1992

Público, privado, despotismo

por Marilena Chaui

Resumo

O pensamento moderno define a ética como a maneira humana de habitar o mundo.

Por que, então, em tempos de democracia, ensaios sobre a ética nos remetem à discussão de velhos conceitos como tirania e despotismo? Ou melhor, o que garante a permanência do déspota? Quais são as relações entre sociedade civil e mercado? Como se constrói a ética na política? De que maneira os valores são substituídos pela racionalidade técnica?

O pensamento político moderno e contemporâneo se construiu no esforço de ampliar os domínios do espaço público e instituir os valores éticos de liberdade, justiça e felicidade. Contra este ideal impera sempre a figura do déspota, que assumiu várias formas ao longo da história política, mas sempre com o mesmo objetivo: governar para atender a interesses privados. O despotismo contemporâneo age assim: trabalha pelo encolhimento do espaço público onde o que predomina é a ética do interesse e da utilidade com a crescente presença do Estado na sociedade civil e a submissão da opinião pública aos imperativos da sociedade administrada e ao domínio da indústria da cultura. Em poucas palavras: privatização do público e publicização do privado.

Lemos na conclusão do ensaio: “É exatamente isso que procura o neoliberalismo pós-moderno: à veloz dispersão e fragmentação da esfera privada do mercado e à veloz desintegração do espaço público sob os imperativos da dispersão econômica, a política procura contrapor o centro identificador perdido e o localiza na pessoa-em-imagem do governante — no ser-em-representação, de que falava Pascal. Parte integrante do universo da midia — imagem e moda, publicidade e manipulação do desejo —, a política se privatiza: a vida privada do governante ocupa toda a cena pública e, como o antigo imperador romano, seus gostos e preferências à mesa, na cama, na praça desportiva, em sua biblioteca, com seus animais de estimação e sua família são cotidianamente exibidos para o julgamento fascinado dos cidadãos. Qual imenso Narciso, como o tirano de La Boétie, o governante identifica-se com o poder, torna-se centro do saber, da lei e da direção social. Por isso a privatização do público se realiza pela perda de sentido e de poder de todas as instituições políticas capazes de servir como mediação entre o poder executivo e a sociedade.”

Rimos dos gestos e gostos duvidosos do tirano, mas muitas vezes não atentamos para o nosso estado de submissão e escravidão. É esta a astúcia do déspota moderno: em nome do povo, ele é aclamado e admirado para assim exercer “livremente” o controle sobre o povo, almas fracas que só sabem obedecer amando tirano e esquecendo os ideais éticos de liberdade, justiça e felicidade.


A crise dos valores morais

Fala-se hoje, em toda parte e no Brasil, numa “crise” dos valores morais. O sentimento dessa crise expressa-se na linguagem cotidiana, quando se lamenta o desaparecimento do dever-ser, do decoro e da compostura nos comportamentos dos indivíduos e na vida política, ao mesmo tempo em que os que assim julgam manifestam sua própria desorientação em face de normas e regras de conduta cujo sentido parece ter se tornado opaco. Uma autora sueca, Sissela Bok, decidiu escrever um livro sobre a mentira, após ter verificado que, desde o século XVII, excetuando-se alguns momentos da literatura, do teatro e do cinema, reina o silêncio quanto aos dilemas do dizer-a-verdade na vida privada e na vida pública. Sociólogos de linha durkheimiana, examinando o desamparo dos indivíduos nas escolhas morais, a presença de práticas e comportamentos violentos na sociedade e na política, a multiplicidade de atitudes transgressoras de valores e normas, falam em anomia, isto é, na desaparição do cimento afetivo que garante a interiorização do respeito às leis e às regras de uma comunidade.

Na filosofia contemporânea a “crise” transparece na existência simultânea de três linhas principais de pensamento sobre a ética, resumidas por Agnes Heller: a niilista (baseada no relativismo historicista e na etnografia), que nega a existência de valores morais dotados de racionalidade e de universalidade; a universalista-racionalista (de origem iluminista), que afirma a existência de uma normatividade moral com valor universal porque fundada na razão; e a pragmática, que considera que a democracia liberal tem sido capaz de manter com suficiente sucesso os princípios morais da liberdade e da justiça no que tange às grandes decisões sobre a vida coletiva. Em nosso cotidiano, lembra Heller, somos bombardeados pelos três pontos de vista, ainda que se excluam reciprocamente, e sua presença simultânea constitui o sintoma do que chamamos de “crise” dos valores morais.

Alguns procuram nomear a “crise” dando-lhe o nome de pós-modernidade. A modernidade, nascida com a Ilustração, teria privilegiado o universal e a racionalidade; teria sido positivista e tecnocêntrica, acreditado no progresso linear da civilização, na continuidade temporal da história, em verdades absolutas, no planejamento racional e duradouro da ordem social e política; e teria apostado na padronização dos conhecimentos e da produção econômica como sinais da universalidade. Em contrapartida, o pós-modernismo privilegiaria a heterogeneidade e a diferença como forças liberadoras da cultura; teria afirmado o pluralismo contra o fetichismo da totalidade e enfatizado a fragmentação, a indeterminação, a descontinuidade e a alteridade, recusando tanto as “metanarrativas”, isto é, filosofias e ciências com pretensão de oferecer uma interpretação totalizante do real, quanto os mitos totalizadores, como o mito futurista da máquina, o mito comunista do proletariado e o mito iluminista da ética racional e universal.

