2005

Poesia e matéria [Ponge]

por Marcelo Coelho

Resumo

Francis Ponge é sempre associado a uma poética que rejeita o subjetivismo, a confissão, o uso da primeira pessoa. Em seu livro, O partido das coisas, Ponge investe no mundo dos objetos : um pedaço de carne, o sabão, o cigarro, a chuva, uma árvore são tomados como tema de elaboração poética. O poema se apresenta quase como verbete de uma enciclopédia; mas o que a primeira vista pareceria uma explicação didática, logo se desfaz em metáforas fulgurantes e lacunas, em associações e silêncios. Cada coisa se liberta do seu mestre. “A árvore de Francis Ponge”, diz o crítico Maurice Blanchot, “é uma árvore que observou Francis Ponge e imagina como ele pode escrevê-la.

Poder-se entender a poesia de Ponge como uma confirmação, mas também como uma admissão da impossibilidade do projeto de Marinetti exposto no Manifesto Técnico da Literatura Futurista e que propunha o supressão do “eu” na literatura. Marinetti queria uma poesia que correspondesse à “obsessão lírica da matéria”, a captação da matéria “em si mesma”, em suas correntes elétricas, precipitações de elétrons, vibrações de átomos.

Tomar o “partido das coisas”, dessubjetivar a poesia, entender o mundo externo sem fazer uso da perspectiva, do “ponto de vista” do sujeito, é tanto “ser dito” pelo objeto quanto “ser lido” pela linguagem. O poema citado, “A  ardósia”, apresenta-se como um elogio descritivo da pedra em si mesma. Nota-se também uma rede de citações e de referências ao livro, à lousa, à leitura; e, em camadas sucessivas de texto, descobre-se no poema referências a Du Bellay, Dante, Poe, Mallarmé: a lousa é também morte, ameaça, queda, catástrofe, “tombeau”, do próprio poeta, que na obscura ardósia se reflete.


L’ARDOISE

L’ardoise — à y bien réflechir c’est à dire peu, car elle a une gamme de reflets très réduite et un peu comme l’aile du bouvreuil passant vite, excepté sous l’effet de précipitations critiques, du ciel gris bleuâtre au ciel noir — s’il y a un livre en elle, il n’est que de prose: une pile sèche; une batterie déchargée; une pile de quotidiens au cours des siècles, quoique illustrés par endroits des plus anciens fossiles connus, soumis à des pressions monstrueuses et soudés entre eux; mais enfin le produit d’un métamorphisme incomplet.

Il lui manque d’avoir été touchée à l’épaule par le doigt du feu. Contrairement aux filles de Carrare, elle ne s’enveloppera donc ni ne développera jamais de lumière.

Ces demoiselles sont de la fin du secondaire, tandis qu’elle appartient aux établissements du primaire, notre institutrice de vieille roche, montrant un visage triste, abattu: un teint évoquant moins la nuit que l’ennuyeuse pénombre des temps.

Délitée, puis sciée en quernons, sa tranche atteinte au vif, compacte, mate, n’est que préparée au poli, poncée: jamais rien de plus, rien de moins, si la pluie quelquefois, sur le versant nord, y fait luire comme les bourguignottes d’une compagnie de gardes, immobile.

Pourtant, il y a une idée de crédit dans l’ardoise.

Humble support pour une humble science, elle est moins faite pour ce qui doit demeurer en mémoire que pour des formulations précaires, crayeuses, pour ce qui doit passer d’une mémoire à l’autre, rapidement, à plusieurs reprises, et pouvoir être facilement effacé.

Quel plaisir d’y passer l’éponge.

Il y a moins de plaisir à écrire sur l’ardoise qu’à tout y effacer d’un seul geste, comme le météore négateur qui s’y appuie à peine et qui la rend au noir.

Mais un nouveau virage s’accomplit vite; d’humide à humble elle perd ses voyelles, sèche bientôt:

“Laissez-moi sans souci détendre ma glabelle et l’offrir au moindre écolier, qui du moindre chiffon l’essuye.”

L’ardoise n’est enfin qu’une sorte de pierre d’attente, terne et dure. Songeons-y.

Francis Ponge,

L’atelier contemporain, Oeuvres complètes,

Paris, Gallimard, 2002, vol. 2, pp. 656-7. O texto também foi publicado em

Lyres (Paris, Gallimard, 1980, col. Poésie) e no Nouveau Recueil.

A ARDÓSIA

A ardósia — refletindo bem, isto é, bem pouco, pois ela tem uma gama de reflexos muito reduzida e um pouco como a asa do sanhaço passando depressa, a não ser quando sob o efeito das precipitações críticas, do céu cinza-azulado ao céu negro —, se há um livro nela, é só de prosa: uma pilha seca; uma bateria descarregada; uma pilha de jornais no curso dos séculos, embora ilustrados em alguns lugares pelos mais antigos fósseis conhecidos, submetidos a pressões monstruosas e soldados entre si; mas enfim o produto de um metamorfismo incompleto.

Falta-lhe ter sido tocada nos ombros pelo dedo do fogo. Contrariamente às filhas de Carrara, ela não se impregnará nunca de luz, nem a revelará, portanto.

Tais moças são do fim do secundário, enquanto que ela pertence aos estabelecimentos do primário, nossa mestre-escola de velha rocha, mostrando um rosto triste, abatido: uma tez evocando menos a noite do que a enfadonha penumbra dos tempos.

Arrancada do solo, depois serrada em lajotas, sua superfície talhada ao vivo, compacta, fosca, é somente preparada para o polimento, raspada: nunca nada mais, nada menos do que isso, se a chuva por vezes, na vertente norte, ali faz luzir como que a pala dos quepes de uma companhia de guardas, imóvel.

Contudo, há um ponto positivo na ardósia.

Humilde suporte de uma humilde ciência, ela é feita menos para o que deve residir na memória do que para as formulações precárias, calcárias, para aquilo que deve passar de uma memória a outra, rapidamente, muitas vezes, e que deve poder ser facilmente apagado.

Do mesmo modo, às ofensas do céu ela se opõe em formação oblíqua, uma ala recusada.

Que prazer passar nela uma esponja.

Há menos prazer em escrever sobre uma ardósia do que em apagar tudo num gesto só, como o meteoro negador que nela mal se apoia e a entrega ao negror.

Mas uma nova virada se consuma rápido: de úmida a humilde ela perde o hausto, seca em seguida:

“Deixem-me sem cuidado distender minha fronte e oferecê-la ao menor aluno, que com o menor paninho a enxuga.”

A ardósia não é, afinal, senão uma espécie de pedra de espera, baça e dura. Penso (sonho) isso.

Tradução Marcelo Coelho

__________

Comparado aos outros “poetas que pensaram o mundo” incluídos neste volume (Homero, Dante, Shakespeare, Camões…), o nome de Francis Ponge (1899-1988) é sem dúvida um dos menos conhecidos. Essa relativa obscuridade, essa situação modesta, vêm muito a calhar — como veremos — num autor que se voltou quase exclusivamente aos assuntos humildes, aos objetos sem importância, às coisas comuns. Ao mesmo tempo, a presença de Francis Ponge neste livro se impõe claramente, já que sua poesia se dedica, num sentido muito enfático, a “pensar o mundo”.

Não causa surpresa que um poeta, qualquer poeta, termine por impregnar sua obra de temas filosóficos, políticos, religiosos, e toda poesia, nesse sentido, constitui em certa medida um ato de pensamento “sobre” o mundo. É também notório que em cada poeta esse “pensamento do mundo” surge filtrado por algo que é da ordem da expressão pessoal, ou, para usar uma fórmula muito frequente, pelo “eu lírico”. No caso de Ponge, contudo, é como se o mundo se apresentasse sem esse “eu”, e quase sem a “filosofia”, as ideias, os pensamentos desse eu. Sua poesia, como entre nós a de João Cabral de Melo Neto, rejeita esse impulso de expressão, não só por rejeitar a confissão biográfica, mas também por afastar-se da subjetividade, até mesmo da manifestação de um “eu” meditativo, pensante, cogitante, qualquer. Os poemas de Ponge são quase sempre na Terceira pessoa do singular — este, aliás, seria o título de uma conferência sua, publicada mais tarde com o nome de “Tentativa oral”. Não temos uma poesia que fale “sobre” o mundo indiretamente, como “objeto indireto” apresentado pelo eu do poeta, por suas ideias, memórias, sentimentos. Aqui, trata-se efetivamente de pensar “o” mundo, nessa regência verbal à francesa, como “objeto direto”.

Mas talvez “mundo” seja uma palavra extensa demais, abstrata demais, para Ponge. Trata-se de pensar as coisas, uma coisa específica de cada vez. Seus textos mais típicos examinam objetos muito concretos: o figo, o sabonete, a chuva, a maçaneta… Raramente há temas mais gerais (a passagem das estações, um restaurante, a pradaria) ou temas “humanos” (a jovem mãe, o ginasta). Apresentam-se como tentativas de pensar um objeto, mais do que de sistematizar, totalizar, enquadrar o mundo exterior por uma ótica subjetiva. Daí a modéstia, o inclinar-se aos objetos, que estão na base dessa poesia. Eis o que Ponge diz a respeito de sua obra:

Nunca, com certeza, desde que o mundo é mundo (estou falando do mundo sensível, tal como nos é dado a cada dia), não, nunca, seja qual for a mitologia na moda, nunca o mundo, nem por um só segundo, suspendeu o seu funcionamento misterioso. E no entanto, nunca, no espírito do homem — e precisamente desde que o homem parou de considerar o mundo unicamente como o campo de sua ação, o lugar e a ocasião de seu poder — nunca o mundo, no espírito do homem, funcionou tão pouco, tão mal.

