2006

Perto de um mundo distante

por Adauto Novaes

Seria preciso retornar a esta ideia da proximidade pela distância […] de uma vista que é uma vista de si, torção de si mesma, que põe em questão a “coincidência”.

Maurice Merleau-Ponty, O visível e o invisível.

Pode-se dizer tudo, ou quase tudo, sobre a América Latina, a partir de três palavras apenas: colonialismo, modernidade, capitalismo. O trabalho de pensamento tem o poder de desdobrá-las em outras imagens e ideias: com elas, através delas, pode-se meditar sobre astúcia, violência, espoliação, massacres, dominação, globalização — todas as controvérsias da vida cultural e política. Mas, muito além das controvérsias e aproximações possíveis, nada disso se compara ao legado imposto aos latino-americanos: desconhecimento de si, desprezo, desconfiança e desdém pelo Outro — em síntese, o esquecimento das origens comuns e a permanente construção de uma antipatia “essencial”. A América Latina nunca esteve no centro das nossas interrogações políticas. As “relações” entre os povos já nasceram, pois, corrompidas pela posição dos que chegaram para dominar. Esse é um destino comum a todo “descobrimento”, como nos lembra Paul Valéry:

Para tristeza do gênero humano — escreve o ensaísta e poeta francês —, é da natureza das coisas que as relações entre os povos sempre comecem pelo contato dos indivíduos menos preparados para buscar as raízes comuns e descobrir, antes de mais nada, a correspondência das sensibilidades. Os povos inicialmente entram em contato através de seus homens mais rudes, mais ávidos; ou então pelos mais determinados a impor suas doutrinas.[1]

Do colonialismo à república na América Latina foi assim: a espada dos homens rudes e ávidos, a cruz e suas doutrinas, e hoje o culto da mercadoria. Tudo construído para que os valores tendessem a um mundo dominado pela especulação, tendo como modelo a Bolsa de Valores, como lembra ainda Valéry: “todos os valores políticos flutuam ao sabor do mercado, suas cotas sobem e descem dependendo de pânicos e apostas subjetivas. O valor ‘espírito’ da nossa civilização”, conclui Valéry com humor, “não é diferente do valor trigo ou do valor ouro, e ele não cessa de baixar”.[2] Assim, os valores originários da cultura latino-americana jamais puderam ser considerados.

Estas Oito visões da América Latina propõem um olhar diferente: elas buscam a torção sobre si mesmas: visões de pensadores latino-americanos que nos levam a interrogar as interpretações legadas pela História. Visões nos remetem, necessariamente, a imagens do mundo ou, se quisermos, o mundo tornado imagem concebida. O que significam, pois, as imagens do “mundo” chamado América Latina, termo engenhoso e unificador, por forças externas, de tantas culturas diferenciadas? Se pretendemos uma real unidade latino-americana, é preciso, em um primeiro momento, dar sentido não àquilo que temos de semelhante, mas ao que temos de diferente, que nossas diferenças não sejam “qualidades opacas” e que ganhem, enfim, expressão. A partir daí, podemos construir um mundo comum. Pensar de forma original exige de nós um pouco de audácia para abandonar velhos postulados. O trabalho do historiador, do sociólogo e do antropólogo aqui reunidos é exatamente isso: uma reinterpretação dessas visões, um permanente trabalho sobre a constituição dessas visões e sobre a idéia que a própria História tem delas.

Que visão cada país tem da América Latina?

Comecemos pelo Brasil, com as observações de Francisco de Oliveira. Para ele, muitas são as fronteiras, não propriamente geográficas, que separam os países da América Latina, a começar pela herança das guerras coloniais, que se desdobraram no século XIX com a formação das identidades nacionais pela influência combinada do imperialismo inglês e da formação dos novos interesses e classes nacionais. A diferença das línguas impôs-se como outra fronteira invisível muito eficaz na comunicação entre os povos, o que contribuiu para uma precária formação de uma cultura comum: talvez o catolicismo tenha sido um dos poucos vasos comunicantes entre as formações portuguesa e espanhola. Mais: nossos mitos fundadores — para Francisco de Oliveira — pouco têm em comum. Mesmo com a advertência da moderna antropologia, permanecem irredutíveis as diferenças entre as culturas autóctones que se formaram no que viria a ser nosso território e as esplêndidas civilizações do Planalto Andino e da Meseta Mexicana. Enquanto os heróis Cuauhtemóc e Tupac Amaru inspiram desde um intenso culto cívico-patriótico até lutas políticas e grupos insurgentes, nada parecido ocorreu no Brasil. Não se nota uma única referência aos índios brasileiros no nível político, nem mesmo quando a oposição à ditadura assumiu caráter armado.

