1990

Princípio da liberdade

por Nelson Levy

Resumo

A liberdade é antropogenética. A espécie Homo começa pela invenção dos desejos e se configura plenamente na tentativa de realizá-los através da ação. Não somos livres antes da ação e não somos livres depois da ação.

Logo, o desejo é o lugar privilegiado da liberdade, pois se constitui pela autonomia criativa e legisladora do ser. Também a tradição religiosa judaico-cristã reconhece no desejo o lugar de uma não-determinação objetiva; o lugar de uma liberdade perversa e destrutiva, quando não libertina e até mesmo liberticida.

Toda a vertente racionalista dogmática, assim como a tradição judaico-cristã, perseguiu uma desqualificação do desejo, e, portanto, da autonomia enquanto lugar privilegiado da liberdade.

Trata-se de uma tradição que só se manifesta culturalmente sob uma inversão do significado dos termos autonomia e alienação. O desejo, símbolo da nossa possibilidade de autonomia, passa a ser designado como alienação ao Mal.

Entretanto, o desejo não representa a força do Mal e sim nossa capacidade específica de definir os critérios do Bem e do Mal.
Toda ordem desejante (ética) só estaria de acordo com a liberdade quando simplesmente refletisse a consciência de uma determinação universal objetiva qualquer. Assim, todo desejo só poderia ser considerado como autenticamente humano na medida em que estivesse plenamente reduzido a uma intenção de conformidade com a consciência de um destino predeterminado pelo predicado mais objetivo do ser.

Consequentemente, a liberdade e a transcendência (Dever Ser) tornavam-se redutíveis à condição de matérias dependentes de um prévio conhecimento do “destino humano absoluto”.

Em Kant, para agirmos como seres racionais, basta desejarmos viver de acordo com os princípios universais de uma ética da razão, e nos orientarmos em conformidade moral com essa ética. 
No entanto, Kant pressupõe que um reino autenticamente humano só pode ser legitimado por um universal absoluto, ou seja, pela unificação de todos sob a regência de uma causa primeira do ser. Para Kant, a despeito da obscuridade do desejo, é por ele que os Humanos podem se reconhecer objetivamente e é nele que encontram sua capacidade de plena subjugação da natureza mecanizada. No desejo assumido universalmente descobrimos nossa onipotência.

De modo que os indivíduos, ao aderir a esse valor absoluto, pudessem também orientar a sua conduta por um dever moral absoluto (imperativo categórico) que anulasse todos os deveres para com outros desejos.

Kant sucumbe ao círculo vicioso da alienação de um agente desejante que teme sua relatividade imanente e só se sente seguro como escravo de um Absoluto qualquer.

O resgate da autonomia da faculdade desejar — como princípio dirigente da ação humana — não pode ignorar a necessária unidade de ética e ciência, desejo e necessidade, moral e temporalidade, paixão e razão.

A filosofia ético-prática se concentra numa tríplice ordem de intenções complementares: estabelecer os critérios mais gerais da transcendência; propor um conjunto de valores avaliados como os mais adequados para a regência de um modo humano de vida, num determinado momento histórico; sugerir os meios mais coerentes para a realização da ordem de valores proposta.

Por isso, é preciso insistir em que a filosofia ético-prática só se preserva na condição de se pressupor a atividade ética dotada de uma relativa capacidade de avaliação e sugestão dos fins humano-universais. De tal forma que as suas prescrições se pretendem objetivas apenas mediante um acordo intersubjetivo num determinado momento do devir humano.

 


O tema de que me ocupo neste trabalho é a liberdade. Qual a relação que compõe o seu conceito? E, dado o seu conceito, qual o domínio adequado ao saber de si da liberdade e às suas expressões metódicas?

A liberdade encontra o seu significado mais geral no reconhecimento de uma faculdade humana de não-sujeição a qualquer poder exterior, seja ele imposto por um semelhante, ou então pelos sistemas natural-mecânicos, ou, ainda, por uma pretensa potência divina.

Entretanto, pouco importa que se atribua ao ser livre um poder absoluto ou apenas relativo de não-sujeição às determinações exteriores: a liberdade, sem dúvida, não pode se definir senão a partir de uma relação com a ordem de determinações natural-mecânicas que constitui um dos segmentos dos nossos legados genéticos.

Decididamente, é impossível eliminar da liberdade o ônus da satisfação das necessidades objetivas que emanam do nosso sistema natural-mecânico. Pois, à margem dessa satisfação, o ser simplesmente não se objetivaria.