Ele já não funciona mais a não ser para alguns artistas. Se ele ainda funciona, é graças a eles.

[…] A função do artista é assim bastante clara: ele deve abrir um ateliê e tratar de consertar o mundo, por fragmentos, como ele aparece. Não porque se toma por um mago. Mas por um relojoeiro. Reparador atento da lagosta ou do limão, da colmeia ou da compoteira, aí está o artista moderno. Insubstituível em sua função. Seu papel é modesto, como se pode ver. Mas dele não se poderia abrir mão.[1]

Tais considerações, por si sós, justificam a presença de Ponge neste livro. O texto que segue está dividido em três partes. Na primeira, julguei necessário apresentar, ainda que de forma rápida, a obra de um autor ainda insuficientemente conhecido entre nós. Em seguida, relaciono os trabalhos de Ponge com o que seria o programa, o projeto, da arte moderna em geral, ou pelo menos com aspectos que considero decisivos da arte do século XX; por fim, analiso um poema específico de Ponge, “A ardósia”, que talvez nos informe sobre as complexidades, ou os limites, desse projeto.

1

Francis Ponge começou a sua vida literária aproximando-se dos surrealistas, na década de 1920. Pertenceu ao Partido Comunista Francês de 1937 a 1947. Seu livro mais importante, publicado em 1942, intitula-se O partido das coisas. Seus textos, ou, melhor dizendo, seus poemas, raramente são compostos em verso, e não conhecem muitas mudanças de estilo ao longo das décadas. Com o passar do tempo, Ponge foi publicando coletâneas que reúnem, lado a lado, textos da década de 1930 ou 1940 com outros que foram escritos vinte anos depois. Sem contar os poemas que ele foi escrevendo e reescrevendo ao longo de toda a vida, terminando por publicar todos os rascunhos e anotações que levariam ao texto.

No Brasil, temos poucas mas excelentes traduções de Ponge: A mesa, que é um livro deste último gênero, com todos os esboços do autor em torno do tema: uma coletânea intitulada Métodos, com escritos e conferências de Ponge sobre a poesia, uma amostra de sua “arte poética”; e o próprio O partido das coisas. A tradução do título (cujo original é Le parti pris des choses) para o português é interessante, porque parece permitir uma leitura mais diretamente política, como se em vez do “Partido Comunista” tivéssemos um “Partido das Coisas” — mas é certo que parti pris significa também ter um “preconceito” a favor das coisas, estar “do lado das coisas”, falar “a partir da ótica das coisas”: Ponge afirma, com efeito, que em seus textos “as coisas são descritas, por assim dizer, do próprio ponto de vista delas”.[2]

Trata-se deb poemas em prosa, que ele próprio compara a verbetes de enciclopédia, com títulos muito simples, como as entradas de um verbete mesmo — “A vela”, “A ostra”, “A borboleta”, “O engradado”, “A toalha de banho”, por exemplo. São textos descritivos, na terceira pessoa, como vimos, e que se inspiram não só no modelo do dicionário ou da enciclopédia, mas também num tipo de publicação escolar hoje em desuso, cujo título (que também viria a inspirar Carlos Drummond de Andrade), é justamente o de “Lição de coisas”. São livros de leitura para as classes elementares que contêm pequenas histórias morais, explicações sobre brinquedos, animais, acidentes geográficos, sobre alguns ofícios (a colheita do trigo, a fiação do algodão, a encadernação de livros) e sobre objetos variados — tipos de tecido, instrumentos de trabalho, utensílios de cozinha etc. Esses livros do ensino primário fornecem, sem dúvida, uma das bases para a construção da poesia de Ponge.

Vamos inicialmente citar dois textos curtos do Partido das coisas para ter uma ideia do tipo de descrição, de “verbete”, de “lição” que é feito no livro. “O cigarro”, por exemplo:

Recuperemos de início a atmosfera a um só tempo brumosa e seca, desgrenhada, onde, desde que incessante a cria, o cigarro está sempre enviesado.

A seguir, sua pessoa: uma pequena tocha muito menos luminosa que perfumada, de onde se destacam e caem, em ritmo a determinar, um número calculável de pequenas massas de cinzas.

Por fim, sua paixão: esse botão em brasa, escamando em películas prateadas, que uma bainha logo formada das mais recentes circunda.[3]

Nada mais que isso. Ao ler um texto desses pela primeira vez, tendemos a perguntar: “Pois bem, este é um poema sobre o cigarro, mas o que é que quer dizer?”. Certa intenção está em jogo nessas linhas, e isso nos leva a indagar, por exemplo, se o cigarro “simboliza” algo, se está “no lugar” de alguma outra coisa. Talvez sim, e talvez nem seja difícil imaginar uma resposta; pressentimos, contudo, que isso não é o principal, que fazer alguma equação interpretativa (“o cigarro = x”) seria trair o poema. Ou melhor, trair o cigarro… que está aqui na sua integridade, que é aqui apresentado “por si mesmo”, e não mais como termo inicial de uma metáfora, não mais como “pretexto” para uma moral, para um conteúdo, para uma expressão. Pensar no que Ponge está querendo dizer com o cigarro é menos importante do que reparar naquilo que Ponge quer que reparemos, quando temos um cigarro diante de nós. O poeta não está propondo uma charada, mas sim uma nova experiência. Tentar “decifrar” esse texto é sem dúvida tarefa possível, tentadora e inesgotável; sem dúvida, o poema provoca a sensação de que foi dito “algo mais” do que o que lemos em suas linhas. Mas chegar a esse “algo mais” não se confundiria com a elucidação de um sentido metafórico, como se estivéssemos tratando de resolver um problema matemático, uma equação, do tipo x = y.

O poema já parece ter recolhido em seu interior (“recuperar” é o primeiro verbo do poema) múltiplas metáforas, já parece ser o resultado de múltiplas operações desse tipo, que circundam o objeto (“circundar” é o último verbo do texto) — mas preservam sua inteireza, não o dissipam em “outro sentido”. A investigação sobre o cigarro abre-se, ou aponta, para a possibilidade de uma metaforização sem fim: a fumaça do cigarro é uma atmosfera, essa atmosfera é desgrenhada, o cigarro está sempre de viés dentro da atmosfera que se cria; o cigarro é uma tocha, mas tocha perfumada; é em parte tratado como ser humano — “sua paixão”, por exemplo — mas em parte como máquina produtora de cinzas, em parte também como uma atitude, um modo de ser; o cigarro tem quase uma psicologia. Diríamos melhor: o cigarro tem uma estética, uma poética. E diante disso, desse objeto que se dispersa em cinza, em fumaça, em “outra coisa”, talvez possamos ver que o cigarro não é metáfora de algo, mas sim é ele próprio metáfora pura, é o mecanismo da metáfora transformado em cigarro; numa palavra, é poesia transformada em cigarro.

Passemos a um segundo poema, também do Partido das coisas, agora sobre a água: cito alguns trechos.

[…] É branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em seu único vício: a gravidade, dispondo de meios excepcionais para satisfazer esse vício: contornando, transpassando, erodindo, filtrando.

No interior dela própria esse vício também atua: desaba sem cessar, renuncia a cada momento a qualquer forma, só tende a se humilhar, deita-se de bruços no chão, quase cadáver, como os monges de certas ordens. Sempre mais abaixo: tal parece ser a sua divisa: o contrário de excelsior.

*

Poder-se-ia dizer que a água é louca, por causa dessa histérica necessidade de só obedecer à sua gravidade, que a possui como uma ideia fixa.

Certamente, tudo no mundo conhece essa necessidade, que sempre e em todos os lugares deve ser satisfeita. Este armário, por exemplo, se mostra muito cabeçudo em seu desejo de aderir ao chão e, se ele se encontrar algum dia em equilíbrio instável, preferirá danificar-se a infringi-lo…

Inquietude da água: sensível à menor mudança de declividade. Pulando as escadas com ambos os pés ao mesmo tempo. Brincalhona, pueril de obediência, voltando imediatamente quando a chamamos mudando a inclinação para o lado de cá[4]

Vemos novamente que a “coisa” tratada por Ponge existe de forma autônoma, tem sua lei, seu comportamento, seu modo, seus hábitos, suas instabilidades… é tratada como animal, como ser vivo, no que certamente constitui uma das operações ou estratégias mais frequentes em seus poemas. Haveria uma grande metáfora, ou uma grande lição, subjacente a todos eles: a saber, a de que uma coisa não é uma coisa, não é um objeto inerte, que está simplesmente aí, indigno de nossa atenção. Se repararmos atentamente, sugere Ponge, uma coisa se revela para nós como um mundo, uma rede de relações possíveis, uma troca viva.

Cabe sublinhar aqui um aspecto muito presente na obra de Ponge, que é o de uma certa euforia; seu propósito, diz ele, é de “fazer rejubilar-se o espírito humano”.[5] Existe em Ponge o prazer de brincar com as coisas, ou melhor, de comunicar-se com elas, como uma criança que, em certa idade, ainda não sabe diferenciar entre o que é brinquedo e o que não é, entre o que está vivo e o que não está; todo objeto é assim objeto de uma constatação que é tátil, experimental, antes de se tornar uma coisa simplesmente, uma coisa sobre a qual não se pensa mais… Seria esta a euforia de Ponge: uma espécie de vitória contra a imobilidade, a desatenção, a indiferença — numa palavra, a morte.

