2012

O tempo que nos resta

por Jean-Pierre Dupuy

Resumo

A preguiça é uma noção difícil porque envolve o conceito de tempo, e, desde Santo Agostinho – pelo menos –, sabe-se que, ao refletir sobre ele, o avanço é lento. Numa sociedade profundamente meritocrática e republicana como a francesa, o elogio da preguiça é difícil, pois, nela, aprende-se a considerar que a justiça é a recompensa do talento cultivado pelo esforço. Impossível negar a formação inicial. Há, no entanto, uma inquietude ou interrogação por trás da noção de preguiça. Ela, que merece reflexão, diz respeito à qualidade do tempo em que se vive; à qualidade de nosso ser, portanto.

O que se segue são estudos de caso, em ordem de complexidade. Espera-se que, ao final deles, surja uma espécie de coerência.

A começar pelos pensadores utópicos do século XIX, entre os quais está Marx. Todos eles profetizavam que, com o avanço técnico, o homem precisaria trabalhar menos para, no mínimo, permanecer no patamar de riqueza de seus predecessores. Seria a passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade. Ora, isso faz um século e meio, e o homem trabalha mais do que nunca, sem, assim, ver-se livre ou próspero. Na verdade, o que faz é produzir mais e mais…

O que houve, afinal?

A perversão da “lógica do desvio”, categoria criada por Leibniz e retrabalhada por Ivan Ilich. Em que consiste ela originalmente? Na capacidade humana de afastar-se do caminho regulamentar para alcançar seu objetivo mais rápido. Exemplos disso são os expedientes de privar-se do consumo imediato com o objetivo de aumentar o consumo global ou recusar-se a uma oferta favorável em função de uma oferta futura ainda mais favorável. Em suma, nas palavras do próprio Leibiniz, “recuar para melhor saltar”. Acontece, hoje – nota Ilich –, que quem assim age não mantém mais os olhos fixos no obstáculo que pensa ultrapassar; antes, olha na direção oposta, esquece-se de seu objetivo e, tomando o recuo por progresso, toma os meios pelos fins. É aí que a racionalidade torna-se contraprodutividade. Em termos concretos, pode-se pensar no uso do carro, cuja velocidade média, na França, é de sete quilômetros por hora. Ora, se o francês cumprisse seus percursos de bicicleta, ou seja, numa velocidade sensivelmente superior à do carro, ele economizaria tempo, dinheiro e recursos naturais raros. Enfim, ele não dedicaria parte do fruto de seu tempo de trabalho a comprar o veículo que o leva tão lentamente… ao trabalho.

Como explicar tamanha contraprodutividade?

Nesse sentido, um capítulo de um livro de 1840 é especialmente esclarecedor. Trata-se de “Por que os americanos se mostram tão inquietos no meio do seu bem-estar?” que integra “A democracia na América” de Alexis de Tocqueville. Eis, dele, um trecho esclarecedor: “É uma coisa estranha ver com que espécie de ardor febril os americanos perseguem o bem-estar, e como se mostram atormentados sem cessar por um vago medo de não ter escolhido o caminho mais curto que pode levar a ele”. Mais uma vez tal metáfora, a que se segue: “O habitante dos Estados Unidos apega-se aos bens deste mundo como se tivesse certeza de não morrer, e põe tanta precipitação em se apossar dos que passam ao seu alcance que até parece temer a cada instante que vai deixar de viver antes de ter desfrutado deles”.

Não. Não se trata de uma análise meramente materialista. Do contrário, Tocqueville não encerraria assim tal capítulo: “Entre os americanos, o materialismo não existe por assim dizer, apesar de que a paixão do bem-estar material seja geral”. Eis mesmo o paradoxo: por trás da desenfreada concorrência econômica e militar entre os povos da Terra, há uma corrida contra o relógio, a morte; a própria finitude natural do ser, enfim.

A preguiça em prática. Difícil acreditar que ela seja uma solução viável para a humanidade atual. Quando já se provou ao máximo a vida ativa, não se pode mais viver sem ela. Entretanto, a preguiça traz em si a seguinte questão, incontornável: a relação do homem com o tempo, isto é, dele com ele mesmo, pois ele é o tempo – e essa relação está doente. Acontece que, como não se sabe o que é este, não se sabe que doença é esta. Sintomas há. A transformação do tempo em espaço; logo, em bem não só finito como raro. A dissolução da faculdade de projetar-se no futuro através da imaginação. Há ainda as queixas habituais – sobre sua escassez, ocupação ou rapidez. Médicos são poucos. Diagnósticos e remédios? Ao que tudo indica, esses ainda não há.


A questão que nos propôs Adauto Novaes é uma das mais difíceis porque ela toca na questão do tempo e, pelo menos desde Santo Agostinho, sabemos que, quando começamos a refletir sobre ela, descobrimos que dela nada compreendemos. Como filósofo formado em uma sociedade profundamente meritocrática e republicana, seria inteiramente impossível para mim fazer o elogio da preguiça. Aprendi a considerar que a justiça é a recompensa do talento cultivado pelo esforço. Não nos afastamos facilmente de nossa formação inicial e eu não vou tentar fazer isso aqui porque soaria falso. Atrás da questão do Adauto percebo, entretanto, uma interrogação, uma inquietude, deveria dizer, mais fundamental, e é a essa interrogação que vou dedicar minha reflexão. Essa inquietação diz respeito à qualidade do tempo em que vivemos e, portanto, à qualidade de nosso ser, porque, como escreveu Jorge Luis Borges,

O tempo é a substância de que sou feito.

O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio;

É um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre;

É um fogo que me consome, mas eu sou o fogo[1]

Vou me contentar em apresentar quatro curtos estudos de caso, de complexidade crescente, mas cuja unidade surgirá ao fim de minha conferência, assim espero.

A PRODUTIVIDADE DO TRABALHO E A FALSA PROMESSA DO TEMPO LIBERADO

Todos os grandes utópicos do século XIX, e dentre estes coloco Marx, fizeram o seguinte raciocínio: o trabalho se tornará cada vez mais produtivo à medida que as máquinas se tornarem cada vez mais performáticas, profetizavam eles. Então, chegará o momento em que será melhor converter os progressos de produtividade em recursos de tempo do que em riquezas materiais — quer dizer, escolher trabalhar cada vez menos, renunciando a aumentar ainda mais o nível de vida. Assim, será possível sair do “reino da necessidade” para entrar no reino da liberdade. Cada um, enfim livre das tarefas materiais, participará de atividades científicas e artísticas, se dedicará à gestão das questões públicas etc.

