem são ambos legítimos, mas reciprocamente irredutíveis: o direito de pensar como permanente retificação de conceitos (“O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”, “Somos o limite de nossas ilusões perdidas”) e o direito de sonhar — sobretudo o sonho acordado dos devaneios e os devaneios estruturados da arte — são fundamentais ao homem, ser bivalente, bifronte, animus/anima, diurno/noturno.

Retornemos ao texto de Barthes.

Desde suas considerações iniciais, Barthes reconhece: a questão da estrutura das narrativas pertence a essa região da “lingüística do discurso” que “teve durante muito tempo um nome glorioso: Retórica”. Mas também reconhece: historicamente, a retórica passou para o lado das belas-letras e as belas-letras se se-pararam do estudo da linguagem. Isso explicaria a recente necessidade de se retomar o problema. Afirma, porém, Barthes: a nova lingüística do discurso ainda não se desenvolveu, apesar de já postulada por lingüistas como Benveniste, Harris ou Ruwet.[66]

Essas afirmativas de Barthes são de 1966, momento de afirmação do estruturalismo, escritas “no histórico n. 8 da revista Communications.[67] De lá para cá, as questões da retórica e da relação entre linguagem natural e formalização desenvolveram-se e difundiram-se enormemente, expandindo premissas contidas em obras de pensadores como Wittgenstein — o “segundo” Wittgenstein, dos jogos de linguagem —, Perelman, Strawson, Austin.[68]E à concepção de uma Nova Retórica ou Dialógica ou Teoria da Argumentação (Perelman) veio se aliar uma nova lingüística, que investiga o campo da pragmática e parece pôr fim à tirania da sintaxe, como em Anscombre e Ducrot, que revelam o caráter argumentativo da língua e sua estrutura basicamente dialógica.[69]

Desde a década de 50, Chaim Perelman vinha mostrando que há dois territórios de linguagem: a linguagem formal — que se realiza plenamente na lógica-matemática — e a linguagem de fato e de direito jamais inteiramente formalizável. A primeira, constituída por signos unívocos porque artificiais, tem na matemática seu paradigma; a segunda, a linguagem natural, corrente ou ordinária, não utiliza a prova analítica, sendo, ao contrário, argumentativa, pois apoiada em outro tipo de paradigma: o paradigma jurídico, regido pelo princípio de justiça. Se a primeira fala univocamente do abstrato e do meramente possível, a segunda fala — e sempre ambiguamente — do concreto, do singular, do eventual, do existencial, do histórico. Se a primeira é a linguagem diáfana e bem concatenada da lógica matemática, a segunda é a linguagem de todas as construções polissêmicas, desde a linguagem de nosso cotidiano até a filosofia e as ciências humanas.[70]

Nesse novo contexto filosófico, lógico, lingüístico, a questão das narrativas e, dentro dela, a relação entre ficção e história assumem nova formulação. Enquanto construção argumentativa e retórica, despojada da pretensão de cientificidade à maneira lógico-matemática, antes restituída à condição de epistéme aberta e intrinsecamente litigante, que arbitra judicialmente diante de pontos de vista e depoimentos necessariamente múltiplos e contrapostos, a história não utiliza a prova exaustiva, analítica, coagente e conclusiva: busca o argumento mais forte, mais persuasivo de seu auditório, porém jamais derradeiro. Por isso, deixa de ser a História única, soberana, guardiã do único sentido legítimo dos acontecimentos, e multiplica-se nas histórias possíveis, em confronto e litígio, que buscam e defendem sua mais-verdade (a história oficial, a dos vencedores, a dos vencidos etc.). Nessa perspectiva, a objetividade da história perde qualquer resquício de positivismo: não é dada como um “aí” ou um “aí que foi”, mas construída e permanentemente retificada, por meio da confrontação entre as arbitragens dos historiadores, armados de diferentes categorias interpretativas. Importante ressaltar: essa forma de conceber a história enquanto narrativa não faz dela ficção; a arbitragem — não o arbítrio — do historiador não se confunde com o ato de vontade que institui ou cria ficções. Se inevitavelmente “fabula”, ao valorar, selecionar e ligar eventos ou momentos isolados, ao relacionar elementos dispersos no tempo e no espaço, realiza uma fabulação controlada pelo auditório de especialistas diante do qual a tese que defende — como advogado perante um tribunal — é permanentemente julgada por meio de argumentos e contra‑argumentos. Nesse sentido, a história é processo — na acepção jurídica sempre passível de reabertura, de revisão. E o encaminhamento desse processo é da inteira responsabilidade dos historiadores que examinam, interpretam, julgam, argumentam, debatem e fazem “releituras”, utilizando diferentes métodos e categorias, mas sem a desmesura e o autoritarismo de quem pretende dizer a palavra final e silenciadora em nome da Verdade Absoluta.