Percebe-se em seus textos uma mistura de compaixão, de piedade pelas coisas humildes, e de alegria, de entusiasmo ao ver a vida que pode agitá-las. Na conferência intitulada “Tentativa oral”, Ponge diz:

Minhas senhoras, meus senhores […] quero chamar a atenção para um fato geralmente pouco considerado, que parece, no entanto, evidente tão logo o encaramos: Nós não estamos sozinhos aqui. Nós estamos longe de estar entre nós”.

E continua:

Permitam-me, senhoras e senhores, invocar, ao mesmo tempo que os invoco, todas as coisas presentes nesta sala, estas coisas cujo silêncio, uma vez mais, estamos roubando, estas coisas que tratamos, que até aqui temos tratado com a desenvoltura e a brutalidade costumeira dessa espécie de selvagens para com elas que somos nós. Não sei se me faço entender; estou falando destas paredes, das tábuas deste assoalho, falo das chaves que vocês trazem nos bolsos, de todos esses objetos que nos acompanharam, ou que nos esperam aqui, e estão aqui conosco, e que devem se calar à força — talvez a contragosto — e dos quais não tomamos conhecimento nunca, sabem, nunca.[6]

Ponge afirma-se movido por uma espécie de piedade:

[…] o que me sustenta, ou me empurra, me obriga a escrever, é a emoção provocada pelo mutismo das coisas que nos cercam. Talvez se trate de uma espécie de piedade, de solicitude, enfim, tenho o sentimento de instâncias mudas da parte das coisas, solicitando que finalmente nos ocupemos delas, que as digamos…

Por que não dizer, indo um pouco mais longe (ainda não é muito longe), que os próprios homens, na sua maior parte, nos parecem privados de palavra, são tão mudos quanto as carpas ou os pedregulhos? Não é verdade que eles não dizem nada, que quando falam o que dizem é nada — que não exprimem nada de sua natureza muda?[7]

Nesse sentido, há uma mensagem política nessa poesia aparentemente descompromissada, que descreve o camarão ou uma laranja. Para fazer novamente referência ao título do livro de Ponge em português, o que se procura não é só “tomar partido” em favor das coisas, mas também criar uma poesia que seja “o partido das coisas”, ou seja, o “representante das coisas”, assim como um “partido dos trabalhadores” se afirmaria como “representante dos trabalhadores”, atuando em defesa dos seus interesses, ou como seu porta-voz.

É para ser “porta-voz” das coisas que o “eu” do poeta cuida de se apagar, de anular-se:

A esperança está portanto numa poesia pela qual o mundo invada a tal ponto o espírito do homem que ele venha a perder a palavra, depois reinvente um jargão. Os poetas não têm de modo algum de cuidar das relações humanas, mas ir de cabeça até o fundo do poço. A sociedade, aliás, se encarrega muito bem de empurrá-los, e o amor das coisas de mantê-los ali; eles são os embaixadores do mundo mudo.[8]

Em outro texto, Ponge é ainda mais radical nesse intuito de abandonar o foco das relações humanas:

[…] o que eu procuro é sair dessa ciranda insípida em torno da qual o homem gira a pretexto de ser fiel ao homem, ao humano, e onde o espírito (pelo menos o meu espírito) se entedia mortalmente. E isso qualquer objeto me permite […] Pode ser qualquer coisa desde que seja considerada honestamente, quer dizer, finalmente considerada (sem preocupação com tudo aquilo que se apregoa sobre o espírito, sobre o homem), sem nenhuma vergonha.

Nunca nenhuma referência ao homem. Vocês têm uma ideia profunda a respeito da toalha de banho, todo mundo tem. Quer dizer alguma coisa para cada um, mas nunca ninguém teve a ideia de que a poesia era isso, que era disso que se tratava, dessa ideia profunda.[9]

2

Um dos problemas de comentar a obra de Ponge é que terminamos correndo o risco de transcrever muito o que ele próprio diz sobre a sua poesia; trata-se de autor muito programático, que expressa com clareza o que pretende. O programa de dar a palavra às coisas, de negar o mais superficialmente e mais tradicionalmente “humano” da poesia, de deixar a coisa “falar por si mesma”, fazendo que a primeira pessoa desapareça diante dos objetos, não é contudo exclusivo de Ponge. Sem dúvida, ele o formula de modo muito sóbrio e terno, e de um ponto de vista “de esquerda”, mas nós podemos encontrar, em outro autor decisivo para a arte moderna — e muito mal cotado em função das suas posições políticas —, pontos de semelhança com o que Ponge defende. Penso em alguns trechos do “Manifesto técnico da literatura futurista”, de Marinetti — notando, desde já, que sua retórica é muito diferente, pois os textos de Marinetti, com sua estridência tipográfica, estão nos antípodas da inquiridora escuta dos objetos tentada por Ponge. Mas vejamos alguns pontos em comum. Marinetti propunha, em 1912,

Destruir na literatura o “eu”, isto é, toda a psicologia. O homem, completamente avariado pela biblioteca e pelo museu, subjugado a uma lógica e a uma sabedoria apavorante, não oferece absolutamente mais interesse algum. Portanto, devemos aboli-lo na literatura, substituí-lo finalmente pela matéria, da qual se deve extrair a essência a golpes de intuição, o que não poderão fazer nunca os físicos e os químicos. Surpreender através dos objetos em liberdade e dos motores caprichosos a respiração, a sensibilidade e os instintos dos metais, das pedras, da madeira etc. Substituir a psicologia do homem, agora exaurida, pela obsessão lírica da matéria.

Cuidai-vos de oferecer à matéria os sentimentos humanos, mas adivinhai antes os seus diferentes impulsos diretivos, as suas forças de compressão, de dilatação, de coesão e de desagregação, a sua grande quantidade de moléculas em massa ou os seus turbilhões de elétrons. Não se trata de exprimir os dramas da matéria humanizada. É a solidez de uma lâmina de aço que nos interessa por si mesma, isto é, a aliança incompreensível e inumana de suas moléculas ou de seus elétrons, que se opõem, por exemplo, à penetração de um óbice. O calor de um pedaço de ferro ou de madeira é já mais apaixonante, para nós, do que o sorriso ou as lágrimas de uma mulher. A matéria foi sempre contemplada por um eu distraído, frio, muito preocupado consigo mesmo, pleno de preconceitos e de obsessões humanas.

O homem tende a sujar a matéria com sua alegria jovem ou com a sua velha dor, mas ela possui uma admirável continuidade de impulso para um maior ardor, um maior movimento, uma maior subdivisão de si mesma.[10]

Claro que não convém exagerar as semelhanças entre Ponge e Marinetti. A confiança de Marinetti no ativismo guerreiro, atlético, mecânico, nada tem a ver com o espírito de compaixão, de desarmamento, que existe em Ponge; e quando Marinetti fala da “matéria”, sua concepção do termo parece ser bem cientificista, “atômica”, como energia — o que é bem diferente do mutismo, do estado de desamparo em que se encontram as coisas para Ponge. Mas também são inegáveis certos pontos em comum: a necessidade de colocar em movimento a inércia das coisas, de descobrir sua espessura, de penetrar na agitação interna de cada objeto — a ponto de um comentador se referir à literatura de Ponge como “um trabalho permanente de agitação da matéria”,[11] por exemplo. Eis o que diz o próprio Ponge, em seu texto sobre “o copo d’água”:

Compreendem o sentido de minha obra? Que é o de tirar da matéria seu caráter inerte; de reconhecer-lhe uma qualidade de vida particular à sua atividade; seu lado afirmativo, sua vontade de ser, sua estranheza fundamental (que faz dela a providência do espírito), sua selvageria, seus perigos, seus riscos.[12]

Também o horror à sujeira, àquilo que nos hábitos humanos tende a corromper a pureza da matéria (e, diríamos, da linguagem), mencionado no “Manifesto técnico”, é um aspecto frequente na obra de Ponge.[13]

Tais preocupações “antissubjetivas” não se limitam de qualquer modo a uma aproximação entre Ponge e Marinetti, mas dizem respeito, creio, ao projeto moderno como um todo. A partir do famoso “je est un autre”, “eu é um outro”, de Rimbaud, temos exemplos ilustres na tradição moderna de uma explícita recusa daquilo que se entende por “humano”, e da busca de um programa intensivo no rumo de dessentimentalizar, de dessubjetivar a arte.[14]

A “ciranda insípida” em torno do homem, de que fala Ponge, parecia aborrecer inúmeros artistas modernos, de Marinetti a Breton. Haveria contudo um termo mais esclarecedor do que o “eu”, do que o “humano”, se quisermos entender aquilo que a arte moderna, de forma muito ampla, tentou superar, ou suprimir: trata-se da perspectiva, do ponto de vista fixo, do recurso pelo qual a realidade pode ser representada de forma ilusionística, como se a partir de um olho confiável, que se coloca a serviço do espectador.

Um exemplo retirado do âmbito da pintura será útil neste contexto, e talvez banal: quando, num típico quadro cubista, aparece uma garrafa, um bule, um violão, um rosto humano, esse objeto é apresentado não de um único ponto de vista, mas de vários pontos de vista ao mesmo tempo. Poderíamos dizer que houve uma multiplicação de pontos de vista, não mais o ponto de vista único a partir do qual o real se organiza de um ângulo confiável, na ilusão de que somos nós que estamos vendo o quadro. É como se esse objeto, o violão por exemplo, tivesse dispensado o observador, o pintor do quadro, e resolvido expressar-se a si mesmo: ele se mostra em vários momentos, em várias formas e estados, sem que exista um observador que “selecione”, entre os inúmeros ângulos e pontos de vista possíveis, um ponto privilegiado a partir do qual o enxergamos.