Todavia, reduzir o conceito do ser livre à simples consciência realizada das necessidades objetivas equivale, literalmente, a afirmar que a liberdade é a não-liberdade conscientizada e assumida na prática. E, assim, estaremos diante de um conceito constituído por uma contradição em termos, em que a liberdade se define pela sua própria negação.

A rigor, para obtermos uma definição afirmativa da liberdade, é indispensável encontrar na própria condição do ser livre uma faculdade cujas determinações transcendam e se sobreponham ao fatalismo da ordem natural-mecânica.

Então, cumpre perguntar: qual a faculdade do ser que lhe permite expressar-se e afirmar-se para além das determinações natural-mecânicas? Ou ainda: através de que faculdade o ser pode se orientar privilegiadamente por necessidades não-objetivas?

Ora, como o não-objetivo só se encontra na subjetividade, podemos então pressupor que: o ser livre é aquele capaz de se autodeterminar por leis subjetivas e, portanto, é aquele dotado de autonomia. Logo, o centro nevrálgico da questão da liberdade reside na autonomia.

Por outro lado, a autonomia depende intrinsecamente da faculdade de imaginação, porque apenas esta última detém a propriedade de inventar determinações ou ordenamentos subjetivos. Portanto, a gênese da autonomia situa-se no poder da imaginação em constituir uma instância subjetiva, que dirige o modo humano de vida.

A autonomia, convém acrescentar, se legitima duplamente. Primeiro, pela faculdade especificamente humana de legislar a partir de postulações imaginárias. Segundo, pela crença humano-universal nessas postulações imaginárias como finalidade ou princípios éticos que fornecem sentido à vida estritamente natural-mecânica.

Certo, a autonomia depende intrinsecamente da faculdade de imaginação. No entanto, é preciso esclarecer que a faculdade de imaginação se exercita em duas direções.

Na primeira, ela atua sobre a capacidade de re-criação das coisas naturais, segundo as leis objetivas da própria natureza. É assim que ela interfere na atividade cognitiva e também no saber-fazer (técnica).

Na segunda, ao contrário, a faculdade de imaginação se afirma como capacidade de criação de uma natureza subjetivamente ordenada; de uma natureza humana para si. E aqui ela deve ser dita faculdade de desejar. Ou seja, faculdade de conceber imaginariamente os fins ou sentidos da vida humana e de viver objetivamente para esses fins ou sentidos.

Por conseguinte, a autonomia é uma propriedade do ser enquanto agente desejante e corresponde, portanto, à referida faculdade tipicamente humana de governar a vida em si mesma pela ordem do desejo, ou pela ordem ética.

Ora, se possuímos a faculdade natural de autodeterminação por nossos desejos, ou fins imaginários, ou princípios éticos, então é porque constituímos uma espécie que pode ser definida como biologicamente ética e eticamente biológica. Isso significa que a faculdade de desejar emerge da natureza como possibilidade de ordenamento subjetivo da própria natureza. E a essa capacidade pode-se denominar naturalismo do imaginário.

Nesse caso, o naturalismo do imaginário decorre da condição dos Humanos enquanto seres bio-ético-culturais, e se expressa através da necessidade e da capacidade de sobredeterminar, pela via da ordem desejante (ou ética), nosso sistema natural-mecânico.

Assim é que os Humanos são seres de natureza dual, na própria medida em que só satisfazem suas necessidades bio-físicas envolvendo-as com as utopias (ou mitos) da faculdade de desejar. Daí que tanto a vida na carência material quanto a vida sem sentido ético podem se constituir como fatores degenerativos da condição humana.

Importa ainda adicionar que a faculdade de desejar encontra-se também viabilizada pelo caráter multiplamente determinado do nosso ser estritamente biológico; ou de nosso sistema de necessidades natural-mecânicas.

Como a natureza mecanizada do ser é composta por uma unidade de propriedades opostas e complementares, ela pode variar infinitamente de acordo com cada ordenamento desejante. Noutros termos, a faculdade de desejar só se viabiliza porque lhe é dado o poder de hierarquizar nossos controles mecânicos, adaptando-os à própria hierarquia contida em cada ordem ética específica. E, ao mesmo tempo, só podem ser controlados uns pelos outros porque são múltiplos, opostos e complementares e, por isso mesmo, não estão sujeitos intrinsecamente a nenhum monismo da causa primeira.