Escreve Perelman:

O historiador não é um romancista, não inventa sua personagem. Alexandre, César ou Napoleão verdadeiramente existiram, sabemos quando nasceram e como morreram, os elementos que conhecemos deles são inúmeros, mas o papel do historiador é o de organizá-los, relacionando-os à personagem, ao seu caráter, a seus projetos, a suas intenções.[71]

Porque de fato existiu, Napoleão se distingue de James Bond. Mas o historiador que escreve sobre ele, organizando e relacionando informações, interligando instantâneos, documentos e depoimentos, montando seqüências e estabelecendo elos causais, inevitavelmente cria, imagina, fabula: é narrador. Não permanece iluminado pelas Musas, filhas de Mnemosine? Não permanece irmão do poeta que compõe “um belo canto” — não nas alturas divinas e inalcançáveis da montanha, mas na humana planície, “ao pé do Heliconte”?

Notas

[1] Machado de Assis, Esaú e Jacó, São Paulo, Abril Cultural, 1984, p. 52.

[2] Harvey, Dicionário Oxford de literatura clássica, trad. Mário da Gama Kury, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1986, verbetes “Cronos”, “Mnemosine”, “Musas” e “Titãs”

[3] Hesíodo, Théogonie, 22-25, trad. Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, 1951, p. 32.

[4] Idem, ibidem, 27-29.

[5] Platão, Sofista, trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa, in Platão, col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1983.

[6] Em outro poema, Os trabalhos e os dias, Hesíodo apresenta as justificativas para o desenrolar da história da humanidade e para a configuração de sua condição presente. Essas justificativas mi-topoiéticas estão contidas sobretudo em dois mitos: o de Pandora e o das raças. Ver Les trailaux et les fours, 43-202.

[7] Heráclito de Éfeso, aforismo DK 1, trad. José Cavalcante de Souza, in Ospré-socráticos, col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1972, p. 79. 0 tradutor esclarece em nota: “Fica mantida a falta de pontuação, criticada por Aristóteles (Retórica, m, 5) e ‘corrigida’ em geral pelas traduções”. Na tradução de John Burnet, Early Greek philosophy (trad. francesa, L’aurore de la philosophie grec-que, Paris, Payot, 1952), o mesmo aforismo, que recebe o n? 2 na numeração inglesa (Bywater), é assim apresentado: “Embora esse logos (verbo, discurso) seja sempre verdadeiro, os homens não são menos incapazes de compreendê-lo quando o escutam pela primeira vez do que antes de havê-lo ouvido. Porque, apesar de todas as coisas se passarem conforme a esse logos, parece todavia que os homens dele não têm qualquer experiência, quando fazem tentativas, em palavras e em ações, tais como eu exponho, dividindo cada coisa segundo sua natureza e mostrando como ela é na realidade. Mas os outros homens não sabem o que fazem quando estão despertos, do mesmo modo que esquecem o que fazem durante o sono” (pp. 148-9).

[8] Idem, ibidem, p. 84. Na tradução de J. Burnet: “É sábio escutar, não a mim, mas a meu logos (verbo), e confessar que todas as coisas são Um” (idem, ibidem, p. 148).

