1988

Os amantes contra o poder

por Renato Janine Ribeiro

Resumo

O primeiro olhar recíproco e fulminante de dois apaixonados: encontro que parece a garantia de um mundo limpo, belo, verdadeiro. Mas esse amor-paixão pode durar no tempo? Segundo Stendhal, não existe amor à primeira vista, o amor nasce aos poucos e é uma soma de acasos. Não existe fatum, destino (“Mal a vi, me perdi”, escrevia um antigo autor romano). O tempo precipita a relação com a morte. E esse tempo que destrói pode às vezes curar a paixão-doença. Em Um amor de Swann, de Proust, o narrador observa: “Dizer que perdi anos de minha vida (…) por uma mulher que não era o meu tipo!” De início falou-se de reciprocidade do olhar dos amantes. No olhar do Poder há também reciprocidade, mas sem simetria, como mostram dois romances famosos do século XX: 1984, de Orwell, onde o Big Brother vigia tudo e cultiva o amor ao dominador por uma negação do sexo, e Admirável mundo novo, de Huxley, que busca fazer o mesmo incentivando um sexo domesticado. Em ambos o poder devassa e se dá a ver como espetáculo (como na liturgia da realeza, nos séculos XVI a XVIII, cuja função era ocultar e encenar seu poder). Esse olhar domina não pela força, mas por um tipo de sedução: antes através de figuras alegóricas (o Rei-Sol), hoje através da propaganda. Há sempre um confisco, uma captura. Mas no olhar há também um poder que revela, entrega e dá (o Super-Homem que fraqueja diante de Mirian Lane, o olho ofuscado do amante incapaz de decifrar o outro). Só nesses momentos raros escapamos aos nossos medos e encontramos realmente o olhar do outro.


Para Teresa

O meu ponto de partida é o título de um livro de Jean Rousset, Leurs yeux se rencontrèrent , ou Os seus olhos se encontraram, que trata da “cena da primeira vista no romance”.[1] A ideia é das mais interessantes: como, no romance — desde a Antiguidade até nossos dias —, se produz a cena fulgurante do encontro de dois amantes, com a paixão nascendo no instante mesmo em que um enxerga o outro. É a cena clássica do coup de foudre, do raio, do que fulmina; mais que isso: o raio que atinge a ambos, fazendo os dois vibrarem de amor. E que, se começa no amor, cobre porém mais que ele: esse olhar ao quadrado é o olhar no qual eu vejo não apenas o contorno do outro, os seus encantos — eu vejo o seu próprio olhar. E sabemos que olhar alguém nos próprios olhos está carregado, para nós, de uma ideia de veracidade, limpidez e honestidade. O encontro dos olhares é garantia de um mundo limpo, no qual o belo e o bem coincidem.

Mas, se queremos começar pelo amor apaixonado, é preciso contrastar a primeira vista com a análise célebre de outro enamoramento, a de Stendhal, que consiste na cristalização.[2] Neste caso, o amor vai nascendo por camadas superpostas; o simples olhar entusiasmado não basta. Primeiro me digo “como ela é bela, que prazer seria beijá-la, amá-la”; mas somente à medida que vou me nutrindo de esperanças, que me fazem continuar apostando neste sentimento — e de frustrações, que me levam a dar-lhe mais e mais valor —, somente com o tempo alternando aproximações e afastamentos, é que a paixão se constitui. O que não quer dizer que seja, este, um amor equilibrado, sensato, correspondendo adequadamente ao que o amado sente por nós; é tão louca essa paixão quanto qualquer outra. Mas nasce no tempo, e dele se alimenta, e cresce. Em outras palavras, então — não é uma paixão necessariamente única na vida. Stendhal, ideólogo no sentido de Tracy, pesquisando como surge o amor (da mesma forma que qualquer outro sentimento), está atento ao que há de factício, casual, na gestação que analisa. O que me faz sentir que essa mulher é única (o que não quer dizer que o seja de fato) acaba sendo uma somatória de fatores, fortuitos na sua própria junção; e é isso o que ele mostra com a imagem do tempo que cristaliza, e faz de um mero galho uma fina peça de joalheria.

Leiamos, então, por contraste, o apaixonamento num autor romano, Aquiles Tatius:

Mal a vi, senti-me perdido [melhor dizendo: me perdi]: pois a beleza produz ferida mais funda que uma flecha e, passando pelos olhos, penetra até a alma; é pelo olho que passa a ferida d’amor. Fui possuído, a um tempo só, por todos os sentimentos: admiração, estupor, temor, timidez, impudência. Eu admirava o seu porte, ficava pasmo ante a sua beleza, tremia no coração.[3]

A vista aqui aparece como algo fatal. É precisamente o fatum que entra no mundo — no meu mundo — quando vejo, e me apaixono ao ver. A primeira vista, ao contrário da cristalização, é o amor instantâneo, o raio, fulmen, ferida no olho. É esse amor extremo um amor de paradoxo: ofusca, dá a ver tanto que já não permite mais ver. Lembra o mito platônico da caverna: um conhecimento que ilumina e cega. Temos então extremos, a luz que produz trevas, a visão que deslumbra, eclipsa. Ou, melhor dizendo, vivemos o paroxismo — uma tal exacerbação que rompe o cotidiano, o banal.

