2012

Perto demais da redenção: depressão, flexibilidade e fim da ética do trabalho

por Vladimir Safatle

Resumo

O final do século XX confrontou-se com a consciência do esgotamento de certos processos até então hegemônicos, de socialização e de formação de disposições de conduta. Um desses fenômenos mais relevantes de esgotamento diz respeito ao que se convencionou chamar de “ética do trabalho”, com seus desdobramentos psíquicos.

A temática da centralidade da ética do trabalho na formação da subjetividade contemporânea remete aos clássicos estudos de Max Weber sobre a maneira com que a racionalidade do capitalismo dependia da criação de um sistema de disposição de conduta baseado em um modo de ser ligado à temática protestante do trabalho ascético. No entanto, tal perspectiva não deixa de tecer articulações com as problemáticas sobre o trabalho como esfera de reconhecimento social, tal como já encontramos em Hegel.

Sociólogos como Luc Boltanski e Eve Chiapello perceberam claramente como o capitalismo havia desenvolvido, principalmente a partir do impacto das revoltas de maio de 1968, um novo “ethos” distinto daquele descrito de maneira exemplar por Max Weber. Renovado, ele impôs profundas mutações no sentido do trabalho enquanto espaço de reconhecimento social. Valores anteriormente vistos como fonte de sofrimento no interior do universo do trabalho (como “flexibilização”, “risco”, “mobilidade”, “movimento”) apareceram como ideais de conduta.

Tudo isso em nome da recuperação de certa autenticidade que teria sido expulsa por um modelo burocratizado de trabalho produzido pelo mundo empresarial pré-1968.

Trata-se de apresentar tal mutação como um dos vetores de modificações profundas nos ideais contemporâneos do Eu. Diferente do que alguns teóricos defenderam nas últimas décadas, ela comprova a centralidade do trabalho como categoria de reconhecimento, mesmo num universo social onde o paradigma da produção deve ser revisto.

Para tanto, seria preciso, em primeiro lugar, retornar à constituição do trabalho como problema filosófico de determinação da subjetividade, sobretudo a partir da fenomenologia hegeliana. A partir daí, trata-se de analisar certas mutações na articulação entre expressão e trabalho, assim como na compreensão da noção de “trabalho alienado”. Isso permitirá interrogar, de maneira mais adequada, o sentido e as consequências psíquicas dessa categoria de trabalho trazida pelo novo “ethos” do capitalismo. Tal categoria talvez ajude a entender por que algumas das patologias mentais mais presentes nos diagnósticos contemporâneos são a depressão, a ansiedade e a fluida categoria de “pânico”. Nesse sentido, ela permite melhor entender a natureza social de nossas modalidades hegemônicas de sofrimento. Pois se, de fato, é possível articular estruturas de reconhecimento social e regimes de sofrimento psíquico, é preciso perguntar sobre como as mutações na esfera do trabalho impõem modos de sofrimento.


No interior da filosofia social moderna, o trabalho nunca foi apenas uma questão de produção de riqueza e de valor. Ao menos desde Hegel, ele é compreendido como uma estrutura fundamental de reconhecimento social. Sua posição privilegiada no interior das reflexões sobre reconhecimento deve, em larga medida, ser creditada a dois aspectos. Primeiro, o trabalho fornece um modelo fundamental de expressão subjetiva no interior de realidades sociais intersubjetivamente partilhadas, isto devido ao fato de ele ser (juntamente com o desejo e a linguagem) um dos eixos de constituição daquilo que podemos entender por “forma de vida”. Tal expressão realiza exigências maiores de autenticidade.

Segundo, ele aparece como modalidade privilegiada deformação em direção à autonomia. Não é por acaso que compreendemos a maturação psicológica como este momento em que, entre outras coisas, deixamos de brincar e começamos a trabalhar. Pois a maturação implica mutação no padrão de atividades subjetivas. Ou seja, a expectativa de realização conjunta de exigências de expressão formação é elemento definidor dos valores que mobilizamos na avaliação social do trabalho. Pois se trata de dar conta de uma dupla demanda presente na definição moderna de liberdade, dupla demanda referente à constituição da autonomia e à manifestação social da autenticidade. O fracasso em realizar tais expectativas, por sua vez, explica muito do espectro de sofrimentos que ainda encontramos na vida social. Por isso, analisar o destino atual desses dois aspectos normalmente vinculados ao trabalho continua sendo condição maior para compreendermos algumas mutações decisivas nos processos contemporâneos de reconhecimento.

TRABALHO E EXPRESSÃO

Partamos, para isso, da definição do trabalho como modelo de exteriorização (Entäusserung) do sujeito sob a forma de um objeto. Lembremos da famosa comparação de Karl Marx, certamente um dos pensadores modernos que melhor configuraram certa via ainda hegemônica na caracterização do trabalho:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão e uma abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. O resultado do processo de trabalho já estava inicialmente na representação (Vortellung) do trabalhador, já estava presente como ideia (ideell). O trabalhador não efetua simplesmente uma modificação na forma da realidade natural. Ele, ao mesmo tempo, realiza seu próprio objetivo, que ele conhece, que determina como uma lei a modalidade de sua ação e à qual ele deve subordinar (unterordner) sua vontade[1].

Como lembra Habermas, por meio de afirmações como esta, Marx eleva o trabalho não apenas a uma categoria antropológica fundamental, mas a uma categoria da teoria do conhecimento, já que a compreensão dos objetos como objetos trabalhados permite o desvelamento da natureza histórico-social das estruturas normativas da experiência. Marx partilha com Hegel a noção de que a modalidade de síntese responsável pela constituição dos objetos da experiência não seria produção de uma subjetividade transcendental, mas de uma subjetividade empírica às voltas com os modos de reprodução material da vida[2]. Esse é um dos pontos centrais de seu materialismo. Mas, ao menos no Marx da maturidade, tal ampliação da função da categoria de trabalho é paga com a necessidade de uma distinção estrita entre expressão subjetiva e comportamento natural. Habermas sintetiza bem tal distinção ao afirmar que “Marx não apreende a natureza sob a categoria de um outro sujeito, mas apreende o sujeito sob a categoria de uma outra natureza”[3].