[9] A alegoria da caverna parece aludir aos espetáculos de sombras conhecidos pelos atenienses do tempo de Platão. Mas parece referir-se também aos “quadros vivos” integrantes de certas iniciações aos mistérios eleusinos. Espetáculos de sombras, montados em cavernas, existiam também no Extremo Oriente, como na Índia, na Antiguidade. Ver Pierre-Maxime Schuhl, La fabulation plato-nícienne, Paris, Presses Universitaires de France, 1947, pp. 59-61

[10] A questão dos irracionais matemáticos — grandezas sem medida comum, como a diagonal e o lado do quadrado — é fundamental na matemática grega do tempo de Platão. Seu amigo, Teodoro de Cirene, demonstrara a irracionalidade das raízes de 3 a 17, ampliando o âmbito da irracionalidade — que eclodira como skandalon na aritmo-geometria pitagórico arcaica — e impondo a revisão da concepção de número. Platão aborda freqüentemente esse problema e o pressupõe ao longo de toda a sua obra. É, por exemplo, o tema subjacente, no Ménon, ao diálogo entre Sócrates e o escravo que ele conduz, pela habilidade da maiêutica, à reminiscência de noções matemáticas que subentendem.

A existência dos irracionais matemáticos é, por certo, um dos mais fortes argumentos de
Platão em defesa da transcendência do plano inteligível em relação ao sensível; constitui também um dos principais fundamentos de sua filosofia da linguagem. O irracional — alogon — deixa de ser em Platão sinônimo de “indizível”, para tornar-se aquilo de que temos apenas o nome, jamais a physis: paradigma da irremissível separação entre ser e linguagem (esta, sempre aproximativa, dizendo o-que-é, seu limite e seu alvo, sua moira e sua morte, sempre por falta ou excesso). Ver, particularmente, j. T. Desanti, “Une crise de développement exemplaire: la `découverte’ des nombres irrationels”, in Logique et connaissance scientifique, volume dirigido por Jean Piaget para a Encyclopédie de la Pléiade, Paris, 1967, pp. 439 ss.; e P. H. Michel, De Pythagore à Euclide, Paris, Les Belles Lettres, 1950.

[11] Platão, Apologie de Socrate, 18b-20b, 23d, 33b, trad. Émile Chambry, col. Classiques Garnier, Paris, Gamier, 1947.

[12] É o que vemos acontecer no Protágoras, onde Sócrates e seu amigo Hipócrates são confundidos com sofistas, ao chegarem à casa de Cálias (314d). Depois, no decorrer da conversa entre Sócrates e Protágoras, o sofista de Abdera é levado a interrogar Sócrates (utilizando procedimento tipicamente socrático, o diálogo), enquanto, por sua vez, Sócrates (utilizando procedimento tipicamente sofístico) é forçado a fazer a interpretação de um poeta, Simônides (339 e 345 d/c). Além disso, a tese inicial de Protágoras — de que a virtude (areté) é um saber e pode ser ensinada — acaba, no fim, assumida por Sócrates, numa surpreendente inversão de posições (361). A distinção entre o filósofo e o sofista, seu sósia, fica, assim, adiada. Será necessário, antes, esclarecer o que é saber e conhecimento (Teeteto), e, principalmente, examinar a relação entre ser e não-ser, mesmo e outro (Sofista).

[13] Platão, Sofista, 256d-267d.

[14] Henri Gouhier, Essais sur Descartes, Paris, Vrin, 1949, pp. 143 ss.

[15] Idem, ibidem, p. 178.

[16] Eis, nas palavras do próprio Descartes, a assustadora suposição: “Je supposerai donc qu’il y a, non un vrai Dieu, qui est la souveraine source de verité, mais un certain mauvais génie, non moms rusé et trompeur que puissant, qui a employé toute son industrie à me tromper” (Descartes, “Première métlitation”, in Méditations — Objections et réponses, vol. ‘Oeuvres et lettres, Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1953, p. 272).

[17] Alguns intérpretes assinalam aqui um “círculo vicioso”: a existência do Deus veraz é garantida por provas sustentadas, por idéias claras e distintas que, por sua vez, têm validade garantida pela veracidade de Deus. Gouhier é dos que consideram que há aqui um raciocínio circular, sim, mas não vicioso.

[18] H. Gouhier, Essais sur Descartes, op. cit., p. 194.

[19] Idem, ibidem, p. 196.

[20] Hesíodo, Théogonie, 120-214.