O amor-paixão que se constituía no tempo — o de Stendhal teórico — tinha o seu quê de fortuito. Por que me apaixono por Mathilde de la Mole?, poderia perguntar Julien Sorel. Na verdade, uma vez preso, ele se dá conta de que jamais a amou realmente; é como se fosse um amor cerebral, como o que Henri Beyle moço teve por Victorine Mounier — no caso de Mathilde, um amor produto de soma de expectativas e frustrações. Sua altura, beleza, frieza; igualmente, as iniciativas que ela tomou para aproximar-se dele, seduzi-lo, dar-se a ele; o significado social de possuí-la — ele pobre, desprezado pelos jovens nobres, tendo em seus braços a moça que eles ou desejavam como mulher ou pretendiam como aliança: isso se junta para forjar um sentimento que tem tudo do amor-paixão, mas que talvez não o seja, pois se dissipa quando retorna a sra. de Rênal. Haveria então diferença entre um sentimento que é mero produto das fortuidades e outro que é como uma revelação, um destino? Na sua teoria e em sua vida, Stendhal não propôs esse outro tipo de amor: ateve-se à soma das casualidades. É o que lemos no capítulo II de Do amor (ou melhor, é o que não lemos, porque ele nem cogita a hipótese de um amor que seja destino), e é a postura que ele precisou adotar a cada amor repelido, frustrado, em sua vida. Mas, nos romances, parece dar-se o contrário. O amor de Gina por Fabrício, e deste por Clelia, na Cartuxa de Parma; de Julien e da sra. de Rênal, em O Vermelho e o Negro; de Lucien e da sra. de Chasteller, em Lucien Leuwen — são todos estes sentimentos que haurem sua força de alguma dimensão mais funda que a mera soma. De uma dimensão que se chama verdade (a ideia, que para simplificar chamaremos de rousseauísta, de que a verdade está no íntimo das pessoas). E desta forma a cristalização muda de sentido, de mero processo passa a expressão, pois vai exprimir um fundo que sequer era mencionado em Do amor. Ela torna-se revelação. E por isso mesmo o amor-paixão, que na análise do ideólogo era gênero (como eu me apaixono, como posso me apaixonar, como posso fazer outra pessoa apaixonar-se por mim), e portanto podia ocorrer sucessivas vezes numa vida, aqui torna-se único, e passa — como nas cortes provençais se dizia — a ter parte com a morte. Amor mors: o apaixonado projeta o sentido de sua vida no outro, e, falhando a reciprocidade, perde, com o sentido, a própria vida.

Esta ideia de revelação, que aparece na obra romanesca porém não na teórica de Stendhal — ou seja, que em Stendhal é implícita —, à primeira vista é essencial. Ao ver a amada — e há tantas formas de ver, até a de Eros e Psiquê, que vê sem ver —, o herói constata que sua vida mudou. Nada mais terá valor sem a pessoa amada. Nada terá sentido sem ela — e ao mesmo tempo, graças a ela o que carecia de sentido passa a tê-lo. O mundo agora significa ou porque as coisas se preenchem com a beleza dela (por participação) ou porque face a ela tudo se mostra opaco (contraste). Há religião nesse amor. Uma verdade transmite-se, que nada mais empanará. O sentimento alcançou um tal valor que só pode ser o da verdade.

É o amor no instante: sem tempo. Por isso mesmo é difícil o coup de foudre ser feliz: não há história, talvez não haja futuro para ele. Ora, o tempo é dilação e frustração. Ouçamos Hamlet, que monologa sobre, entre outras coisas, o suicídio:

Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,

O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,

Toda a lancinação do mal-prezado amor,

A insolência oficial, as dilações da lei,

Os doestos que dos nulos têm de suportar

O mérito paciente, quem o sofreria,

Quando alcançasse a mais perfeita quitação

Com a ponta de um punhal?[4]

Quem suportaria o tempo e seus males, podendo fugir dele pela própria vontade, concentrada na ponta de uma faca? O homem tem, a seu alcance, o poder de pôr fim a todos os infortúnios; mas o que é o poder, que nos vence (“This conscience does make cowards of us all”, adiante, no mesmo monólogo), senão o medo de que depois da morte tampouco tenhamos repouso? — Hamlet lamenta a injustiça (agravo, afronta, insolência, doestos), a maldade e vanidade (irrisão: “scorns of time” do século, “do mundo”) e, o que para nós mais importa, a dor do tempo (atraso: “dilações” da lei, “scorns of time”) e do amor não retribuído (“the pangs of despised love”). São os males, frustrações de variada ordem — mas, na maior parte, as que ferem o mérito, e só de contrapeso a infelicidade no amor (onde, se sofremos, é ilusão falar em injustiça — porque o meu desejo não é lei para o outro, o amor não é quinhão que cabe ao bom e justo). Por sinal, não é Hamlet quem sofre repulsa no amor, isso se ele ama Ofélia; sofre, apenas, se a amada é a mãe, que o traiu (e ao pai que tinha o mesmo nome que ele) em favor do tio assassino. O amor-paixão não é o que marca o príncipe. O tempo, ainda assim, é lugar do mal (mal passou um mês da morte de meu pai, e já ela se sacia na cama de meu tio, alegre como nunca, fêmea possuída), da injustiça: Chronos que mata.

Mas, a essa frustração no tempo, que talvez seja inevitável ao próprio amor-apaixonado, podemos opor a plenitude do coup de foudre, do instante de enamoramento: sempre as metáforas da luz, energia, instante, máximo. Porém, por isso mesmo a plenitude da paixão se destroça no embate com o tempo: porque nos defrontamos ou com obstáculos externos (um mundo que não é feito para a paixão, que a esfarela) ou com o próprio tempo, que faz o sentimento ir se perdendo (num dos romances de amor mais intensos, um em que o amor precede a primeira vista — a Princesa de Clèves, de Mme. de la Fayette —, o duque de Nemours acaba esquecendo a amada, tempos depois de ela morta. O tempo cura tudo, e de tudo; é remédio, isto é, se lembrarmos apalavra grega (pharmakôn) e se lermos o belo ensaio de Derrida sobre A farmácia de Platão, algo que só se distingue do veneno devido à dosagem e ao lugar e oportunidade de sua aplicação.

