2012

Ociosidade e ócio no pensamento da Ilustração

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

Consideremos uma divisão inicial entre vida ativa e ociosidade. A primeira abrange duas esferas, a da política e a do trabalho. Suas figuras típicas são o cidadão e o operário. Já a ociosidade abrange três esferas. As duas primeiras, puramente negativas, são o mero inverso das esferas que compõem a vida ativa: é o mundo dos que não participam da vida pública e dos que não têm ou perderam sua ocupação. Mais importante é a terceira esfera, o ócio. O ócio é um espaço positivo, de reflexão, de contemplação, de liberdade, de contestação, de criação artística e intelectual. Ele é distanciamento crítico com relação às articulações inautênticas da vida ativa e com relação aos mecanismos responsáveis pelas formas de ociosidade que não foram livremente escolhidas, mas impostas.

O ócio não exclui o esforço, o estudo, a leitura, mas os pressupõe. Por isso nada é mais fatal ao ócio que a acídia, a sombria indolência da alma, que os teólogos medievais classificavam entre os sete pecados capitais.

Na Ilustração, o âmbito da vida ativa cresceu desmedidamente com relação à esfera da ociosidade. E dentro da vida ativa, a política deixou de ocupar o lugar eminente que possuía no mundo antigo, porque os regimes absolutistas não deixavam nenhum escopo para uma ação cívica. Com isso o trabalho passou a ocupar praticamente sozinho o território da vida ativa.

A Ilustração é obcecada pelo trabalho. Para Voltaire, “o homem nasceu para a ação […]. Não se ocupar e não existir são a mesma coisa para o homem.” O outro lado da glorificação do trabalho é a condenação da ociosidade. O verbete da Encyclopédie sobre a ociosidade é dos mais expressivos. A ociosidade é a falta de uma ocupação útil e honesta, é uma fonte de desordem, porque o espírito humano não pode permanecer inativo, e se não se ocupa com algo de bom, tende inevitavelmente para o mal. A ociosidade é também uma fonte de doenças, enerva o corpo e acelera a velhice.

É preciso, contudo, admitir que os filósofos concebiam de modo um tanto assimétrico a repartição dos ônus do trabalho. Eles recomendavam um trabalho incessante, mas principalmente para as classes populares. Já a classe dos proprietários, liberta do trabalho, podia dedicar-se a todos os prazeres da ociosidade. Essa dualidade de éticas – moral do trabalho para o povo e moral do ócio para as camadas superiores – aponta para a coexistência, na Ilustração, de uma ética “protestante”, voltada para a vida ativa, e especificamente para o trabalho, e de uma ética hedonista, voltada para a ociosidade, e dentro dela especificamente para o ócio, “território livre” onde os filósofos podiam dedicar-se às “artes de toda espécie” e à maior de todas, a arte da reflexão crítica.


Antes de mais nada, permitam-me uma pequena introdução terminológica. Parto de uma divisão inicial entre vida ativa e lazer. A vida ativa abrange duas esferas, a da política e a do trabalho. O lazer, por sua vez, tem duas articulações, a ociosidade e o ócio. A ociosidade é o mero reverso das estruturas da vida ativa. É um conceito negativo, puramente reflexo, uma privação, uma passividade, uma abstenção de agir, voluntária ou não, com relação à política e ao trabalho. Mais interessante é a segunda articulação do lazer, o ócio. O ócio não é o simples negativo da vida ativa, e sim um espaço próprio, positivo, de reflexão, de contemplação, de liberdade, de contestação, de criação artística e intelectual. Pelo ócio, o homem se liberta do mundo da necessidade para dedicar-se à busca do conhecimento e ao cultivo das artes.

Aceitas essas convenções verbais, proponho começar com um histórico não exaustivo do nosso tema, desde sua origem na Antiguidade clássica até chegarmos a nosso foco principal, a Ilustração.

No mundo antigo, só era socialmente valorizado o segmento político da vida ativa. O homem livre tinha a obrigação cívica de participar dos negócios da cidade. E não podia exercer ofícios manuais ou comerciais, próprios dos escravos. Platão é incisivo: tais ocupações degradam os que as exercem, transformando-os em “vis mercenários, miseráveis sem nome que são excluídos por sua própria profissão dos direitos politicos”. Quanto aos comerciantes, acostumados a mentir e enganar, serão aceitos na cidade apenas como um mal necessário. O cidadão que se tiver envilecido pelo comércio será processado por esse delito. Xenofonte não é menos claro. Para ele, é justo que os que realizam trabalhos manuais não sejam nunca elevados aos cargos públicos. Quem vende seu trabalho por dinheiro vende-se a si mesmo e deve ser incluído entre os escravos. Aristóteles é claríssimo: “Não se pode esperar a virtude cívica de todos os homens da cidade, nem de todos os homens livres, e sim unicamente dos que não precisam trabalhar para viver”.