[21] Essa bipolaridade expressa pelo bon Dieu e pelo mauvais génie remete à questão dos dois regimes que, segundo Gilbert Durand, fundamentam o universo das imagens e dos símbolos: o diurno e o noturno. Cf. Gilbert Durand, Les structures anthropologiques de l’imaginaire, Paris, Bordas, 1969, pp. 69 ss.

[22] Chaim Perelman, “Logique et rhétorique”, “La quête du rationnel”, “De la preuve en phi-losophie”, in Rhétorique et philosophie, Paris, Presses Universitaires de France, 1952.

[23] Idem, “Raison éternelle, raison historique”, in Vv. Aa., L’homme et l’histoire, Paris, Presses Universitaires de France, 1952. Em Humano, demasiado humano (par. 2);Nietzsche escreve: “[…] Não há fatos eternos, assim como não há verdadesabsolutas. Portanto, o filosofar histórico é necessário […] e, com ele, a virtude da modéstia”. Cf. Nietzsche, col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 92

[24] Roland Barthes, “Introduction à l’analyse structurale des récits”, Communications 8, Paris, Seuil, 1966, P. 1.

[25] Jean Pierre Vernant, “Aspects mythiques de la mémoire et du temps”, in Mythe et pensée chez les grecques, Paris, François Maspero, 1965, p. 53.

[26] Idem, ibidem, p. 72

[27] No estoicismo, a relação Cronos-Aion sofrerá decisiva modificação, correspondente à colocação do sentido das coisas não mais em plano transcendente ao temporal e ao empírico, mas no nível dos próprios acontecimentos. Ver Gilles Deleuze, Lógica do sentido, São Paulo, Perspectiva, 1974, cap. “Do Aion”, pp. 167 ss.

[28] J. P. Vernant, “Aspects mythiques de la mémoire et du temps”, op. cit., pp. 70-1.

[29] Werner Jaeger, Paideia, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1957, pp. 263 ss.

[30] Platão, Ménon, 86e-87c.

[31] Platão, República, liv. . vi, 509 ss. (imagem da “linha dividida”).

[32] R. Simeterre, Introduction à l’étude de Platon, Paris, Les Belles Lettres, 1948, pp. 19 ss.; J. Pépin, Mythe et allégorie, Paris, Aubier Montaigne, 1958, pp. 33 ss.

[33] L. Brisson, Platon: les mots et les mythes, Paris, François Maspero, 1982, p. 29.

[34] Idem, ibidem, p. 45.

[35] Idem, ibidem, p. 30.

[36] Idem, ibidem, p. 94.

[37] Idem, ibidem, p. 102.

[38] Platão, Fédon, 98d-99e.

[39] É o que procuramos mostrar no ensaio “Dialética platônica, dialética hegeliana” (Revista Filosófica Brasileira IV 3 [dez. 1988], Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia da UFRJ). Hegel tenta fazer de Platão um de seus precursores, integrante de sua “família” filosófica (família indispensável para garantir o fundamento histórico de seu pensamento e a continuidade da História); na verdade, a relação que cada um mantém com a matemática, em suas respectivas épocas, revela o abismo teórico que os separa.

[40] O argumento que se pretende sustentar na estrutura do real é dotado de grande força persuasiva, pois busca justificar o artefato argumentativo fundamentando-o in re, apresentando-o não como construção do discurso, mas enquanto expressão da objetividade. Ver C. Perelman, “Argumentação”, in Enciclopédia Einaudi, vol. 11, Portugal, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987; José Américo Motta Pessanha, “A teoria da argumentação ou Nova Retórica”, in Vv. Aa., Paradigmas filosóficos da atualidade, Campinas, Papirus, 1989, p. 239.

[41] Ludwig Feuerbach, “Contribution à la critique de la philosophie de Hegel”, in Manifestes philosophiques, trad. Louis Althusser, Paris, Presses Universitaires de France, 1973, p. 12.

[42] Idem, ibidem, p. 12.

[43] Idem, ibidem, p. 15.