Por exemplo, se fôssemos seres estritamente egoístas, esse nosso predicado seria em si mesmo incontornável. De tal modo que, se mesmo assim fosse possível aderir a princípios subjetivos em oposição ao nosso ser hegemonicamente egocêntrico, jamais poderíamos realizá-los, porque eles seriam imediatamente bloqueados pelo nosso sistema de controles biológicos. Nesse caso, a faculdade de desejar não poderia exercitar-se, pois estaríamos inteiramente subordinados a uma ordem monista de necessidades objetivas.

Ocorre que os Humanos serão eternamente unos na dualidade de seres sociais e individuais, físicos e simbólicos, biológicos e ético-culturais, apaixonados e racionais, movidos pelo instinto de conservação e pelo amor ao próximo (ou pelo desejo do Outro).

E justamente porque a natureza humana é constituída por uma unidade de antinomias plurais e complementares, ela se deixa moldar e redefinir por uma ilimitada possibilidade de re-hierarquização subjetiva das determinações mecânicas.

Porém, se somos seres inerentemente múltiplos, nossas ordens éticas ou valorativas devem também, ao menos em tese, se fundar numa combinação complexa de desejos (ou valores) opostos e complementares, caso contrário nos encontraremos na obrigação de reprimir e violentar a própria complexidade de nossa natureza.

Todavia, é preciso sublinhar que somos livres até para atentar contra nossa natureza, escolhendo o caminho da alienação e da escravização a um modo de vida fundado numa perspectiva unidimensional e absolutizada do ser. Podemos inclusive, a exemplo de todas as ideologias que se sucederam ao longo da história, imaginarmo-nos como seres absolutamente determinados por uma pretensa essência hegemônica, ou seja, como seres constituídos por um monismo da causa primeira de origem natural ou divina. E, consequentemente, esmagar em cada um de nós a pluralidade que nos foi naturalmente dada, ao cultuar aquela pretensa causa primeira como um Valor Absoluto da humanidade.

Em suma, podemos, por exemplo, viver estritamente para a Humanidade ou para uma Divindade qualquer e reprimir toda nossa individualidade, ou, ao inverso, viver egocentricamente para a afirmação de uma singularidade que já não enxerga mais a humanidade. Mas a que preço senão o da fragmentação patológica da unidade do nosso ser?

Pois bem, se inclusive nossas determinações natural-mecânicas são múltiplas, opostas e complementares, e podem ser hierarquizadas por um ordenamento ético, então da heteronomia é possível dizer que ela é apenas parcial. Mas, por outro lado, também nossa autonomia deve ser considerada como parcial e relativa, porque é faculdade de um ser submetido à heteronomia.

Portanto, do exposto, é possível deduzir um conceito de liberdade fundado na unidade de heteronomia e autonomia parciais e relativas que compõe a espécie humana.

Como se observa, a liberdade não é a causa final da humanidade. Logo, não tendemos para um “reino da liberdade ou da Salvação” concebido como Fim humano absoluto e Fim da liberdade. A liberdade é, a rigor, antropogenética, ela é o momento decisivo da constituição da espécie Homo.

A liberdade começa pela invenção dos desejos e se configura plenamente na tentativa de realizá-los através da ação. Só nos conduzimos em liberdade na ação, nem antes nem depois, como afirma Hannah Arendt. Antes da ação, ainda não somos livres porque nos encontramos na condição de escravos de um desejo insatisfeito. Depois da ação, também não o somos, pelo menos enquanto nos mantivermos como escravos da reprodução dos nossos desejos institucionalizados .

Em suma, o desejo é o lugar privilegiado da liberdade, pois se constitui pela autonomia criativa e legisladora do ser. Autonomia criativa porque nenhum desejo pode ser deduzido plenamente de uma necessidade objetiva. E autonomia legisladora porque cada desejo se impõe a si mesmo como uma lei que governa universalmente os agentes.

O desejo, desde a tradição greco-latina, foi considerado como algo que está ausente dos astros, quer dizer, como algo cuja determinação não provém diretamente de qualquer sistema mecânico.

Também a tradição religiosa judaico-cristã reconhece no desejo o lugar de uma não-determinação objetiva; o lugar de uma liberdade perversa e destrutiva, quando não libertina e até mesmo liberticida.

A alegoria bíblica do “pecado original” revela, genialmente, esta concepção do desejo como expressão de uma liberdade ou de uma força a-racional que deve ser controlada em favor da salvação humana pela completa adesão às leis objetivas do Senhor.

Antes de prosseguirmos, vale a pena abrir um espaço para uma hermenêutica do “pecado original”. Como se sabe, nessa alegoria, quatro personagens refletem sobre um objeto: Jeová, a Serpente, Adão, Eva e, finalmente, a maçã.