Um século e meio mais tarde nós nos desiludimos. Quanto mais a produtividade do trabalho avança, mais nossa sociedade se restringe — segundo Bertrand Russell, que faz eco a uma célebre passagem da Riqueza das nações de Adam Smith — a fabricar o dobro de pinos em um dado tempo em vez de fabricar uma dada quantidade de pinos em duas vezes menos tempo. Como se o tempo livre não nos interessasse ou, pior que isso, como se ele nos angustiasse e nós desejássemos dedicar o essencial do nosso tempo ao trabalho, essa atividade que resulta das necessidades do mundo material.

Para compreender o que está verdadeiramente em jogo nesse paradoxo antropológico, proponho refletir sobre o que é que dizemos exatamente quando afirmamos que a técnica multiplica os meios que nos permitem “ganhar tempo”. O que queremos dizer com essa expressão é que o tempo que dedicamos a criar e a fabricar as máquinas que compõem o mundo artificial que se tornou nossa segunda natureza, do automóvel ao telefone celular, da máquina de lavar ao computador, esse tempo é mais do que compensado pela redução do tempo ligado à satisfação das necessidades da vida cotidiana: deslocar-se, cuidar da casa, informar-se, comunicar, aprender etc. No total, tudo que supostamente ganhamos é esse “tempo livre” em razão do qual, em princípio, nós corremos. Ora, será que realmente conseguimos fazer com que nosso tempo fique mais livre?

Aqui devo fazer referência a um pensador que foi um dos meus mestres e cuja influência sobre o pensamento crítico dos anos 1960 e 70 foi considerável. Falo de Ivan Illich, esse grande crítico da sociedade industrial de origem austríaca e servo-croata, judeu e padre católico submetido a um processo inquisitorial, cujas obras sobre a escola, a medicina, os transportes, as técnicas de informação abalaram a consciência adormecida das sociedades burguesas atingindo-as com verdades que as fizeram tremer. As jovens gerações não conhecem seu nome, mesmo se continuam a empregar palavras que Illich forjou ou para as quais ele deu um novo sentido: por exemplo, “convivialidade” e “contraprodutividade”. A contraprodutividade das grandes instituições da sociedade industrial se refere ao fato de que, ultrapassados certos limites críticos, quanto mais elas adquirem importância em nossas vidas, mais se tornam um obstáculo à realização dos próprios objetivos aos quais supostamente servem: a medicina corrompe a saúde, a escola bestifica, o transporte imobiliza, as comunicações nos fazem surdos e mudos, os fluxos de informação destroem o sentido, o recurso à energia fóssil, que reatualiza o dinamismo da vida passada, ameaça destruir toda vida futura e, last but not least, a alimentação industrial se transforma em veneno.

Illich ofereceu uma crítica potencialmente original do modo industrial de produção. Para ele, o que define esse modo de produção não são as relações de produção, segundo a caracterização marxista do capitalismo, nem mesmo certo tipo de relação técnica com a natureza. No seu fundamento encontramos a lógica do desvio. No século XVIII, o metafísico e matemático alemão Leibniz defendeu a tese de que o ser humano, a exemplo de Deus, que criou o melhor dos mundos possíveis, se caracteriza pela sua capacidade de fazer desvios para melhor atingir seus fins. Ele sabe se afastar do caminho certo e fazer um desvio se isso lhe permitir ir mais rápido, ele sabe se privar temporariamente de consumir para investir com o objetivo de aumentar seu consumo global; ele pode recusar uma ocasião favorável de modo a esperar uma ocasião mais favorável ainda etc. Leibniz, que escrevia em francês, recorreu a uma imagem impressionante para expressar essa capacidade de fazer um desvio: reculer pour mieux sauter — quer dizer, recuar para melhor saltar. Suponham que, fazendo uma caminhada na montanha, desejem alcançar o ponto mais alto possível. Vocês atingem o topo da montanha e percebem um pico ainda mais alto: não terão escolha, terão que concordar em descer antes de subir. Tomando a atitude oposta vocês cometeriam o que se chama em inglês de “first step fallacy”, ou sofisma do primeiro passo. Quem quer atingir a Lua e cujos esforços o fazem chegar ao topo de uma árvore deve decidir-se a recolocar seus pés na terra antes de recorrer a uma técnica mais eficaz. É a marca da sua inteligência.

A crítica de Ivan Illich consistiu em mostrar que essa lógica do desvio, quando levada ao extremo pela divisão do trabalho, transforma nossa inteligência em estupidez. Aquele que é animado pelo espírito do desvio pode deixar-se apanhar em sua armadilha perdendo de vista que o desvio é apenas um desvio. Aquele que recua para saltar melhor mantém os olhos fixos no obstáculo que pensa ultrapassar. Se ele recua olhando na direção oposta, arrisca-se a esquecer seu objetivo e, tomando seu recuo por um progresso, toma os meios por fins. É aí que a racionalidade se torna contraprodutividade.

Aplicação ao automóvel. Nos anos 1980, seguindo uma intuição de Illich, procedi, junto com minha equipe de pesquisa, a cálculos bizarros, mas rigorosos, que conduziram aos seguintes resultados: o francês médio dedicava mais de quatro horas por dia ao seu carro, seja se deslocando de um ponto a outro dentro de sua cabine, seja enfeitando-o, seja, sobretudo, trabalhando nas fábricas ou escritórios para obter os recursos necessários à sua aquisição, ao seu uso e à sua manutenção. Recentemente, voltando aos dados que havíamos reunido para fazer esse cálculo, cheguei à conclusão de que a situação presente é, sem dúvida, pior do que era há trinta anos.

Se dividirmos o número médio de quilômetros percorridos — todos os tipos de trajetos misturados — por essa duração, obteremos uma velocidade. Essa velocidade, que nomeei velocidade “generalizada” do automóvel, está em torno de sete quilômetros por hora, um pouco maior do que a velocidade de um homem andando, mas sensivelmente inferior à de um ciclista.

O resultado obtido, aritmeticamente, significa o seguinte: o francês médio sem carro, liberado então, por suposição, da necessidade de trabalhar muitas horas para pagá-lo, dedicaria menos “tempo generalizado” ao transporte se ele fizesse todos os seus deslocamentos de bicicleta — estou dizendo claramente: todos os seus deslocamentos, não apenas os que o fazem cotidianamente atravessar o espaço que separa sua casa do seu trabalho, mas também aqueles que, no fim de semana, o conduzem à sua casa de campo distante e, chegadas as férias, às margens douradas de um longínquo riacho. Esse cenário “alternativo” seria considerado por todos absurdo, intolerável. E, entretanto, ele economizaria tempo, energia e recursos raros, e seria ameno para o que nós denominamos meio ambiente. Então, onde está a diferença que faz com que, num caso, o absurdo da situação esteja patente enquanto, no outro, fica dissimulado? Por que, afinal, é menos cômico trabalhar uma boa parte de seu tempo para pagar os meios de chegar ao trabalho?