Se a modernidade havia se caracterizado pela confiança iluminista na razão como força que libera o homem do medo causado pela ignorância e pela superstição, a pós-modernidade proclama a falência da razão para cumprir a promessa emancipatória e exibe sua força opressora sobre a natureza e sobre os homens — a ecologia procura ouvir o “lamento da natureza oprimida” contra o ruído ensurdecedor da cultura, razão instrumental. Se a modernidade havia apostado na diferença entre sujeito e objeto como garantia de um saber objetivo não permeado pelas paixões e pelos interesses subjetivos, a pós-modernidade nega a validade dessa separação e proclama o reino do desejo e da sensibilidade contra as ilusões da objetividade. Se a modernidade acreditara na importância de constituir o poder político como esfera pública impessoal separada da sociedade civil e capaz de regulá-la por intermédio do Estado, tido tanto como instrumento de racionalização (pelos liberais) quanto como instrumento de dominação de classe (pela esquerda socialista e comunista), a pós-modernidade afirma que o poderio do Estado é ilusório e ilusória a dominação de classe, pois a realidade social é tecida por micropoderes capilares e disciplinadores da vida privada e sociopolítica. Se a modernidade trabalhava com grandes categorias como o indivíduo e o homem (no liberalismo) ou as classes sociais (no socialismo e no comunismo) ou o homem e os movimentos sociais (no anarquismo), a pós-modernidade fala nas pessoas, cuja identidade importa pouco porque seu ser é dado pelo sistema de diferenças que cria a alteridade ou o “outro”: mulheres, homossexuais, negros, índios, crianças, idosos, sem-teto, religiosos.

Fala-se em descentramento. Toma-se a democracia a partir da pluralidade de ações e práticas sociopolíticas e não pelas instituições onde ela se realizaria. Declara-se o fim da separação moderna entre o público e o privado, em benefício do segundo termo contra o primeiro, fazendo-se o elogio da intimidade e criticando-se os pequenos poderes na família, na escola e nas organizações burocráticas; nega-se a possibilidade de teorias científicas e sociais de caráter globalizante, pois não possuiriam objeto a ser totalizado num universo físico e histórico fragmentado, descentrado, relativo e fugaz. Prevalece a sensação do efêmero, do acidental, do volátil, num mundo onde “tudo o que é sólido derrete no ar”. Cidades são descritas e pensadas como “empório de estilos”, “enciclopédia de signos”, “teatro pluralista”, onde não mais têm validade os valores modernistas da funcionalidade, do planejamento e da permanência. Os objetos são descartáveis, as relações pessoais e sociais têm a rapidez vertiginosa do fast food, o mercado da moda é dominante e a moda, regida pelas leis de um mercado extremamente veloz quanto à produção e ao consumo. Tempo e espaço foram de tal modo comprimidos pelos satélites de telecomunicações e pelos meios eletrônicos, assim como pelos novos transportes, que o tempo tornou-se sinônimo de velocidade e o espaço, sinônimo da passagem vertiginosa de imagens e sinais.

Em lugar da linguagem como rede de significantes e significados, signos e significações, haveria “jogos de linguagem” sem sujeito, e a comunicação seria feita por uma “nuvem de elementos narrativos”, por séries de textos em intersecção com outros, produzindo novos textos nas instituições e fora delas. Em lugar das macroinstituições e dos macropoderes — particularmente o Estado — haveria discursos do poder como estratégias disciplinadoras de dimensão microfísica e capilar, sem qualquer relação com a dominação de classe, e cujo locus de exercício seria o corpo humano. A noção de intertextualidade desprovida de centro narrativo e significativo e a noção de micropoderes invisíveis desprovidos de centro, assim como a percepção da razão como essencialmente repressora, instrumental e dominadora desembocam tanto na crítica de valores que pudessem dar algum fundamento a uma ética racional e universalista quanto na crítica daquilo que permitisse nomear tal ética como ideologia, pois a noção de ideologia pressupõe, por um lado, a existência de um centro (a classe dominante) e, por outro lado, a existência da verdade (a gênese e reprodução ou a transformação de uma forma socioeconômica determinada).

Todavia, se, como pensam alguns, admitirmos que a definição exemplar da modernidade foi oferecida por Baudelaire, ao colocá-la como tensão entre o efêmero e o eterno, ou, como dizia Klee, a busca do essencial no acidental, poderíamos indagar se o pós-modernismo não seria apenas mais uma figura da modernidade, aquela que privilegia o efêmero e o acidental contra o eterno e o essencial. Admitamos, por enquanto, que o pós-modernismo seja uma figura da modernidade. Nesse caso, não podemos atribuir-lhe a origem da atual “crise” dos valores morais — ele pode, no máximo, expressá-la — e precisamos indagar se ela não se encontraria na própria modernidade.