Jeová, o Criador, legou às suas criaturas um paraíso. E esse paraíso equivaleria a um reino das necessidades objetivas satisfeitas. Adão e Eva, ao se comportarem como seres governados pelas leis do Senhor, podiam satisfazer espontaneamente, sem qualquer esforço laborativo, todas as suas necessidades biofísicas. Daí que se poderia defini-los como seres objetivamente satisfeitos.

Mas há uma força desestruturadora que se intromete no âmbito da Criação. Algo equivalente a uma suposta força cósmica a-racional que não se conforma às leis do paraíso divino e pretende instaurar nele a sua própria lei.

Jeová situa na maçã a presença simbólica dessa força diabólica e, na serpente, o veículo pelo qual ela exerce seu poder de tentação ou de sedução. Jeová então converte a maçã no fruto proibido.

O ato de comer a maçã, por estar ausente das determinações vitais de Adão e Eva, se constituiria como um ato da possibilidade de autonomia face ao próprio Criador; como um ato de desobediência face a qualquer imposição externa; como um ato de autodeterminação humana por suas leis subjetivas; enfim, como um ato para a realização de um desejo.

A autonomia do desejo, justamente por escapar ao controle das leis objetivas do Senhor, é caracterizada pela alegoria bíblica como uma falsa autonomia, pois não seria imanente à criatura, mas implantada por uma pretensa força cósmica a-racional. Assim, o desejo seria fonte de escravização humana a uma força do Mal. Enquanto a conformidade com as leis objetivas do Senhor, essa sim, seria a fonte de uma liberdade adquirida pela redução de todo Bem ao reino das necessidades objetivas satisfeitas.

Como se sabe, na trajetória da civilização ocidental, a tradição judaico-cristã se encontra, num mesmo vértice, com a tradição racionalista, desde a Antiguidade clássica até a mais recente modernidade. Portanto, para ficarmos no estrito domínio do pensamento filosófico, é válido postular que, de Platão a Marx, toda a vertente racionalista dogmática perseguiu também uma desqualificação do desejo, e, portanto, da autonomia enquanto lugar privilegiado da liberdade. Desqualificação que sempre se fez acompanhar de um culto da liberdade concebida como consciência realizada da necessidade.

A rigor, trata-se de uma tradição que só pode se manifestar culturalmente sob uma inversão do significado dos termos autonomia e alienação. O desejo, que é o símbolo da nossa possibilidade de autonomia, passa a ser designado como alienação ao Mal. Enquanto a vida conforme à satisfação das necessidades objetivas, exigência de nossa condição de escravos, converte-se no paradigma da liberdade e no Bem humano-universal.

No entanto, embora contra a sua própria intenção, a alegoria bíblica nos indica exatamente que o reino das necessidades objetivas satisfeitas não nos satisfaz o suficiente, porque não esgota toda a nossa graça.

Decididamente, a transmutação da mera animalidade à humanidade é comandada justamente pela função vital que o universo imaginário exerce para os Humanos. O desejo não está na serpente mas em nós mesmos, é apenas um produto de nossa faculdade de desejar. O desejo não representa a força do Mal, e sim nossa capacidade específica de definir os critérios do Bem e do Mal.

Portanto, não precisamos nos martirizar por nossa condição de agentes desejantes. Não é por assumi-la na prática que pecamos. Ao contrário, só investimos contra a humanidade e contra a liberdade enquanto não nos reconhecermos e nos dirigirmos transparentemente por nossas ordens desejantes (éticas) — quer dizer, enquanto não nos assumirmos como agentes desejantes — autônomos e responsáveis.

Kant está certíssimo ao ponderar que os Humanos só podem se afirmar como seres morais quando sua conduta estiver dirigida por uma consciência da capacidade humana de autodeterminação por suas leis subjetivas e pela crença nessas leis, como se fossem leis em si mesmas objetivas.

Por isso, o conceito de moral do escravo encontra-se na fronteira do conceito de amoralidade. O escravo conduz-se quase amoralmente, pois sua ética submete as aspirações subjetivas aos ditames da conservação de si no ser dado.

O escravo das necessidades objetivas escolhe o destino da vida predominantemente coisificada, e justifica ideologicamente sua opção como produto inevitável de um sistema de determinações natural-mecânicas ou então divinas. O escravo só se sustenta enquanto tal mediante uma subjetividade patológica (ou ideologizada) que oculta sua ordem desejante (ética) sob o manto de um princípio de causalidade exterior.