O cálculo econômico precedente faz uma equivalência entre uma hora de transporte e uma hora de trabalho, uma e outra sendo contadas como simples meios a serviço de outro fim. Essa equivalência é a mesma dos cálculos dos engenheiros-economistas. Pode-se contestá-la, mas é preciso notar de início que ela não faz senão levar a sério a lógica do desvio de produção. Trabalho e transporte não são, igualmente, fins em si mesmos. O cálculo econômico tem por missão contabilizar rigorosamente a fadiga dos homens, condição prévia indispensável aos engenheiros-economistas que têm por objetivo tornar essa fadiga, globalmente, tão pequena quanto possível. Ora, tanto o trabalho como o transporte causam fadiga. Muitos participantes deste ciclo de conferências notaram que “travail”em francês e “trabalho” em português vieram do latim tripalium, esse instrumento de tortura de três estacas. Ninguém parece ter notado que a mesma palavra, tripalium, tenha engendrado em inglês a palavra travel, que quer dizer viagem, transporte, deslocamento. Travail e travel são somente um, ou seja, é o mesmo esforço, a mesma tortura, que ambos denotam.

Como é possível que não se perceba o absurdo de um modo de vida e de uma estruturação do espaço-tempo social que conduzem tantas pessoas a ter que dedicar tanto tempo aos seus deslocamentos para uma eficácia média tão ridiculamente pequena? A razão disso está em que o tempo do transporte foi substituído pelo tempo do trabalho. Esse trabalho é apenas, em princípio — esse princípio que denominamos desvio da produção —, um meio a serviço de um transporte mais rápido e mais eficaz, transporte que, por sua vez, é apenas um meio a serviço de outra coisa — por exemplo, “aproximar os seres que se amam”, para citar a publicidade antiga do Concorde. Fiel (para revelar melhor o caráter ideológico) à lógica do desvio, o cálculo que fizemos mostra que o tempo passado criando e fabricando engenhos poderosos pretensamente capazes de fazer “ganhar tempo” faz muito mais do que anular o tempo que eles efetivamente economizam. A lebre está trabalhando febrilmente nos escritórios e linhas de montagem, porém, como na fábula, é a tartaruga que chega primeiro. Mas, infelizmente, ela é uma espécie em extinção. A economia seria economizar o cansaço e o esforço dos homens? Que ingenuidade! Quem não vê que tudo se passa como se o objetivo fosse, ao contrário, ocupá-los sem parar, até mesmo fazê-los sapatear cada vez mais rápido no mesmo lugar?

Desde quando o trabalho foi dividido, ele constitui o desvio de produção por excelência. Vemos, por exemplo, certas pessoas trabalharem para fabricar armas, e o fazem para ganhar a vida e obter recursos que lhes permitirão ter acesso aos serviços de uma medicina cara, e isso tudo para produzir um valor — sua saúde — que elas poderiam manter, em larga medida, de modo autônomo, levando uma vida mais sadia e higiênica. O espírito do desvio de produção foi tão pervertido pela sociedade industrial e a divisão do trabalho extremamente pressionada que a caracteriza, que é o desvio, sua extensão, a energia despendida para percorrê-lo que se tornam fins e objetivos a ser alcançados em si mesmos. Eis por que o cálculo da velocidade generalizada do automóvel parece, a muitos, UM cálculo viciado: aí o cálculo trata o trabalho como input, quando o trabalho, sob a forma de emprego assalariado, tornou-se, por excelência, output. Ainda uma vez, os únicos que deveriam tomar esse cálculo a sério são os economistas profissionais. As produções que podemos concordar em julgar supérfluas ou mesmo nocivas estão legitimadas pelo trabalho que elas fornecem à população. A redução da duração de vida dos objetos, os desperdícios destruidores dos recursos naturais não renováveis, que consomem muita energia e poluem o meio ambiente: ninguém se atreve a agir para corrigi-los porque eles garantem emprego. Quando, na época em que fazíamos esse cálculo, um sindicato operário na França exigia com veemência que o programa Concorde prosseguisse, deveríamos pensar que o sindicato buscava, desse modo, apressar o advento da sociedade sem classes na qual todos os ex-proletários voariam no supersônico? Claro que não, eles defendiam o trabalho. Quando, mais ou menos na mesma época, outro sindicato operário justificava a redução das desigualdades sociais porque isso aumentaria o “consumo popular” e então relançaria o crescimento, e assim o trabalho necessário, devemos julgar que esse sindicato confundia o fim com os meios? Não, a finalidade da sociedade industrial é mesmo produzir desvio de produção, quer dizer, trabalho. Se o desvio de produção é a marca da inteligência, então a sociedade industrial é estúpida por ser inteligente demais — estúpida a ponto de morrer disto.

POR QUE OS POVOS RICOS SE MOSTRAM TÃO INQUIETOS NO MEIO DO SEU BEM-ESTAR?

A demonstração de Mich da contraprodutividade dos meios técnicos que supostamente fazem “ganhar tempo” constitui um raciocínio pelo absurdo e não pretende ser uma explicação do fenômeno. Se o nosso objetivo é encontrar uma explicação de tipo sociológico, digamos, não conheço nenhuma melhor que esta, entretanto datada, que Alexis de Tocqueville desenvolveu no segundo volume de A democracia na América, publicado em 1840, em resposta à questão que ele já colocava: “Por que os americanos se mostram tão inquietos no meio do seu bem-estar?”[2]. Essa pergunta Tocqueville deveria colocar hoje a propósito de muitos outros povos além dos da América do Norte, sobretudo se nos lembrarmos da sua observação inicial: “É uma coisa estranha ver com que espécie de ardor febril os americanos perseguem o bem-estar e como se mostram atormentados sem cessar por um vago medo de não ter escolhido o caminho mais curto que pode levar a ele”. Esse ardor febril, essa inquietude, esse tormento da alma, sentem hoje todos os povos que escolheram uma forma de desenvolvimento baseada em bens materiais. Notemos que a imagem à qual Tocqueville recorreu para exprimir essa relação patológica com o tempo é a do desvio, o “vago medo de não ter escolhido o caminho mais curto que pode conduzir [ao bem-estar]”. Como se ele já pressentisse que a lógica do desvio pudesse se tornar contraprodutiva.

O estilo de Tocqueville é, mesmo na tradução, de uma elegância e de uma clareza exemplares. Eu os convido a simplesmente relê-lo:

É uma coisa estranha ver com que espécie de ardor febril os americanos perseguem o bem-estar, e como se mostram atormentados sem cessar por um vago medo de não ter escolhido o caminho mais curto que pode levar a ele.