Os antigos afirmavam que a ética, cujo modo era a virtude e cujo fim era a felicidade, realizava-se pelo comportamento virtuoso entendido como a ação em conformidade com a natureza do agente (seu ethos) e dos fins buscados por ele. Afirmavam também que o homem é, por natureza, um ser racional e que, portanto, a virtude ou o comportamento ético é aquele no qual a razão comanda as paixões, dando normas e regras à vontade para que esta possa deliberar corretamente. Embora Platão, Aristóteles, os estoicos ou os epicuristas divergissem quanto à definição das virtudes, da razão, da vontade, das paixões e da Natureza, concordavam com os princípios gerais acima expostos. Essa concordância derivava de uma outra, cuja definição também variava, mas que era a mesma como princípio geral, qual seja, a admissão da existência de uma ordem universal, de um cosmos racional, em cujo interior os homens e cada homem, assim como todas as coisas, possuíam um lugar próprio e definido que determinava a conduta racional de cada um segundo certos fins tidos universalmente como belos, bons e justos. Cada homem, no lugar que lhe era próprio, poderia, sob a conduta da razão, realizar a boa finalidade ética determinada pelo seu lugar na ordem do mundo, na ordem social e política e na ordem familiar. Ser justo, ser feliz, ser sábio, ser corajoso, ser generoso, ser prudente, ser honrado eram consequências de se estar em conformidade com a natureza: cósmica, social, política, familiar e individual. As virtudes éticas e políticas eram a atualização de uma potencialidade da natureza humana, desde que a razão pudesse comandar as paixões e orientar a vontade, pois só o ignorante é passional e vicioso.

O ideal da perfeita integração entre homens e cosmos e entre indivíduo e comunidade política (pois a cidade exprimiria a ordem natural e cósmica) levou Hegel a definir a época grega como a da bela totalidade ética, quando os valores éticos e políticos eram idênticos e formavam a moralidade propriamente dita. Por isso mesmo, duas grandes rupturas atravessaram a bela totalidade: a primeira, expressa na Antígona, quando a cisão entre os valores da família e as leis da cidade marcou a passagem da aristocracia para a democracia; a segunda, expressa pelo estoicismo, quando a cisão entre os valores éticos do indivíduo e as leis políticas indicou o desaparecimento da pólis independente, sob os efeitos do imperialismo da Macedônia e de Roma.

É bem verdade, como atestam os estudos dos últimos cinquenta anos, que nunca houve a “bela totalidade” grega. Não existiu como um fato. Mas foi desejada como um valor por uma sociedade e uma cultura que, marcadas pela desmedida, buscaram a todo custo encontrar uma medida que contivesse os homens dentro de limites postos como justos, a justiça sendo o métron do cosmos e da pólis. Quando Édipo é designado como tyrannikós (e não como rei, basileus), o que se procura indicar é sua desmedida injusta — parricídio e incesto. Quando o ostracismo é criado como instituição política, assinala o receio da cidade de que alguém, vencendo todos os outros pelo desempenho físico e argumentativo, ganhasse a supremacia e, sozinho, dominasse a pólis. Se a instituição foi criada, o perigo existia. A hybris — a desmedida — sempre rondou o ideal da vida ética justa.

Todavia, para o que queremos expor aqui, o importante no pensamento e nas instituições antigas é a ideia de uma ordem natural universal e racional onde cada ser, segundo seu grau de perfeição e de realidade, possui um lugar próprio que determina sua natureza, seu caráter, seus comportamentos e suas ações.

Mesmo com o advento do cristianismo, as mudanças, embora profundas, não abalaram a ideia da ética como pertencimento de cada ser humano a uma ordem universal cuja hierarquia determina para cada um de nós as virtudes que nos são próprias.

No entanto, algo já se anuncia, pondo em risco a integração entre ética e cosmos, preparando as dificuldades que marcarão a modernidade. Em primeiro lugar, como mostra Hannah Arendt, desloca-se o campo da liberdade. Para os antigos, a liberdade era um conceito essencialmente político, pois só na pólis alguém poderia ser livre e a liberdade era a definição mesma da cidadania. O cristianismo, porém, religião da salvação nascida fora do campo político e contra o Estado, desloca a liberdade para o interior de cada humano, articula liberdade e vontade e apresenta esta última como essencialmente dividida entre o bem e o mal. A liberdade surge como uma divisão interior entre mim e mim mesma, entre meu querer bem e querer mal, tornando-se livre-arbítrio. O cristianismo despolitiza a liberdade e, ao interiorizá-la, moraliza-a. Em segundo lugar, introduzindo o sentimento da culpa originária, coloca o vício como constitutivo da vontade e, dessa maneira, a ética não pode ser apenas a conduta racional que regula a vontade e submete as paixões, mas ainda exige a submissão da vontade humana a outra vontade, transcendente e essencialmente boa, que define desde a eternidade os valores e comportamentos morais, segundo uma finalidade que não é mais a da felicidade social, política e terrena, mas a da salvação extraterrena e extratemporal. A liberdade, além de luta interior, torna-se também luta pela ou contra a transcendência. Em terceiro lugar, e como consequência, o cristianismo subordina o ideal da virtude às ideias do dever e da obrigação, faz da humildade uma virtude desconhecida para os antigos e exige a submissão à vontade divina, tornando problemática e quase impossível a finalidade ética dos antigos, isto é, a autonomia, o dar-se a si mesmo sua norma de ação. Por isso, a liberdade se reduz ao arbítrio, à escolha entre fins já estabelecidos, segundo critérios que só a Deus pertencem. Mas, em quarto lugar, e como consequência, a noção de responsabilidade individual assume um papel desconhecido para os antigos, pois torna-se universal e faz surgir uma virtude também desconhecida para os antigos, a caridade, como responsabilidade pela salvação do outro, seja este quem for. Salvação e pecado introduzem um conteúdo extramundano para a ética e criam um paradoxo insolúvel para a liberdade de escolha: como exercer o livre-arbítrio num mundo predeterminado pela onipotência e onisciência da vontade divina?