A clivagem estrita entre expressão subjetiva e comportamento natural está claramente presente em nosso trecho de O capital. Primeiro, ele mostra como Marx acredita que o trabalho distingue-se de todas as outras atividades por ser exteriorização de uma ideia. Há, no entanto, que se perguntar sobre o que devemos entender por “ideia” nesse contexto. Pois se por “ideia” devemos entender simplesmente a transformação da natureza a partir de uma ação dirigida por uma finalidade previamente determinada, como o texto de Marx parece inicialmente nos fazer acreditar, sua conformação a uma forma presente como ideal, então será difícil dizer que abelhas e aranhas não têm ideias.

Todo organismo biológico tem a capacidade de se orientar e operar escolhas a partir de uma finalidade que serve, nesse contexto, como norma de avaliação. O filósofo da biologia Georges Canguilhem é preciso quanto a isso. Sendo a vida uma “atividade de oposição à inércia e à indiferença”[4], toda individualidade biológica diferencia e escolhe a partir de normas. Nesse sentido, toda individualidade biológica age a partir de uma “ideia” com forte potencial normativo e valorativo. Mas, se assim for, o que Marx poderia ter em mente ao dizer que apenas o homem constrói coisas na cabeça?

Se quisermos dar alguma realidade à afirmação de Marx, talvez devamos dizer que apenas o homem produz sob o fundo de liberdade, ou seja, só ele poderia não fazer o que faz, não construir a colmeia ou construir uma colmeia radicalmente diferente do que inicialmente planejado. Talvez por isso, Marx seja obrigado a definir a ideia trabalhada como uma lei que subordina a vontade. Quem diz “subordinação” diz imposição de uma norma a algo que lhe seria naturalmente refratário. A vontade humana precisa ser subordinada à ideia trabalhada porque ela pode, a todo momento, subvertê-la, desertá-la. Há uma característica negativa da vontade presente na capacidade que tenho de flertar com a indeterminação através da força abstrata da recusa[5]. Já a abelha não precisa subordinar sua vontade à lei que determina sua ação, porque ela não tem outra vontade possível, sua vontade está completamente adequada à lei.

Poderíamos tentar contra-argumentar dizendo que não estamos sendo muito generosos com as abelhas e as aranhas. Pois se, nesse caso, a vontade está completamente adequada à lei, então como explicar a multiplicidade de formas que os animais podem produzir? Principalmente, como explicar que, mesmo no mundo animal, os produtos se modificam, ainda que lentamente? Podemos dizer que todo organismo é capaz de errar, não apenas no sentido negativo de não fazer conforme a lei, mas também no sentido mais indeterminado de “entrar em uma errância”, já que a própria normatividade é “a capacidade biológica de questionar as normas usuais por ocasião de situações críticas”[6]. Nessa errância, ele pode produzir novas formas que, caso se mostrem mais eficazes do que as primeiras, não serão apenas anomalias, mas índice de desenvolvimento.

No entanto, notemos como não se trata aqui da possibilidade de afirmar a inadequação da vontade à lei. Trata-se da maneira como a natureza transforma as contingências em necessidade. A normatividade vital não é indiferente, não é inflexível às modificações contingentes externas. Mudanças no meio ambiente implicam modificação no padrão de comportamento e produção dos animais. Mas o que encontramos no trabalho humano é algo de outra ordem. Pois se trata de uma errância produzida por causas internas, pela relação entre a vontade e a lei de conduta.

Por isso, podemos dizer que a existência mesma do trabalho pressupõe a possibilidade humana, possibilidade esta que é exclusivamente humana, de fazer outra coisa ou de nada fazer. De certa forma, a expressão que se manifesta no interior do trabalho será sempre marcada por esse nada ou por essa alteridade. É o que podemos derivar de uma passagem importante do jovem Marx: “O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade com a qual ele coincide imediatamente”[7]. Há uma relação de identidade imediata pressuposta pela animalidade que se perderia a partir do momento em que o homem “faz de sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência”. Pois, assim, o homem, segundo o jovem Marx, poderia produzir mesmo livre das determinações próprias à necessidade natural.

Talvez isso explique, entre outras coisas, por que só os objetos trabalhados têm história. Eles têm história não apenas porque a técnica se desenvolve impondo modificações formais e utilitárias aos objetos. Não se trata, aqui, da história do desenvolvimento técnico. Eles têm história porque o homem age como quem procura fazer sempre outra coisa, modificar a lei que subordina sua vontade. Nesse sentido, os objetos humanos têm história por serem testemunhas da procura em afirmar algo que entendemos vagamente por “liberdade”.

Assim, se o trabalho é um modelo de expressão subjetiva, devemos lembrar que não se trata da simples passagem da interioridade pensada à exterioridade constituída. Ele é expressão da instabilidade da vontade, do estranhamento da vontade às formas. Tal instabilidade e estranhamento são elementos constitutivos fundamentais para a definição da noção moderna de liberdade e, principalmente, pelas exigências gerais de autenticidade. Podemos dizer que desde o momento inicial em que o trabalho foi visto como estrutura de reconhecimento social tal caracterização já estava posta.

Por exemplo, como já foi dito, vêm de Hegel as primeiras colocações sobre o trabalho como fonte de reconhecimento social. No entanto, é interessante lembrar como, em seus textos, o trabalho aparece não como a simples exteriorização de uma ideia, mas como modo de defesa contra a angústia. A consciência se angustia diante da possibilidade de não ter objetividade alguma, de não ter forma alguma que seja reconhecida socialmente. Por isso, ela trabalha. Na verdade, ela trabalha como quem se defende contra uma possibilidade de indeterminação que está sempre a assombrá-lo. No entanto, os objetos trabalhados sempre terão as marcas dessa sombra. Como Hegel dirá a respeito do trabalho, “a relação negativa para com o objeto torna-se a forma do mesmo e algo permanente”[8].