Remédio, o tempo? Pois o que está nesta ideia é que a paixão é doença. Ela tem algo de terrível, assolador — contraria a nossa consciência, a razão, nossa vontade. Esta perspectiva onde melhor vemos é na narrativa de Proust, Um amor de Swann. Primeiro, o enamoramento inverossímil, quase impossível: Swann, homem fino mas que no amor prefere outro tipo de mulheres, apaixona-se por uma que — além de não ter seu refinamento — sequer o atrai fisicamente. Depois, mais importante que isso, é a sensação que ele tem, à medida que se avolumam frustrações, de que seu amor por Odette é uma doença, da qual terminará, um dia, por sarar (“Dizer que perdi anos de minha vida, que quis morrer, que senti meu maior amor, por uma mulher que não me atraía, que não fazia o meu tipo!”). E, sentindo chegar a cura, ele se entristece ao antever a libertação.

Sem querer fazer uma tipologia do amor apaixonado — porque, dele, quantos tipos haverá! —, pelo menos podemos agora contrastar duas versões algo trágicas: da paixão como doença, que se cura no (e graças ao) tempo; e dela como fatum, que marca definitivamente: “Mal a vi, me perdi”. Para a doença, há saída; mas ao fado não há como escapar.

Mas estivemos supondo, até aqui, a paixão de um só, do que vê; ora, o tema é Os seus olhos se encontraram… — quer dizer, o olhar é de dois, há reciprocidade nesse amor. Vamos então fazer uma excursão pelo olhar do poder, antes de retornar aos olhos dos amantes. E vamos pensar, no poder, também um cruzamento de olhares: no romance de George Orwell, 1984 (1948), a teletela. Ou seja, no amor-paixão recíproco dizíamos que dois olhares se encontram; na teletela — invenção engenhosa, que é uma TV que transmite sem interrupção mas ao mesmo tempo também serve para mandar à central de polícia imagens de qualquer canto habitado do país, garantindo total controle dos gestos e atos — também se olha em ambas as direções. Mas que diferença!

1984 é um romance notável — pelo menos até perto do fim, quando as discussões teóricas, as argumentações esmagam a narrativa. No livro de Orwell lemos vários temas de interesse, a começar da proposta totalitária de refazer a História. A administração onde trabalha Winston Smith visa exclusivamente a corrigir toda a documentação guardada do passado, para adaptá-la às necessidades políticas do presente. Se a ração de chocolate passou de 30 a 20 gramas semanais, há que destruir todos os recortes e mesmo jornais arquivados que mencionem 30 gramas; é preciso reescrevê-los, para que conste que a ração anterior era de 15 gramas, e assim a redução decretada se converta, imaginariamente, em aumento. Domina-se as pessoas desmemoriando-as (ou, talvez, re-memoriando-as) — a tal ponto que Winston se empolgará ao encontrar um papelzinho que sobreviveu à destruição sistemática e prova que a História Oficial é falsa, é farsa.

Um segundo tema é o da Novilíngua, a brilhante ideia de uma língua resumida, direta, na qual não haja distorções de sentido, conotações, poesia (temas que, sabemos, desde Platão se vêem associados, na pressuposição de que poetar é o que há de mais subversivo, e de que um uso exato da linguagem, puramente denotativo, sem figuras ou com elas domesticadas, poria fim a todo desvio em política). Em Novilíngua as palavras se depuraram; é o único idioma, diz um dos colaboradores do Dicionário (vejamos só: uma língua que nasce das sucessivas edições do dicionário, em vez de elas repertoriarem as modificações colhidas no uso), no qual as palavras diminuem em vez de aumentar. O ideal é chegar a poucas dezenas. Como exemplo, temos o que prefixos (bem como sufixos) podem fazer: em vez de mau, imbom; para ótimo, excelente, teremos plusbom, e, para péssimo, plusimbom. Assim terminará, também, a crimideia, que é o delito de pensamento. A evolução da língua há de tornar impensável, portanto impraticável, o pior crime, que é justamente o de pensar mal do Estado. É estranho que esse tópico de 1984 mal tenha sido estudado, ainda mais com a voga, estes anos, de estudos de linguagem.

Dizíamos, terceiro ponto, que a crimideia é o pior crime, e a polícia mais repressora a do pensamento. Nem os crimes comuns, nem mesmo os atos subversivos têm tanta gravidade quanto o pensamento que os incentiva.

Quarto tema, o do amor ao dominador. A multidão ama o Grande Irmão, o (em inglês) B. B. O que nos traz à mente a clássica reflexão sobre o amor do dominado ao ditador: La Boétie, perguntando por que muitos aceitam obedecer a um só, que manifestamente é mais fraco do que eles juntos; Espinosa, repondo a questão; mais perto de nós, Wilhelm Reich, concluindo que parte dos operários alemães (a “aristocracia operária”), contra o seu interesse de classe, optou pelo nazismo, por motivos que não eram econômicos mas de ordem psicológica.