Sem dúvida, os antigos conheciam a ideia de Providência (inúmeros nomes ela teve), mas como esta não se apresentava como um poder extranatural, a ética não se opunha a ela, uma vez que o comportamento ético era justamente a conformidade com a Natureza que era a mesma na Providência e no agente humano. E o comportamento vicioso era tido como Contranatureza. Com o cristianismo, porém, bondade e vício tornaram-se igualmente constitutivos da natureza humana e a Providência, ainda que se espalhe pelo mundo, é essencialmente diferente dele. A ética cristã traduz a afirmação dos antigos — “a virtude é agir em conformidade com a Natureza” — para: “a virtude é agir em conformidade com a vontade de Deus”. Em suma, a famosa dicotomia entre liberdade e necessidade é trazida pela teologia cristã e se transforma num paradoxo insolúvel para a ética dos cristãos, sobretudo porque a vontade divina se exprime por mandamentos e decretos anteriores e superiores aos homens, de sorte que ser livre é obedecer à exterioridade do comando divino. O vínculo entre virtude e obediência, virtude e obrigação, virtude e dever apaga a ideia da liberdade como esfera humana do humano e, portanto, como autonomia.

Ora, o que conhecemos com o nome de modernidade começa quando desaparece a ideia de uma ordem universal — seja ela imanente ao cosmos ou transcendente a ele. Em outras palavras, a modernidade começa quando termina a ideia de “mundo” (espaço finito, dotado de centro e de periferia e de “lugares” naturais) e de hierarquia natural dos seres, cedendo para as ideias de universo infinito, desprovido de centro e de periferia, e de indivíduo livre, átomo no interior da Natureza e para o qual já não possuímos a definição prévia de seu lugar próprio e, portanto, de suas virtudes próprias. É o cristão Pascal quem melhor exprime a angústia engendrada pela modernidade quando mergulha no infinito, “o centro em toda parte e a circunferência em nenhuma”, e no pavor do “silêncio desses espaços infinitos”: como Deus há de falar ao cristão e dar-lhe a conhecer Sua vontade no universo infinito?

A modernidade afasta a ideia (medieval e renascentista) de um universo regido por forças espirituais secretas que precisariam ser decifradas para que com elas entremos em comunhão. O mundo se desencanta — como escreveu Weber — e passa a ser governado por leis naturais racionais e impessoais que podem ser conhecidas por nossa razão e que permitirão aos homens o domínio técnico sobre a Natureza. A realidade passa a existir sob o modo da representação (isto é, pelo modo como é apreendida intelectualmente pelas operações do sujeito do conhecimento) e o saber se preocupa cada vez menos em dizer o que as coisas são e cada vez mais em conhecer como operam e funcionam. Pouco a pouco vai sendo cavada a diferença entre Homem e Natureza — no século XVIII, diferenciam-se Natureza e Civilização; no século XIX, diferenciam-se Natureza e Cultura, Natureza e História. A liberdade desaparece da Natureza e vem alojar-se no campo humano da civilização, da cultura e da história, campo da ação racional orientada por fins e valores. Pouco a pouco, a ética vai deixando de ser a conformidade com a Natureza para tornar-se, sobretudo com Kant, o abandono da Natureza e mesmo oposição a ela.

Sem dúvida, os primeiros momentos da modernidade conservam a ideia de que a virtude é obediência à razão contra o império caótico das paixões, que a virtude é dever e obrigação em face de normas e valores universais, que a liberdade é o poder humano para enfrentar com suas próprias forças a contingência e a adversidade — cujo nome é Fortuna —, que a responsabilidade é a marca da honradez virtuosa, pois não há liberdade sem responsabilidade. Mas todos esses termos perderam, de facto e de jure, a universalidade pretendida porque lhes faltam o centro ordenador, o cosmos antigo e a ordem providencial medieval. Não será por acaso que Descartes conseguirá, no plano do conhecimento, fundar a universalidade da razão teórica moderna, mas será incapaz do mesmo feito no plano da ética, tendo que se satisfazer com uma “moral provisória”. Somente com a aparição das ideias de civilização, cultura e história será possível definir um novo centro que permitirá o surgimento de uma razão prática com pretensões ao universal no campo ético. Esse centro, porém, é frágil e precário, seja porque a diversidade cultural e a mudança histórica tendem a relativizar a universalidade dos valores e das normas, seja porque a noção de progresso (que unificaria num só movimento e num só ritmo todas as civilizações e culturas, dando-lhes uma medida comum universal) precisa excluir tudo quanto não siga o modelo evolutivo (contestável, aliás), seja, enfim, porque o marxismo, de um lado, e a psicanálise, de outro, levantaram profundas suspeitas quanto à racionalidade daquela razão que fundava a universalidade prática ou ética.