Mas os filósofos julgavam-se autorizados a fugir mesmo da própria política, em nome do bem maior que era a busca da verdade. É assim que no Teeteto, de Platão, Sócrates explica a seu interlocutor Teodoro que o tribuno — advogado ou político — pode ser assimilado ao escravo. A diferença entre o homem livre e o escravo, com efeito, é que o primeiro sempre dispõe de tempo para conversar a seu bel-prazer. É o privilégio do filósofo, e portanto, só ele é verdadeiramente livre. O filósofo passa desinibidamente de um argumento a outro, deixa de lado um tema quando encontra outro que o satisfaça mais e não quer saber se a discussão vai durar muito ou pouco tempo, contanto que ela conduza à verdade. Mas o tribuno ou homem público é escravo do tempo, vive pressionado por juízes ou interlocutores apressados, que o obrigam a limitar-se ao que for considerado relevante. É um escravo disputando com outro escravo e sujeito à autoridade de um ou vários senhores. Educado no ativismo político e judicial, o orador desenvolve uma astúcia medíocre, enquanto o filósofo, movendo-se nas altas esferas da metafísica, é ridicularizado pelo vulgo, como o astrônomo Tales, que contemplando o céu caiu num buraco, o que lhe valeu a zombaria de uma escrava trácia.

Os poetas latinos conheciam muito bem as delícias do ócio, naqueles retiros bucólicos, à sombra das faias, onde os pastores de Virgílio celebravam em verso e música os encantos de Amarílis: O Meliboee, deus nobis haec otia fecit — O Melibeu, um deus nos proporcionou esses ócios.

Os romanos levavam mais a sério que os gregos as exigências da vida pública, mas davam seu devido valor ao ócio, quando usado para cultivar a inteligência. Sêneca sabe que, ao contrário dos epicuristas, que se desinteressavam da atividade política, a filosofia estoica, a que ele se filia, recomendava a seus adeptos uma dedicação integral ao bem comum, na arena politica. Mas, mesmo sabendo-se infiel a seus mestres estoicos, Sêneca não hesita em fazer o elogio do ócio, quando o Estado fosse corrupto, ou não desejasse os serviços do cidadão, ou por motivo de doença. No fundo, tanto a doutrina epicurista como a estoica legitimavam o ócio, com a diferença de que, para a primeira, o sábio deve evitar a atividade pública exceto numa emergência, e a segunda diz que o sábio deve engajar-se na atividade pública a menos que algo o impeça. De qualquer modo, só no ócio, longe da turba e da agitação dos negócios públicos, é possível, na companhia de homens seletos, especular sobre as maravilhas cia natureza e os mistérios do universo. Afinal, pertencemos a duas comunidades, uma grande, abrangendo todo o universo, homens e deuses, e outra pequena, à qual pertencemos pelas circunstâncias de nosso nascimento, que fazem de nós romanos ou cartagineses. Se quisermos investigar as leis do universo, estaremos servindo à primeira comunidade, e poderemos fazê-lo melhor no ócio que na azáfama da vida política.

Com o fim da república romana, a política deixou de ocupar o centro da vida ativa, mas sem que o trabalho fosse entronizado em seu lugar.

Na Idade Média, com efeito, o cristianismo teve uma atitude ambígua com relação ao trabalho. Ele se tornou um valor obrigatório a partir da epístola de São Paulo aos tessalonicenses: “Quem não quer trabalhar também não há de comer”. O ora et labora dos beneditinos contém o essencial dessa ética. Em seu artigo 48, a Regra de São Bento diz que “a ociosidade é inimiga da alma”; por isso, em certas horas, os frades devem ocupar-se com trabalho manual. Mas, de modo geral, o trabalho continua sendo visto como uma maldição, que pune o homem por sua desobediência: “Com o suor do teu rosto comerás teu pão, até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gen., 3:17-19).