O habitante dos Estados Unidos apega-se aos bens deste mundo como se tivesse certeza de não morrer, e põe tanta precipitação em se apossar dos que passam ao seu alcance que até parece temer a cada instante que vai deixar de viver antes de ter desfrutado deles. Apossa-se de todos, mas sem os segurar firmemente, e logo os deixa escapar de suas mãos para correr atrás de novas fruições.

Nos Estados Unidos, um homem constrói com cuidado uma morada para a velhice e vende-a enquanto assentam a cumeeira; planta um pomar e arrenda-o quando ia provar seus frutos, arroteia um campo e deixa a outros a tarefa de colher as safras. Abraça uma profissão e a abandona, se fixa num lugar de onde parte pouco depois, para levar alhures seus desejos cambiantes. Se seus assuntos privados lhe dão algum momento livre, logo mergulha no turbilhão da política. E quando, ao fim de um ano repleto de trabalho, ainda lhe restam alguns instantes de lazer, passeia aqui e ali nos vastos limites dos Estados Unidos sua curiosidade inquieta. Fará também cem léguas em alguns dias para melhor se distrair de sua felicidade.

A morte por fim sobrevém e o detém antes que ele tenha se cansado dessa busca inútil de uma felicidade completa que sempre lhe foge.

De início, você fica pasmo contemplando essa agitação singular que fazem tantos homens felizes no seio mesmo de sua abundância. Mas esse espetáculo é tão velho quanto o mundo; o que é novo é ver todo um povo representá-lo.

O gosto pelas fruições materiais deve ser considerado a fonte primeira dessa inquietude secreta que se revela nas ações dos americanos e dessa inconstância de que fornecem cotidianamente o exemplo.

Quem concentrou seu coração na única busca dos bens deste mundo está sempre apressado, porque dispõe apenas de um tempo limitado para encontrá-las, apropriar-se e desfrutar delas. A lembrança da brevidade da vida estimula-o sem cessar. Independentemente dos bens que possui, imagina a cada instante mil outros de que a morte o impedirá de fruir, se não se apressar. Esse pensamento enche-o de inquietação, medos e arrependimentos, e mantém sua alma numa espécie de trepidação incessante que o leva a mudar a todo instante de projetos e lugares.

Se ao gosto do bem-estar material vier se somar um estado social em que nem a lei nem o costume retém mais ninguém em seu lugar, tal fato constituirá mais uma grande fonte de excitação para essa inquietude de espírito: ver-se-á, então, os homens mudarem continuamente seu trajeto, com medo de perder o caminho mais curto para conduzi-los à felicidade.

Aliás, é fácil conceber que, se desejam vivamente, os homens que buscam com paixão as fruições materiais devem se enfastiar facilmente; sendo o objetivo final fruir, é necessário que o meio de consegui-lo seja pronto e fácil, sem o que a dificuldade de adquirir a fruição seria maior que esta. A maioria das almas é, aí, ao mesmo tempo ardente e frouxa, violenta e esmorecida; e muitas vezes a morte é menos temida do que a continuidade dos esforços na mesma direção.

A igualdade leva por um caminho mais direto ainda a vários dos efeitos que acabo de descrever.

Quando todas as prerrogativas de nascimento e de fortuna são destruídas, quando todas as profissões são abertas a todos e quando se pode chegar ao topo de cada uma delas, uma trajetória imensa e fácil parece abrir-se diante da ambição dos homens, e estes imaginam de bom grado serem chamados a um grande destino. Mas é uma visão errônea que a experiência corrige todos os dias. Essa mesma igualdade que permite que cada cidadão nutra vastas esperanças torna todos os cidadãos individualmente fracos. Ela limita de todos os lados suas forças, ao mesmo tempo que permite que seus desejos se expandam.

Não apenas são impotentes por si mesmos, mas encontram a cada passo imensos obstáculos que não haviam percebido antes.

Eles destruíram os privilégios embaraçosos de alguns de seus semelhantes; encontraram a concorrência de todos. O limite mudou muito mais de forma do que de lugar. Quando os homens são mais ou menos semelhantes e seguem um mesmo caminho, é bem difícil que nenhum deles caminhe mais depressa e vare a multidão uniforme que o rodeia e o espreme.

Essa oposição constante que reina entre os instintos que a igualdade faz surgir e os meios que ela fornece para satisfazê-los atormenta e cansa as almas.

Podem-se imaginar homens que chegaram a certo grau de liberdade que os satisfaça inteiramente. Eles desfrutam então de sua independência sem inquietude e sem ardor. Mas os homens nunca fundarão uma igualdade que lhes baste.

Por mais esforços que um povo faça, ele nunca conseguirá tornar as condições perfeitamente iguais em seu seio; e se ele tivesse a infelicidade de chegar a esse nivelamento absoluto e completo, ainda restaria a desigualdade das inteligências, que, vindo diretamente de Deus, sempre escapará às leis.

Por mais democrático que seja o estado social e a constituição política de um povo, podemos, pois, dar por certo que cada um de seus cidadãos sempre perceberá perto de si vários pontos que o dominam, e pode-se prever que ele voltará obstinadamente seu olhar só para esse lado. Quando a desigualdade é a lei comum de uma sociedade, as mais fortes desigualdades não impressionam os olhos; quando tudo está mais ou menos no mesmo nível, as menores desigualdades os ferem. É por isto que o desejo de igualdade se torna cada vez mais insaciável à medida que a igualdade é maior.

Nos povos democráticos, os homens obterão facilmente certa igualdade; mas não poderiam alcançar a que desejam. Esta recua cada dia diante deles, mas sem nunca se furtar a seus olhares e, retirando-se, atrai-os em seu encalço. Eles creem sem cessar que vão pegá-la, e ela escapa sem cessar de seus braços. Eles a veem bastante de perto para conhecer seus encantos, não se aproximam o bastante para desfrutar dela e morrem antes de ter saboreado plenamente suas doçuras.

É a essas causas que convém atribuir tanto a melancolia singular que os habitantes dos países democráticos manifestam com frequência no seio de sua abundância como aqueles desgostos da vida que às vezes se apossam deles no meio de uma existência confortável e tranquila.