A modernidade, inventando a ideia de indivíduo livre, torna problemática a ideia de valores éticos universais: Natureza, Deus, Razão, primeiro, Civilização, Cultura, História, depois, deixam de ser princípios universais, ainda que o trabalho do pensamento racionalista tenha sido feito para dar a eles uma nova universalidade e suprir a antiga, irremediavelmente perdida. Dizer que a ordem universal (cosmos, mundo) desapareceu com o surgimento do universo infinito não significa, porém, dizer que toda e qualquer ordem desapareceu. O universo segue a ordem heliocêntrica e a lei da gravitação é universal. O indivíduo livre é, na verdade, membro de uma ordem social definida, agora, por um centro organizador que procura evitar os choques com a hierarquia sociopolítica: o centro organizador é o mercado, que precisa do conceito de indivíduo livre que se relaciona com outros por meio da relação contratual, dotada de validade apenas se os contratantes forem livres e iguais. Justamente porque o mercado é o centro ordenador da nova realidade, algo interessante se passará no campo ético. As paixões, tidas como vícios que a educação moral corrigiria, tornam-se sinônimo de interesse e utilidade e já não podem ser afastadas pelo simples respeito a valores racionais, pois o movimento passional dos interesses e das utilidades torna-se o cerne da racionalidade moderna. Como, então, continuar a definir a virtude pelo domínio racional da vontade sobre as paixões?

Existem dois caminhos e apenas dois para a ética moderna: o caminho clássico, e depois ilustrado e liberal, segundo o qual trata-se de verificar a utilidade de cada interesse e fazê-la o critério de manutenção ou exclusão das paixões e erigir em valores morais aquelas paixões que são úteis para os novos interesses econômicos, sociais e políticos; o segundo caminho, também ilustrado, é aberto por Kant: trata-se de separar o reino empírico das necessidades e dos interesses e o reino transcendental da liberdade e da finalidade. O empírico segue causalidades particulares e somente o transcendental põe a universalidade ética como conjunto de máximas derivadas de um imperativo categórico da razão e não hipotético (“age tendo a humanidade como fim e jamais como meio” — não tratar os sujeitos como coisas — e “age como se a máxima de tua ação pudesse ser realizada por todos os homens e por qualquer homem” — a universalidade da razão garante a universalidade do sentido da ação). A materialidade particularista dos interesses e das paixões seria, assim, substituída pela formalidade absoluta dos valores éticos. Mas, com isso, ética e vida sociopolítica tornam-se incompatíveis. A moral dos interesses garante a nova economia e a nova política, mas pagando o preço da perda da universalidade. A moral do imperativo ético garante a liberdade e a responsabilidade éticas como valores universais, mas pagando o preço de não corresponder às exigências cotidianas da prática. Relativismo e universalismo legam para nós uma dupla moralidade: aquela que afirma que os fins justificam os meios e aquela que exige a adequação racional ou a proporção entre meios e fins.

Sabemos que é com Kant que o conceito da liberdade como absolutamente incondicionada — o imperativo categórico — leva a romper com uma ética material dos valores, isto é, com uma normatividade fundada em conteúdos empíricos e em humores, caracteres, temperamentos que condicionariam externa e internamente os atos morais. A liberdade incondicional é a pura forma dos atos que, se livres, tornam-se atos morais e ações virtuosas segundo o dever. Conhecemos também a crítica hegeliana à liberdade kantiana como abstração do entendimento, sem alçar-se à concretude da ideia que suportou o “calvário do negativo”, que passou pela dialética do senhorio e da servidão, da consciência infeliz, da utilidade ilustrada abstrata e superou a “bela alma”, atada aos princípios formais para ausentar-se do mundo. No entanto, Hegel, como Kant, mantém um princípio que fora formulado por Aristóteles: a liberdade só é possível quando foram vencidas e suprimidas as carências, as faltas e as necessidades. Na filosofia kantiana, carência, falta e necessidade formam o reino empírico das paixões e o reino da causalidade natural. Por isso, o reino ético precisa constituir-se à distância do natural. Na filosofia hegeliana, o lugar da carência, da falta e da necessidade é a sociedade civil, espaço da luta passional dos interesses e das classes sociais. Por isso, a liberdade só poderá efetivar-se no Estado, realização da razão na história, momento objetivo da liberdade. Sabemos, enfim, que Marx mantém e desenvolve o conceito hegeliano da sociedade civil como sociedade burguesa, isto é, como mercado e luta de classes no campo dos interesses privados, mas avança em direção ao Estado para expô-lo como resultado da luta de classes sob a supremacia burguesa e, portanto, como realização abstrata da liberdade (o Estado de Direito). A liberdade real e não formal é posta por Marx como movimento de emancipação do gênero humano pela ação política da classe proletária em face da exploração (necessidades e carências) e da dominação (direitos formais e burocracia estatal). Na medida em que o sujeito histórico do presente não é o Eu Transcendental kantiano nem o Espírito hegeliano, mas o Capital, cujos predicados são a burguesia e o proletariado, o modo de produção capitalista não pode conhecer a figura do Homem como sujeito (conhece o Capital e duas classes sociais contraditórias), estando por isso despojado das condições objetivas para a realização da liberdade — burguesia e proletariado são heterônomos, pois cada qual, à sua maneira, está a serviço de uma força estranha e externa que os governa, o Capital. A liberdade, que começa como movimento de emancipação na busca da autonomia, só se concretizará quando começar realmente a história, isto é, quando o Homem for sujeito autônomo, e terminar a pré-história, isto é, o período em que o Capital é sujeito. Compreende-se, então, que o comunismo seja a formação social que, superando carências e faltas, necessidades e exploração, realiza a liberdade.