Resta agora examinar os domínios que se impõem ao saber de si do ser livre a partir do próprio conceito de liberdade.

Quando o racionalismo dogmático e a teologia judaico-cristã situam o eixo da liberdade (ou da Salvação) na consciência da necessidade, comprometem-se imediatamente com um certo domínio do conhecimento (ou do pseudoconhecimento) destinado a revelar as condições de realização do ser livre pelo seu acordo com a determinação mais objetiva e universal do ser em si mesmo.

E, sempre que o critério da liberdade se resume à consciência realizada da necessidade, não resta à faculdade de desejar senão submeter-se à hegemonia daquela consciência.

Isso significa que toda ordem desejante (ética) só estaria de acordo com a liberdade quando simplesmente refletisse a consciência de uma determinação universal objetiva qualquer. Assim, todo desejo só poderia ser considerado como autenticamente humano na medida em que estivesse plenamente reduzido a uma intenção de conformidade com a consciência de um destino predeterminado pelo predicado mais objetivo do ser. Em suma, todo desejo só seria legítimo quando se exprimisse como um desejo-antidesejos.

Ora, aceitos esses pressupostos, não caberia outra sorte à faculdade de desejar senão a de se submeter ao domínio da razão teórica ou então à hegemonia da razão divina. Sim, porque apenas estas duas podem pretender, ainda que ilegitimamente, elevar-se à consciência de um universal absoluto (objetivo).

Consequentemente, a liberdade e a transcendência (Dever Ser) tornavam-se redutíveis à condição de matérias dependentes de um prévio conhecimento do “destino humano absoluto”. Conhecimento este a ser conquistado pela via do saber teórico ou então da simples revelação pela fé religiosa.

Desde que se passava a exigir a legitimação do Dever Ser pelo acordo com uma pretensa determinação absoluta do ser, a filosofia ético-prática se descaracterizava enquanto expressão teórica fundada na autonomia da faculdade de desejar. Pois, a rigor, quando a ordem desejante ou ética já não pode, no fundamental, se justificar por si mesma — por sua capacidade intrínseca de sedução —, toda a autonomia da filosofia ético-prática desmorona, e ela já não pode mais se definir pelo estatuto de teoria da liberdade e da transcendência.

Nesse caso, ou se substitui plenamente a filosofia ético-prática por uma ciência do absoluto (Marx) ou por uma Teodicéia (Hegel), ou então se atribui a esse domínio filosófico a função rebaixada de encontrar as formas mais universais de adequação coletiva a um destino — a um Dever Ser — pretensamente alicerçado na descoberta científica da essência mais objetiva do ser (Platão, Aristóteles, Hobbes, etc.).

Coube a Kant retirar desse mito o seu invólucro mistificador e deixá-lo desnudo como simples mito.

Literalmente, Kant interdita todas as tentativas mistificadoras que pretendem representar um simples desejo — um simples mito — como um destino predeterminado e revelado por um pseudoconhecimento qualquer.

Para agirmos como seres racionais, alega genialmente esse filósofo, é de todo irrelevante qualquer conhecimento científico que nos comprove como seres de razão. Para agirmos como seres racionais, basta desejarmos viver de acordo com os princípios universais de uma ética da razão, e nos orientarmos em conformidade moral com essa ética.

Sob a ótica kantiana, todo imperialismo da razão teórica no campo da filosofia ético-prática deve ser denunciado como camuflagem ideológica de um agente ético que quer universalizar a sua ordem desejante, representando-a como determinação imposta por uma ordem universal objetiva qualquer.

Mesmo porque, segundo Kant, o conhecimento da essência da coisa, da “coisa em si”, não é acessível à razão humana. Portanto, qualquer saber teórico concebido como ciência da causa objetiva absoluta do ser encontra-se desqualificado por uma pretensão que ultrapassa os limites do conhecimento humano. E, portanto, encontra-se, a priori, destinado a produzir um falso conhecimento.

No entanto, se, por um lado, Kant resgata o estatuto da filosofia ético-prática enquanto teoria da liberdade e da transcendência, por outro lado, ele a perde integralmente nas filigranas de uma metafísica dos costumes. Por quê?

Primeiramente, tal qual os seus opositores, Kant pressupõe que um reino autenticamente humano só pode ser legitimado por um universal absoluto, ou seja, pela unificação de todos sob a regência de uma causa primeira do ser.