A questão é tratada num texto de Anatol Rosenfeld sobre o romance moderno, em que ele nota a abolição da perspectiva como algo comum à pintura, ao teatro, à literatura do século XX. No teatro, abole-se o palco italiano, que pretende dar uma ilusão de realidade, e cria-se “uma interpenetração entre o espaço cênico e o espaço empírico da sala”. Na pintura, elimina-se o que corresponderia a uma visão “antropocêntrica”, e o mundo deixa de ser apresentado em relação a uma consciência determinada, a partir de uma visão subjetiva, na qual o espectador, diante do quadro, “entrasse” na mente do pintor, ocupasse o lugar de onde ele viu o mundo. No romance, com o monólogo interior,

desaparece ou se omite o intermediário, isto é, o narrador, que nos apresenta a personagem no distanciamento gramatical do pronome “ele” e da voz do pretérito. A consciência do personagem passa a manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato presente, como um Eu que ocupa a tela imaginária do romance.[15]

Desaparece o “intermediário”, o narrador, o sujeito — e é isso, sem dúvida, o que Ponge faz em poesia. Para conseguir essa abolição da perspectiva, essa “presentificação” do mundo num texto, o que Ponge procura é não mais fazer um poema que descreva determinado objeto de um único ponto de vista, mas um poema que de alguma forma “se transformasse” no próprio objeto. Trata-se, digamos, de abolir a representação, não em favor de uma poesia abstrata, pura, mas de uma poesia que se substitua, até pela forma física, ao objeto ausente. Um texto de Ponge sobre o figo não será “sobre” o figo, mas irá justamente apresentar-se como um figo feito de palavras — cito de forma quase literal o título do seu texto.[16] O que não implica uma organização visual, tipográfica, do texto, para que assumisse por exemplo a aparência esquemática da fruta (Ponge considera o procedimento “caligramático”, na esteira de Apollinaire, insuficiente). O poema vai aspirar à tridimensionalidade, a ser algo que se pode ver, ou ler, de vários ângulos, de diversos pontos de vista. Abolido o eu, é como se a poesia viesse a se transformar em escultura, em objeto sólido. É o que Picasso disse a Ponge certa vez: “Você, suas palavras parecem uns peõezinhos, sabe, umas estatuetazinhas, que vão rodando e cada palavra tem muitas faces, que vão clareando umas às outras”.[17]

Deixemos, mais uma vez, o poeta explicar seu “método”:

Se não podemos pretender que o objeto tome claramente a palavra (prosopopeia), o que aliás daria uma forma retórica muito cômoda e se tornaria monótono, mesmo assim cada objeto deve impor ao poema uma forma retórica particular. Chega de sonetos, de odes, de epigramas: que a forma mesma do poema seja, de algum modo, determinada por seu assunto.[18]

No esforço de criar textos “tridimensionais”, por assim dizer, há o propósito constante em Ponge de investigar a materialidade das próprias palavras, não só no seu aspecto sonoro ou na sua origem etimológica, como também em seus pormenores microscópicos, numa atividade de “logoscopia”, como ele diz. Num texto sobre o copo d’água, por exemplo, Ponge afirma que essa palavra (em francês, verre d’eau), não poderia ser mais adequada para o objeto que ela designa, uma vez que a primeira letra, v, de verre, e a última, o u, de eau, têm justamente a forma de um cálice, de um copo…[19]

Chegamos assim ao outro polo, digamos, da estética pongiana, em que ao imperativo de “tomar o partido das coisas” se acrescenta um complemento, o de “levar em conta as palavras”. Ponge faz disso uma espécie de lema, de sigla, de equação: escreve “PPC = CTM” (“parti pris des choses égale compte tenu des mots”), isto é, “tomar o partido das coisas = levar em conta as palavras”.[20] A palavra possui, portanto, materialidade e espessura próprias. Quando escreve sobre os caracóis, por exemplo, Ponge observa que, ao se deslocarem sobre a terra, eles obedecem ao lema do “Go on”.[21] A frase aparece em inglês no poema, porque podemos pensar no “g”, no “o”, no segundo “o” de novo, no “n”, como se fossem a casca do caracol e o seu corpo estendendo-se em linha reta… com cabeça e dois chifrinhos.

Não faltam exemplos dessa estratégia poética em toda a obra de Ponge, cuja índole, como se vê, parece sempre bem-humorada, pressupondo no leitor algo do espírito infantil, com seu inconformismo diante do que possa existir de inanimado no mundo — ou nas palavras. Remeto o leitor aos próprios textos de Ponge e às excelentes análises e ilustrações apresentadas por Leda Tenório da Motta, em seu estudo sobre o autor.[22]

Cite-se apenas uma última passagem de Ponge notando a “espessura” das palavras:

As palavras são um mundo concreto, tão denso, tão existente quanto o mundo exterior. Um mundo que aí está. Por quê? porque todas as palavras de todas as línguas e principalmente das línguas que têm uma literatura, como a alemã, a francesa, e que têm também — como dizer? — que vêm de outras línguas que já tiveram monumentos, como o latim, essas palavras, cada palavra, é uma coluna do dicionário, é uma coisa que tem uma extensão, mesmo no espaço, no dicionário, mas é também uma coisa que tem uma história, que mudou de sentido, que tem uma, duas, três, quatro, cinco significações. É uma coisa espessa, contraditória frequentemente […][23]

Aqui talvez estejamos perto de uma situação típica da obra de Ponge, e talvez de muitos outros artistas modernos além dele. É que quando se tenta anular o eu, anular o homem, sair do sujeito para chegar ao objeto, ao mundo mudo e material das coisas, o mecanismo utilizado para transmitir tal experiência é a linguagem. Torna-se incerto, afinal, se a linguagem era um simples instrumento para recriar a voz dos objetos, seu modo de ser característico e autônomo, ou se, em vez de recuperar a materialidade das coisas, chegou-se à pura consideração da palavra, da escrita humana. O culto à matéria, do futurismo, termina no culto à linguagem, que é o culto moderno por excelência, o culto ao signo, ao significante, à sua espessura.

Podemos ilustrar essa passagem com exemplos da própria literatura modernista brasileira, onde numa primeira fase encontramos muitos poemas-colagem, do poema-piada, que funcionam como um ready-made, como um “objeto” — é o caso de alguns poemas do Oswald de Andrade que são recolhidos de textos dos viajantes do século XVI, ou de Manuel Bandeira, com seu “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Vale a esse propósito transcrever um poema da primeira fase de Carlos Drummond de Andrade, que reproduz um trecho do código de trânsito:

SINAL DE APITO

Um silvo breve: Atenção, siga.

Dois silvos breves: Pare.

Um silvo breve à noite: Acenda a lanterna

Um silvo longo: Diminua a marcha.

Um silvo longo e breve: Motoristas a postos

(A este sinal todos os motoristas tomam lugar nos seus veículos para movimentá-los imediatamente).[24]

Este poema de Drummond, do seu primeiro livro, Alguma poesia, é sem dúvida “antissubjetivo”; não podemos identificar nesses versos o ponto de vista de um “eu” a enunciá-los. Não que aqui se esteja tratando da “obsessão lírica da matéria” visada pelo futurismo, mas certamente existe a intenção de suprimir o “narrador” da literatura — só remanesce o eu que recolhe algo pronto, que escolhe este ou aquele pedaço de realidade, como o pintor cubista cola um pedaço de jornal, de partitura ou de papel de parede na tela… O objeto, tirado da realidade, oferece-se por si, sem comentário, sem perspectiva. Mas dessa vontade modernista de fazer valer o real, de apagar o sujeito, de “presentificar” a vida, o mundo exterior, no poema, passamos para outra fase, em que a materialidade da linguagem se interpõe, e apresenta-se para o poeta como algo talvez intransponível.

Podemos citar um poema posterior do próprio Drummond, em que a contemplação “pongiana” da linguagem está presente, assim como a necessidade de penetrar “no reino das palavras”:

[…] Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

[…] Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma

Tem mil faces secretas sob a face neutra.[25]

Esse mundo “mudo”, dotado de uma espessura inesgotável, de mil faces secretas — esse mundo que, como víamos, era o mundo material de Ponge, o mundo das coisas silenciosas e infinitamente espessas, acaba por revelar-se como o mundo da linguagem. E a absorção, a expectativa indagadora de Drummond perante o mundo das palavras é a mesma que Ponge descreve, quando celebra “a natureza escondida nos dicionários: palavras, essas pedras preciosas, esses maravilhosos sedimentos”.[26] Ou nesta evocação pessoal:

Lembro que, quando era criança, meu pai tinha dicionários na sua biblioteca, e eu entrava lá dentro como dentro de um baú cheio de tesouros, brincos, joias, como o baú do marajá, o cofre de joias, cheio de joias.[27]

3

A análise a seguir dedica-se a um material menos precioso. Em “A ardósia”, texto de Ponge escrito em 1961, veremos com mais detalhe de que maneira se dá a passagem das coisas às palavras; e de que maneira o projeto de dar voz aos objetos acaba se cumprindo (ou não).