Em outras palavras, a diferença entre Kant, de um lado, e Hegel e Marx, de outro, encontra-se na retomada da ideia grega e renascentista (a vita activa) de que a liberdade é um valor ético porque é um valor político. À moralização da liberdade trazida pelo cristianismo e à qual Kant permanece fiel, ambos contrapõem a politização da liberdade.

Não por acaso, dois filósofos contemporâneos, formados na tradição alemã, voltam a tematizar a liberdade exclusivamente como práxis. Marcado pela Ilustração kantiana, Habermas aposta numa “ética da ação comunicativa” que permitiria o surgimento de um espaço público de diálogo tecido numa intersubjetividade racional, cujo pressuposto seria o caráter incondicionado e incondicional da palavra ética. Marcada por Heidegger e pela ideia do Mit-Sein, Hannah Arendt define a política como “ação comum dos homens” e afirma que o nascimento da pólis e da civitas seria inconcebível sem a liberdade — a pólis, porque rompe o espaço privado dos desiguais e funda a política propriamente dita, isto é, o espaço dos iguais e livres (liberados das carências e necessidades); a civitas, porque introduz a ideia de fundação, isto é, do poder humano para começar radicalmente, inaugurar, criar.

Todavia, há algo perturbador no desejo de liberdade que definiria a política e a faria inseparável da ética: é ele realmente incondicional ou incondicionado? É casual que Habermas tenha ido buscar no mundo empírico (na psicologia genética de Piaget) as razões de possibilidade de uma comunicação ético-política plena? É casual que Arendt viesse a examinar a “crise da república” sob os efeitos da perda ética, isto é, da mentira e da “banalização do mal”? Ela, que criticara Marx, considerando-o, por princípio, impossibilitado de aceder ao campo da política porque teria reduzido a práxis ao trabalho como labor (reprodução da vida) sem alçá-la à ação livre dos que se emancipam das carências e necessidades vitais, não é ela forçada a repor no interior da política o jogo dos interesses e chamar de “crise” a presença inconteste da necessidade no campo político?

O que importa, porém, não são os impasses dos diferentes pensadores aqui mencionados. Se viemos a eles foi porque exprimem de maneiras variadas os dois problemas que o cristianismo legou para a modernidade: como conservar a ideia de que a virtude é poderio da razão sobre as paixões e como voltar a politizar a ética da liberdade? Em outras palavras, como pensar a relação e a diferença entre o espaço privado e o espaço público?

Não é nosso assunto a “crise” dos valores morais. Quisemos, com esta introdução, simplesmente sugerir que a “crise” não surge com a chamada pós-modernidade, mas com a própria modernidade, da qual a última figura que conhecemos é o pós-modernismo. Mas esta introdução pode ajudar-nos a trabalhar nosso tema, uma vez que nele está aberto o problema moderno da relação entre ética e política, a primeira colocada pela modernidade como esfera da vida privada, e a segunda, como esfera da vida pública.

De um modo geral, o conflito ou a contradição que atravessam a separação entre o público e o privado podem ser resumidos na pergunta que sempre atormentou os moralistas antigos e modernos: os fins justificam os meios? Um dos divisores de águas que a modernidade traçou entre a ética e a política foi dado pela baliza posta por essa pergunta. No caso da ética, a resposta é negativa: os meios precisam estar de acordo com a natureza dos fins e, portanto, para fins éticos os meios precisam ser éticos também. Em outras palavras, se a finalidade da ética é a virtude e o bem, os meios precisam ser bons e virtuosos, sem o que não há ética, uma vez que as ações realizadas em vista de determinado fim já fazem parte do próprio fim a ser atingido, são o caminho para ele. Ao contrário, no caso da política, a resposta tende a ser positiva e, portanto, estabelece uma diferença de natureza entre meios e fins, exigindo-se, porém, que haja alguma proporção (ou racionalidade) entre eles. A ideia que parece prevalecer, portanto, é a de que, na política, todos os meios são bons e lícitos, se o fim for bom para a coletividade. A curiosa expressão eleitoral “rouba mas faz” exprime essa ideia.