A mesma ambiguidade com relação ao repouso. Ele é santificado, porque o próprio Deus descansou no sétimo dia. Mas transforma-se, ao mesmo tempo, numa obrigação inexorável, a de respeitar o sha bat, o dia do Senhor. “Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu animal […]”. Foi preciso aguardar o Novo Testamento para que essa exigência fosse flexibilizada, transformando o repouso semanal num dia de alegria e não numa imposição. Em Mateus 12:1, Jesus autoriza seus discípulos, por misericórdia, a colherem espigas num sábado, dizendo-se “senhor do sábado”, e em Lucas 13 cura uma enferma no dia santificado, ignorando os protestos dos sacerdotes. Já era quase o ócio evangélico, que chega à sua formulação mais completa em Mateus 6:26: “Olhai as aves do céu — não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E no entanto vosso pai celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais que elas? […] Aprendei dos lírios do campo, como crescem, e não trabalham nem fiam”. E não nos esqueçamos da célebre passagem em que Jesus elogiou Maria, que optou por não fazer nada senão ouvir o Mestre, censurando Marta, que não cessara de trabalhar (Lucas, 10).

Durante toda a Idade Média, a Igreja garantiu aos fiéis noventa dias anuais de repouso — 52 domingos e 38 dias santos. A organização da vida nos mosteiros visava a aumentar o tempo dedicado ao ócio, no sentido técnico de uma forma de lazer que, longe de excluir, pressupõe o esforço, o estudo, a leitura. Por isso, nada era mais fatal ao ócio que a acídia (em grego, ausência de dor, ou indolência, numa tradução literal para o latim), a sombria preguiça da alma, que os teólogos medievais classificavam entre os sete pecados capitais, ao lado da soberba, da gula, da luxúria, da avareza, da cólera e da inveja. Sem dúvida, os doutores da Igreja condenavam também o que habitualmente chamamos preguiça, pigritia, com seus vários sinônimos — desidia, segnitia, ignavia — no sentido de aversão a qualquer tipo de esforço, físico ou mental. Mas temiam, sobretudo, outro tipo de preguiça, a aversão à vida espiritual e aos esforços que ela requer. Era a acídia. Na vida monacal, essa preguiça é destrutiva de todas as virtudes e traduz-se numa atitude abúlica e indiferente com relação à prece, à meditação, à leitura em comum, à penitência.

Quando em estado de acídia, o monge está em poder de um demônio especial, o demônio do meio-dia, que mergulha sua vítima na depressão e a impede de usar o ócio monástico em seu sentido genuinamente libertador, a serviço de Deus e dos homens. Não surpreende, assim, que a Regra de São Bento prescreva, no mesmo artigo 48, que se designe um frade mais velho para percorrer o convento nas horas em que os irmãos se dedicam à leitura, para ver se não há por acaso algum monge “acidioso”, que se entrega à conversa ou à ociosidade, em vez de aplicar-se à leitura, o que é prejudicial não só para ele como para os outros. Não surpreende, também, que São Tomás de Aquino trate minuciosamente da acídia, definindo-a como um pecado que produz “torpor do espírito”, com efeitos paralisantes, provocando uma tristeza incurável, que impede a alma de “alegrar-se com o bem divino”. O pecado da acídia é venial quando a razão não dá seu consentimento pleno ao impulso acidioso, transformando-o em ato, e mortal quando o impulso de rejeição do bem divino se realiza.

Nisso Dante é teologicamente ortodoxo, porque também para ele há dois tipos de acidiosos: aqueles para os quais não há redenção possível (foram tristes em vida, nas regiões iluminadas pelo Sol, e continuam tristes agora, mergulhados na negra lama) e por isso estão no Inferno (canto VII); e aqueles que podem ainda arrepender-se, compensando sua antiga inércia com sua pressa póstuma em fazer o bem, e por isso estão no Purgatório (canto XVIII).

Montaigne foi um fino connaisseur do ócio. Antigo prefeito de Bordeaux, abandonou por completo os negócios públicos, encerrando-se numa torre repleta de inscrições latinas e gregas, para compor seus ensaios. Passou a cultivar o ócio, no exato sentido de Sêneca: abandono da atividade pública, para poder dedicar-se à redação dos seus ensaios, entre os quais figura, justamente, um ensaio sobre o ócio.