Ou seja, a impossibilidade de o ser humano encontrar um objeto que lhe seja natural, algo que seja a expressão natural de sua vontade, ganha a forma de um objeto trabalhado. Essa impossibilidade é o motor da criatividade inerente ao trabalho, pois faz parte de toda defesa absorver algo do medo contra o qual ela foi erigida.

Podemos, a partir disso, tentar complexificar nossa noção de trabalho alienado. Normalmente, entendemos por trabalho alienado aquela modalidade de atividade laboral na qual não me reconheço no que produzo, já que as decisões que direcionam a forma da produção foram tomadas por outro. Assim, trabalho como um outro, como se estivesse animado pelo desejo de um outro. Como dirá o jovem Marx:

Assim como na religião a autoatividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele; isto é como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é sua autoatividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo[9].

Mas podemos dizer também que o trabalho alienado é aquele no qual, como dizia Marx, “o resultado do processo de trabalho já estava inicialmente na imaginação do trabalhador, já existia como ideia”. Pois, nesse caso, a imaginação do trabalhador é apenas a faculdade humana da planificação, do esquematismo prévio. Esse trabalho já é o trabalho da fábrica, que só produz objetos que são exemplares intercambiáveis da ideia. Nesse trabalho, a expressão tem uma estrutura especular, já que o homem encontra, no objeto, apenas aquilo que ele próprio previamente projetou.

A esse respeito, devemos lembrar como o verdadeiro trabalho é aquele que, de certa forma, surpreende o trabalhador, que reconfigura sua intenção primeira. Há um topos muito presente no idealismo alemão que consiste em pensar a expressão subjetiva na dimensão do trabalho a partir do paradigma da produção estética. Ou seja, a produção estética forneceria o horizonte normativo de toda e qualquer atividade não alienada[10].

Esse topos pode ser recuperado se levarmos em conta algumas elaborações importantes sobre a produção estética na contemporaneidade.

Lembremos, por exemplo, de Theodor Adorno, para quem um objeto estético não era apenas a realização de um plano construtivo. Ele era também a desorganização de tal plano a partir da resistência dos materiais, ele era a cena no interior da qual o plano construtivo encontrava seu limite. Uma verdadeira obra de arte nunca é totalmente construída, nunca é a realização integral e sem falhas de seu plano:

A possibilidade de a arte não se transformar em um jogo gratuito ou. em uma decoração depende da medida de suas construções e montagens serem, ao mesmo tempo, desmontagens, integrando, ao desorganizá-los, os elementos da realidade que se associam livremente em algo diferente[11].

Pois a diferença entre a ordem reificada presente na realidade social e a instauração formal que toda verdadeira obra de arte é capaz de produzir está no fato de apenas a obra de arte reconhecer a tensão entre os princípios formais e o material que ela procura submeter. Nesse sentido, a tensão é o verdadeiro objeto da obra de arte. Em toda obra de arte, há um estranho amor pelas coisas que resistem à regra, ao princípio. Pois uma obra de arte totalmente construída, incapaz de levar ao paroxismo a tensão entre forma e material, seria a monstruosidade da simples exemplificação de um estilo. Como dirá Adorno: L’oeuvre entièrement construite, strictement objective, et, selon Adolf Loos, ennemie jurée de toute décoration, se changerait — du fait de son imitation des formes fonctionnelles — en quelque chose de purement décoratif”[12].

Essa é uma maneira importante de lembrar que, na produção estética, o sujeito encontra o fracasso da objetivação de sua intenção primeira. No entanto, esse fracasso é condição constitutiva para a própria realização da obra de arte. Pois tal fracasso é a astúcia de uma expressão que luta contra as formas da convenção social, expressão que procura recuperar algo da categoria de “autenticidade”.

TRABALHO E AUTOGOVERNO

Se a primeira característica do trabalho como forma de reconhecimento social é a peculiaridade de seu modo de expressão, a segunda diz respeito ao trabalho como processo de formação subjetiva. Se o trabalho tem essa dimensão formadora é porque ele é uma das versões mais bem-acabadas de certo processo de autogoverno. Só aqueles capazes de se autogovernar são capazes de trabalhar. Pois, como dizia Marx, através do trabalho aprendemos a impor uma lei à vontade, lei que deve ser reconhecida por mim como expressão da minha própria vontade. Essa vontade que submete outras vontades e que aparece assim, para o sujeito, como um dever que ele mesmo põe para si, dever que lhe permite relativizar as exigências imediatas de autossatisfação, é um fator decisivo na constituição da noção moderna de autonomia. Por isso, só aqueles capazes de trabalhar são autônomos; não apenas no sentido material de serem capazes de prover seu próprio sustento, mas no sentido moral de serem capazes de impor a si mesmos uma lei de conduta que é a expressão de sua própria vontade. E se lembrarmos da ideia de Rousseau[13], para quem a verdadeira liberdade é a capacidade de dar a si mesmo sua própria lei, ser legislador de si mesmo, então seremos obrigados a dizer que o trabalho é o exercício mais importante para a liberdade.

No entanto, seríamos ingênuos se não lembrássemos que há algo de profundamente disciplinar nessa modalidade de autogoverno que é o trabalho. Trabalhar implica submeter a vontade a uma hierarquia de prioridades, submeter o tempo a um padrão de cálculo, limitar a atenção, adiar certas exigências de satisfação. Mas só posso suportar tal submissão porque compreendo o trabalho como a resposta a um “chamado” que me dá forças para perseverar na vontade, para abrir mão do gozo imediato e controlar meus desejos. Tal chamado me ensina que, quando a carne fala mais alto, devo “tomar banhos frios e trabalhar na minha vocação” de maneira compulsiva. Nesse sentido, trabalhamos não apenas para sermos reconhecidos enquanto sujeitos dotados de certas habilidades importantes para a vida social. Trabalhamos para sermos reconhecidos por um Outro que habita nossas fantasias, que nos “chama” para assumir um tipo de relação aos desejos e à vontade que funda nossa própria personalidade.