No entanto, um fenômeno nacional como a chamada “lei de Gerson” (“levar vantagem em tudo”) sugere que a separação entre meios e fins parece não se confinar à política, mas também ter invadido o interior da ética e é isso que surge para os sujeitos sociais como altamente perturbador ou como “crise dos valores”. Todavia, podemos indagar se tal separação teria entrado inesperadamente na cena ética. De fato, numa sociedade que afirma o valor da competição e da vitória sobre os outros como prova de superioridade e, portanto, transforma a competição e a vitória em valores morais, poderia tal sociedade afirmar que houve separação entre meios e fins quando, para alcançar a vitória, todos os meios competitivos são considerados bons (se forem eficazes)?

Essa pergunta, porém, não está bem formulada. De fato, nela continuamos pressupondo que tanto na ética quanto na política há uma distância entre meios e fins. Distância menos acentuada na ética e mais acentuada na política. A “lei de Gerson’’ tornou-se perturbadora porque teria alargado essa distância, na ética, e tornado intransponível a separação entre meios e fins, na política. Em outras palavras, teríamos perdido a medida, a proporcionalidade (a ratio) que regularia a relação entre meios e fins tanto na ética quanto na política. Ora, o pressuposto da separação e o pressuposto da regulação proporcional entre meios e fins significam que estamos tomando a ética e a política como técnicas e não como práxis. A técnica, como Aristóteles mostrou, caracteriza-se pela heterogeneidade de natureza entre meios e fins, entre o ato fabricador e o produto final; a práxis, ao contrário, caracteriza-se pela homogeneidade entre meios e fins — fins éticos exigem meios éticos e fins políticos exigem meios políticos. A “lei de Gerson” não seria falta de ética, mas proposta de uma ética agonística, na qual a competição é um valor e a vitória, um fim. A “crise moral” estaria, antes, no conflito entre essa ética e a ética cristã do amor ao próximo, e não na ausência de uma ética. O problema, justamente, encontra-se do lado da política, pois quando poderemos dizer se um meio é ou não político?

Podemos esboçar uma primeira resposta (voltaremos a isso no final) dizendo que a política pertence ao campo da práxis e que meios são políticos quando estão referidos ao espaço público e às lutas e conflitos no interior desse espaço, de sorte que meios privados ou que privatizem o espaço público não são meios políticos. Mas podemos ir além e apanhar também a questão dos fins, se dissermos que a política é uma lógica da ação que se realiza à distância da finalidade ética (o dever) e da finalidade técnica (o produto), havendo, porém, uma medida de ética pública para a política, oferecida por dois pesos: o primeiro é a capacidade da ação para colocar meios e fins que excluam a violência e a força (usadas apenas in extremis) porque criam a esfera de sua própria legitimidade, isto é, de adesão e obediência voluntária pelos demais sujeitos do espaço público; o segundo é a capacidade para apreender a liberdade como um campo aberto de possíveis e que um dos possíveis se torna necessário apenas porque a ação política conseguiu torná-lo real, de sorte que a liberdade não é a simples vontade e a escolha, mas um modo de agir que tem a si mesmo como fim.

Essa primeira resposta, no entanto, transfere o problema para uma região que apanha simultaneamente a ética e a política.

O adágio clássico — agir virtuosamente é agir em conformidade com a Natureza —, o adágio cristão — agir virtuosamente é agir em conformidade com a vontade de Deus —, o adágio moderno — agir virtuosamente é agir em conformidade com a Razão —, e o adágio maquiaveliano — agir com virtù é captar o momento oportuno para dobrar a caprichosa Fortuna — indicam algo nuclear nas discussões éticas e políticas, qual seja, como conciliar liberdade e circunstância, liberdade e contingência, já que a liberdade é posta como conformidade ao necessário (Natureza, Deus, Razão e Virtù). Mas, no mesmo momento, também a questão sobre a relação entre liberdade e necessidade está aberta, uma vez que esta última pode surgir na forma de uma força externa que comanda de fora os atos do sujeito moral e do sujeito político, que julgam escolher e agir livremente apenas porque desconhecem o poder da força que os dirige. Esse segundo problema torna-se ainda mais complexo quando Freud põe em dúvida o poderio da consciência, com a descoberta do inconsciente; quando os antropólogos descrevem a pluralidade cultural regida por necessidades internas a cada cultura; quando Marx revela o poderio da ideologia e também os imperativos econômicos do modo de produção capitalista que, por um lado, são ocultados pela ilusão ideológica e, por outro lado, exigem (por uma necessidade interna) sua autodissolução, sem deixar lugar para a prática política transformadora, enquanto escolha livre e consciente da emancipação.