Essas citações avulsas e assistemáticas têm caráter meramente exemplificativo, mas nos fazem supor que todo o período anterior à Ilustração é atravessado por uma tensão entre os valores da vida ativa e os do lazer, e, dentro da esfera do lazer, entre uma atitude de horror à ociosidade e uma atitude de valorização do ócio. Coube à Ilustração pensar sistematicamente essas contradições, inserindo-as no projeto da modernidade.

Sabemos que, para Max Weber, a modernidade foi a consequência de processos cumulativos de racionalização social, ocorridos nas esferas política e econômica. A modernidade política pressupunha substituir a autoridade descentralizada, típica do feudalismo, pelo estado central, dotado de um sistema tributário eficaz, do monopólio da violência e de uma burocracia racional. A modernidade econômica pressupunha a livre mobilidade dos fatores de produção, o trabalho assalariado, a adoção de técnicas racionais de contabilidade e gestão e a incorporação incessante da ciência e da técnica ao processo produtivo. Assim, para Weber, modernidade significava aumento de eficácia.

Mas ao lado dessa modernidade, que poderíamos chamar de “funcional”, cabe distinguir um segundo vetor, que não tinha a ver com a eficácia das estruturas, e sim com a autonomia dos agentes. É a modernidade emancipatória”. Nessa segunda perspectiva, a modernidade política significa a capacidade plena de exercer a cidadania, num estado democrático de direito; e a modernidade econômica significa a capacidade plena de assegurar a base material da autonomia. Minha tese é que o discurso filosófico da Ilustração continha as duas vertentes do projeto moderno, a funcional e a emancipatória, entrelaçadas numa relação às vezes contraditória e frequentemente complementar.

O que se passou, nessa modernidade bifronte, com os dois elementos da vida ativa?

A Ilustração foi fortemente ambivalente com relação ao primeiro segmento da vida ativa, a política. Por um lado, os filósofos nunca valorizaram especialmente a política, no sentido grego de participação dos governados na condução dos negócios do Estado. Essa política não somente era impensável na era do absolutismo, como nem sequer era considerada desejável, porque os pensadores da época não tinham grande respeito pela capacidade de autogoverno do povo, principalmente em seu segmento menos instruído, a canaille, como dizia Voltaire. Por outro lado, se a entendermos num sentido mais amplo, como atividade destinada a produzir efeitos transformadores no plano das instituições, a Ilustração foi altamente política. Com efeito, de certo modo os filósofos passaram a desempenhar o papel político reservado aos tribunos nas democracias antigas. Só puderam fazê-lo porque gozavam de ócio, no sentido de uma independência relativa com relação ao mundo do trabalho, mas foram incansáveis em sua própria atividade intelectual. Com seus escritos e polêmicas, contribuíram para implantar as estruturas da modernidade, em suas duas vertentes. Na vertente funcional, lutaram pela modernização da Justiça, combatendo a anarquia feudal representada pelos parlements; pela modernização das leis, em sua cruzada contra o direito costumeiro; pela modernização do aparelho do Estado, contra o caos administrativo do Antigo Regime. E foram os principais ideólogos da vertente emancipatória, principalmente Rousseau, que corrigiu o elitismo da primeira vertente com uma concepção radicalmente democrática.

A Ilustração foi igualmente ambivalente quanto ao segundo segmento da vida ativa, o trabalho. Numa de suas vertentes, voltada para a modernidade funcional, a Ilustração deificou o trabalho, porque sua ênfase era a maximização da riqueza nacional (mercantilismo) ou do lucro capitalista. Correlativamente, houve uma forte condenação da ociosidade. Em sua outra vertente, a emancipatória, a ênfase era a redução do sofrimento humano e a busca da felicidade. Correlativamente, ocorreu uma exaltação direta ou indireta do ócio.

A Ilustração, com efeito, idealizou o trabalho como nenhum outro período havia feito. Para Montesquieu, só é verdadeiramente pobre quem não trabalha. Segundo Voltaire, “o homem nasceu para a ação, como o fogo tende para o alto e a pedra para baixo. Não se ocupar e não existir são a mesma coisa para o homem”. Nisso, os filósofos continuam os puritanos, com a diferença de que, para os puritanos, trabalhar é servir a Deus, e para os filósofos, é servir aos homens. Segundo Hume, “there is no happiness without occupation”. Para Diderot, o herói cultural do mundo moderno deve ser Hércules, pois Hércules foi o homem do trabalho, ou dos trabalhos. Por isso, Diderot chama a Encyclopédie um “trabalho hercúleo”.