Dessa forma, é possível dizer que trabalhar significa organizar sua identidade psicológica a partir de uma “vocação” que é fundamento para a definição da coerência da personalidade e da unidade de conduta. Pois a pressão da internalização das disposições disciplinares que me permitem trabalhar e evitar a dispersão da vontade sustenta-se, em larga medida, na crença de que tais disposições são elementos fundamentais para a formação subjetiva de uma identidade psicológica. Isso pode nos explicar por que, ainda hoje, é possível traçar, por exemplo, sólidas correlações entre longos períodos de desemprego e transtornos no sentimento de autoidentidade que podem, no limite, levar à experiência de “morte social”[14].

Essa correlação entre trabalho e processo de formação da identidade é a base do clássico estudo de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo. Nele, Weber procurou mostrar como a modalidade hegemônica de trabalho exigida pelo processo de desenvolvimento do capitalismo assentava-se na constituição de noções de individualidade e identidade psicológica cuja principal característica era um conceito de autonomia tributária da teologia protestante.

Relembremos alguns aspectos fundamentais da hipótese weberiana. Ao insistir em que a racionalidade econômica dependia fundamentalmente da disposição dos sujeitos em adotar certos tipos de conduta, Weber insistia que nunca haveria capitalismo sem a internalização psíquica de uma ética protestante do trabalho e da convicção, estranha ao cálculo utilitarista e cuja gênese deve ser procurada no calvinismo. Ética esta que Weber encontrou no ethos protestante da acumulação de capital e do afastamento de todo gozo espontâneo da vida. Pois o trabalho que marcava o capitalismo como sociedade de produção era um trabalho que não visava exatamente o gozo do serviço dos bens, mas a acumulação obsessiva daqueles que “não retiram nada de sua riqueza para si mesmo, a não ser a sensação irracional de haver ‘cumprido’ devidamente a sua tarefa[15]. Weber chega a falar em uma “sanção psicológica”[16] produzida pela pressão ética e satisfeita pela realização de um trabalho como fim em si, ascético e marcado pela renúncia ao gozo. Um trabalho no interior do qual a profissão aparece como dever que se cumpre, como resposta que se dá a um “chamado” tão claramente presente na própria ideia de “vocação”[17].

Tal chamado, por sua vez, funciona como fundamento para a internalização de uma Lei de conduta que permite sustentar a vontade para além do cálculo utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer[18]. A vontade que sustenta tal trabalho difere radicalmente do desejo à procura da satisfação sensível do prazer; ou seja, enquanto vontade para além do princípio do prazer, ela é peça importante para o desenvolvimento da noção de autonomia. Desenvolvimento que é pago mediante a perpetuação de uma clivagem psicológica.

Essa concepção clivada da natureza humana faz com que o indivíduo moderno nasça como espaço de um conflito constante entre vontade autônoma, que funda o espaço da individualidade e da unidade da personalidade, e desejos ligados aos impulsos “irracionais”, à “dependência” com relação à animalidade. Não seria difícil novamente remontar tal concepção clivada da natureza humana à teologia. A temática da afirmação dos “motivos constantes da moralidade” contra os “afetos”, isto a fim de educar o sujeito como uma personalidade, era elemento fundamental da ascese puritana. Ela permitiu o desenvolvimento de um conceito de autonomia compreendido como a possibilidade de se agir de outra forma daquela como se age, já que posso, a todo momento, apoiar-me em meus princípios morais para me contrapor às tendências internas aos afetos. O resultado, no entanto, não poderá ser muito diferente do que dizia um poema popular da literatura puritana, “Automachia” (1607), escrito por George Goodwin: “I sing my SELF; my Civil Warrs within/ The Victories I howrely lose and win/ The dayly Duel, the continuall Stride/ The Warr that ends not, till I end my life/ And yet, not Mine alone, not onely Mine/ But every-One’s that under th’ honor’d Signe/ Of Christ his Standard, shal his Name enroule / With holy Vowes of Body and of Soul”.

Tal concepção não esperou os puritanos para aparecer. Ela pode ser facilmente identificada nos exercícios espirituais de ascetismo próprio aos monges da Idade Média. No entanto, a novidade aqui é que tal guerra civil interna não levava a alguma forma radical de rejeição religiosa do mundo, de uma figura possível daquilo que o antropólogo Louis Dumont chama de “indivíduo fora do mundo”[19]. Na verdade, tínhamos aqui uma forma de estar no mundo em que os ideais ascéticos podiam guiar a vida profissional mundana através de um trabalho que será visto como vocação ascética.

No entanto, devemos lembrar aqui como Sigmund Freud foi, à sua maneira, aquele que forneceu o aparato conceitual para compreendermos tal concepção de trabalho como matriz de sofrimento psíquico. Freud raramente discute de modo direto problemas ligados ao mundo do trabalho. No entanto, ele insiste que toda internalização de sistemas de regras, normas e leis de conduta com forte apelo moral é feita por meio de dinâmicas repressivas em relação à satisfação pulsional[20](e não há por que temer o uso dessa palavra, mesmo após as críticas feitas por Foucault à chamada “hipótese repressiva”[21]). Isso vale também para a formação da estrutura psíquica necessária para entrar no mundo do trabalho.

Sabemos como Freud é sensível às ambivalências desse processo repressivo que constitui uma “instância moral de observação” de si nomeada pelo psicanalista de “supereu”. Para sustentar sua eficácia, tal repressão não pode ser simplesmente vivenciada como coerção. Nenhuma forma de adesão sustenta-se na simples coerção. Freud nos lembra como há sempre uma demanda de amor e reconhecimento, direcionada a um Outro fantasmático, a sustentar minha adesão muda a tais dinâmicas repressivas. Essa demanda de reconhecimento se manifesta como sentimento patológico de culpa em relação a toda satisfação libidinal, já que se sentir culpado é uma maneira peculiar de ser reconhecido[22]. Tal sentimento patológico de culpa é um dispositivo importante na compreensão do modo de conformação da individualidade a um regime de trabalho tão bem descrito por Weber ao tematizar a ética protestante. Através da culpa, afasto minha atividade daquilo que Weber chamou de “gozo espontâneo da vida”, suporto as frustrações às minhas exigências de satisfação pulsional e conformo meu trabalho a uma espécie de ritual obsessivo-compulsivo de autocontrole que só pode levar à formação de uma personalidade rígida e clivada.