Em seu ensaio, Francisco de Oliveira evidencia o que nos une e o que nos separa na América Latina a partir de três interrogações essenciais: O que é a América Latina para os brasileiros? A integração faz sentido? Até onde ser latino-americano pode nos ajudar a sermos universais?

Celebração e negação são os dois lados do paradoxo argentino em relação à América Latina. Como defende o professor Carlos Altamirano, interrogar sobre a visão argentina equivale a perguntar-se pelas representações que forjaram suas elites intelectuais, que não produziram uma, mas sim diversas imagens do subcontinente. Essa construção, que variou segundo os contextos políticos e ideológicos, está ligada ao esforço de definição de uma identidade nacional, sempre pensada em contraposição a um Outro imaginário ou real. Em, determinados momentos, o Outro identifica-se com a Europa e os Estados Unidos, “apontados em geral” — escreve Altamirano — “como lugares de uma excelência digna de ser não só admirada como também imitada, seja política, econômica ou culturalmente […] às vezes considerados também obstáculos, quando não uma ameaça à autonomia nacional e aos caracteres de uma personalidade coletiva própria”. A outra referência significativa para a Argentina tem sido a própria América Latina, mas ela também de forma ambígua: “vista às vezes como a ‘família’ histórica de que se faz parte e outras como sinônimo das adversidades das quais se procura escapar para ingressar na rota da civilização”. Assim, define Altamirano, o tema da América Latina no pensamento argentino tem sido, sempre e ao mesmo tempo, o da Argentina na América Latina.

Nossa primeira percepção da América Latina, segundo o sociólogo Emir Sader, não era muito diferente. Também o Brasil caiu na tentação de pensar que o entorno mais imediato era a Europa. Mas ao descobrir que não era bem assim, a América Latina passou a ser representada para o Brasil

[…] desde seu polo menos típico, porém mais próximo e ameaçador – a Argentina. Um sentimento de inferioridade em relação aos padrões europeus do vizinho, a presença da grande metrópole de Buenos Aires, a disputa pela hegemonia na área em torno do Uruguai – a “província cisplatina” -, essa, a primeira imagem da América Latina que nos chegou. A aliança mortífera na guerra contra o Paraguai já havia deixado como herança a necessidade de profissionalização dos exércitos, com vistas às disputas com a outra potência regional.

O diagnóstico de Sader é preciso: essa foi nossa primeira percepção da América Latina, e “o resto era o resto — longínquas fronteiras impenetráveis, que mais nos separavam do que nos uniam a países como a Bolívia, o Peru, a Colômbia, a Venezuela, as Guianas”. Mesmo a descoberta do Brasil como nação, a partir de 1930, só reforçou esse sentimento e essa forma de se ver a partir da visão do “outro”.

Uma das mais instigantes análises é feita por Aníbal Quijano, para quem foi aqui, em nossa América, que se produziu e se estabeleceu o padrão de poder hoje globalmente hegemônico, cujo caráter constitutivo é a peculiar associação entre colonialismo, modernidade e capitalismo. A parte que sempre coube à América Latina nesse “padrão” de poder constituiu, historicamente, a produção e reprodução incessante da dependência.

Viagem ao fim do paraíso, de Eduardo Subirats, é o mais abrangente de todos os ensaios aqui publicados. O autor retoma uma vertente intelectual crítica que sempre aliou projetos latino-americanos à tradição do humanismo europeu. Daí essa viagem que vai de Ben Israel e Alexander von Humboldt à antropofagia e ao tropicalismo, passando por Sérgio Buarque de Holanda, Astúrias, Roa Bastos e outros.