Adam Smith e Ricardo estavam, portanto, dentro do veio central da Ilustração quando viram no trabalho a fonte de toda riqueza e o transformaram na medida do valor das mercadorias e no fundamento geral das trocas e das relações sociais: era a teoria do valor-trabalho. Mas, para que pudesse desempenhar esse papel, o trabalho devia ser liberado de todos os entraves. Por isso, desde 1776, Turgot quis extinguir as corporações, que submetiam o trabalho a restrições artificiais, objetivo que se acabou concretizando durante a Revolução Francesa, em 1791.

Mas o que aconteceu com a outra parte da tradição filosófica e religiosa, a que via o trabalho como uma punição? Ouçam o que diz a Encyclopédie. No verbete “trabalho”, ela afirma que o trabalho é a “ocupação diária à qual o homem está condenado para satisfazer suas necessidades e à qual deve ao mesmo tempo sua saúde, sua subsistência, sua serenidade, seu bom-senso e talvez sua virtude. A mitologia, que o considerava um mal, fê-lo nascer do Erebo e da noite”.[1] É quase uma exaltação do trabalho. Mas não o é de todo, porque se trata de um castigo, como no Gênesis: o trabalho é uma condenação. Observe-se também uma alusão à genealogia do trabalho: ele é filho da noite e de Erebo. As duas entidades coexistem no bojo do caos primordial, antes da criação do universo, e nenhuma das duas é especialmente amável. A noite é antissolar por natureza, e Erebo desce aos infernos. Não, o trabalho não vem de uma família muito respeitável, o que explica a observação do enciclopedista de que os gregos o consideravam um mal.

Começamos a suspeitar de que no discurso da Ilustração sobre o trabalho havia uma camada dominante, explícita, que exaltava o trabalho (vertente funcional), e outra, latente ou recessiva, que o rejeitava (vertente emancipatória). Essa hipótese se reforçaria se descobríssemos as mesmas duas camadas no avesso desse discurso: uma camada que condenasse o lazer e outra que o defendesse. Creio que podemos encontrar algo nesse sentido.

O outro lado da glorificação ilustrada do trabalho deveria ser, logicamente; a condenação da ociosidade. O verbete da Encyclopédie sobre a ociosidade (oisiveté) confirma essa expectativa.

[A ociosidade é] a falta de uma ocupação útil e honesta. Ela é uma fonte de desordem, porque o espírito humano não pode permanecer inativo, e se não se ocupa com algo de bom, tende inevitavelmente para o mal. […] Os homens que só se interessam, sem nenhum trabalho, em gastar os bens que a fortuna lhes deu […] são inúteis à sociedade, nada fazendo por ela […]. A prática da ociosidade é contrária aos deveres do homem e do cidadão, cuja obrigação genérica é servirem para alguma coisa, e em particular serem úteis à sociedade a que pertencem […]. É vergonhoso repousar antes de ter trabalhado. O repouso é uma recompensa que é preciso merecer […]. Seria desejável que existissem entre nós leis contra a ociosidade, e que não fosse permitido a ninguém, qualquer que fosse sua hierarquia, viver sem uma ocupação honesta de espírito ou de corpo[2].

A ociosidade é também uma fonte de doenças. Ela torna mais espessos os humores, liquefaz as partes sólidas, enerva o corpo e acelera a velhice. É ela que produz nos voluptuosos e nas pessoas moles e efeminadas todas as enfermidades que dependem da acrimônia, como a gota, a pedra, o escorbuto, a melancolia e a mania. Em suma, a ociosidade se torna um assunto de saúde pública.

Consequentemente, a preguiça é um vício gravíssimo. Para a Encyclopédie, trata-se de uma disposição “que impede o homem de trabalhar, de cuidar dos seus negócios e de cumprir seus deveres”. É uma definição aparentemente anódina, que poderíamos encontrar em qualquer tratado de moral. Mas a Encyclopédie não seria o que é sem uma farpa dirigida à ordem social existente. O enciclopedista nos informa, amavelmente, que a preguiça reina soberanamente no que chamamos de beau monde, a alta sociedade.

Ao mesmo tempo, havia uma corrente “subterrânea” favorável ao ócio, em oposição à mera ociosidade. Leia-se, por exemplo, o verbete loisir, lazer, da Encyclopédie.