Tal personalidade marcada pela rigidez e estereotipia fornecerá a correlação psíquica necessária a um mundo do trabalho dominado por empresas e organizações que teóricos da administração descrevem como submetidas a uma concepção mecanicista[23]. Trata-se de um modelo organizacional que imperou na primeira metade do século XX e que alcançou seu apogeu com as teorias tayloristas e fordistas. Nessa concepção, na qual as organizações aparecem preferencialmente sob a metáfora da máquina, o trabalho é submetido à “burocratização e rotinização da vida em geral”[24]. Tal trabalho exige uma individualidade que se conforme à representação estática de funções ligadas à vocação profissional, assim como à divisão estrita entre planejamento e realização do trabalho. O sentimento de reificação produzido por tal dinâmica do trabalho é compensado pelos chamados à famosa “sensação irracional de ter cumprido com seu dever”. Não foi por acaso que boa parte das primeiras críticas ao modelo taylorista e fordista de gestão veio de psicólogos sociais influenciados pelas teorias freudianas[25]. Eles eram sensíveis ao preço psicológico que tal noção de trabalho exigia.

Na verdade, podemos, por meio de Freud, defender que a autonomia produzida por esse modelo de atividade laboral era indissociável de um bloqueio nas expectativas expressivas do trabalho. A possibilidade de expressão de si é bloqueada não apenas porque o trabalhador está submetido a uma divisão social no interior da qual ele realiza o que não planeja, no interior da qual sua vontade está submetida à vontade de um outro. A expressão de si está bloqueada porque sua atividade está submetida a princípios psicológicos que perpetuam uma personalidade clivada, rígida, fortemente determinada e atormentada pelo controle das pulsões.

Notemos como tudo se passa como se houvesse uma polaridade no interior dos processos de reconhecimento próprios ao trabalho. Por um lado, o trabalho é uma maneira de nos confrontarmos com a indetermimação, fazer algo que não sabemos o que será. Nessa dimensão, o trabalho deve ser capaz de expressar o que é da ordem da autenticidade. Pois a autenticidade não estaria ligada aqui a alguma forma essencial de atributos que procuram se expressar, mas a uma certa indeterminação que habita todo sujeito e que pode se transformar em motor para sua criatividade. Por outro lado, ele é um modo de controle de si que se apoia na constituição de um Outro fantasmático para o qual meu trabalho se dirige e que parece ser capaz de me observar. Tal dimensão do trabalho está ligada à constituição da autonomia como capacidade de autogoverno.

Como vemos, autenticidade a autonomia para fornecer dois polos para a estrutura normativa do trabalho como reconhecimento. O polo da autenticidade pode aproximar o trabalho do jogo, enquanto o polo da autonomia pode aproximá-lo do sintoma obsessivo.

A RECONFIGURAÇÃO PSÍQUICA DO MUNDO DO TRABALHO

No entanto, é hoje lugar-comum afirmar que tal espírito weberiano do capitalismo, com suas matrizes de sofrimento social, não é mais hegemônico. Desde, ao menos, o final dos anos 1960, nota-se uma sensível mudança no padrão do universo retórico do mundo do trabalho. Alguns compreenderam tal mudança como a prova do fim da sociedade do trabalho[26]. No entanto, talvez seria mais correto ver, nela, a maneira com que as sociedades capitalistas avançadas procuraram absorver exigências de reconhecimento presentes no horizonte normativo do trabalho social.

Um dos estudos mais importantes a esse respeito foi desenvolvido pelos sociólogos Luc Boltanski e Eve Chiapello. Os dois afirmam que essa natureza obsessivo-compulsiva do trabalho, tematizada por Weber, tende a desaparecer nas sociedades capitalistas contemporâneas graças ao impacto dos movimentos de contestação a nossas formas hegemônicas de vida, como os que vimos em maio de 1968. A partir de então, “o sistema capitalista se revelou infinitamente mais robusto do que seus detratores haviam previsto, Marx em primeiro lugar, mas porque ele encontrou em seus próprios críticos a via de sua sobrevivência (…). Uma capacidade de sobrevivência por endogeneização de uma parte da crítica que contribuiu para desarmar as forças anticapitalistas”[27].

Sabemos como uma das vertentes da crítica social que se desenvolve a partir de maio de 1968 visava o trabalho e sua incapacidade de dar conta das exigências de autenticidade. Visto como o espaço da rigidez do tempo controlado, dos horários impostos, da alienação taylorista e da estereotipia de empresas fortemente hierarquizadas, o trabalho fora fortemente desvalorizado pelos jovens de 1968. Vários estudos do início dos anos 1970 demonstram consciência dos riscos de uma profunda desmotivação dos jovens em relação aos valores presentes no mundo do trabalho, preferindo atividades flexíveis, mesmo que menos renumeradas. Um estudo publicado na França em 1975, pelo Centro de Estudos sobre o Emprego, mostrava como “o fato de os jovens não estarem inseridos em um trabalho e em um trabalho regular não era imputado à raridade dos empregos mas a uma maneira voluntária de evitar o trabalho assalariado para procurar um ‘outro modo de vida’, condições de trabalho que oferecessem maior flexibilidade nos horários e ritmos, ‘combinações’ transitórias que permitiam manter um comportamento desligado, distante em relação ao trabalho, o que lhes permitia serem autônomos, livres, não submetidos à autoridade de um chefe”[28].

O resultado de tal crítica teria sido a reconfiguração do núcleo ideológico da sociedade capitalista e a consequente modificação do ethos do trabalho, exemplo maior dessa “capacidade de sobrevivência do capitalismo por endogeneização da crítica”. Valores como segurança, estabilidade, respeito à hierarquia e à especialização, valores estes que o mundo empresarial trouxe de organizações como o exército e que compunham o núcleo de empresas paradigmáticas dos anos 1950 e 1960, como a IBM, deram lugar a um conjunto de valores vindos diretamente do universo de crítica do trabalho. Capacidade de enfrentar riscos, flexibilização, maleabilidade, desterritorialização resultante de processos infinitos de reengenharia: todos esses valores compõem atualmente um novo núcleo ideológico.