A diferença é que, sob o ponto de vista kantiano, mesmo se a causa primeira objetiva do ser fosse dada ao conhecimento, ela nada mais poderia revelar do que a simples essência da animalidade humana. Pois, movidos por universais objetivos, os Humanos apenas se comportam, como todos os animais, sob o domínio de um encadeamento mecânico de causas e efeitos.

Portanto, o veio propriamente humano — e, por conseguinte, a sua liberdade — só poderia ser visualizado na capacidade de estabelecer uma ordem desejante e de viver universalmente para a realização dessa ordem.

Para Kant, a despeito da obscuridade do desejo — que o configura como matéria não-científica —, é por ele que os Humanos podem se reconhecer objetivamente, e é nele que encontram sua capacidade de plena subjugação da natureza mecanizada. No desejo assumido universalmente descobrimos nossa onipotência; é por ele que tudo podemos; é através dele que nos elevamos à condição de deuses terrestres.

Entretanto, segundo Kant, quando a faculdade de desejar se fixa em desejos, mesmo que apenas parcialmente contaminados pela ordem da necessidade, ela permanece ainda sob o domínio de uma relatividade ética e moral.

Assim, a faculdade de desejar só poderia se afirmar como causa da realização da humanidade quando se deixasse governar (ou anular) por um desejo-antidesejos, isto é, por um desejo ou valor absoluto com o qual todos os Humanos se identificassem a priori e reconhecessem nele sua causa primeira subjetiva.

De modo que os indivíduos, ao aderir a esse valor absoluto, pudessem também orientar a sua conduta por um dever moral absoluto (imperativo categórico) que anulasse todos os deveres para com outros desejos.

O problema é que a autonomia da faculdade de desejar só pode se afirmar para além de qualquer crença no absoluto. Quando Kant avalia a vida estritamente racional como um Valor Supremo, ele deve justificá-lo também como uma causa primeira da humanidade.

Não importa se essa causa primeira é concebida como uma lei universal subjetiva, à qual os Humanos estariam obrigados por absoluto dever moral, ou se ela é imaginada como uma determinação universal objetiva do ser enquanto simples criatura.

Para a alienação da autonomia é irrelevante a justificação de qualquer ordem ética por intermédio de uma causa subjetiva absoluta ou de uma causa objetiva absoluta. Pois, nos dois casos, já não se admite que qualquer outro desejo (ou valor) contraposto possa vir a ser eleito como um Bem universal para os Humanos. Nesse caso, todo valor que se opusesse a um determinado absoluto justificaria contra si uma verdadeira guerra santa, porque seria imediatamente avaliado como um valor contraposto à causa primeira da humanidade.

Em suma, sob o domínio de qualquer universal absoluto, a autonomia e a transcendência já não encontram nenhuma legitimidade para se expressarem.

Eis por que, enquanto a tradição objetivista define a liberdade como consciência universal plenamente adequada a uma necessidade absoluta, em detrimento de todo desejo, a filosofia kantiana termina por defini-la, implicitamente, como consciência universal de um dever absoluto para com a causa subjetiva absoluta da humanidade, em detrimento de todos os demais desejos e de todas as necessidades.

A rigor, Kant sucumbe ao círculo vicioso da alienação de um agente desejante que teme sua relatividade imanente e só se sente seguro como escravo de um Absoluto qualquer.

E como o Absoluto de Kant pretende ser de natureza estritamente subjetiva, sua filosofia ético-prática termina subsumida em uma metafísica do imperativo categórico, que exige uma ruptura radical da ação humana com qualquer consciência da necessidade, e, por conseguinte, com qualquer ciência.

Ocorre que o exercício da liberdade, ainda que fundado sobre a hegemonia da faculdade de desejar, encerra uma incontornável unidade de autonomia e heteronomia. Portanto, dada a exigência de preservação desta unidade ontológica, os ordenamentos desejantes não podem prescindir de uma justificação parcial e relativa dos seus imaginários no sistema mecanizado do ser.

Assim sendo, o resgate da autonomia da faculdade desejar — como princípio dirigente da ação humana — não pode ignorar a necessária unidade de ética e ciência, desejo e necessidade, moral e temporalidade, paixão e razão.

Decididamente, uma teoria da liberdade e da transcendência deve encontrar o seu campo de reflexão na atividade ético-prática que decorre da capacidade intrínseca aos Humanos de se multiplicarem na criação de novas ordens desejantes (éticas) como princípios fundacionais dos modos humanos de vida.

Enquanto o objeto das ciências humanas não pode ultrapassar a conduta humano-comportamental — sempre movida por forças diversas que pressionam para a conservação de si no ser dado —, a ética, ao contrário, caracteriza-se como atividade idealmente teleológica que instaura os fins de modo relativamente arbitrário.