[44] W. Burkért, Antigos cultos de mistério, São Paulo, Edusp, 1991, p. 23. Telos é a consumação do ritual de iniciação ao sagrado

[45] Em “La concepción historicista de Hegel” (in Problemas de investigación de la filosofia, Buenos Aires, Eudeba, 1960), Rodolfo Mondolfo mostra que a unidirecionalidade totalizadora da História estabelece, para a história da filosofia: a) no limite, a exclusão da existência do erro, já que cada tese ou sistema filosófico representa uma necessidade interior do desenvolvimento filosófico naquele ponto (coerentemente, o neo-hegeliano Gentile negará claramente a possibilidade do erro); b) a identificação da série lógica e da série histórica conduz também à conclusão de que cada ponto do desenvolvimento histórico deve apresentar uma única idéia, um único sistema, excluindo a possibilidade da pluralidade de sistemas concomitantes (o que não ocorre); c) torna-se logicamente impossível o retorno histórico de sistemas, escolas ou correntes que pertenceram a um momento histórico anterior; d) a história da filosofia, para ser a efetivação temporal dos princípios da Lógica, deveria necessariamente começar por um sistema que afirmasse a idéia de ser, seguido de outro que afirmasse o não-ser, para que um terceiro viesse a afirmar o devir (o que os historiadores da filosofia não confirmam); e) seria necessário que se pudesse reduzir cada sistema a uma idéia central, a um esquema básico, indicador da distância em que se encontra quanto ao “grande final”; f) todas as filosofias seriam a preparação histórica do hegelianismo, cujo arcabouço está posto na Lógica: o que estabelece um Destino para o desenvolvimento do Espírito e a conseqüente finitude do processo histórico. E o que, também, confere a Hegel o direito de hegelianizar as filosofias do passado. Este último aspecto permite o estabelecimento de analogia entre Hegel e Aristóteles: o filósofo grego pretende que sua filosofia é a atualização do que, potencialmente, estava contido em toda a história da cultura e das filosofias anteriores. Por isso, coerentemente, aristoteliza as doutrinas dos pensadores que o antecederam. Ver R. Mondolfo, “La concepción historicista de Aristóteles”, in Problemas y métodos de investigación en la historia de la filosofia, Buenos Aires, Eudeba, 1961.

[46] É o que mostra Martial Guéroult em ensaio famoso: “Le problème de la legitimité de l’his-toire de la philosophie”, in La philosophie de l’histoire de la philosophie, Paris, Vrin, 1956.

[47] Na verdade, o Sócrates do Fédon se compara a um cisne que canta não propriamente a morte, mas apenas a consumação da vida terrena, da ligação corpo-alma. O canto é justamente para tecer a argumentação suscitada pela esperança de que a alma sobreviva à morte do corpo.

[48] L. Feuerbach, “Contribution à la critique de la philosophic de Hegel”, op. cit., pp. 19-20.

[49] Idem, ibidem, p. 20.

[50] Idem, ibidem, p. 22.

[51] Idem, ibidem, p. 23.

[52] Idem, ibidem, pp. 24-5.

[53] No Sofista (263e), Platão vai ao fundo da questão: o próprio pensamento nada mais é que “diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma”, o que faz da dialogia condição do pensar e não apenas da comunicação. E é o que confirmam, hoje, especialistas em linguagem e comunicação: toda enunciação está virtualmente engajada num circuito comunicacional, ainda que o dialogismo do discurso não signifique necessariamente a adoção da forma retórica do diálogo. Ver, a respeito, Francis Jacques, “La dimension dialogique en philosophie du langage”, in Philosophie et langage, Bruxelas, Editions de l’Université de Bruxelles, 1982, pp. 77 ss.

[54] C. Perelman, L’empire rhétorique, Paris, Vrin, 1977, pp. 95 ss.

[55] L. Feuerbach, “Contribution à la critique de la philosophie de Hegel”, op. cit., p. 35.

[56] Henri Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience, Paris, Presses Universi-taires de France, 1948, em particular, caps. 2 e 3; L’énergie spirituelle, Paris, Presses Universitaires de France, 1949; La pensée et le mouvant, Paris, Presses Universitaires de France, 1950, cap. 5.