O México talvez seja, depois de Cuba, o país que mais procurou compartilhar com a América Latina suas lutas de independência. Apesar da separação geográfica entre Norte e Sul do continente, as permanentes evocações de Tupac Amaru, Bolívar e San Martín fazem pensar em uma consciência regional ampla, mesmo que as rebeliões mexicanas não estejam explicitamente articuladas aos equivalentes no restante da América Latina. Ana Esther Ceceña, diretora da revista Chiapas, desenvolve em seu ensaio a ideia de que a visão da América Latina a partir do México é cambiante: ganha força ou se desvanece dependendo da dinâmica social interna e da conjuntura internacional. Mas cada um desses momentos corresponde a uma visão de América Latina na forma de mito, que expressa “claramente algumas das utopias libertárias de maior permanência, como a que propõe a união dos povos latino-americanos como base de sua emancipação”.

É evidente que forças externas monopolizaram o discurso cultural e político na América Latina ao longo de sua história. Vozes dissonantes que se expressavam não apenas por ideais mas através da própria prática política sempre foram postas à margem. Esse foi o caso de Cuba, para quem o colonialismo e o imperialismo deveriam ser não só objeto de combate político e ideológico como também instâncias unificantes na América Latina. A visão de Cuba é descrita por Fernando Martínez Heredia, pesquisador do Centro de Estudos sobre a América em Havana, a partir de questões como: a “identificação de si”, isto é, a nossa América; o “outro”, que corresponde a tudo aquilo que é diferente de nós; e a “águia temível”, que é o “ianque aniquilador e rapace”.

Por fim, a antropologia tem muito a dizer sobre as visões latino-americanas, e uma das mais originais nos é dada por Claude Lévi-Strauss nas Mitológicas e em particular no seu livro História de Lince, publicado em 1991, e que é objeto de reflexão de Beatriz Perrone-Moisés. Em seu ensaio, ela analisa as várias formas narrativas que assume, nos mitos, o princípio central do pensamento ameríndio: a ideia de que a dualidade, a diferença, são fundamentos do cosmos e condição de sua existência que se expressa nas formas de organização social na relação com o outro. Uma filosofia ameríndia que se contrapõe, portanto, ao princípio da unidade e da identidade do pensamento ocidental. Princípio que resultou em uma vasta empresa de erradicação violenta das alteridades nativas.

Alguns autores deste livro recorrem, portanto, aos mitos, antigos e modernos, para falar da América Latina. A partir daí, duas questões se impõem: mito, pensamento e política podem andar juntos? Por que evocar mito e pensamento para falar das oito visões da América Latina?

O pensamento político latino-americano, rico de tradição, tende, muitas vezes, a cair em certos impasses, frutos de concepções positivistas da história. Os problemas da mundialização têm pelo menos o mérito de nos forçar a pensar de maneira diferente. As modas e os modos de pensar tornam manifestas as perplexidades do momento. Devemos, pois, abrir espaço a outros pontos de vista, ainda que polêmicos. Muitos podem até mesmo considerar certo atrevimento aliar os mitos à política, principalmente se levarmos em conta as observações de Francisco de Oliveira em sua conferência Fronteiras invisíveis: nossos mitos e heróis não são os mesmos do lado espanhol: Bonifácio não é um nome para argentinos, chilenos, uruguaios, paraguaios, e entre nós San Martín e Bolívar podem ser nomes de praças, mas não habitam o imaginário brasileiro. Nossos imperadores, então nem falar: em algum momento, no passado do século XIX, eles podiam ser algozes para nossos vizinhos.

Podemos, portanto, seguir as lições de Roland Barthes, para quem é mais importante falarmos dos monges sem a fé do que não falarmos deles. Isto é, devemos abstrair-nos do significado corrente do mito, “ler os Místicos sem Deus, ou Deus como significante” e não como significado absoluto. Barthes dá um exemplo: Bossuet pode muito bem ser lido sem o significado Deus… Pensamento soberanamente livre.

Reconheçamos, de início, que a palavra mito guarda uma multiplicidade de visões correntes e paradoxais: o mito pode ser interpretado como concepção cosmogônica, visão de mundo, ser mito de origem, representação ideológica, ilusão coletiva… É certo que faz parte da tradição isolar o mito no campo do ilusório do qual a filosofia e a história devem manter distância. O máximo que se concede ao mito é reduzi-lo à psicologia. Mas o principal problema dessa segregação, como adverte Ernest Cassirer na Filosofia das formas simbólicas, consiste na quebra da unidade sistemática das “expressões espirituais” da cultura, uma vez que o destino de cada uma delas está intimamente ligado ao das demais:

Se tivermos presente a gênese das formas fundamentais da cultura a partir da consciência mitológica — escreve Cassirer —, de imediato salta aos olhos que o mito tem uma significação em e para esse todo. Nenhuma destas formas tem, desde o início, um ser independente e uma configuração própria claramente diferenciada; cada uma se nos apresenta revestida e envolta em alguma das figuras mitológicas.[3]

Qualquer que seja seu estatuto, o mito é, pois, expressão de uma representação fundamental que constitui uma via de acesso privilegiado ao conhecimento. É assim que pensa certa tendência da etno-história e assim também se expressa o trabalho dos antropólogos que vêem nos mitos não um aspecto particular da cultura, nem mesmo uma representação ilusória ou irracional da realidade, pensada sempre como o inverso, “o outro do discurso verdadeiro, do logos”, mas “um jogo de correspondências simbólicas”. A relação entre mito e pensamento tem, pois, história. Em seu ensaio Uma mitologia sem ilusão, Marcel Detienne observa que o idealismo especulativo soube reconhecer na mitologia “uma orientação originária do Espírito, um processo necessário da consciência, estranha a qualquer invenção: era preciso reconciliar o monoteísmo da Razão e o politeísmo da imaginação em uma mitologia racional”. À teogonia do Absoluto construída por Schelling — conclui Detienne —, a filosofia crítica de Cassirer “opõe, respeitosamente, a necessidade de partir do ‘dado’, dos fatos empiricamente verificados da consciência cultural, isto é, dos materiais e das informações arquivadas pela mitologia comparada e pela história das religiões desde o meio do século XIX”.[4] Enfim, para Cassirer, a consciência mítica pode ser reconhecida como conhecimento autônomo, “um modo particular de formação espiritual […] um pensamento soberano com suas categorias de tempo e espaço”.[5] Como nos lembra Jean-Pierre Vernant em Mito e pensamento entre os gregos, a passagem do pensamento mítico à razão ainda é o grande tema dos helenistas. No caso da Grécia antiga, diz Vernant,

[…] a evolução intelectual que vai de Hesíodo a Aristóteles pareceu-nos seguir, no essencial, duas orientações: em primeiro lugar, estabelece-se uma distinção clara entre o mundo da natureza, o mundo humano, o mundo das forças sagradas, sempre mais ou menos mescladas ou aproximadas pela imaginação mítica, que às vezes confunde estes diversos domínios, às vezes opera por deslize de um plano a um outro, às vezes estabelece entre todos os setores do real um jogo de correspondências sistemáticas. Em segundo lugar, o pensamento “racional” tende a eliminar estas noções polares e ambivalentes que representam no mito um papel importante; ele renuncia a utilizar as associações por contraste, a acasalar e unir os opostos, a progredir por reviramentos sucessivos; em nome de um ideal de não-contradição e de univocidade, ele afasta todo o modo de raciocínio que procede do ambíguo ou do equívoco.[6]

Se mito e linguagem têm origem comum, ou melhor, se a pergunta sobre a origem da linguagem está indissoluvelmente ligada à origem do mito, como quer Cassirer, pode-se dizer que mito e linguagem são duas formas de uma única e mesma pulsão da forma simbólica. Ao aproximar os dois, Cassirer torna para nós o mito coisa familiar, como se, por exemplo, quase não pudéssemos nos expressar sem mitificar. O problema das origens da arte, a escrita, o direito e a ciência — escreve Cassirer — nos faz remontarmos na mesma medida a uma etapa na qual todos eles descansavam na unidade imediata e indiferenciada da consciência mítica. É essa a visão do poeta e ensaísta Paul Valéry: “sonhem que amanhã é um mito, que o universo é também um; que o número, que o amor, que o real como infinito, que a justiça, o povo, a poesia […] a própria terra são mitos”. Enfim, para Valéry, os mitos são as almas de nossas ações e nossos amores. “Só podemos agir — diz ele — movendo-nos em direção a um fantasma. Só podemos amar aquilo que criamos.”[7] Essas fantasias errantes, mal-entendidos amorosos e políticos, pedem às ciências e às artes experiência, precisão, duração, consistência. É assim que podemos entender as análises do filósofo Alain, para quem os mitos são ideias em estado nascente. Tomemos o trabalho de Lévi-Strauss, que transforma mitos em fina reflexão política: ao comparar, por exemplo, mitos da América do Norte, do Peru e do Brasil, Lévi-Strauss observa uma constante do pensamento ameríndio que consiste na busca permanente da oposição entre os termos que eles concebem. Se o mito de Castor e Polux, gêmeos indo-europeus, recusa a diferença e procura sempre o igual, ou melhor, “interessara-se muito pouco pela teologia diferencial”, o dos gêmeos ameríndios, “como se fosse pressionado por uma necessidade metafísica”, busca o diferente: o que interessa à história dos gêmeos ameríndios é desvelar sempre a idéia da diferença e não a igualdade entre eles. Assim, como lemos na apresentação do livro Histoire de Lynx, de Lévi-Strauss,