A ética, para usarmos a excelente definição de Polin,

interpreta, inventa, ordena um conjunto de valores e significações, e tenta estabelecer, na realidade, uma ordem que a justifique. Ela visa estabelecer um certo tipo de relações entre os homens definíveis e inteligíveis a partir dos seus sentidos e dos seus valores.[1]

Assim, toda atividade idealmente teleológica só é autêntica enquanto associada a uma vontade de intervenção recriativa do real humano (vontade de poder). Quer dizer, a ética dissociada da práxis (ação) renuncia ao mundo, torna-se abúlica, entrincheirada em si mesma, fonte de escapismos e de frustrações.

Em resumo, a filosofia ético-prática não se debruça sobre as coisas. Ela não visa os Humanos como fatos plenamente científicos e, portanto, subordinados aos determinismos biofísicos, ou mesmo submetidos às leis de um determinado sentido objetivado (história científica e sociologia). Tudo o que ela pretende é refletir sobre um determinado estado de inquietude de si dos Humanos e fornecer novas alternativas axiológicas.

A filosofia ético-prática se concentra numa tríplice ordem de intenções complementares. Estabelecer os critérios mais gerais da transcendência. Propor um conjunto de valores avaliados como os mais adequados para a regência de um modo humano de vida, num determinado momento histórico. E, finalmente, sugerir os meios mais coerentes para a realização da ordem de valores proposta.

Por isso, é preciso insistir em que a filosofia ético-prática só se preserva na condição de se pressupor a atividade ética dotada de uma relativa capacidade de avaliação e sugestão dos fins humano-universais. De tal forma que as suas prescrições se pretendem objetivas apenas mediante um acordo intersubjetivo num determinado momento do devir humano.[2]

O caráter relativo das avaliações e prescrições da atividade ético-prática é correlativo ao fato de ser ela emanação da autonomia criativa e autolegisladora da faculdade de desejar. Se existisse um real poder de descortinar uma universalidade absoluta dos fins, ele equivaleria à realidade de um sentido predeterminado para a vida humana, estabelecido por forças exteriores que dispensariam qualquer atividade idealmente teleológica. Pois, como vimos, se houvesse um sentido predeterminado, este deveria ser descoberto” por uma atividade científica ou então teológica.

Portanto, quer a faculdade de desejar seja utilizada na atividade legisladora de um indivíduo para si mesmo, quer ela seja utilizada para a legislação de fins universais, suas leis jamais ultrapassarão a condição de relatividade (subjetividade) que lhe é inerente.

Rigorosamente, o absoluto da faculdade de desejar é o estigma da relatividade. Portanto, por mais que uma ordem hierárquica de valores valha absolutamente para uma determinada comunidade axiológica, esse valer em absoluto é sempre relativo, pois continua na dependência do arbítrio da faculdade de desejar.

Eis por que todo desejo de Absoluto — a partir do qual o agente desejante deve se fixar num monoteísmo do Valor Supremo — equivale a um movimento de castração da faculdade de desejar que termina por inviabilizar a filosofia ético-prática.

O desejo de Absoluto é correlativo ao “pathos da verdade que conduz à destruição” (Nietzsche). É que esse desejo só pode se justificar pela negação da verdade em si mesma do mito (desejo) e pela sua afirmação enquanto pretensa verdade de uma causa primeira. O desejo de Absoluto, em geral, obriga a que a objetividade da verdade subjetiva se desloque da órbita do agente desejante para a esfera do objeto, isto é, da ordem ética para a ordem ideológica. E então ele passa a exigir que as relações inter-humanas se fundem sobre o mito da verdade absoluta. Ocorre que esse mito é, ao mesmo tempo, a mais subjetiva de todas as crenças e a mais deletéria de todas elas, porque o seu reconhecimento, além de requerer o esfacelamento da unidade pluralista do ser, pretende bloquear, definitivamente, qualquer movimento de transcendência do agente desejante por sua adesão a novos mitos.

Portanto, só a emancipação face ao Absoluto pode restaurar a convicção ateia de que a dimensão autenticamente humana do Homo se situa no poder objetivo de dirigir sua ordem física e mecanizada por intermédio de uma ordem mítica (ética).