Por mais bela e profunda que seja essa análise, notamos que ela se alimenta de metáforas relativas a espaço tanto quanto a imagem do desvio proposta por Mich. O tempo é como um caminho que nós abrimos no meio da multidão, tentando ir o mais rápido e o mais direto possível. Então não é possível falar do tempo de outro modo que não seja, fazer dele uma quarta dimensão do espaço? Se o tempo fosse como um caminho que se percorre, o paradoxo que constitui o tempo desapareceria: o passado seria o caminho já percorrido, o amanhã o caminho ainda a percorrer, e o presente o ponto onde nos encontramos. Mas o passado não é mais, o amanhã não é ainda e o presente não é nada, pois, assim que se apresenta, ele já passou. Parece então que o tempo não tem nenhuma espessura. Será que ele não tem nenhuma existência? Tal é o paradoxo que denominamos tempo.

Entretanto, vamos reler a maravilhosa análise de Tocqueville. Ela nos oferece um meio para pensar o paradoxo. É a referência ao desejo que é a chave: “o desejo de igualdade se torna sempre mais insaciável à medida que a igualdade é maior”. Pela sua insistência na procura sempre insaciável do bem-estar material, Tocqueville podia dar a impressão de que sua análise era materialista. Nada mais falso. Ele concluiu seu capítulo com as seguintes palavras, que não deixam nenhuma ambiguidade, mesmo que estas palavras constituam o mesmo paradoxo dito de outra maneira: “Entre os americanos, o materialismo não existe por assim dizer, apesar de que a paixão do bem-estar material seja geral”.

É esse paradoxo que tento esclarecer nas minhas pesquisas, porque da sua solução depende a possibilidade de uma crítica renovada e não materialista da economia política. Atrás da desenfreada concorrência entre todos os povos da Terra que denominamos crescimento econômico mundial, existe uma corrida contra o relógio, uma corrida contra a morte e contra a finitude natural do ser. Essa procura do “mal infinito”, como dizia Hegel, é, em alguma medida, uma busca espiritual da qual é preciso que entendamos as motivações.

Tornou-se uma banalidade dizer que o tempo “se acelera” e acreditamos compreender o que estamos dizendo, dizendo-o, enquanto que, tomada ao pé da letra, essa expressão nada significa. O tempo poderia ir mais rápido do que eu? Evidentemente não, pois, como disse tão poeticamente Borges, o tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio. Onde quer que eu vá, não posso ir mais rápido que eu mesmo. Se tenho a impressão de perder pé nesse rio que é o tempo, é porque tenho mais e mais dificuldade em me agarrar a esse passado que se distancia e em me projetar num futuro cada vez mais incerto. Porque é exatamente a dupla capacidade de memória do passado e de projeção no futuro que dá ao tempo sua espessura humana. E é essa dupla capacidade que está hoje em crise.

Na medida em que é preciso escolher neste tema tão rico, meus dois últimos estudos de caso tratarão da crise do capitalismo nos aspectos ligados à sua incapacidade crescente de se projetar no futuro, condição necessária à sua perenidade.

DA DIFICULDADE CRESCENTE DE SE PROJETAR NO FUTURO

O grande economista britânico John Maynard Keynes foi o primeiro a compreender que a economia capitalista só podia funcionar projetando-se no futuro, quer dizer, produzindo antecipações. Suponha que seja alpinista e que vai escalar uma parede gelada. Como você faz? Você projeta seu piolet em direção ao alto e se faz puxar a partir desse ponto de apoio. Eis o que fazem as economias capitalistas com relação ao futuro, lembrando que aqui a parede não existe porque o futuro não existe. Mas tudo se passa como se elas, apesar de tudo, fossem capazes de se projetar em direção a um futuro virtual que, assim, elas fazem existir. Ora, é essa capacidade que hoje está em crise.

Economia do apocalipse: a dialética do otimismo e do pessimismo

Temos razões para pensar que o otimismo dos agentes da crise, inclusive dos governantes, esse otimismo responsável pela formação de bolhas gigantescas, que foi denunciado por Alan Greenspan como “efervescência irracional” dos mercados quando era o presidente do Federal Reserve Board, se alimenta de um catastrofismo que não pronuncia seu nome.

O que vou apresentar aqui sob uma forma muito conjuntural devo às reflexões de um dos analistas mais perspicazes da crise, Peter Thiel. Financista, ainda jovem, ele criou o PayPal antes de financiar o Facebook[3]. Seu esforço é o de um “catastrofismo esclarecido”[4], mas, ao contrário do filósofo, ele o coloca diante da prova da realidade pelas decisões de investimento que, felizes ou infelizes, se fundamentam em raciocínios rigorosos, explícitos e coerentes, e não em modelos matemáticos tão complexos e opacos que terminam por adquirir uma espécie de autonomia de decisão.

O que choca Thiel é, primeiramente, o caráter totalmente inédito da formação das bolhas especulativas e a violência de sua explosão, o que já vem ocorrendo há uns vinte anos. Tanto a fase eufórica como o crash apresentam traços de acontecimentos extremos. Logo antes da bolha japonesa estourar, no fim dos anos 1980, a capitalização da bolsa nipônica representava a metade da capitalização mundial das bolsas. Chegou-se a acreditar que o país do sol nascente ia reinar sobre todo o planeta. Jamais se pensou ser possível que a bolha internet do fim dos anos 1990, o maior boom na história do mundo, ia ser substituída, cinco anos mais tarde, por uma bolha imobiliária de amplitude ainda maior.

Na busca de explicações muitas pessoas apontam com o dedo a cobiça e o amor ao ganho dos traders — como se isso fosse um fato novo. A preguiça intelectual e a falta de curiosidade se dissimulam atrás da indignação moral. Satisfaz muito mais ao espírito tentar compreender o que se passou.

No reino do dinheiro, nos diz Peter Thiel, disto um conhecedor, o catastrofismo não tem lugar. A perspectiva apocalíptica é ainda menos tolerada do que na sociedade global. Que interesse teria um investidor de sustentar o pensamento de que o capitalismo é mortal? Se essa eventualidade se realizasse, nada teria mais importância. Se a predição disso fosse feita, com anúncio do termo, ela seria imediatamente falsificada, porque a catástrofe aconteceria no momento em que fosse feita e não no momento anunciado.

Melhor então seria fazer como se fôssemos imortais. E, entretanto, analisa Thiel lançando um novo paradoxo, isso não significa que a perspectiva apocaliptica não tenha tido um peso imenso sobre os raciocínios e sobre o comportamento dos investidores, bem ao contrário.