O último ponto que desejo destacar é onde este livro mais se desatualizou, e que é justamente o seu eixo. Ele supõe uma economia da escassez. No mundo de 1984 não há bens de consumo ou duráveis; a economia se volta sobretudo para a guerra e a repressão. E o importante é que a escassez é deliberada, garantindo que todos se preocupem tanto com o que lhes falta que lhes falte tempo e condição para pensar no supérfluo (pois a liberdade exige o atendimento das necessidades mínimas; ou, como pensa Wilde, o essencial está no supérfluo — é este que nos humaniza; ou, para platonizar junto com o Grande Irmão, quem pensa no supérfluo já está, de algum modo, no paradigma da superfluidade, a poesia: quem se preocupa com o fútil, com o a-mais, já de algum modo se faz poeta). A guerra visa basicamente a produzir escassez (em vez de resultar desta), destruindo excedentes que poderiam dar mais conforto aos homens, ou, ainda, canalizando o esforço de produção para a indústria bélica em vez da pacífica. Mas onde melhor se vê a escassez é na própria sexualidade. Júlia (que no dizer de Winston “só [é] rebelde da cintura para baixo”)[5] percebe “o sentido íntimo do puritanismo sexual do Partido”:

Com Júlia, tudo girava em torno da sua própria sexualidade. Assim que este assunto vinha à baila, mostrava-se muito informada. Ao contrário de Winston, percebera o sentido íntimo do puritanismo sexual do Partido. No era apenas pelo fato de o instinto sexual criar um mundo próprio, fora do controle do Partido e que portanto devia ser destruído, se possível. O mais importante era a privação sexual que provocava a histeria, desejável porque podia ser transformada em febre guerreira e adoração dos chefes. Ou como explicava Júlia:

— Quando amas, gastas energia; depois, ficas contente, satisfeito, e não te importas com coisa alguma. Eles não gostam que te sintas assim. Querem que estoures de energia o tempo todo. Todo esse negócio de marchar para cima e para baixo, dar vivas, agitar bandeirolas, é sexo que azedou. Se estás contente contigo mesmo, por que havias de admirar o Grande Irmão, os Planos Trienais e os Dois Minutos de Ódio e todo o resto da maldita burrice?

Certamente, se o livro hoje parece desatualizado, é porque a aposta na escassez e no puritanismo sexual como estratégias de dominação não vingou. Se queremos pensar num uso político do sexo, hoje parecerá mais oportuna a via do Brave new world, de Aldous Huxley, que, embora anterior a 1984 (é de 1932), aponta técnicas mais eficazes. Em vez dos Dois Minutos de Ódio, o admirável mundo novo tem, como exutórios da energia, orgias de caráter sexual induzidas pelo soma, droga que todos ingerem. Nos dois livros está presente uma ideia de energia a sublimar, a desviar de seu locus para um canal em que ela não ameace mas reforce a dominação; só que Orwell supõe que esse canal seja a negação da própria sexualidade, enquanto Huxley pensa num uso domesticado desta. Para ambos a energia é, em sua essência, libido; Orwell acredita que é possível reprimi-la até o fim, Huxley pensa que é viável despi-la de seu sentido subversivo. Ocorre nas duas obras a mesma abolição do amor, porém no mundo novo não é pela repressão policial a mais ostensiva, e sim pela sua banalização. Em vez de se proibir o amor, induzir um ersatz seu: o sexo sem amor, sistemático.

Insistamos um pouco nessa atualidade de Huxley. Quase ao mesmo tempo que escrevia esse livro, Reich desenvolvia a prática e a teoria da Sexpol, a Política Sexual. Numa série de panfletos e livros propôs uma política de libertação sexual,[6] que ia desde reivindicações materiais (alocação de imóveis para os jovens encontrarem suas namoradas) até preceitos de educação (informações básicas sobre o sexo) e de saúde mental (combate, via terapia, às neuroses). Ora, o surpreendente, quando lemos Reich hoje, é ver quantas das suas propostas estão implementadas: há lugares de encontro, há mais informação sexual, menor preconceito. E, no entanto, com isso deixou de se instaurar o que para” Reich era, simplesmente, o fundamental. Porque para ele — como, creio, para todos os que têm um pensamento possuindo por matriz a ideia de energia — o sentido dessas reivindicações era o de uma libertação radical do ser humano. Fazer o amor era um ato revolucionário, pois na entrega amorosa o casal desafiava a estrutura repressiva vigente. Que resta disso, quando fazer o amor é um ato ou meramente de prazer, sem qualquer vínculo além do momentâneo, ou mesmo de poder, no qual se investe prestígio e vaidade? É como se o mundo novo tivesse logrado Reich: sem o gume, sem a liberação de energia pensada e propugnada por ele, suas propostas reduziram-se a tecnologia, mais ou menos eficiente.

Voltando a 1984: o que nos importa, hoje, é que o poder, nesse mundo, olha a todos. Todos, em algum momento — ou, quem sabe, todos, o tempo todo —, são vistos pela teletela. Esse aparelho é uma espécie de panoptikon ampliado, no qual o telespectador, sem o saber nem querer, converte-se em ator e espetáculo. O controle é total e, nos dois sentidos, passa pelo olhar. O poder dá a ver e vê. O dominado vê e é visto. Mas será enganoso, do fato de que cada um dos termos da relação conjuga o verbo ver na voz passiva e na ativa, supor que exista simetria entre ambos, e que a passividade de cada um equilibre sua atividade. Porque, do viés do Poder, ver e ser visto são, sempre, atos. Quando ele dá a ver, mostra tão-só o que lhe convém — e Winston insiste em como é mentirosa essa mostração. Porém, quando enxerga, o que faz não é cativar-se a um espetáculo: é, isso sim, espiar. As imagens que a teletela emite para a Polícia do Pensamento têm a natureza de uma revelação. Em outras palavras, a Polícia vela sempre, no sentido de vigiar; vela, também, no sentido de encobrir o que faz; e, simetricamente, revela o que os súditos tentam esconder, não só o delito político mas, simplesmente, o resto de vida privada (amor, sexo, afeto), já intolerável para o Estado totalitário.