A ARDÓSIA

A ardósia — refletindo bem, isto é, bem pouco, pois ela tem uma gama de reflexos muito reduzida e um pouco como a asa do sanhaço[28] passando depressa, a não ser quando sob o efeito das precipitações críticas, do céu cinza-azulado ao céu negro —, se há um livro nela, é só de prosa: uma pilha seca; uma bateria descarregada; uma pilha de jornais no curso dos séculos, embora ilustrados em alguns lugares pelos mais antigos fósseis conhecidos, submetidos a pressões monstruosas e soldados entre si; mas enfim o produto de um metamorfismo incompleto. Falta-lhe ter sido tocada nos ombros pelo dedo do fogo. Contrariamente às filhas de Carrara, ela não se impregnará nunca de luz, nem a revelará, portanto.

Tais moças são do fim do secundário, enquanto que ela pertence aos estabelecimentos do primário, nossa mestre-escola de velha rocha, mostrando um rosto triste, abatido: uma tez evocando menos a noite do que a enfadonha penumbra dos tempos.

Arrancada do solo, depois serrada em lajotas, sua superfície talhada ao vivo, compacta, fosca, é somente preparada para o polimento, raspada: nunca nada mais, nada menos do que isso, se a chuva por vezes, na vertente norte, ali faz luzir como que a pala dos quepes de uma companhia de guardas, imóvel.

Contudo, há um ponto positivo na ardósia.

Humilde suporte de uma humilde ciência, ela é feita menos para o que deve residir na memória do que para as formulações precárias, calcárias, para aquilo que deve passar de uma memória a outra, rapidamente, muitas vezes, e que deve poder ser facilmente apagado.

Do mesmo modo, às ofensas do céu ela se opõe em formação oblíqua, uma ala recusada.[29]

Que prazer passar nela uma esponja.

Há menos prazer em escrever sobre uma ardósia do que em apagar tudo num gesto só, como o meteoro negador que nela mal se apóia e a entrega ao negror.

Mas uma nova virada se consuma rápido: de úmida a humilde ela perde o hausto, seca em seguida:

“Deixem-me sem cuidado distender minha fronte e oferecê-la ao menor aluno, que com o menor paninho a enxuga.”

A ardósia não é, afinal, senão uma espécie de pedra de espera,[30] baça e dura.

Penso (sonho) isso.[31]

Este texto foi escrito para o catálogo de uma exposição de gravuras de um amigo de Ponge, Raoul Ubac, intitulada “Ardósias talhadas”; é só por esse motivo, dizem os organizadores da edição da Pleiade, que o texto foi incluído em L’atelier contemporain, com outras páginas sobre artistas plásticos, uma vez que seu espírito é bem mais próximo dos poemas de O partido das coisas. Uma curiosidade: Le parti pris des choses, antes de ser o nome do livro de Ponge, era originalmente o título de um desenho de Ubac.

Tentei não abusar das notas para explicar algumas particularidades do vocabulário de Ponge e das opções adotadas na tradução. Passo à análise do poema.

A ardósia, como se sabe, é uma pedra escura, sem a nobreza do mármore, bastante utilizada em construção, como material para pisos e revestimentos; em certas regiões da França, onde é presumivelmente mais comum, serve também para fazer telhados. Trata-se, enfim, de material modesto, pouco propício à exaltação poética, o que justamente atrai a simpatia de Ponge.

Podemos reparar, logo no início do texto, num jogo de palavras envolvendo o duplo sentido do verbo “refletir”, que é tanto “pensar” quanto “espelhar”: “A ardósia — refletindo bem, isto é, bem pouco, pois ela tem uma gama de reflexos bem reduzida […]”. Como se trata de uma pedra escura, fosca, “refletir bem” a seu respeito é refletir “bem pouco” a seu respeito… Vemos que desde as primeiras linhas o texto se abre em duas direções diferentes, ou, se quisermos, admite a dupla possibilidade de tomar o partido da coisa (ser, como a ardósia, capaz de pouco reflexo) e levar em consideração a palavra, adotando o outro sentido do verbo “refletir” (refletindo bem sobre o objeto, de um ponto de vista externo).

Se nos lembrarmos da frase de Ponge a respeito da forma que cada poema deveria ter (não se tratando mais de escrever odes, ou sonetos, mas sim de encontrar uma retórica para cada objeto, uma forma adequada para cada assunto), seria o caso de dizer que, nesse texto sobre a ardósia, a “forma”, a “figura de retórica” predominante será a do reflexo, a do espelhamento; mas um espelhamento baço, escurecido, imperfeito. Isso se pode notar no começo exato do poema, em que temos o título, em letras maiúsculas:

A ARDÓSIA

e sua repetição/reflexo logo abaixo, em minúsculas:

A ardósia […]

Na tradução, fiz referência a esse recurso duplicando a palavra “bem”: “a ardósia — refletindo bem, isto é, bem pouco […]”.

Prossigamos, lendo agora o texto corrido, sem o trecho entre travessões. “A ardósia […], se há um livro nela, é só de prosa.” Sem dúvida, a obra de Ponge, sendo “poesia” mas sendo também “em prosa”, recusando o verso, identifica-se com o “modo de ser” da ardósia: se imaginarmos que é a ardósia quem se apresenta em vez do poeta, cujo eu desaparece, vemos que a ardósia nesse sentido nega o “poeta”, afirmando-se como “prosa”. Há também, se quisermos, um jogo com os sons “ardoise/prose/poésie” que não rimam exatamente, mas de algum modo se espelham, se refletem sem muita luminosidade…

Ao mesmo tempo em que nega a “poesia”, a ardósia se explica nos termos que um escritor compreende; exprime-se pelas referências “letradas”: ei-la que se compara a um livro, ou melhor, a uma pilha de jornais, com algumas ilustrações… E novamente estamos diante de um fenômeno de rebaixamento, de diminuição: em vez de livro, é de jornal que se trata. Estamos às voltas com um poema que não é exatamente um poema, mas poema em prosa, e com um livro que não é exatamente um livro, mas pilha de jornais.

Seria lícito imaginar, além disso, que a “recusa” da poesia tradicional, a recusa da rima, é também uma forma de defender esse espelhamento imperfeito, esse reflexo escurecido que é próprio da ardósia: pois num poema rimado, com seus versos de sons emparelhados um em cima do outro, existiria como que um reflexo mais claro, mais límpido, um espelhamento sonoro; ao passo que num texto em prosa, as diferentes “camadas” — os versos — parecem ter-se esmagado; comprimiram-se, numa espécie de catástrofe; viraram um bloco, um parágrafo, ainda que algumas imagens poéticas (assim como as raras fotografias, as raras ilustrações presentes nos jornais antigos) permaneçam guardadas no meio do texto, como fósseis, submetidos a “pressões monstruosas”.

O texto sugere que a prosa do jornal, a prosa da ardósia, é coisa efêmera, uma literatura passageira, como a asa de um pássaro. Mas há também a possibilidade, e neste caso a ardósia se torna capaz de mais reflexos, de brilhar mais, quando ela está sob efeito das “precipitações críticas”. O duplo jogo entre matéria e mundo literário continua: uma precipitação atmosférica, a chuva, deixa o telhado de ardósia mais brilhante; mas é também o texto ocasional, sem muito brilho, que pode ganhar destaque se exposto ao olhar crítico…

Hipótese interpretativa difícil de confirmar. O tempo todo, de qualquer modo, estamos considerando a materialidade da pedra — que é escura, que fica molhada, que se apresenta em camadas, que admite a existência de fósseis — ao lado daquilo que pertence ao mundo literário: a página impressa, o texto a ser lido, criticado etc. Já temos, nesse primeiro parágrafo, uma espessura, uma dupla camada de sentido, que “materializa” o tema do texto diante dos nossos olhos; autor e matéria, ardósia e Ponge, se refletem. Haveria aqui, de resto, uma relação com a ideia material da própria imprensa, como uma técnica de reprodução de texto que, a exemplo da confecção de gravuras, supõe uma atividade de “pensamento”, de pressão, de achatamento, de imposição — se quisermos — de certa bidimensionalidade ao mundo real; e também de um rebaixamento, no sentido de que a prosa é um discurso rebaixado, o sermo humilis da retórica em oposição às alturas da poesia. Ou seja, algo menos nobre, mais pobre, do que a poesia. A prosa, enquanto fala pouco elevada, terá uma “gama reduzida de reflexos”: com efeito, o livro, o romance, o jornal, quando visam “refletir” a realidade, fazem-no de forma insuficiente, como produto de um “metamorfismo incompleto”, ou (para transitar mais uma vez da geologia à literatura) de uma metáfora imperfeita… ao passo que a poesia, a grande literatura, talvez desse conta menos imperfeitamente da realidade. Seria difícil saber, no jogo dessas ironias, onde Ponge se coloca.