Se ainda na década de 1970 o profissional modelo era aquele que passava a vida toda trabalhando na mesma empresa, aprimorando sua especialidade e suas habilidades, hoje ele seria visto como alguém acomodado, sem capacidade de se reinventar e, por isso, com baixa capacidade de inovação e criatividade. O managermodelo é atualmente descrito de outra forma: “O manager é o homem das redes. Ele tem por qualidade primeira sua mobilidade, sua capacidade de se deslocar sem se deixar prender por fronteiras sejam geográficas, sejam derivadas de ligações profissionais ou culturais por diferenças hierárquicas, de estatuto, de papel, de origem, de grupo, assim como sua capacidade de estabelecer um contato pessoal com outros atores, geralmente muito distantes socialmente ou espacialmente”[29].

Esse é um exemplo do esgotamento da ética do trabalho derivada do protestantismo e do advento de um modelo de ética do trabalho derivado da produção estética. Pois essa desterritorialização própria ao manager não deixa de mobilizar valores próprios àqueles que não tinham lugar fixo no interior da estratificação social, ou seja, a boemia artista[30]. Daí por que Boltanski e Chiapello falam da absorção de uma “critica artista” pelo capitalismo.

Nós encontramos algo similar a essa absorção no conceito de “trabalho imaterial” desenvolvido pelo sociólogo André Gorz para dar conta da configuração atual do mundo do trabalho. Ao menos segundo Gorz, estaríamos atualmente em uma época na qual o trabalho não deveria mais ser compreendido como a produção de objetos previamente definidos, continua de fluxos de informação vindos da vida concreta, da interação comunicacional que permitira uma produção cada vez mais customizada e maleável às mudanças. Por isso:

O trabalho não é mais mensurado por normas e padrões preestabelecidos. Não podemos mais definir tarefas objetivamente. A performance não é mais definida em relação a tarefas, mas implica diretamente pessoas. […] Da mesma forma que as tarefas a serem realizadas não podem ser formalizadas, elas não podem ser prescritas […]. Como é impossível medir performances individuais e prescrever procedimentos para se chegar a um resultado particular, managers devem recorrer à “gestão por objetivos”[31].

Nessa circunstância na qual a produção não seria mais vista como produção de objetos, mas como produção do imaterial, ou seja, de serviços, “experiências”, valores e “acesso”, os trabalhadores necessitariam de “capacidades expressivas e cooperativas que não podem ser ensinadas, da vivacidade no desenvolvimento de um conhecimento que é parte da cultura da vida cotidiana”[32]. Esta é uma maneira de afirmar que estaríamos diante de uma atividade laboral que teria se reconciliado com a vida, ou seja, com a capacidade da vida de produzir a si mesma. As empresas apenas canalizariam tal capacidade. O horizonte perfeito aconteceria, então, quando o próprio trabalho assalariado desaparecesse para que os trabalhadores se transformassem em empresas. “Pessoas devem se transformar em empresas de si mesmos”[33], empresas que se associam a outras empresas em dinâmicas flexíveis administradas por organizações que, a partir de então, teriam apenas funcionários terceirizados.

Gorz sabe como essa visão de paraíso neoliberal da desregulamentação absoluta ignora o impacto dos sentimentos de insegurança, descontinuidade do trabalho e precarização advinda de períodos de inatividade, de onde se segue sua ideia de exigir que o Estado ofereça algo como uma renda minima independente de todo e qualquer emprego. No entanto, isso não muda um ponto fundamental na proposta de reconciliação entre as exigências de reconhecimento e o trabalho no estágio atual do desenvolvimento das sociedades de capitalismo avançado. Note-se que não se trata aqui de discutir até que ponto a dimensão efetiva do trabalho pode ser descrita da forma proposta por Gorz. Mais importante do que isso é compreender como valores e processos como os descritos por Gorz se transformaram no horizonte regulador que guia as expectativas daqueles que entram atualmente no mundo do trabalho. Mesmo que a degradação das condições de trabalho e a precarização sejam realidades bastante concretas, não é desprovido de interesse lembrar como o núcleo ideológico do mundo do trabalho se reconfigurou a partir de valores que, há até bem pouco tempo, serviam de esteio para a crítica do trabalho e para o trabalho estético.

PATOLOGIAS

Certamente, isso cria novos problemas e patologias no que diz respeito aos processos de reconhecimento mediados pelo trabalho. Pois, se admitirmos a correção da ideia de modificação no paradigma de avaliação das exigências de reconhecimento no universo do trabalho nas sociedades ocidentais, então deveremos atentar para as mutações no tipo de sofrimento social que tal universo produz.

Vimos como esse paradigma assentado na ética protestante do trabalho ascético, com sua formação em direção à autonomia, era inseparável do desenvolvimento de um sentimento neurótico de culpabilidade e de uma dinâmica de organização psíquica assentada na clivagem, na repressão e no recalque. Um dos pontos principais desse processo estava claramente tematizado por Freud através de sua teoria do supereu. Não se tratava simplesmente de dizer que o fracasso nas dinâmicas de reconhecimento através do trabalho provocaria o sentimento neurótico de culpabilidade, motor para a estereotipia, rigidez e estaticidade de papéis que definiam as identidades no interior do mundo do trabalho taylorista. Na verdade, a ideia consistia em afirmar que não era possível ser bem-sucedido em processos de reconhecimento social através do trabalho sem se confrontar com esse “saldo patológico” que Freud descreveu tão bem graças à sua teoria do supereu.

Da mesma forma, a reconfiguração do universo do trabalho por meio dos imperativos de flexibilização e desempenho não são sem produzir um saldo patológico inexorável[34]. Já deve estar claro como a reconfiguração do mundo do trabalho descrita neste artigo inspirou-se na recuperação de exigências de autenticidade esquecidas no interior das sociedades capitalistas avançadas. Tal realização de exigências de autenticidade foi capaz de aproximar as dinâmicas do trabalho daquilo que “não é previamente mensurado”, “não se submete integralmente ao plano”, mas que absorve o risco, a instabilidade e a indeterminação.