Só no momento em que a humanidade se autodefina universalmente através da verdade objetiva do mito é que as relações inter-humanas poderão se fundar sobre um princípio de transparência que dispensa o recurso a qualquer expediente ideológico, pelo qual se tente ocultar o mito em si mesmo sob o manto de um Mito da Razão laica ou divina. Se bem que, devido à obscuridade imanente do desejo, essa transparência jamais possa ser-plena, ela é suficiente para alicerçar as relações inter-humanas sobre um nível de tolerância e maturidade até hoje jamais alcançado.

Por outro lado se toda a ação humana é dirigida por princípios subjetivos que não são imediatamente dedutíveis de um saber teórico nem da fé religiosa, e se, ao mesmo tempo, esses princípios servem como fundamento dos universais humanos, então é porque inexiste uma relação imanente entre o saber teórico ou a revelação divina e a constituição do poder público. Quer dizer, se ao poder público é dado dirigir uma objetividade humana fundada em princípios universais subjetivos, é porque a legitimação desse poder não é imediatamente dedutível de um saber universal do especialista pela ciência ou pela fé religiosa. Melhor ainda. Se aos Humanos é dada a possibilidade de se aceitarem diretamente por seus mitos, então esse reconhecimento dispensa a hegemonia do saber teórico ou da teologia.

Apenas quando a intersubjetividade — e a objetividade que ela funda — se legitimam por um princípio de subordinação imaginária a um Absoluto, é que se torna imperativa a exigência de uma mediação e de uma separação entre os especialistas que se autonomeiam depositários da Verdade do Ser e a maioria que a ela deve se condicionar “por força da lei ou da espada”.

Assim, a ruptura com o desejo do Absoluto revela a filosofia ético-prática como autêntico modo de pensar não só a liberdade e a transcendência mas também a própria democracia. Pois todas dependem, prioritariamente, da faculdade de desejar, que é comum à espécie como um todo, e se fundam por igual sobre a consciência de si dos agentes como unidade de desejos e necessidades múltiplas.

Mas resta ainda perguntar se uma objetividade humana alicerçada na relatividade dos universais subjetivos não seria imobilizada por uma permanente crise de incerteza e de instabilidade.

Primeiramente, deve-se convir que a certeza produzida pela fundação dos universais humanos em falsos princípios de absoluta causalidade objetiva ou subjetiva redunda tão precária quanto os seus próprios alicerces.

A incerteza é uma condição inerente à liberdade, à transcendência e à democracia. Pois a possibilidade de legitimar a realidade humana na plena certeza dependeria de uma inteira subordinação dessa realidade a um princípio determinístico qualquer. E, nesse caso, a liberdade só seria reconhecida enquanto simples consciência da necessidade ou de um dever absoluto. No entanto, se os acordos intersubjetivos pudessem se garantir por seu exclusivo apoio num Absoluto, não precisariam se amparar, em última instância, na força das armas.

Por outro lado, a plena certeza só poderia ser obtida na absoluta indiferenciação humana. Para que nos sentíssemos inteiramente seguros pela absoluta universalidade objetiva ou subjetiva de nossas convicções, seria necessário que toda a humanidade pudesse ser reduzida a uma única convicção. Por isso, o desejo de plena certeza tende para a ditadura da unanimidade, enquanto a incerteza é inerente à democracia, que foi inventada justamente para a livre expressão da pluralidade humana.

Ou seja, da incerteza pode-se dizer que é o ônus da liberdade e, ao mesmo tempo, a certeza de uma eterna possibilidade humana de criatividade e de transcendência.

Em suma, a filosofia ético-prática é também a teoria da certeza dos Humanos sobre sua condição de incerteza, instabilidade e imprevisibilidade. E, assim, ela é igualmente um humanismo ateu, desvencilhado, por seus fundamentos, de qualquer culto da Humanidade como um Fim e um Valor Supremos. Um humanismo que não revela a Humanidade como Fim, mas exatamente como eterna capacidade de recomeço pela invenção de novos fins. Um humanismo da humanidade cambiante e múltipla. E, portanto, humanismo a-racional do Homo demens (produtor de desejos, mitos, utopias). Humanismo da humanidade re-ligada enquanto uma unidade de desejos e necessidades múltiplas sempre aberta à transcendência de suas formas imaginárias.

Notas

[1] R. Polin, Éthique et politique, Paris, Sirey, 1968, p. 101.

[2] Russel é irretorquível ao afirmar que “é objetivamente certo buscar o bem geral, mas não há nada de verdadeiramente objetivo no conceito de retidão objetiva, exceto na medida em que os desejos de pessoas diferentes coincidam”. B. Russel, Ética e política na sociedade humana, Rio de Janeiro, Zahar, 1977, p. 84

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