No segundo parágrafo, a comparação, novamente “desfavorável” à ardósia, se dá com outra pedra, o mármore, aqui representado alegoricamente — segundo uma arte poética mais “antiga” e mais própria ao mundo das belas-artes, das belas-letras — pelas “filhas de Carrara”. A personificação serve a Ponge para fazer a passagem a outra ordem de imagens, na qual o mundo da imprensa cede lugar ao mundo escolar — e assim as “filhas de Carrara” serão estudantes do secundário, ao passo que a ardósia “pertence aos estabelecimentos do primário”. Note-se, aliás, que elas são mencionadas no segundo parágrafo do texto…

Lembremos que além de servir para revestimentos e telhados, a ardósia é também utilizada como matéria-prima de lousas escolares. Sendo mais antiga que o mármore, do ponto de vista geológico, será também mais “velha” que as estudantes secundaristas, assemelhando-se a uma professora “triste, abatida, enfadonha” — pensamos naquelas professoras de antigamente, grisalhas, vestidas de cinza. Evoca-se assim o ambiente das “lições de coisas”, tão presente na modéstia pongiana; e isso favorece um novo jogo de palavras, em que a menção à realidade geológica se confunde com outra referência ao mundo das letras, do abecedário. Ainda aqui, esse jogo se faz conforme o princípio do “reflexo imperfeito”. Pois as eras geológicas do primário, do secundário, do terciário, apenas incompletamente conhecem analogia com a série escolar do primário, do secundário, do… universitário (ou, diríamos, do “terceiro grau”, do “ensino superior”, mas nunca do “terciário” nesse sentido). Enfim, é por ser utilizada na confecção de quadros-negros que a ardósia terá de ser apenas “preparada” para o polimento, como diz o quarto parágrafo, de modo a guardar uma aspereza que permita o uso do giz; por outro lado, no curso primário o aluno também será apenas “preparado” para um polimento posterior.[32]

Depois desses quatro parágrafos iniciais, onde se destacam, por assim dizer, os aspectos “negativos”, menos nobres do seu tema, o texto de Ponge promove uma mudança de direção: “Contudo, há um ponto positivo na ardósia”. Procurei ainda manter a terminologia escolar na tradução de “il y a une idée de crédit dans l’ardoise”. Ponge identifica nessa pobreza meio enfadonha, escura, fria, da ardósia, um aspecto não tão soturno, não tão pesado, uma vez que a lousa pode convir à humildade, à leveza, talvez à própria irresponsabilidade do escritor, que não se vê na situação de escrever sobre o mármore, monumentalmente, imortalmente; não está obrigado nem mesmo a escrever com tinta e caneta, mas só com giz, coisa que se apaga, que não se fixa eternamente: a ardósia, assim, é “feita menos para o que deve residir na memória do que para as formulações precárias, calcárias [de giz], para aquilo que deve passar de uma memória a outra, rapidamente, muitas vezes, e que deve poder ser facilmente apagado”.

A defesa dessa modéstia, dessa “antiescrita”, desse apagamento do autor que se corrige o tempo todo, que escreve coisas que não são destinadas a ficar, é também apresentada como a defesa de um prazer muito específico, o de apagar o escrito na lousa com uma esponja. Ocorre que “esponja”, em francês, é éponge; esse trocadilho com o nome do próprio autor, Ponge, aparece aliás em vários de seus poemas.[33] Temos um autor que nega a pretensão autoral, falando de apagar o escrito; mas apaga com uma “éponge”, palavra ou coisa que reafirma o seu próprio nome. Desse modo, é como se o apagamento fosse ao mesmo tempo uma assinatura; note-se também que a assinatura, um tanto deformada, “mal refletida”, reaparece no final do texto, nas suas últimas palavras, que são em francês “Songeons-y”. Certamente um eco, esmaecido, fosco, de “Francis Ponge” — e eu traduzi como “penso (sonho) isso”, explicitando o duplo sentido de songer, “sonhar” e “pensar”, e forçando um pouco a sonoridade para ficar semelhante a “Ponge”: “penso, sonho”.

Seja como for, trata-se de uma defesa do passageiro, do precário, do apagável, em oposição ao que existe de eterno, ao que “deve residir na memória”. Nesse sentido, se a pedra da ardósia se opõe ao mármore, a lousa onde se escreve com giz também se opõe a outro tipo de lousa (usando a ambiguidade do termo em português) que é a da lousa funerária, da lápide. O que há de banal e cotidiano na ardósia, o que nela remete ao telhado de uma casa, opõe-se ao que há de eterno, de imutável, numa pedra tumular — e a humildade da ardósia, então, é seu “ponto positivo”: esse revestimento escuro e pobre está mais próximo da vida do que o branco mármore dos cemitérios.

Talvez não; o texto, aqui, mostra-se ambivalente. Pois se tínhamos na última linha algo como uma assinatura — (Songeons-y = Ponge), essa assinatura estava para ser corrigida, era uma assinatura errada, refletindo imperfeitamente o nome real do autor. Assinatura ou inscrição tumular? O texto da ardósia significaria uma espécie de túmulo de Ponge, mas túmulo não definitivo, não eterno…[34]

Ambiguidade, ironia, “indecidibilidade” que se prova mais intensa se lembrarmos um trecho de Ponge sobre o poeta clássico Malherbe:

Com ou seu razão, não sei bem por quê, considerei sempre, desde minha infância, que os únicos textos válidos eram os que podiam ser inscritos na pedra; os únicos textos cuja assinatura (ou contra-assinatura) poderia dignamente aceitar, os que pudessem não ter nenhuma assinatura; os que permanecessem ainda como objetos, postos entre os objetos da natureza: ao ar livre, ao sol, sob a chuva, o vento.[35]

Cabe esclarecer, nesse contexto, o sentido de “pedra de espera”. Trata-se de um termo de construção civil, equivalente em francês e português. “Espera” é o conjunto dos tijolos soltos, numa parede, que irão encaixar-se com os tijolos de outra parede, perpendicular à primeira. No contexto do poema de Ponge, penso numa ligação em ângulo reto, entre algo que está de pé e algo que está deitado, entre a chuva, a precipitação vertical do céu, e o túmulo — o “tranquilo teto”, o toit tranquille de que falava Valéry em seu “O cemitério marinho”—, onde está gravado o epitáfio; ou, se quisermos, a lápide seria como um tijolo que sobressai, inclinado, em ângulo, entre o subsolo e a superfície. Poderíamos ainda tomar ao pé da letra a palavra “espera”, e imaginar que um túmulo não seria de fato eterno, mas uma pedra de espera entre a morte e a ressurreição… Trata-se de imaginário cristão demais para Ponge, provavelmente; mas um argumento a mais em favor da pobre ardósia contra o pretensioso mármore.

Cristianismo à parte, não é disparatado dizer que está em curso no poema a questão da morte e da ressurreição. Trata-se do desaparecimento e da ressurreição do próprio poeta: o que havia de pura fala da ardósia, de puro dizer-se da matéria, revela-se indiretamente alusão a um autor, ou melhor, à morte desse autor, cujo nome se inscreve baçamente no final do texto, e quase se apaga… a não ser, como a ardósia, “sob efeito das precipitações críticas”.

Ainda um recurso “visual” pode ser lembrado. Sendo a ardósia uma pedra de espera, um tijolo na linha de encaixe entre uma parede e outra, vale notar que a palavra “ardósia” será também colocada mais ou menos no meio do texto de Ponge, no final da frase que compõe sozinha o quinto parágrafo do poema: “Contudo, há um ponto positivo na ardósia”. A palavra se mostra suspensa no final do parágrafo, dividindo o texto em duas metades mais ou menos simétricas, e separa o discurso “negativo” — a ardósia é feia, obscura, velhota professora do primário — do discurso “positivo” — sua modéstia, sua humildade, os prazeres que ela proporciona. São duas paredes perpendiculares que o texto construiu — e a materialidade do texto escrito, aqui, coincide com o discurso da matéria, da pedra; torna-se figura, encenação, da própria ardósia. Sua função de pedra de espera está a meio caminho entre o título do poema (“A ardósia”) e sua pseudoassinatura (“Songeons-y”/Francis Ponge). Aliás, “pensar a ardósia” seria, na minha tradução, “sonhar nela”, conforme nos deitarmos nesse leito ou examinarmos, despertos, a pedra.

O jogo entre sujeito e objeto, entre matéria e linguagem, parece estar assim resolvido no poema: a ardósia, recriada em texto, recebe as homenagens do poeta, cujo ponto de vista se apaga, cuja voz se mineraliza — graças, é claro, a um trabalho sobre a linguagem, que deixa de ter uma transparência automática, mas ganha camadas, placas superpostas de sentido.

Este seria, digamos, o jogo “moderno” em que Ponge, como tantos outros artistas do século XX, está envolvido. Atente-se agora, no mesmo texto, para outra dimensão, que não é necessariamente oposta ao que vínhamos apresentando, mas que introduz mais um elemento na análise, a dimensão da tradição literária, das citações, da “intertextualidade”, se quisermos; o termo sempre soa algo pretensioso, mas vem ao caso à medida que é cada vez menos a voz da matéria, do objeto concreto e simples, que parece surgir à medida que continuamos a “escavar” o poema.