É por isso que, se há investigação científica em apenas dois campos (todos os demais foram proibidos, porque pode ser subversiva a cultura), um deles é o que trata dos gestos, e em especial do olhar do indivíduo: ali procura a Polícia captar tudo o que possa trair pensamentos inconformistas, crimideia. A teletela transmite um programa ininterrupto e enfadonho, sem atrativo (aí a sua diferença, miserabilizada, face ao Brave new world), mas o que importa à Polícia do Pensamento é descobrir como cada espectador olha (recebe, assimila) essa propaganda. O olhar do poder é treinado, aguçado. A postura do corpo, as expressões, tudo significa para ele. Ele alcança, num sentido que poderíamos dizer quase hegeliano, a verdade das condutas humanas. Porque o que ele olha é o olhar de cada pessoa.

Ora, se deixamos Orwell pelo mundo, é preciso lembrar que o poder se relaciona com o olhar de duas maneiras. Olha, controla, devassa. Mas também dá a ver, é olhado. Nos dois casos, ora sujeito ora objeto do olhar, o Poder está privilegiado na operação de que participa. Comecemos pelo Poder quando se faz ver. Porque, se o saber moderno ocidental se caracteriza pela vantagem do sujeito sobre o objeto, é importante notar que, aqui, o objeto prevalece sobre o suposto sujeito. E isso se dá porque o fazer-ver é exatamente a negação de uma transparência.

O Poder obriga os cidadãos a vê-lo. Conhecemos a etimologia de “súdito”, sub/dictus, aquele que está sob o dito, a quem a ordem chega pelo dizer; mas, aqui, não há tanto o dizer — há o mostrar-se, exibir-se. Algo é exposto que não podemos nos recusar a ver: o Poder faz-se espetacular. Isso corresponde, no Ocidente moderno, à liturgia da realeza.[7] A começar pela corte ducal de Borgonha, no século XV, passando depois pela espanhola dos Áustrias, para culminar na francesa de Luís XIV, fizeram-se espetáculos não só a coroação e o desfile do príncipe, mas até o seu deitar-se e levantar-se. Sabemos que existem monarquias nas quais o Poder não se dá a ver. É o caso, ainda hoje, do Nepal. Quando o atual monarca, rei Birendra, foi coroado, em 1975, os jornais noticiaram o sigilo completo da cerimônia; sabia-se que ela estava ocorrendo, mas em lugar e condições a que ninguém tinha acesso — o contrário dos rituais, por exemplo, de coroação britânicos.[8] Recuando no tempo, o antropólogo belga Luc de Heusch tem um livro belíssimo sobre “o rei bêbado ou as origens do Estado”,[9] melhor dizendo, sobre mitos de constituição do poder político que ele coletou no atual Zaire. A história que, em várias versões, serve de eixo ao livro é a do rei Nkongolo, que come em público e por isso causa escândalo a seu real visitante Mbidi Kiluwe (“O senhor impôs seu domínio à região, porém não observou a proibição elementar que manda os reis se furtarem a todo olhar quando comem ou bebem”, diz este — p. 20). O rei escandaloso termina deposto e morto. De onde podemos concluir, por sinal, que esse refinadíssimo africano, Mbidi Kiluwe, só teria desprezo por uma corte como a do Rei Sol, na qual a refeição o monarca tomava sozinho, dando-se em espetáculo à sua nobreza e circunstantes. Finalmente, se queremos voltar da Ásia e África à realeza europeia, melhor, à teorização monarquista do século XVII, vejamos a obra que inaugura a monarquia de direito divino, com Jaime I da Inglaterra, por volta de 1600. Várias vezes assinala esse rei que existem “mistérios da realeza” que o súdito não se atreva a devassar; seu ministro, o filósofo Francis Bacon, fala em 1620 do véu que deve separar o santo dos santos (a realeza) e os olhares dos súditos: “naquelas coisas que são arcana imperil e pontos reservados da soberania, como fazer a guerra e a paz, e coisas parecidas, devem [os parlamentos] opinar sobre o que o rei lhes comunicar, sem tentarem afastar o véu”.[10]

Se Luís XIV, o rei que melhor fez da exibição uma técnica de dominar, o rei apropriadamente solar (o sol, que ilumina e portanto enxerga todos os cantos do reino — o mesmo sol, que de todos, quando vence as nuvens, é visto), é também um rei de direito divino (liberto de qualquer controle humano, o do parlamento ou o do papa), então como se conciliam essas duas vertentes: a da monarquia que é vista, e tem de ser vista, para cativar mediante o espetáculo, e a da monarquia cujos princípios, por serem sagrados, divinos mesmo, ninguém pode devassar? Jaime, ao proibir um livro que explicava os fundamentos da realeza,[11] em 1610, censura os homens por estarem, nos últimos tempos, metidos demais em “curiosidades”. Ora, como impedir a curiosidade nas matérias de Estado, senão pelo paradoxo de desviá-la (e mesmo incentivá-la) para a encenação do Poder; como impedir a transparência, senão pelo voyeurismo. Noutras palavras, um espetáculo tem de ser gerado, no qual a atenção será cativada para o que seriam os atos íntimos do rei (tivesse ele intimidade), os atos de sua vida privada (tivesse ele privacidade). Vemos, aqui, que dificuldade encontramos sequer em conceber o que são esses atos de rei; usamos, automaticamente, termos que remetem a uma divisão entre público e privado, exposto e íntimo, que não tem cabimento na sociedade, especialmente de corte, do século XVII e mesmo XVIII. Esse equívoco é preciso evitar. Porque, senão, estaremos supondo que naturalmente todos os homens são discretos no que diz respeito a deitar, levantar, fazer as necessidades e o prazer, e que só por deformação pôde essa sociedade do artifício,[12]que imperou no Antigo Regime, publicar o que por definição seria privado. Ou seja, estaremos, em vez de história, fazendo uma patologia das culturas.