[O lazer é] o tempo vazio que nos é deixado por nossos deveres, e do qual podemos dispor de forma agradável e honesta. Se nossa educação tivesse sido benfeita, e se nos houvessem inspirado um gosto vivo pela virtude, a história de nossos lazeres seria a porção de nossa vida que mais nos honraria depois de nossa morte, e da qual nos recordaríamos de modo mais consolador no momento de deixar a vida: aquela porção da nossa existência na qual praticamos boas ações por gosto e sensibilidade, sem que nada nos determinasse a isso senão nossa própria benevolências[3].

Caracteristicamente, o ócio não é mais, como para Sêneca, um espaço de liberdade com relação ao mundo da política, mas com relação ao mundo do trabalho, e não se destina mais a permitir o estudo das leis do universo, mas a facilitar a prática do bem — a benevolência particular substitui a ação coletiva no espaço público.

Mas o sentido romano do ócio — o de possibilitar a criação estética e intelectual — se mantinha plenamente. Era o ócio praticado pela nobreza e por seus amigos, os filósofos, nos castelos e palácios do Antigo Regime. Um poema como Le mondain, de Voltaire, dá uma ideia da natureza desse ócio. Era um nicho de autonomia, onde era possível cultivar as letras e as artes, conversar com pessoas espirituosas, admirar os belos versos, contemplar os quadros do “suave Correggio” e do “engenhoso Poussin”, passear nos jardins geométricos de Le Nôtre. E para que não se imagine que esse ócio podia estar contaminado pelo pecado capital da preguiça, da acídia, basta lembrar que foi em ambientes assim que Voltaire escreveu centenas de volumes e que sua amante, madame du Châtelet, compunha livros de matemática superior e de divulgação da física de Newton.

O ócio filosófico é ilustrado pelo ambiente em que vivia o barão Holbach, que congregava a elite intelectual da França. Diderot descreveu o estilo de vida do barão e de seus convidados em páginas que nos fazem concordar com Talleyrand, quando disse que quem não conheceu o Antigo Regime não conheceu a alegria de viver. “É ali que se fala de história, política, finanças, belas letras, filosofia; é ali que as pessoas se estimam suficientemente para se contradizerem; é ali que se encontra o verdadeiro cosmopolitismo, o homem que sabe usar sua fortuna, o bom pai, o bom amigo, o bom marido; é ali que todo estrangeiro […] de algum mérito pode encontrar a acolhida mais suave e mais polida”.[4] Como no verbete da Encyclopédie, o ócio é propício à benevolência (Holbach era o mais generoso dos anfitriões), mas favorece, principalmente, o intercâmbio intelectual. O programa dos convidados à casa de campo do barão, em Grandval, era de dar inveja. “Nós nos levantamos cedo”, escreve Diderot, “tomamos alegremente nossa refeição da manhã, almoçamos com apetite e durante muito tempo […]. É impossível ficar sóbrio, e é impossível não ficar sóbrio”. Depois da sesta, os convidados tomam seu bastão e vão passear na natureza, em intermináveis conversas filosóficas.[5]

Por mais que invejemos os convivas de Holbach, é preciso admitir que os filósofos concebiam de modo um tanto assimétrico a repartição dos ônus do trabalho. Eles recomendavam um trabalho incessante, mas principalmente para as classes populares. Voltaire criticou o excesso de feriados, que desviavam o povo do trabalho produtivo. No auge da Revolução Francesa, o novelista Rétif de La Bretonne prossegue a mesma cruzada. “Chegam os malditos feriados […]. Nada mais imoral e menos razoável que dois feriados seguidos, e imaginem-se três! Um feriado no meio da semana nas grandes cidades é um dia de desordem sancionado pelo governo e pela religião; é Já a classe dos proprietários, liberta do mundo do trabalho, podia dedicar-se sem má consciência a todas as delícias do lazer.

Não era assim que pensava Rousseau. De todos os filósofos, ele era o apologista mais intransigente do ócio, mas não do ócio mundano dos aristocratas e dos filósofos seus amigos, grupo que ele chamava desdenhosamente de coterie holbachique, e sim do seu ócio de solitário, longe da vida artificial dos salões.