Uma alusão literária pode ser encontrada já no começo de “A ardósia”, de forma muito discreta. Há uma conhecida declaração de Stéphane Mallarmé, poeta que era uma das grandes admirações de Ponge, segundo a qual “tudo termina num livro” (“tout aboutit à un livre”). A frase é típica do ideal estetizante de fins do século XIX: o objetivo supremo da vida é redundar em obra de arte. Ao lermos, nas linhas iniciais do texto, que “a ardósia […] se há um livro nela […])”, a frase não deixa de surgir como uma resposta à ideia mallarmeana: “Se for para a ardósia terminar em livro, será um livro de prosa”. O que significaria, talvez, negar a pretensão de Mallarmé, cujo projeto apontava não para “um” livro, mas para “o” livro, o livro do mundo, o poema capaz de dar conta, de modo absoluto, de todos os livros possíveis; ao passo que a ardósia seria humilde, fosca demais para isso: terminaria num livro qualquer, de prosa…

Observe-se, nesse mesmo parágrafo, outra menção a Mallarmé: o céu “cinza-azulado ou negro” da ardósia é também a negação de um famoso céu de Mallarmé (no poema “L’azur”), que o assombra, que o despreza e o esmaga com sua luz; o poeta preferiria estar protegido pela bruma, pelo teto da escuridão.[36]

O primeiro parágrafo situa-se, como vimos, no registro da noite e da chuva, que se opõe ao mundo do fogo, das “filhas de Carrara”, isto é, do mármore. Esse par contraditório, o do mármore e da ardósia, também guarda dentro de si componentes de alusão literária. Mais do que uma comparação entre a qualidade concreta dos dois materiais, o que surge nas entrelinhas é uma peça clássica da poesia francesa, o soneto de Joachim du Bellay, publicado em 1558, “Heureux qui, comme Ulysse…”. O poeta, vivendo em Roma, sente saudades da terra natal, e considera ser feliz aquele que, “como Ulisses”, volta de uma longa viagem para viver junto de seus familiares “o resto de seus dias”, “le reste de son âge”. Nos dois últimos tercetos, Du Bellay diz que mais lhe apraz a morada que seus avós construíram,

Que de um paço romano o luxo desmedido;

Mais que o mármore duro apraz-me a ardósia fina;

Mais meu Loire gaulês do que o Tibre latino; Mais o humilde Lyré que o monte Palatino,

E mais que a beira-mar a doçura angevina. [37]

 

Temos aqui, novamente, a menção à ardósia como uma pedra modesta, em comparação ao mármore duro, dos “templos audaciosos” da Roma antiga. Ao comparar a ardósia ao mármore, portanto, Ponge refere-se a uma contraposição bem-estabelecida na história literária francesa, e também a um debate que é muito próprio a essa tradição, que se dá entre o discurso clássico, formal, que imita os modelos da Antiguidade, e o discurso humilde, caseiro, provinciano, que usa os materiais que estão à mão para construir sua casa, seu telhado… — embora se deva notar, justamente, que Du Bellay defende o meio provinciano e doméstico citando o clássico Ulisses. A domesticidade, de qualquer modo, prevalece no texto de Ponge, em que, como vimos, o texto se refere implicitamente a um telhado de ardósia, inclinado, servindo como proteção contra a chuva: “às ofensas do céu ela se opõe em formação oblíqua”.

Todavia, a concordância entre Ponge e Du Bellay talvez seja sutilmente subvertida. Se considerarmos que o soneto renascentista é peça canônica na literatura francesa, presente em todas as antologias, e que mais de um ginasiano teve de decorar, a referência de Ponge ao mundo da escola, da lousa, da professora primária enfadonha, vem sem dúvida “deslustrar” o texto a que se aludiu.

É curioso ainda, nessa estrofe, a consideração de que falta à ardósia “ter sido tocada pelos dedos do fogo”. Pois o termo “ardósia”, segundo uma etimologia que o Larousse diz contestada, viria de “arder”, de queimar (derivando-se da cor escura dessa pedra). A ardósia, em todo caso, é comum na região das Ardenas, no norte da França — e, se as filhas de Carrara ostentam a claridade, a luz meridional, é das regiões brumosas e úmidas da fronteira francesa com a Alemanha que provém o material desse poema. Não encontro outra explicação para a recorrência de metáforas militares do texto — os “quepes” da companhia de guarda, a “vertente norte”, e a “formação oblíqua”, em “ala recusada” — do que a circunstância de se ter realizado, nas Ardenas, uma das mais importantes batalhas da Segunda Guerra Mundial, em fins de 1944, sob chuvas torrenciais. Vitória das tropas aliadas, mas vitória defensiva, sem brilho militar: bloqueou-se, naquela batalha, a última ofensiva de Hitler no fronte ocidental. Se “ala recusada” é um termo militar — o exército combate o inimigo numa formação oblíqua, em ângulo, apresentando uma ala e recuando outra —, cabe notar que em francês aile é tanto “ala” quanto “asa”. O poema de Ponge já havia evocado a asa de um pássaro “passando depressa” no primeiro parágrafo, e na referência a uma aile refuse podemos pensar ainda num pássaro fechando as asas, recolhendo-se, na chuva, e desistindo de voar.

É de voos, tempestades e tumbas que fala o último texto a ser invocado aqui. Trata-se de outro poema de Mallarmé, o “Túmulo de Edgar Allan Poe”, o “Tombeau d’Edgar Poe” — uma homenagem fúnebre, um soneto-necrológio, em que Mallarmé reverencia a memória do autor de “O corvo”. Cito a última estrofe do poema, na tradução de Augusto de Campos:

Calmo bloco caído de um desastre obscuro,

Que este granito ao menos seja eterno dique

Aos voos da Blasfêmia esparsos no futuro.[38]

Mallarmé deseja que seu poema, que é também um tombeau, uma lápide, uma pedra funerária, funcione como barreira diante de todas as ofensas que venham a ser ditas, no futuro, contra seu admirado Poe. Seria, diz o soneto, um bloco eterno, ainda que não de mármore, e sim de granito; material certamente ainda menos nobre que a ardósia pongiana.

Se esta, como vimos, expunha-se às “precipitações críticas” e às “ofensas do céu”, diante das quais se coloca uma aile refusée (aqui, “asa recusada”), temos em Mallarmé uma pedra a barrar “os voos da Blasfêmia”. A pedra pongiana, que “recusa” o voo, que se mantém ao rés do chão, reproduz desse modo o “calmo bloco caído de um desastre obscuro”. Ainda nessa ordem de imagens, via-se em Ponge a presença de um “meteoro negador”, e o termo denota indiferentemente tanto uma pedra que despenca do céu como as precipitações da chuva. A afinidade entre os dois poetas, seu paralelismo, evidentemente se acentua nessa série de imagens. Ao mesmo tempo, sugere Ponge, a ardósia tem pouco em comum com o monumento eterno mallarmeano: “é feita menos para o que deve residir na memória do que para as formulações precárias, calcárias […]” do giz sobre a lousa. Essa secura sem vitória da ardósia[39] não é a mesma do orgulhoso dique de granito de Mallarmé, assim como o túmulo de Poe não é o de Ponge… Se aqui há reflexo, espelhamento, é ainda uma vez de espelhamento imperfeito que se trata.

Entre a modéstia e a eternidade — entre o desejo de tornar, pelo texto, cada objeto presente, palpitante, palpável, e a necessidade de dar conta, pelo ofício da literatura, do tempo passado e futuro — situa-se então a ardósia de Ponge. Terne e dure (“baça” e “dura”), por certo. Mas estas duas últimas palavras do texto ecoam outras duas, éternelle (“eterna”) e dure (“dura”, do verbo “durar”). Como a dizer que, a cada tentativa moderna por parte do sujeito de entregar-se ao mundo mudo das coisas, há um mundo não moderno, ou pós-moderno, da tradição literária, da alusão, do palimpsesto, que o acompanha como uma sombra; e que é também a sua glória.

 

[1] “O murmúrio” em Métodos, tradução Leda Tenório da Motta, Rio de Janeiro, Imago, 1997, pp. 65-7. (Observo que seria possível traduzir “oficina” no lugar de “ateliê”).

[2] Proêmes, reeditado em Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, 1999, vol. 1, p. 198.

[3] Trad. Júlio Castañon Guimarães em O partido das coisas, São Paulo, Iluminuras, 2000, p. 65.

[4] Tradução Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson em ibidem, p. 105.

[5] “My Creative Method”, em Métodos, cit., p. 33.

[6] Em Métodos, cit., pp. 104-5.

[7] Ibidem, p. 85.

[8] “O mundo mudo”, em Métodos, cit., pp. 73-4.

[9] “Tentativa oral”, ibidem, p. 119.

[10] “Manifesto técnico da literatura futurista”, em Gilberto Mendonça Teles, Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação crítica dos principais manifestos vanguardistas, 13a ed., Petrópolis, Vozes, 1997, pp. 97-8.

[11] Guillaume Mainchain, “Quand il y a matière à écrire”, La Licorne, UFR Langues

[12] “Le verre d’eau”, em Méthodes; Oeuvres complètes, cit., vol. 1, p. 605

[13] Cf. Jacques Derrida, Signéponge, Paris, Seuil, 1988, p. 29 ss.; Leda Tenório da Motta, Francis Ponge — o objeto em jogo, São Paulo, Fapesp/Iluminuras, 2000, p. 42.

[14] Conferir, por exemplo, o que dizia Apollinaire, em 1913, a respeito de uma pintura que deseja “atingir as proporções do ideal, não se limitando à humanidade” (Os pintores cubistas, trad. Sueli Tomazini Barros Cassal, Porto Alegre, L&PM, 1997, p. 19). A referência básica sobre esse assunto é, obviamente, o ensaio de Ortega y Gasset, publicado em 1925, sobre A desumanização da arte, de que há tradução brasileira de Ricardo Araújo (São Paulo, Cortez, 1991). Em 1930, André Breton, em seu prefácio a Les champs magnétiques, afirmava que “a passagem do sujeito ao objeto está na origem de toda preocupação artística moderna” (citado por Lionel Cuillé, “‘Allons plus vite, nom de dieu’: la matière prise de vitesse chez Ponge” em La Licorne, cit., p. 153). Lembremos também o célebre dito de T. S. Eliot em 1917, segundo o qual a poesia não é expressão da emoção, mas “fuga da emoção” (“Tradição e talento individual” em Ensaios, trad. Ivan Junqueira, São Paulo, Art, 1989, p. 47). Ou ainda as seguintes considerações de Paul Valéry, em 1933: “O que pode haver de mais simples do que fazer as pessoas estremecerem ou se enternecerem por meio da morte, da dor ou da ternura representadas? Mal se pode chamar isso de criar. É fácil dominar um público por um espetáculo ou um discurso que vai direto ao encontro de nossa fraqueza, que tortura ou dilata os corações, fazendo com que se viva uma vida fingida, pondo em ação as potências ingênuas da vida. Mas essa arte (que chamam de humana) é portanto mentira” (“Stéphane Mallarmé” em Variété. Oeuvres Complètes,  Paris, Gallimard, 1957, vol. 1, p. 676).