[57] A questão da memória, em sua dupla feição — mémoire-habitude e mémoire-souvenir é investigada por Bergson na obra Matière et mémoire (Paris, Presses Universitaires de France, 1949). Nessa obra, Bergson pretende contribuir para a elucidação da antiga questão da relação entre corpo e alma, tomando como ponto de partida o problema da memória e, mais particularmente, o da memória (e, conseqüentemente, o do esquecimento) das palavras. Cf. “Avant-propos”, pp. 5-6.

[58] Gaston Bachelard, L’intuition de l’instant, Paris, Gonthier, 1966, p. 14.

[59] O tema da solidão, caro a Bachelard — filósofo da solidão feliz, desde que criativa —, fundamenta-se na concepção de tempo descontínuo, quer no plano subjetivo, quer no físico. Em “Fragmento de um diário do homem”, Bachelard escreve: “A meditação solitária nos devolve à primitivi-dade do mundo. Vale dizer que a solidão nos põe em estado de meditação primeira. […] Se filosofar é, como acreditamos, manter-se não só em estado de meditação permanente, mas também em estado de primeira meditação, é preciso, em todas as circunstâncias psicológicas, reintroduzir a solidão inicial. […] A solidão é necessária para nos desvincular dos ritmos ocasionais. Ao nos colocar diante de nós mesmos, a solidão nos leva a falar conosco, a viver assim uma meditação ondulante que repercute por toda parte suas próprias contradições e que procura incessantemente uma síntese dialética íntima. Quando o filósofo está só é que melhor se contradiz” (0 direito de sonhar, São Paulo, Difel, 1986, pp. 193-200).

[60] G. Bachelard, L’intuition de l’instant, op. cit., p. 19.

[61] Gaston Roupnel é autor de Siloë, romance que Bachelard, na Introdução de L’intuition de l’instant, afirma ser “obra de um poeta, de um psicólogo, de um historiador”, contendo intuições preciosas para quem deseja “meditar sobre os problemas da duração e do instante, do hábito e da vida”. Resumindo a ideia central do livro, Bachelard escreve: “Siloë é uma lição de solidão”.

[62] G. Bachelard, L’intuition de l’instant, op. cit., p. 19.

[63] Essa valorização do singular e do pormenor é fundamental não apenas à epistemologia de Bachelard, como também à sua concepção de imagem, que já foi chamada de “pontilhista” (R. Aron) justamente porque o que interessa ao filósofo é a captura da verdadeira imagem — imagem imaginada, fruto da imaginação criadora e não da imaginação reprodutora, que se reduz à percepção e à memória —, na singularidade de sua eclosão enquanto evento de linguagem.

[64] Opondo-se à concepção de fenômeno como aparecer do que permanece oculto e inatingível (como em Kant), Bachelard mostra que a física atual não apreende fenômenos, que estariam aí, dados e prontos para serem colhidos; ela não encontra fenômenos, mas os constrói, numa fenome-notécnica. A respeito, ver, de Bachelard, “Noumène et microphysique”, in Etudes, Paris, Vrin, 1970, pp. 18-9.

[65] G. Bachelard, L’intuition de l’instant, op. cit., pp. 39-40.

[66] R. Barthes, “Introduction à l’analyse structurale des récits”, op. cit., p. 3.

[67] Leyla Perrone-Moisés, Barthes, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 45.

[68] Para o mapeamento das diversas correntes de pensamento que convergem, em nosso século, para essas questões, ver, particularmente, M. Meyer, Logique, langage et argumentation, Paris, Hachette, 1982.

[69] Ver, em particular, J. C. Anscombre & O. Ducrot, L’argumentation dans la langue, Bruxelas, Pierre Mardaga Éditeur, 1983; 0. Ducrot, Les échelles argumentatives, Paris, Minuit, 1980; Carlos Vogt, Linguagem, pragmática e ideologia, São Paulo, Hucitec-Funcamp, 1980.

[70] Para mais ampla apreciação da questão, remeto, além da vasta obra de Chaim Perelman, a meu ensaio de iniciação: “A teoria da argumentação ou Nova Retórica”, op. cit.

[71] C. Perelman, “Sens et catégories en histoire”, in Vv. Aa., Les catégories en histoire, Bruxelas, Editions de l’Institut de Sociologie de l’Université Libre de Bruxelles, 1969, p. 138.

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