Mas se o rei publica o que para nós é íntimo, há razão para isso: é que ele encarna o Estado. Nele se identifica a nação. Velha identificação essa, de que temos exemplo no filme Excalibur: quando o rei Artur se debilita, seu reino sofre fome e miséria. Na realeza solar do século XVII, a identificação atinge o clímax. Todos os momentos da vida do rei exibem-se. É notável que, ao mesmo tempo, os burgueses desenvolvam uma privatização da vida pessoal — amor, sexo, etc. se tornam, para esses que valorizam a família e o amor no seio dela, assuntos íntimos. Philippe Ariès sintetiza tal mudança falando da novidade que é o corredor. Os cômodos do século XVII geralmente dão passagem cada um para o seguinte, de modo que atravesso lugares onde se come, conversa, dorme ou mesmo faz o amor para chegar ao fundo da casa. Nessa época, porém, a generalização do corredor vai permitir a especialização dos espaços, e assim se começará a respeitar e prezar a intimidade, o fechamento no quarto.[13] Quer dizer, a realeza exibida é contemporânea de uma burguesia discreta, que daí a um século criticará, em nome da moralidade e do amor sincero, a suposta devassidão e falsidade da alta aristocracia.

A exibição do Poder tem função política. O século XVII é tempo de ensaios de revolução: não só na Inglaterra (em 1640-1660 o “ensaio geral”, em 1688 a Gloriosa), mas também nas Espanhas (no mesmo ano de 1640 revoltas em Portugal, bem-sucedida, e na Catalunha, mal) e, no sul da França, a Ormée de Bordéus, rebelião de cunho social, enquanto em Paris se dão as Frondas, parlamentar e. dos príncipes. Várias soluções têm, distintas conforme os países, essas revoluções de ressonância continental. Na França, delas sai o absolutismo. As razões para este são diversas, e escapam ao presente ensaio; mas fiquemos no que nos interessa, o olhar sobre o rei. A explicação usual, que temos em Stendhal e em Rossellini-Erlanger,[14] diz que Luís apostou na vaidade e, gêmeo dela, no medo dos franceses ao ridículo. Ninguém é heróico — esse tema é recorrente em Stendhal — se tem medo do ridículo: do heroísmo à zombaria, como é pequena a distância. Se você dá um tiro no jacobino que vem prendê-lo (o exemplo está no Rouge), pode ser motivo de chacota (se a bala não partir, se acabar preso, etc.); não resistindo, porém, resta lugar para frases notáveis, martírio. O problema é que ninguém faz política autonomamente, quanto mais revolucionária, se receia o que os outros vão pensar. Já se viu um orador revolucionário preocupado com a roupa, as figuras, a compostura do que vai dizer?[15] Há um tom romântico no revolucionário, que o faz correr, bradar, ir num ritmo veloz e necessariamente mal acabado.

Luís portanto descarta uma política possível — a da revolução mais ou menos popular — e impõe o poder enquanto espetáculo. Em vez de estar o Poder tó mésson, como lembra Vernant que estava entre os gregos, “no meio” da aglomeração, exposto ao olhar de todos os cidadãos, transparente ao exame e à decisão coletiva —, o Poder será exposto já decidido, oferecido apenas ao olhar admirador. Admirar é olhar com espanto, fascínio, desejo. O olhar é coagido não pela força, mas por um tipo de sedução.

Sabemos que a sedução, em psicanálise, inaugura. Não é preciso contar a história de como Freud descobre a sedução enquanto o que desperta a sexualidade na criança, e depois abandona essa doutrina, ao descobrir as dimensões (perversas) da sexualidade infantil. Mas algo resta da anterior teoria da sedução, pelo menos como hipótese. Dizem Laplanche e Pontalis: “toda a questão está em saber se devemos considerar o fantasma da sedução uma simples deformação defensiva e projetiva da componente positiva do complexo de Édipo [posição que parecem descartar], ou [alternativa retórica, abrindo o que eles entendem ser a lição freudiana:] se se deve ver nele a tradução de um dado fundamental: o fato de a sexualidade da criança ser inteiramente estruturada por algo que lhe vem como que do exterior — a relação entre os pais, o desejo dos pais que preexiste ao desejo do indivíduo e lhe dá forma. Neste sentido, a sedução realmente vivida, tal como o fantasma da sedução, não seria mais do que a atualização desse dado”.[16] A sedução está ligada ao surgir de um saber, ao conhecimento do próprio desejo e de seu alcance, às vezes terrível, avassalador. Se saímos da psicanálise: é o conhecimento como descoberta, e revelação, que pode aterrorizar. Psiquê vendo Eros, ou o primeiro casal comendo o fruto da ciência proibida. Ora, esqueçamos o terror, e pensemos na sedução como conhecimento, ensino: estaremos perto do poder como espetáculo, até tranquilizante, porque induz um certo conformismo.[17]

A política moderna — do século XVII em diante — confere grande importância a esse dar-a-ver, ao olhar induzido. A propaganda, na sua forma canônica, a que Goebbels lhe deu faz cinquenta anos, deriva disso. Mas uma distinção deve ser feita.

O que se dá a ver pode ser de duas ordens:

1) O Poder régio do Antigo Regime exibe figurações que eu diria alegóricas. De alguma forma o que se mostra figura o Poder. Um exemplo, ao termo desse período, está na abelha de Napoleão, que transmite tanto o sentido de uma naturalização da política (desde os antigos, a abelha e a formiga — inseto este de reputação inferior, porque inútil ao homem e mesmo levemente nocivo — configuram uma sociabilidade natural e absolutamente bem-sucedida, modelo para a dos homens). Ou, voltando a Luís XIV, o Sol — que dá calor, vivifica e a tudo penetra.