[15] “Reflexões sobre o romance moderno”, em Texto/Contexto, 3ª ed., São Paulo, Perspectiva, 1976, pp. 75-9.

[16] Comment une figue de paroles et pourquoi, em Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, 2002, vol. 2.

[17] “A prática da literatura”, em Métodos, cit., p. 152.

[18] “My Creative Method”, em ibidem, p. 49.

[19] “Le Verre d’eau”, em “Méthodes”; Oeuvres complètes, cit., vol. 1, p. 586. Importa lembrar, contudo, que essa observação de Ponge ocupa um espaço bem pequeno nesse texto de trinta e tantas páginas, que se estende sobre a etimologia do termo, mas também sobre a sede, a pureza, a luz… Sem dúvida, é nossa atenção “pós-concretista” à tipografia, tanto quanto a de Ponge, que dá mais destaque ao aspecto visual do signo.

[20] Ibidem, p. 30.

[21] O partido das coisas, cit., p. 85.

[22] Francis Ponge — o objeto em jogo, cit.

[23] “A prática da literatura”, em Métodos, cit., p. 137.

[24] Em Alguma poesia: poesia completa e prosa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1973, p. 68.

[25] “Procura da poesia” em A rosa do povo, em ibidem, p. 139.

[26] Apud Sydney Lévy, Francis Ponge: de la connaissance en poésie, Saint-Denis, Presses Universitaires de Vincennes, 1999, p. 21. Outro exemplo do fascínio do dicionário em Ponge está em seus “Fragments métatechniques”, de 1922, nos quais se pode encontrar também uma breve discussão sobre o papel do “humano” da arte, que à primeira vista relativizaria nossa discussão anterior. Nouveau recueil: oeuvres complètes, cit., vol. 2, pp. 305-7.

[27] “A prática da literatura”, cit., p. 136.

[28] No original, bouvreuil, que em português significa “pisco-chilreiro”; por razões de eufonia, preferi “sanhaço”, ave também de cor cinza-azulada.

[29] Ala recusada: termo de tática militar.

[30] Espera: numa construção, é o conjunto de pedras ou tijolos soltos, “descasados”, no extremo de uma parede, aos quais se irão juntar os tijolos correspondentes de outra parede, perpendicular à primeira.

[31] Em L’atelier contemporain: oeuvres complètes, cit., vol. 2, pp. 656-7. O texto também foi publicado em Lyres (Paris, Gallimard, col. “Poésie”, 1980) e no Nouveau recueil.

[32] Como curiosidade, e para uma possível comparação, reproduzo dois textos sobre a ardósia de um livro de lições escolares.

L’ARDOISE

L’ardoise est une espèce de pierre bleuâtre très fine, qui se sépare facilement en feuilles minces.

Allons un peu dans la patrie de l’ardoise.

C’est dans les Ardennes, à Fumay et à Rimoigne, que se trouvent les principales

ardoisières de France.

Il y à la une carrière souterraine.

Les mineurs détachent d’abord de grands blocs d’ardoise; ces blocs sont alors divisés en feuilles.

Chaque feuille est ensuite polie et coupée en tablettes de différentes grandeurs. L’ardoise ainsi préparée peut servir à couvrir les toits.

L’ardoise la meilleure est celle qui est foncée, dure, sonore et ne se fend pas quand on la cloue.

La bonne ardoise dure de cinquante à cent ans.

MON TABLEAU D’ARDOISE

Prenez un morceau d’ardoise tombé d’un toit, et essayez d’écrire dessus. C’est à peine si vous pourrez distinguer vos lettres.

Mais faites un mélange d’huile et de charbon, et frottez énergiquemente votre tablette.

Vous allez voir comme maintenant toutes vos lettres vont être claires et brillantes.

Pour les crayons, on emploie une qualité d’ardoise plus molle; car, si le crayon était aussi dur que le tableau, au lieu de lignes blanches, il ne ferait que des raies.

Il y a des carrières d’ardoises dans les Ardennes qui fournissent d’excellents tableaux pour les écoles.

Les ardoises d’Anjou servent principalement pour la couverture des toits. Depuis quelques années on employe aussi une ardoise factice.

C’est un morceau de carton couvert d’un enduit composé d’huile, de sable et de charbon.

Cette ardoise en carton est plus légère et moins fragile que l’ardoise en pierre.

Elle dure moins longtemps

[33] Ver Jacques Derrida, Signéponge, cit.

[34] Caberia lembrar aqui outro texto de Ponge, em que, depois de várias páginas descrevendo “O prado”, o autor coloca sua assinatura, como a indicar que seria enterrado ali, dizendo, no final do texto:

[…] Senhores tipógrafos,

Coloquem então aqui, o traço final.

Depois, embaixo, sem nenhum entrelinhamento, depositem meu nome, Posto em caixa-baixa, naturalmente,

Exceto as iniciais, por certo, Uma vez que são também

As do Funcho e da Primavera Que amanhã crescerão por cima.

————

Francis Ponge

“Le Pré”, em Nouveau recueil: oeuvres complètes, cit., vol. 2, p. 344. (Traduzi prêle, “cavalinha”, por “primavera”, para manter uma planta começando com p.)

[35] Pour un Malherbe, apud Leda Tenório da Motta, cit., p. 33.

[36] “De l’éternel azur la sereine ironie/ Accable, belle indolemment comme les fleurs/ Le poète impuissant qui maudit son génie/ À travers un désert stérile de douleurs.// Fuyant, les yeux fermés, je le sens qui regarde/ Avec l’intensité d’un remords aterrant,/ Mon âme vide. Où fuir? Et quelle nuit hagarde/ Jeter, lambeaux, jeter sur ce mépris navrant?// Brouillards, montez! Versez vos cendres monotones/ Avec de longs haillons de brume dans les cieux/ Qui noiera le marais livide des automnes/ Et bâtissez un grand plafond silencieux!// Et toi, sors des étangs léthéens et ramasse/ En t’en venant la vase et les pâles roseaux,/ Cher Ennui, pour boucher d’une main jamais lasse/ Les grands trous bleus que font méchamment les oiseaux […]”. Na tradução de Augusto de Campos: “De um infinito azul a serena ironia/Bela indolentemente abala como as flores/ O poeta incapaz que maldiz a poesia/ No estéril areal de um deserto de Dores.// Em fuga, olhos fechados, sinto-o que espreita/ com toda a intensidade de um remorso aceso,/ A minha alma vazia. Onde fugir? Que estreita/ Noite, andrajos, opor a se feroz desprezo?// Vinde, névoas! Lançai a cerração do sono/ Sobre o límpidocéu, um farrapo noturno,/ Que afogarão os lodos lívidos do outono,/ E edificai um grande teto taciturno.// E tu, ó Tédio, sai dos pântanos profundos/ Da desmemória, unindo o limo aos juncos suaves/ Para tapar com dedos ágeis esses fundos/ Furos de azul que vão fazendo o ar as aves” (Mallarmé, 2ª ed, São Paulo, Perspectiva, 1980, pp.41-3)

[37] Plus me plaist le sejour qu’ont basty mes ayeux/ Que des palais Romains le front audacieux;/ Plus que le marbre dur me plaist l’ardoise fine,// Plus que mon Loire gaulois, que le Timbre latin,/ Plus mon petit Lyré, que le Mont Palatin:/Et plus que l’air marin la douceus Angevine”(Du Bellay, Les Regrets, Paris, Garnier-Flammarion, 1971, pp. 75-6). A tradução citada é a de E. Vilhena Morais, em Raymundo Magalhães Jr. (org), O Livro de ouro da poesia da França, Rio de Janeiro, Ediouro, s.d, p. 84.

[38] “Calme le bloc ici-bas chu d’un désastre obscur,/ Que ce granit du moins montre à jamais as borne/ Aux noirs vols du blaspheme épars dans le future”(Mallarmé, cit. pp. 66-7).

[39] A chuva, “meteoro negador” no texto de Ponge, logo se seca: “D’humide à humble elle perd ses voyelles”. Tentei traduzir o jogo de palavras, dizendo: “de úmida a humilde ela perde seu hausto”, no sentido de uma queda no ímpeto , no fôlego, da palavra proparoxítona.

    Tags

  • A ardósia
  • Anatol Rosefeld
  • anti-subjetivo
  • arte moderna
  • associação
  • Carlos Drummond de Andrade
  • coisas
  • concreto
  • eu
  • futurismo
  • imobilidade
  • Joachim du Bellay
  • L’ardoise
  • linguagem
  • lirismo
  • literatura francesa
  • livro
  • logoscopia
  • Marinetti
  • materialidade
  • metáfora
  • modernismo
  • morte
  • movimento
  • mundo
  • mutismo
  • objeto
  • palavra
  • pensamento
  • poesia
  • poeta
  • prosa
  • real
  • reflexo
  • ressureição
  • Stéphane Mallarmé
  • subjetividade
  • sujeito