A sobrevida do capitalismo hoje está indissociavelmente ligada ao sucesso da mundialização. Mas o que poderia significar o seu revés? O que a antimundialização ganhou? Thiel afasta essa hipótese, porque para ele a antimundialização se origina da mundialização. Parafraseando Tocqueville, poderíamos dizer que a mundialização se nutre daquilo que se opõe a ela; ela é um fato providencial e tem as principais características de um fato providencial: é universal, é durável, escapa a cada dia ao domínio humano — todos os acontecimentos, como todos os homens, servem ao seu desenvolvimento. Não, se a mundialização fracassar, será tão somente o resultado de uma catástrofe maior, incluindo como dano colateral o fim do capitalismo. Essa catástrofe seria mais ou menos aquela que catastro-fistas como eu esboçam em linhas gerais. Entre a destruição da natureza e a tendência da violência humana a alcançar thremos, se estabelece uma solidariedade que coloca em perigo a sobrevida da humanidade. A ameaça mais terrível é ainda a de um conflito nuclear generalizado.

De acordo com Thiel, os agentes econômicos e financeiros não imaginam diretamente esse cenário catastrófico. Eles o afastam de seus cálculos como se fosse excessivamente horrível para ser levado em conta seriamente. Mas é precisamente afastando-o que concedem a ele um lugar considerável. Para compreender esse paradoxo, um pequeno cálculo não é inútil. Imaginemos um investidor que sente perfeitamente a ameaça, mas não quer considerá-la. Ele compreendeu intuitivamente que o caminho que assegura a sobrevivência do capitalismo é como uma crista numa paisagem alpina, tendo ao lado o abismo.

A probabilidade implícita de que nosso homem concorde com o cenário otimista — o da sobrevivência dos negócios — é, suponhamos, de 10%. Ele antecipa que certo negócio no qual pretende se engajar resultará em uma valorização de 100 dólares por ação, se, entretanto, o cenário otimista se realizar. Que valor ele deve atribuir-lhe hoje? Somos tentados a responder 10% de 100 dólares, multiplicando probabilidade por tamanho, o que dá 10 dólares. Esse cálculo, deve-se notar, ignora completamente o outro caso, o da probabilidade de 90%, que daria uma perda esperada infinita! Mas esse esquecimento voluntário está precisamente no coração do paradoxo. O argumento de Thiel é que, por ocasião das últimas grandes bolhas, os agentes não escolheram o valor de 10 dólares, e sim um valor muito maior e provavelmente próximo de 100 dólares. Com efeito, levando ao extremo a lógica que afasta o cenário catastrófico, eles consideraram que, em todos os mundos possíveis onde sobreviviam, o valor do título era de 100 dólares. Então, seu valor esperado era, sim, 100 dólares.

Se tal fosse o raciocínio dos agentes, ele evoca uma publicidade humorística da loteria nacional francesa que, para atrair os jogadores, divulgou orgulhosamente os resultados de um estudo estatístico estabelecendo que 100% dos ganhadores tinham comprado um bilhete. Mas, insiste Thiel, é preciso voltar a mergulhar no contexto de formação das megabolhas recentes. Se os investidores do fim dos anos 1990 arriscaram-se tanto no sucesso das firmas internet é porque não estavam vendo outro futuro que não fosse o apocalipse. Se os novos pobres da América, esses cujas economias se fundiram sob o sol com a queda dos valores das bolsas, se precipitaram sobre os subprimes, é porque viram nestes a única opção capaz de lhes evitar uma aposentadoria miserável. Talvez essas pessoas fossem mais lúcidas que muitas outras? Projetando-se em um único futuro que não fosse catastrófico e dando-lhe assim a probabilidade de uma coisa certa, elas inferiram ali o que deveriam fazer para tornar esse futuro possível.

É possivel agora formular o paradoxo de Peter Thiel: em última instância, foi a perspectiva apocalíptica a causa da elevação ao extremo do otimismo. A elevação do otimismo ao extremo vem de um catastrofismo difuso, não refletido, e justifica, de volta, um catastrofismo racional.

A espera das catástrofes anunciadas

Todos os dias levam à morte, o último a alcança.

MONTAIGNE

“Que filosofar é aprender a morrer.”

Ensaios, I, 19

O ponto de partida do último estudo de caso que proponho a vocês para reflexão me foi fornecido por uma estatística que me deixou estupefato: oitenta por cento das despesas com saúde na França estão empenhadas com o último ano de vida. O autor dessa estatística, um médico, observou que esses cuidados últimos tinham uma função sobretudo paliativa e um valor simbólico, e que seus efeitos sobre a mortalidade e a morbidade eram negligenciáveis. O subentendido era claro: sendo o objetivo o de otimizar a economia da saúde, seria muito mais econômico preparar os pacientes para seu esperado fim por meios tradicionais, por exemplo, a inserção em uma cultura, numa rede de relações pessoais, num universo de sentido, e assim reservar os atos médicos mais caros para intervenções tecnicamente eficazes.

Um instante de reflexão apenas mostra, entretanto, que essa inferência gestionária não faz sentido. Com efeito, como se poderia dizer a um ser humano: seu último ano de vida começa agora, consequentemente vamos limitar seu acesso ao sistema de cuidados? Caso se tratasse de gerir um estoque de jipes ou de veículos industriais, seria possível raciocinarmos assim. Saberíamos que um jipe está no seu último ano de vida porque assim o decidimos. Calculamos previamente a idade ideal de sua “morte”, quer dizer, de sua desativação. Mas a condição humana se resume na fórmula: hora incerta morte certa. O predicado “empenhados com o último ano de vida” aplicado a atos médicos tem pouquíssimas implicações econômicas porque, na maior parte dos casos, esse predicado só pode ser determinado retrospectivamente.

Quando eu era criança, ou mesmo no início da adolescência, pensava que a morte era uma passagem contínua de um estado para outro, uma espécie de adormecimento progressivo onde os sentidos se embotavam, as forças se atrofiavam, as faculdades se debilitavam, a transposição da linha não implicando nenhuma ruptura, nenhuma interrupção, nenhuma catástrofe ou ponto de desequilíbrio. Acredito hoje que nada é mais falso. Morremos exatamente quando temos mais vontade de viver.

A morte é uma catástrofe e um apocalipse: uso esses termos não no sentido comum de desastre terminal, mas nos seus sentidos poético e matemático. A catástrofe é o desenlace de uma narrativa que subverte o sentido que acreditávamos lhe atribuir, e o apocalipse é a revelação desse sentido. E mais: a morte é uma catástrofe anunciada. A moira Átropos, essa fiandeira implacável do destino, simplesmente se esqueceu de nos dizer precisamente o dia e a hora. Esse esquecimento tem consequências incalculáveis. Alguns acreditam que ele lhes permite viver, porque assimilam um fim desconhecido a um fim indeterminado, e este a uma ausência de fim. “Aquilo que há de certo na morte é um pouco suavizado pelo que há de incerto: é um indefinido no tempo que tem qualquer coisa de infinito […]”, escreveu La Bruyère[5]. Outros ficam angustiados porque essa indeterminação os priva do conhecimento que têm de si mesmos. Entrevistava-se pela enésima vez o grande escritor argentino Jorge Luis Borges: “Fale-nos de si, senhor Borges”. “Falar de mim? Mas eu nada sei de mim, não sei nem a data da minha morte!”. Se nos colocarmos na data da entrevista poderemos recorrer ao futuro anterior, esse tempo milagroso que transforma o amanhã em passado, e dizer: quando Borges morrer, sete anos e três meses se terão passado desde que ele pronunciou essas memoráveis palavras. Mas esse foi um luxo inacessível ao próprio Borges.