2) Mas o dar-a-ver contemporâneo a nós oferece uma quantidade assombrosa de figuras, e o característico delas é que não desenham o poder. O que se mostra já não é — e nisso o próprio Goebbels foi superado — a propaganda (política), é a publicidade con-sumista — gadgets, estilos de vida — que, em vez de sinalizar a realeza, a Igreja, as formas de dominação, o que faz é despistar. Vemos tantas imagens que nelas nos perdemos. O mundo foi dedalizado.

Isso, aliás, está ligado ao fato de que o poder e a dominação cada vez mais passam menos pelos seus loci tradicionais (o Estado, a Igreja) e mais pela relação de classes travestida em sociedade civil. Os poderes tradicionais perdem em poder, e aumenta o das relações outras — patrão/empregado, meios de comunicação, etc. O característico destas últimas relações é que, gerando dominação, fazem-no de maneira menos explícita, sem dizer ou deixar ver que se trata de poder. O poder é efeito de tantas variáveis que se cruzam, no capitalismo avançado, que só o olhar treinado percebe que o resultado não é fortuito (liberal, democrático), mas necessário. Com esse despistamento, o poder se faz isento, limpo. Pensemos, apenas, como no Brasil a classe dominante critica o Estado — e sua tortura, e seus déficits — como se ele não estivesse a serviço dela. Pensemos, ainda, como se ouvem elogios hoje à sociedade civil, como se ela fosse o lugar da liberdade, e apenas nas figuras tradicionais do Poder (Estado, Igreja) estivesse a dura necessitas, a coerção.

Mas, nas suas duas versões, o dar-a-ver é confisco do olhar. Já Leonardo da Vinci, quando fala como se deve enxergar o quadro, propõe um aparelho: uma espécie de biombo, a distância exata da obra, com apenas um orifício, pelo qual possamos enxergá-la de maneira correta. Essa invenção o que procura senão conjurar as anamorfoses, o olhar torto, vesgo, dissidente? Ou, na Renascença, é notável o que faz Palladio no Teatro Olímpico de Vicença: a plateia se dispõe num semicírculo limitado pelo palco, do qual saem cinco ruas, sendo ado meio perpendicular ao meio da cena, e havendo duas diagonais de cada lado:[18] de modo que o espectador que se sentar no meio do semicírculo enxergará tudo, pelas cinco ruas adentro, ao passo que dos demais assentos a visão será sempre parcial, até podendo ser quantificada (enxerga-se 20, 40, 60%…). Há um privilégio da plateia, melhor dizendo, na plateia há privilégios, hierarquia. Isso, que já comentamos em outro lugar, acompanha a redução do espetáculo teatral a mera atualização de um texto preexistente. Os poderes mágicos da cena teatral são contidos — pela advertência de que ela é ficção (a construção do palco), pela hierarquização do olhar na plateia, pela supressão do improviso e a imposição de um texto a atualizar. Mas isso só entendemos se, em vez de pensarmos o palco ou a plateia em separado, prestarmos atenção ao agenciamento, à ordenação prévia que determina a relação de ambos. (Daí a crítica, notável, de Artaud, que quer que o choque do ator e do público produza; que se recupere a magia toda do embate entre eles, tal como ainda se conserva no teatro balinês).[19]

Assim chegamos a umas primeiras conclusões. O Poder dá a ver, mas com isso obriga um certo olhar. É a política enquanto espetáculo. Mas, também, o Poder vê. Já com Carlos Magno, cujos missi dominici eram “os olhos e ouvidos do príncipe”. Ele controla; em francês, é poder o droit de regard sobre alguma matéria, que podemos traduzir como o direito à supervisão. A visão, no Poder, é superlativo.

Em 1984, cruzam-se os dois olhares. Todos têm a teletela, que não podem desligar. Ela dá notícias e ordens — e enxerga o que fazem as pessoas. O Poder fornece um espetáculo (embora o seu teor de distração e fascínio seja muito baixo) — e fiscaliza (é verdade, porém, que o espetáculo está menos na TV e mais nos comícios). Aliás, como poderia Orwell, em 1948, suspeitar o que se tornaria a televisão? Os poderes que ele lhe conferiu são os do Estado tradicional — a repressão. Mas os poderes que ela assumiu são os que hoje, diria eu, até servem para definir a sociedade civil. Basta lembrar, em 1984 (o ano), a revolta da cidadania brasileira contra a Globo (nas Diretas-já) e o papel que essa rede logo depois assumiu na campanha de Tancredo (comícios que terminavam na hora, do jornal Nacional, o Colégio eleitoral transmitido ao vivo e com o “povo” se manifestando em cada capital de Estado). A sociedade civil tem hoje, nos media, um de seus paradigmas.

No espetáculo de 1984 — que é fraco — a principal referência é ao Grande Irmão, que pode muito bem não existir, enquanto indivíduo, sendo mera ficção do Partido. A política, aliás, quantas coisas falsifica: batalhas que não existem, prêmios de loteria que não são pagos, crimes, quem sabe o próprio Goldstein, heresiarca do regime, já tenha morrido há muito tempo?

Mas o fundamental no Poder é a dissimetria dos dois olhares. O programa que o Partido nos dá, não temos como não ver. E o Partido vê tudo. Sujeito ou objeto, prevalece ele. Não há troca de posições, nem reversão. Porque, havendo esta reversão, não haveria mais poder.