Assim, se anteriormente o sentimento de alienação no trabalho estava vinculado à perda da autenticidade na esfera da ação, com as temáticas clássicas da estereotipia inflexível das normatividades e da perda da individualidade, atualmente deparamos com a crença de que cabe apenas ao indivíduo a responsabilidade pelo fracasso da tentativa de autoafirmação de sua individualidade no interior do trabalho. Pois o próprio discurso social é constituído a partir da incitação à autoexpressão de si. O que nos faz acreditar que, se tal autoexpressão não se realizou, foi por culpa única e exclusiva da covardia moral do indivíduo incapaz de afirmar suas múltiplas possibilidades no interior da “sociedade de risco”.

Como o universo do trabalho absorveu os próprios valores mobilizados na crítica da alienação, o sentimento de sofrimento em relação ao trabalho ficou sem enunciação normativa. Parece não haver outras palavras para descrever aquilo que o trabalho não realiza. Se o trabalho parece se aproximar do jogo e da expressão de si, o que dizer da recusa e do cansaço em expressar a si mesmo? Nesse sentido, o sofrimento que daí resulta tende a aparecer majoritariamente como sentimento depressivo de esvaziamento[35]. Isto talvez explique por que a depressão foi elevada a categoria maior de descrição do sofrimento psíquico na atualidade.

Trata-se aqui de afirmar que a remobilização normativa que o novo universo do trabalho provocou se expressa, dentre outras formas, através da elevação da depressão à condição de categoria clínica central na descrição do sofrimento psíquico.

A depressão descreve muito bem essa situação na qual me volto contra as escolhas de meu desejo, contra os modelos de minha forma de vida sem, no entanto, ser capaz de articular normatividades alternativas. Isso explica, como viu claramente Alain Ehrenberg, por que a depressão aparece como problema central no momento em que o modelo disciplinar de gestão de condutas cede lugar a normas que incitam cada um à iniciativa pessoal, à obrigação de ser si mesmo[36]. Pois, contrariamente ao modelo freudiano das neuroses, onde o sofrimento psíquico gira em torno das consequências de internalização de uma lei que socializa o desejo organizando a conduta a partir da polaridade permitido/proibido, na depressão tal socialização organizaria a conduta a partir de uma polaridade muito mais complexa e flexível, a saber, a polaridade possível/impossível[37].

Assim, o indivíduo é confrontado a uma patologia da insuficiência e da disfuncionalidade da ação, e não mais a uma doença da proibição e da lei. Se a neurose é um drama da culpabilidade, drama ligado ao conflito perpétuo entre duas normas de vida, a depressão aparece como tragédia da insuficiência, da inibição, pois é o esvaziamento de toda norma, uma peculiar doença da anomia. O que não deve nos surpreender, já que “os modos de regulação e dominação da força de trabalho apoiam-se menos sobre a obediência mecânica do que sobre a iniciativa: responsabilidade, capacidade de evoluir, formar projetos, motivação, flexibilidade etc., desenham uma nova liturgia de gestão. O controle imposto ao operário não é mais aquele do homem-máquina do trabalho repetitivo, mas o do empreendedor do trabalho flexível”[38]. Esse empreendedor deve se adaptar em permanência a um mundo que perdeu exatamente sua permanência, mundo feito de fluxos e de provisoriedade. Tais transformações dão a impressão de que os indivíduos devem, a todo momento, tudo decidir.

A tensão em relação a esse modelo de sociabilização aparece, preferencialmente, como implosão depressiva.

Não deixa de ser sintomático que, no momento em que a vida social coloca em circulação o discurso do fim da era dos conflitos, como se não pudéssemos mais ler os impasses de nossa forma de vida a partir da dinâmica de conflitos sociais entre, por exemplo, trabalho/ expressão de si, o universo da saúde mental depara com uma patologia resultante da impossibilidade da vida psíquica em agenciar contradições sob a forma do conflito.

Certamente, esse quadro vale também para transtornos de personalidade extremamente disseminados em nossas sociedades ocidentais, como o transtorno de personalidade borderline: uma espécie de versão dos impasses depressivos onde a passividade depressiva inverte-se em atividade desesperada que, através do flerte contínuo com o risco, visa aproximar-se do impossível.[39] Atividade, ressalta Kernberg, marcada pela predominância de mecanismos primitivos de defesa do Eu, de falta de tolerância à ansiedade, falta de controle dos impulsos e falta de canal de desenvolvimento sublimatório. Nos dois casos, temos patologias que podemos chamar de narcísicas, com seus quadros clássicos de sentimento de esvaziamento, de sensibilidade extrema à perda e de confusão identitária. Como bem lembra Ehrenberg: “O narcisismo não é este amor de si que aparece como um dos sustentáculos do gozo de viver. Ele é o fato de ser prisioneiro de uma imagem tão ideal de si que ela torna a pessoa impotente, paralisa-a a ponto de ela ter necessidade permanente de ser reassegurada por outro”[40]. Boa parte dos estudos de Jacques Lacan em seus primeiros seminários giram em torno desse problema[41].

Assim, se quisermos estar atentos aos impasses de reconhecimento no interior de nossas sociedades ocidentais, devemos continuar a nos voltar para o mundo do trabalho e suas novas configurações. Pois esta é uma dimensão fundamental para compreendermos por que sofremos da maneira que sofremos.