Interesso-me aqui pela questão das catástrofes cuja ocorrência é inevitável, mas das quais não conhecemos nem a hora nem o dia em que acontecerão. O tempo que nos resta é um puro desconhecido. O exemplo paradigmático é evidentemente, para cada um de nós, o exemplo da morte. Por que o ser humano é a tal ponto obcecado pelo problema do tempo senão porque sabe que sua morte é inevitável? Não é a morte em geral a sua preocupação primeira, é a sua própria morte, a morte-própria, a morte na primeira pessoa: minha morte!

A experiência da minha morte não existiria se uma vida humana não fosse pontuada por “pequenas mortes”, rupturas que marcam o fim de um período, de um ciclo ou de uma fase, e que são frequentemente vividas como “catástrofes” no sentido original do termo: férias que acabam, um rompimento amoroso, uma guerra que termina. A morte-própria é o exemplo supremo de uma catástrofe anunciada, mas há muitos outros. É o tempo de espera que nos separa de uma catástrofe, cuja ocorrência é inevitável mas cuja data nos é desconhecida, que constitui o objeto da minha reflexão.

A forma paradoxal que toma o tempo nesses casos pode ser assim descrita: a ocorrência da catástrofe é uma surpresa, mas o fato de que seja uma surpresa, esse fato em si, não deveria ser uma surpresa. Sabemos que nos dirigimos para o fim, mas o fim não sendo conhecido, podemos sempre esperar que não esteja ainda próximo, até o momento em que ele nos apanhe de improviso. O caso interessante do qual vou me ocupar é aquele no qual quanto mais avançamos mais temos razões objetivas para pensar que o tempo que resta, antes que cheguemos ao termo, aumenta — como se o fim se afastasse cada vez mais à medida que nos aproximamos dele. É no momento em que, sem o saber, estamos mais próximos do fim que passamos a acreditar que estamos mais longe. A surpresa é total, mas, como sabemos previamente tudo o que acabo de dizer, não deveríamos ficar surpresos de estarmos surpresos. O tempo nos puxa, então, de duas direções opostas. De um lado, sabemos que quanto mais progredimos mais nos aproximamos do fim. Mas sendo este fim desconhecido de nós, podemos verdadeiramente tê-lo como fixo? Nos casos que considero, quanto mais avançamos sem que o fim esteja visível, mais temos razões sólidas para pensar que uma boa estrela decidiu dar-nos um fim mais distante.

O primeiro exemplo que me vem à cabeça é o da esperança de vida para certa idade, quer dizer, o número médio de anos que alguém que está com essa idade ainda tem para viver. Somos tentados a dizer que esse tempo que resta diminui à medida que a idade avança, mas isso não é necessariamente verdade. A esperança de vida de uma criança de certa idade, quer dizer, o número médio de anos[6] que ela ainda tem para viver, pode aumentar com a idade. O fato de que tenha se passado o estado crítico dos primeiros anos de vida é sinal de que sua constituição é robusta e, sendo assim, ela viverá muito. Saber que nos aproximamos inexoravelmente do fim à medida que os anos passam e a inferência de que o nosso fim recua quando avançamos em idade puxam a corda da vida em direções opostas.

O caso da mortalidade infantil é um caso bem particular. Ele toca ao Brasil particularmente. Mas o caso da mortalidade infantil não é o único a considerar. Um adulto na força da idade, vítima de um acidente de saúde, câncer ou acidente vascular cerebral, pode conseguir se tranquilizar consultando as tabelas de mortalidade, não da população inteira, mas do subconjunto daqueles que, como ele, sofreram o acidente em questão. À medida que o tempo passa, quanto mais nos afastamos do acontecimento original, mais a probabilidade de uma recidiva diminui e mais o número médio de anos ainda a viver aumenta, até, evidentemente, um certo ponto além do qual a aproximação da morte se torna irremediável.

O exemplo que tenho em mente talvez seja menos dramático, mas ele hoje nos diz respeito gravemente: é o caso da crise financeira mundial. A acreditar nos economistas, os mecanismos que conduziram à crise atual estão, na maior parte, elucidados. Tudo se explica retrospectivamente, ou quase tudo. E, entretanto, a crise pegou o mundo todo de surpresa. Quem imaginava durante o verão de 2007, e mesmo na primavera de 2008, que uma crise muito localizada no setor do mercado dos empréstimos hipotecários dos Estados Unidos iria fazer estremecer na sua base todo o sistema financeiro mundial? Houve, então, um efeito de surpresa considerável, mas surpreendente é que tenha havido essa surpresa, já que esse fato não foi ou, pelo menos, não deveria ter sido uma surpresa. O estouro da bolha não podia deixar de se produzir cedo ou tarde.

Benoît Mandelbrot, esse matemático genial a quem devemos um dos conceitos mais originais inventados no século XX, o da forma fractal, mostrou, já nos anos 1970, que o tempo da especulação financeira, mais precisamente, o tempo que o especulador considera dispor antes que a bolha estoure — e ele sabe que, inevitavelmente, essa catástrofe se produzirá cedo ou tarde — aumenta à medida que o tempo passa sem que ela estoure. É, então, exatamente no momento que precede sua explosão que ele se mostra mais otimista. Estudei um caso muito particular, mas que apresenta o mesmo pattern, o do bandido Bernard Madoff. Quanto mais sua “pirâmide” se enchia por meio do aporte permanente e crescente de novos clientes, mais ele tinha razões objetivas para supor que a pirâmide ia continuar a fazê-lo. E, entretanto, não podia ignorar que o fim viria e que todo seu sistema desabaria como um castelo de cartas. A surpresa foi tão mais terrível quanto mais tempo o esquema funcionou. Nos seus próprios termos, Madoff estava “torn between hope and despair” — dividido entre a esperança e o desespero. Ele teria desejado, ele confessa hoje, ter sido desmascarado o mais cedo possível para não sofrer as angústias desse esquartejamento crescente[7].