Porém, é possível a supervisão sem poder? Talvez. Num caso pelo menos, o de Super-Homem: ele tem a supervista, mas há algo que a limita, que a impede de tornar‑se arma terrível de dominação. E isso não é a kriptonita. É, em primeiro lugar, o fato de que Super-Homem está a serviço do Bem: ao contrário do G. I. e de seu Ingsoc, não tem por objetivo o “poder pelo poder”. Mas há outro fator, quem sabe mais importante. É o amor frustrado que ele tem, sob o nome de Clark Kent, por Miriam Lane. O que humaniza o herói é a dimensão do fracasso. A impotência sempre ronda o super. A própria kriptonita simboliza a impotência. Ante a mulher amada, ele sempre falha. Tem de pre-. servar o segredo (hoje nem se sabe bem por quê; nos anos 40 havia sentido em seu recato, tal como havia sentido em sua castidade).

E com isso voltamos aos olhares de amor que se cruzam. O que há nesse encontro dos olhos, no coup de foudre mútuo? Há que, neles, cada um vê o ver. Olhar, no amor, tem dois poderes. O olhar captura, extrai; é voyeur, arranca prazer do objeto que ele devassa; e por isso os índios não gostam de ser fotografados, temendo perder a alma. É o que sucede quando alguém nos impressiona: desde a foto do nu até a pessoa por quem nos apaixonamos. Na primeira vista, o apaixonado sofre uma “perturbação terrível”, nunca sentida. Não sabe falar, age mal. Só diz bobagens, ou nada. Mas extrai.

O segundo poder do olhar é que ele revela, entrega, dá. Pelos olhos o sentimento circula, ao bom entendedor, que nem sempre é o destinatário. Há congestionamento nessa troca de sinais: vezes em que não sei qual a reação da amada — porque um olho que se deslumbra (cega-se) e além disso declara o seu amor, como poderá ainda decifrar o outro? Mas há, nisso, grande beleza. É a de ver ver. Olhar o olhar da amada é das coisas mais belas que existem. É a rara reciprocidade do amor, e não é por acaso que nela, nos momentos raríssimos em que conseguimos escapar a nossos medos e viver um encontro sem tirania, o coup de foudre a dois nos dá uma lição de entrega e não-poder.

[1] Jean Rousset, Leurs yeux se rencontrèrent — la scene de première vue dans le roman, Paris, Librairie José Corti, 1981.

[2] Ver, de Stendhal, De l’amour (primeira edição, 1822), e meu ensaio “A paixão revolucionária e a paixão amorosa em Stendhal”, in Adauto Novaes (org.), Os sentidos da paixão, São Paulo, Companhia das Letras e Funarte, 1987.

[3] Rousset, op. cit., p. 15, nota.

[4] Shakespeare, Hamlet, São Paulo, Abril, 1976, pp. 108-9. É o famoso monólogo do ser ou não ser” (ato III, cena 1). A tradução é a perfeita — de Péricles Eugênio da Silva Ramos.

[5] George Orwell, 1984, São Paulo, Nacional, 1982, p. 146. 0 trecho que se segue está às pp. 125-6.

[6] No caso convém mais falar em libertação que em liberação, porque a proposta é radical, integral. Liberar energia é um meio para libertar o homem.

[7] Desenvolvi o tema em A etiqueta no Antigo Regime, São Paulo, Brasiliense, col. Tudo é História, 1983.

[8] Ver o excelente livro de Eric Hobsbawm e Terence Ranger (orgs.), A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, no qual há um belo ensaio sobre os ritos de coroação britânicos, por David Cannadine.

[9] Luc de Heusch, Le roi ivre ou l’origine de l’État, Paris, Gallimard, 1972.

[10] Cit. in William Holdsworth, A history of English law, Londres, Methuen, 1971-72, vol. p . 25.

[11] O livro proibido é The interpreter, do dr. Cowell — que, curiosamente, defendia a política absolutista. Tratei da questão em Ao leitor sem medo — Hobbes escrevendo contra o seu tempo, São Paulo, Brasiliense, 1984, esp. pp. 136-7.

[12] Do artifício ela é mesmo. O que não podemos é desqualificar isso em nome de uma fictícia natureza cuja chave pretenderíamos ter.

[13] Ver Philippe Aries, L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime (há trad. bras.: História social da família e da criança).

[14] De Rossellini, o filme A tomada do poder por Luís XIV, que teve como consultor histórico P. Erlanger.

[15] Esta pergunta é um pouco de efeito. Suponho que de fato possa se preocupar. Mas o que importa é que, a uma leitura coo/ da prosa revolucionária, pouco sobra. Revoluções necessitam de retórica, mas uma retórica aquecida, às pressas, com o material existente. Não dá tempo para fazer como o Ciceronianus de Erasmo (1528), que quando vai escrever uma carta passa dias elaborando seus tropos, para só ao fim decidir qual será o assunto do escrito (in George Williamson, The Senecan Amble, University of Chicago Press, 1966, pp. 11-3).

[16] J. Laplanche e J. B. Pontalis, Vocabulário da psicanálise, Lisboa, Moraes, p. 613.

[17] Evidentemente, esquecendo o terror esquecemos tudo — isto é, perdemos o novo. O conhecimento vem com medo, se contesta o estabelecido. É o que ocorre na experiência analítica ou terapêutica. Sem o terror, deve ser conformista.

[18] O cinéfilo notará que a sequência da perseguição, no filme de Joseph Losey Don Giovanni, se passa nesse cenário.

[19] A respeito, ver Jacques Derrida, “Le théâtre de la cruauté et la clôture de la représentation”, in L’écriture et la différence; Antonin- Artaud, O teatro e seu duplo; e o cap. “O palco do Poder”, em meu A marca do Leviatã.

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