Notas

  1. Karl Marx, O capital — vol I, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 211. 
  2. Ver, a esse respeito, Jürgen Habermas, Connaissance et intérêt, Paris: Gallimard, 1976, p. 60. 
  3. Idem, ibidem, p. 64. 
  4. Georges Canguilhem, O normal e o patológico, Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 208. 
  5. Sobre a natureza negativa da vontade, ver Vladimir Saflate, Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo: Martins Fontes, 2012. 
  6. Georges Canguilhem, op. cit., p. 259. 
  7. Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Boitempo, 2004, P. 84. 
  8. G. W E Hegel, Fenomenologia do espírito, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 132. 
  9. Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo: Boitempo, 2004, P. 83. 
  10. Essa temática encontra uma de suas principais fontes em Friedrich Schiller, A educação estética do homem. Ela pode ser encontrada no jovem Marx e em vários autores da tradição marxista, como Herbert Marcuse (ver, por exemplo, o capítulo ‘A dimensão estética” em Herbert Marcuse, Eros e civilização, Rio de Janeiro: LTC, 1999, pp. 156-174). Habermas sintetizou bem tal temática ao afirmar que “a produtividade do gênio artístico é o protótipo para uma atividade em que autonomia e autorrealização se unificam de tal modo que a objetivação das forças humanas essenciais perde o caráter coercitivo em face da natureza tanto externa como interna”. Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 112. 
  11. Adorno, Théorie esthétique, p. 324. 
  12. Idem, ibidem, p. 91. 
  13. Ver Jean-Jacques Rousseau, Le contrat social, Paris: Gallimard, 2000. 
  14. Ver, por exemplo, o estudo de Kasl, Rodrigues e Lasch, “The impact of unemployment on health and well-being”, in Bruce Dohremwend, Adversity, stress and psychopathology, Nova York: Oxford University Press, 1999. Para um caso brasileiro, ver Suzana Tolfo et al., “Trabalho, desemprego, identidade: estudo de caso de uma empresa privatizada do setor de telecomunicações”, revista Katálisis, vol. 7, n. 2, 2004, Florianópolis. 
  15. Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 56. 
  16. Idem,,ibidem, p. 102. 
  17. O que explica o aparecimento da “valorização do cumprimento do dever no seio das profissões mundanas como o mais excelso conteúdo que a autorrealização moral é capaz de assumir” (Max Weber, op. cit., p. 72). 
  18. Como dirá Weber, op. cit., p. 42: “O summum bonum desta ‘ética’, a obtenção de mais e mais dinheiro, combinada com o estrito afastamento do todo gozo espontâneo da vida é, acima de tudo, completamente destituída de qualquer caráter eudemonista ou mesmo hedonista”. 
  19. Ver Louis Dumont, Essays sur l’individualisme, Paris: Seuil, 1983. 
  20. Ver especialmente Sigmund Freud, O Eu e o Id, São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 
  21. Ver Michel Foucault, Histoire de la sexualité — vol. I, Paris: Gallimard, 1978. 
  22. Descrevi esse processo de maneira mais detalhada em Vladimir Safatle, Cinismo e falência da crítica, São Paulo: Boitempo, 2008 e Won, “Freud como teórico da modernidade bloqueada”, revista A Peste, n. 2, São Paulo, 2010. 
  23. Ver a esse respeito Gareth Morgan, Imagens da organização, São Paulo: Atlas, 1995. 
  24. Idem, ibidem, p. 25. 
  25. Lembremos, por exemplo, de Elton Mayo e de seus famosos experimentos de Hawthorne (1924-1927): “Em lugar da linguagem moral vitoriana do ‘caráter’, Mayo, que fizera sua formação como psicanalista junguiano, introduziu a imaginação psicanalítica no local de trabalho. A intervenção de Mayo na empresa teve um caráter rigorosamente terapêutico”. (Eva Illouz, O amor nos tempos do capitalismo, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 23). 
  26. Ver, por exemplo, J. Matthes, Krise der Arbeitsgesellschaft, Frankfurt: Bamberg, 1983. Para uma crítica a tal tese, ver Ricardo Antunes, Adeus ao trabalho? Sobre as metamorfoses e centralidade do mundo do trabalho, São Paulo: Cortez, 1995. 
  27. Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitalisme, Paris: Gallimard, 1999, p. 69. 
  28. Idem, ibidem, p. 252. 
  29. Ideas, ibident, p. 123. 
  30. Ver a esse respeito os ensaios de Paulo Arantes sobre a boemia artista na França pré-revolucionária (Paulo Arantes, Ressentimento da dialética, São Paulo: Paz e Terra, 1996). 
  31. André Gorz, The immaterial, Londres: Seagull, 2010p. 8. 
  32. Idem, ibidem, p. 9. 
  33. Idem, ibidem, p. 19. 
  34. Pois, como bem compreenderam Boltanski e Chiapello: “A taylorização do trabalho consiste em tratar seres humanos como máquinas. Mas o caráter rudimentar dos métodos utilizados não permite colocar, a serviço da procura do lucro, as propriedades mais humanas dos seres humanos, seus afetos, sentimentos morais, honra, capacidade de invenção. Ao contrário, os novos dispositivos que pedem um engajamento mais completo e se apoiam em ergonomias mais sofisticadas, integrando contribuições da psicologia pós-behaviorista e das ciências cognitivas, exatamente por serem mais humanos, penetram mais profundamente na interioridade das pessoas, das quais se espera que ‘se estreguem’ a seu trabalho e tornem possível uma instrumentalização dos homens naquilo que eles têm de propriamente humanos” (Luc Boltanski e Eve Chiapello, ibidem, p. 152). 
  35. Lembremos a este respeito o que diz o psicanalista Pierre Fédida: “A depressão é uma doença da forma, sendo o psíquico o que dá forma ao humano. Sinto-me desfeita em minha aparência humana, diz uma mulher no momento em que se descreve” (Pierre Fédida, Dos benefícios da depressão, São Paulo: Escuta, 1998). 
  36. Alain Ehrenberg, La fatigue d’être soi: dépression et société, Paris: Odile Jacob, 2000, p. 10. 
  37. “O direito de escolher sua vida e a injunção a advir si mesmo colocam a individualidade em um movimento permanente. Isto leva a colocar de outra forma o problema dos limites reguladores da ordem interior: a partilha entre o permitido e o proibido declina em prol de um esgarçamento entre o possível e o impossível” (idem, ibidem, p. 15). 
  38. Idem, ibidem, p. 234. 
  39. Para os transtornos de personalidade borderline, ver Otto Kernberg, Borderline conditions and pathological narcissism, Nova York: Basic Books, 1975. 
  40. Alain Ehrenberg, ibidem, p.163. 
  41. Ver, por exemplo, Jacques Lacan, Le seminaire II: Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, Paris: Seuil, 1982. 

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