A questão que estudei particularmente foi a seguinte: o que dita a prudência nesses casos? A prudência dita aqui uma máxima: quanto mais razões se tem para ser otimista, mais se deve ser catastrofista e ficar em guarda porque o fim está, sem dúvida, próximo. Essa injunção contraditória se resolve, em princípio, compreendendo que o otimismo é racional num nível e o “catastrofismo”,[8] num outro que transcende o primeiro, no que ele consiste em tomar o ponto de vista do percurso já concluído e não do seu desenvolvimento. É essa forma de prudência que chamei de “catastrofismo esclarecido”. Ela implica projetar-se pelo pensamento um tempo após a ocorrência do acontecimento catastrófico e contemplar o caminho percorrido a partir desse ponto de vista que conjuga a surpresa e a certeza da surpresa. O catastrofismo esclarecido é o uso engenhoso dessa forma gramatical tão interessante que a língua francesa nomeia futuro anterior e o inglês, future perfect. O que o futuro anterior tem de perfeito que não teria o futuro comum? Ele alcança o prodígio de dar ao futuro propriedades que o passado reserva para si: a determinação e a fixidez. Vladimir Jankélévitch em O irreversível e a nostalgia: “Aquilo que foi não pode mais, daqui em diante, não ter sido: daqui em diante, este fato misterioso e profundamente obscuro de ter sido é seu viático para a eternidade”. Lamartine em Le lac: “Que o vento que geme, a cana que suspira, / Que as leves fragâncias do teu ar perfumado, / Que tudo o que escutamos, vemos ou respiramos, /Que tudo diga: Eles amaram!”

A condição de possibilidade do capitalismo é que seus agentes o acreditem imortal. Seu pecado original é que ele precisa de uma abertura indefinida de futuro para ter uma chance de manter suas promessas a qualquer momento. É lá que se enraíza a sacralização do crescimento. É preciso que os agentes antecipem que uma expansão se prolongará até o futuro mais distante para que o estado do sistema a um dado momento seja satisfatório o critério essencial sendo o pleno emprego. Madoff esperava que o fluxo dos seus clientes aumentasse sem cessar, os especuladores esperam que a bolha continue sempre a encher, os sem-teto americanos que se endividaram cem por cento para comprar uma casa contavam com o crescimento ilimitado do seu valor para conseguir financiá-la. A crise atual é apenas superficialmente uma crise financeira, porque ela é a manifestação da erosão inexorável da solução econômica para o problema político. O que essa crise revela é que a “confiança no amanhã”, como se diz estranhamente, está definitivamente corrompida e talvez já agonizante. Os capitalistas, quase tão lúcidos como Madoff, mas por outras razões não menos objetivas, pressentem que haverá um fim, mesmo que eles sejam incapazes de situá-lo no tempo. Era esse o objeto de estudo do caso precedente.

Salvo alguns iluminados que se enfarpelam sob o nome de trans-humanistas[9], cada um de nós sabe que, inevitavelmente, morrerá e que chegará necessariamente um tempo em que não seremos mais, mas no qual teremos sido. É muito mais difícil nos iludirmos a respeito de nossa própria morte do que um capitalista forçar-se a acreditar que o capitalismo é imortal. Projetando-me no futuro post-mortem, eu vejo minha vida inteira espalhada como o rolo de um filme ou as páginas de um romance, mas eu me vejo também percorrendo a narrativa na ignorância do que vai se seguir. Vejo igualmente que, quanto mais eu me aproximo do fim, mais fico dividido entre a convicção de que a vida não pode ter um termo e o saber de que eu me aproximo dele inexoravelmente. É assim que eu interpreto a estatística surpreendente da qual parti: a grande maioria das despesas com saúde acontece no último ano de vida. Essa proposição somente tem um sentido verdadeiro se estiver no futuro anterior, eu agora posso admitir. Mas no tempo que corre, o tempo dos fenômenos — este que talvez seja somente uma ilusão, como acreditaram tanto Espinosa como Einstein —, ela testemunha, da parte dos próprios sujeitos, mas sobretudo dos atores do sistema de saúde, uma admirável confiança no futuro. Jamais o gestor racional de um estoque de jipes ou de veículos industriais compreenderá isto.

CONCLUSÃO PROVISÓRIA

Elogio à preguiça? Não acredito que seja esta uma solução viável para a humanidade atual. Quando já se provou ao máximo a vida ativa, não se pode mais viver sem ela. Entretanto, atrás desse elogio, vejo uma questão verdadeira: nossa relação com o tempo, quer dizer, conosco mesmo, pois nós somos o tempo, essa relação está doente. Nós estamos doentes do tempo. Mas como não sabemos o que é o tempo, não sabemos que doença é essa que nos afeta. Tentei aqui modestamente descrever dois sintomas: a transformação do tempo em espaço, logo em quantidade finita, portanto num bem raro; e a dissolução de uma faculdade essencial, esta que permite que nos projetemos no futuro através da imaginação. Postulei que nossas queixas sobre o tempo, a saber, que ele é raro demais, que é cheio demais, que vai cada vez mais rápido sem que tenhamos tempo para respirar, essas queixas traduziam, de um modo desajeitado, sintomas reais. O médico que saberá retornar à própria doença, à sua etiologia e aos seus remédios certamente ainda não nasceu.

Tradução de Ana Maria Szapiro.

Notas

  1. Jorge Luis Borges, “Nova refutação do tempo”, Outras inquisições, São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 218. 
  2. Alexis de Tocqueville, “Por que os americanos se mostram tão inquietos no meio do seu bem-estar?”, A democracia na América, livro II, cap. XIII, trad. Eduardo Brandão, São Paulo: Martins Fontes, 2004. 
  3. Seu personagem apareceu no filme de David Fincher sobre a saga do Facebook e de seu criador Mark Zuckerberg, The social network. 
  4. Ver Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé, Paris: Seuil, 2002, 2005. Tradução brasileira: No tempo das catástrofes, São Paulo: E-Realizações, 2011. 
  5. Jean de La Bruyère, Les caracteres, XI p. 38. 
  6. A expressão exata deveria ser: “a esperança matemática do número de anos…”. Daqui em diante utilizarei a palavra “médio” nesse único sentido probabilístico. 
  7. Ver o artigo do New York Times de 31 de outubro de 2009: “Lapses Helped Scheme, Madoff Told Investigators”. 
  8. O sentido que dou a essa palavra decorre do sentido que dou a “catástrofe”. O catastrofismo (“esclarecido”, creio ser bom precisar) não é a fascinação mórbida e neurótica pelo desastre, mas a consciência clara e lúcida da presença da catástrofe. 
  9. Ver Jean-Pierre Dupuy, “Cybernetics is an antihumanism. Advanced technologies and the rebellion against the human condition”, The Global Spiral, jun. 2008. www.metanexus.net/magazine/tabid/68/ id/1o544/Default.aspx. 

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