[…] natureza e sociedade estão em perpétuo desequilíbrio interno: o mesmo engendra sempre o outro, e o bom funcionamento do universo depende disso. No pensamento dos ameríndios, existência implicava a dos não-índios. Muito antes da descoberta do Novo Mundo, o lugar dos Brancos estava marcado no seu sistema. A partir daí, eles estavam preparados para acolhê-los.[8]

É certo que muitos mitos nasceram com a própria conquista da América: a busca das Amazonas, a Atlântica, o Eldorado — talvez o mais conhecido deles: a história de um chefe índio do Peru que mergulhou num lago depois de ter sido untado ritualmente com pó de ouro (índio El Dorado). Como observa o historiador Jacques Lafaye em A literatura e a vida intelectual na América espanhola colonial, esse mito tornou-se a “expressão perfeita do delírio europeu pelo ouro, e ‘Eldorado’ passou a designar um fabuloso império, uma meta imaginária dos conquistadores”.[9] Mais fortes ainda do ponto de vista dos interesses econômicos e políticos são para os europeus os mitos de origem dos índios. Os índios eram descendentes dos iberos, dos cartagineses, dos andaluzes ou dos judeus da diáspora? Todas as “convenientes” hipóteses traziam implicações legais, históricas, escatológicas e, portanto, políticas, como analisa Lafaye:

Se os índios eram, na verdade, descendentes dos ibéricos, a monarquia castelhana não tinha qualquer necessidade da doação papal contida nas bulas alexandrinas para reforçar seu direito às Índias (o que satisfazia muito bem os reis da Espanha). Se, por outro lado, os índios eram judeus, os inúmeros refugiados “portugueses” (o termo era sinônimo de judeu) no México e no Peru haviam encontrado seus irmãos esquecidos e podiam sonhar em vingar-se de uma monarquia que havia lançado contra eles os tribunais da Inquisição.[10]

Mais próximos de nós, outros mitos também merecem atenção: Bolívar, San Martín, Tupac Amaru, Eva Perón, Che Guevara, país-continente (Brasil), país-europeu (Argentina)… É certo que a potência e a fraqueza desses mitos nos dão a pensar, em particular, pelo absurdo e pela estranheza de alguns deles.

É esta a proposta das Oito visões, que reúne pensadores de alguns países latino-americanos. De início, elas nos mostram que, para discutir um destino comum, é preciso antes romper essa zona de sombra e silêncio que nos separa.

Notas

[1] Paul Valéry, “Orient et Occident”, em Regards sur le monde actuei, tomo II, Coleção Bibliothèque de la Pléiade (Paris: Gallimard, 1960), p. 1030.

[2] Paul Valéry, Regards sur le monde actuel, tomo I, cit., p. 1318.

[3] Ernest Cassirer, Filosofia de las formas simbólicas, tomo II (Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1971), pp. 10-11.

[4] Marcel Detienne, “Une mythologie sans illusion”, em Le temps de réflexion no 1. Paris: Gallimard, 1980, p. 29.

[5] Ernest Cassirer, Filosofia de ias formas simbólicas, cit.

[6] Jean-Pierre Vernant, “A evolução intelectual que vai de Hesíodo a Aristóteles”, em Mito e pensamento entre os gregos (São Paulo: Edusp, 1973), p. 5.

[7] Paul Valéry, Cahiers, Tome septième — 1918-1921 (Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1958), p. 627.

[8] Claude Lévi-Strauss, Histoire de Lynx (Paris: Plon, 1991), p. 17.

[9] Jacques Lafaye, “A literatura e a vida intelectual na América espanhola colonial”, em Leslie Bethell (org.) América Latina colonial, vol. II (São Paulo: Edusp), p. 602.

[10] Ibid., p. 603.