Nas Confissões, ele explica que o lazer dos grandes é obrigatório, regido por mil regras de etiqueta, ao passo que o da solidão é encantador, porque totalmente livre. Sua única esperança era a de viver num lazer eterno. Era a vida dos bem-aventurados no outro mundo, e a felicidade com que sonhava neste mundo. Ele se julgava em vias de realizar esse sonho quando chegou à ilha Saint-Pierre, no lago de Bienne, onde esperava permanecer até o final de sua vida. Os momentos mais deliciosos eram os que passava no lago, olhando o céu, com o barco flutuando à deriva. Não que ele fosse um vadio, um fainéant. A prova é que se dedicou à botânica durante toda sua permanência na ilha, colhendo material para um livro monumental sobre a Flora petrinsularis, projeto que se frustrou quando foi expulso da ilha, acossado por perseguidores reais ou imaginários. Um crime de lesa-sociedade”[6].

Em Rousseau, juiz de Jean-Jacques, ele se diz

[…] indolente, preguiçoso como todos os contemplativos: mas essa preguiça só existe em sua cabeça. Ele só pensa com esforço, cansa-se ao pensar, assusta-se com tudo aquilo que o força a pensar […]. No entanto é vivo, laborioso à sua maneira: não pode suportar uma ociosidade absoluta; é preciso que suas mãos, que seus pés, que seus dedos ajam, que seu corpo se exercite e que sua cabeça fique em repouso (…). O trabalho não lhe custa nada desde que o faça em sua hora e não na hora de outrem (…). Se ele tem que fazer um negócio, uma visita, uma viagem, ele irá logo, se nada o pressiona; se for preciso ir imediatamente, ele resistirá. O momento em que, renunciando a todo projeto de fortuna […] ele se desfez de seu relógio, foi um dos mais doces de sua vida. Graças a Deus, disse ele […] não precisarei mais saber que horas são![7]

Em Devaneios de um passeante solitário (Quinto passeio), Rousseau volta a descrever sua vida na ilha Saint-Pierre. Lá ele desfrutou de prazeres que o fizeram totalmente feliz. Quais? “O precioso farniente foi o primeiro e principal desses prazeres, que desejei saborear em toda a sua doçura, e tudo o que fiz durante minha estadia não foi senão a ocupação deliciosa e necessária de um homem que se consagrou à ociosidade”[8]. De novo, ele fala dos seus devaneios, no barco à deriva. Donde vem o prazer que se tem numa situação assim? “De nada de externo a si, de nada senão de si mesmo, e de sua própria existência, e enquanto esse estado dura, somos autossuficientes, como Deus”.

No mesmo livro (Sétimo passeio), Rousseau volta a dizer que “a botânica é o estudo de um ocioso e preguiçoso solitário”. Ela é inofensiva, desde que o botânico amador não queira dedicar-se a esse passatempo por ambição ou interesse, para se tornar autor ou professor.

Em todas essas citações, Rousseau está falando de si mesmo, de seu temperamento, de sua personalidade. Mas esse Rousseau subjetivo e autobiográfico é o mesmo que escreveu dois discursos altamente teóricos e o Contrato social. Penso que o ócio funciona como um elo mediador entre os dois registros, o autobiográfico e o teórico. Em seu ensaio sobre a origem das línguas, que originalmente fazia parte do Discurso sobre a desigualdade, de 1755, Rousseau diz não conceber por que os homens primitivos teriam renunciado à sua liberdade primitiva, à vida isolada e pastoral, tão conveniente à sua indolência natural, para se imporem sem necessidade a escravidão, os trabalhos, as misérias inseparáveis do estado social. Ao forçar a nota de sua preguiça, Rousseau se vê e quer ser visto como o homem em estado de natureza, naturalmente indolente, porque, suas necessidades sendo poucas, ele não precisa pagar o preço bíblico de ganhar seu pão com o suor do seu rosto. Não foi a primeira vez que Rousseau se identificou com o homem natural. Nas primeiras linhas das Confissões, ele diz que pretendia se mostrar “em toda a verdade de sua natureza” e por isso tinha se desnudado: é a linguagem do homme nu, de Montaigne, a linguagem do homem natural.

Mas estamos realmente autorizados a traduzir oisiveté por ócio, no sentido especial dado a essa palavra, e não por ociosidade? Sem dúvida; Rousseau faz uma distinção expressa entre ser indolente — ou preguiçoso —, atributo que ele aceitava e não considerava desonroso, porque era próprio do homem natural, e ser vadio, fainéant, o que ele dizia expressamente não ser. Observe-se, com efeito, que enquanto fazia seu elogio da oisiveté ele não parava de trabalhar em suas coleções botânicas e de ganhar a vida copiando partituras. E nunca a inteligência desse paranoico genial esteve mais ativa. Em 1771, por exemplo, ele teve suficiente energia para completar as Confissões, que continham seu mais veemente elogio do ócio, e que nosso indolente não teve nenhuma preguiça de ler diante do príncipe real da Suécia. Sobrou energia, também, para escrever, no mesmo ano, Considerações sobre o governo da Polônia. Em suma, boa parte de toda sua criatividade teve como pré-condição o ócio (um ócio de agregado, se quiserem, mas ócio) que lhe foi proporcionado pelos seus vários protetores, como madame de Warens, madame d’Epinay, o marechal de Luxemburgo e o marquês de Girardin.

O conceito ilustrado de ócio não é muito edificante. A dualidade de éticas — moral do trabalho para o povo e moral do ócio para as camadas superiores e para aqueles que, como Rousseau, eram protegidos pelos grandes — é claramente inaceitável. Mas talvez essa dualidade traduza mais que um cinismo de classe. Ela aponta para algo de menos frívolo: a coexistência, na Ilustração, de uma ética “protestante”, voltada para a vida ativa, e especificamente para o trabalho, e de uma ética hedonista, voltada para o ócio, “território livre” onde os filósofos podiam dedicar-se às “artes de toda espécie” e à maior de todas, a arte da crítica.

O ócio ilustrado foi, de certo modo, uma volta ao ócio filosófico de Sócrates e de Sêneca. A diferença é que, para os antigos, fugir da vida ativa era fugir da política, enquanto para os pensadores da Ilustração, num mundo em que não havia mais espaço para o exercício da atividade política num sentido clássico, era fugir do trabalho, da produção e do mercado. Tinha analogias, igualmente, com o ócio dos contemplativos, como bem percebeu Rousseau, ócio produtivo que permitiu a Santo Tomás escrever a Summa theologica e ao próprio Rousseau escrever as Confissões.

Se nas condições da época não se podia imaginar a generalização do ócio para a sociedade como um todo, essa generalização, que o tornaria acessível a todos os seres humanos, estava inscrita no horizonte da Ilustração como uma virtualidade utópica.

Essa utopia foi parte integrante do imaginário marxista, que sonhava com a passagem do reino da necessidade, regido pelo imperativo do trabalho alienado, para o reino da liberdade, em que os dois componentes da vida ativa seriam transformados: o Estado definharia” e o homem não estaria mais sujeito às condições degradantes impostas pela divisão do trabalho. Com isso, se fecharia a fratura imemorial entre ócio e trabalho. O próprio trabalho, em sua forma não alienada, garantiria o ócio. Pois o trabalho não seria mais determinado de fora, pelos automatismos do mercado, e sim pelos “produtores associados”, que se encarregariam de criar condições para o ócio, como pressuposto essencial para o pleno desdobramento do potencial humano, em todas as suas manifestações.

Hoje essa utopia não parece irrealizável, numa fase em que o capitalismo pós-industrial permite produzir em um dia o que antes exigia meses, possibilitando assim uma redução drástica da carga de trabalho e aumentando de modo inimaginável o tempo livre teoricamente disponível.

Estaríamos com isso chegando ao país de Cocanha, onde frangos assados pendem das árvores, onde os rios são de vinho e onde só vai para a cadeia quem trabalha? Talvez não; mas, se perguntas desse tipo podem ser formuladas hoje sem ridículo, o mérito é em grande parte da Ilustração, que soube transformar a ética do ócio em parte indissociável do projeto da modernidade.

Notas

  1. Encyclopédie ou Dictionaire Raisonné des Arts, des Sciences et des Métiers (Neufchastel: Chez Samuel Faulche et Compagnie, 1765), tomo 16, p. 567). 
  2. Idem, ibidem, tomo 9, p. 445. 
  3. Idem, ibidem., tomo 9, p. 680. 
  4. René Hubert, Holbach et ses cants, Paris: André Delpeuch Editeur, 1928, p. 44. 
  5. Idem, ibidem, pp. 51 e 52. 
  6. Rétit de la Bretonne, Les nuits de Paris, Paris: Editions d’Aujourd Hui, 1978, p. 19. 
  7. Jean-Jacques Rousseau, Juge defranjacques, in “Oeuvres completes”, v. I, Paris: La Pléiade, 1959, p. 845. 
  8. Idem, Rêveries d’un promeneur solitaire, in “Oeuvres completes”, v. I, Paris: La Pléiade, 1959, p. 5042. 

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