Apesar dos problemas possuírem duas faces, a da relação liberdade-contingência e a da relação liberdade-necessidade, é extremamente sugestivo observar que a tradição que vai dos gregos aos anos 1960, com raríssimas exceções, se desdobra, apesar das diferenças profundas e das rupturas teóricas e históricas, na afirmação de que a liberdade é harmoniosa com a necessidade (ainda que essa harmonia seja de difícil definição) e está em conflito com a contingência (ainda que as aparências façam supor que o ato livre é um ato contingente, ou melhor, livre porque contingente, imotivado). A necessidade, receba o nome que receber, é vista como imanente ao sujeito (ser natural como a Natureza, ser criado por Deus à sua imagem e semelhança, ser racional como a Razão, ser cultural como a Cultura, ser histórico como a História) e essa imanência garante a autonomia, isto é, o “agir em conformidade” supõe que o sujeito, a causa, o motivo e o fim da ação são de mesma natureza. Ao contrário, a contingência é o acidental, o imprevisto, a indeterminação, são as paixões e os interesses flutuantes. O contingente é misto de acaso e destino, de fortuna e fatalidade, sua marca é a exterioridade em face do sujeito da ação: a contingência é o que se abate de fora sobre o sujeito e o torna heterônomo. Donde a luta dos antigos e medievais contra os caprichos da Fortuna e a afirmação de Maquiavel de que a virtù se conquista contra a Fortuna ao saber dobrá-la; donde a pergunta dos filósofos modernos: “o que está em nosso poder e o que está em poder da Fortuna?”; donde a ideia dos liberais de atribuir racionalidade necessária aos interesses e às paixões para arrancá-los da contingência e colocá-los sob as leis do mercado; o esforço kantiano de duplicar a natureza humana para que a liberdade possa exercitar-se de acordo com a necessidade dos fins e não segundo a necessidade causal da Natureza; a trajetória hegeliana para fazer da contingência uma “astúcia da razão” que segue o curso de sua necessidade imanente; o trabalho de Freud para elaborar uma terapia na qual as forças cegas da necessidade inconsciente sejam captadas pela consciência em sua significação; donde a afirmação de Marx de que a “liberdade é a consciência da necessidade”, o saber agir sobre as condições materiais objetivas dadas para transformá-las segundo uma possibilidade que nelas está inscrita, isto é, a revolução.

Assim, a tradição que chega até nós — com três exceções no modo de determinar os três conceitos em pauta (Espinosa, na determinação do conceito de necessidade; Nietzsche, na definição da contingência; Sartre, na definição da ideia de liberdade) —, diante do par contingência-necessidade, opta pelo segundo termo como forma da autonomia do sujeito e da inseparabilidade entre virtude e razão (seja qual for a definição desses dois termos). Transformar o contingente em necessário e participar ativamente da necessidade imanente à Natureza, à Razão, ao Sujeito, à História definem tanto a ética quanto a política.

O pós-modernismo faz a opção pela contingência. E, com ela, opta pelo fragmentado, efêmero, volátil, fugaz, pelo acidental e descentrado, pelo presente sem passado e sem futuro, pelos micropoderes, microdesejos, microtextos, pelos signos sem significados, pelas imagens sem referentes, numa palavra, pela indeterminação que se torna, assim, a definição e o modo da liberdade. Esta deixa de ser a conquista da autonomia no seio da necessidade e contra a adversidade para tornar-se jogo, figura mais alta e sublime da contingência. Mas essa definição da liberdade ainda não nos foi oferecida pelo pós-modernismo; está apenas sugerida por ele, pois definir seria cair nas armadilhas da razão, do universal, do logocentrismo falocrático ou de qualquer outro monstro que esteja em voga. Donde o sentimento de que vivemos uma “crise” dos valores morais (e políticos).

Público, privado, despotismo

“Tudo é de Um.”

La Boétie

Costumamos empregar indiferentemente e como sinônimos os vocábulos ditador, tirano e déspota. No entanto, essas palavras reenviam a conceitos diferentes, determinados pelos diferentes contextos histórico-políticos em que foram formulados.

O ditador é uma figura criada pela República romana: trata-se de um homem ilustre, membro do patriciado romano, num momento de convulsão política chamado pelo Senado para resolver um problema determinado e por um tempo determinado. O ditador não governa sobre tudo nem permanece no poder por quanto tempo desejar ou puder. Sua função é temporária, parcial e legal, tendo por finalidade restaurar, numa esfera qualquer da vida social e política, as leis já estabelecidas e, para tanto, são-lhe conferidos poderes excepcionais para agir até que as leis sejam restauradas ou reformadas.

O tirano, por seu turno, é uma figura da política grega: refere-se ao homem excepcional (pela força física, pelas qualidades guerreiras, pela clarividência política, pela capacidade na argumentação persuasiva) que é chamado pelo povo para salvá-lo de uma crise, de uma guerra civil ou externa, do poderio das facções e que governa com o consentimento dos sujeitos, ainda que seu governo suspenda as leis antigas e crie outras, novas.

O déspota — em grego, despotês — é uma figura da sociedade e da política gregas; é o chefe da família (do oikós ou, em latim, do domus, donde dominus, senhor), entendendo-se por família e casa (oikós ou domus) três relações fundamentais: a do senhor e o escravo, a do marido e a mulher, e a do pai e os filhos. O déspota é o senhor absoluto de suas propriedades móveis e imóveis, das pessoas que dele dependem para sobreviver (escravos, mulher, filhos, parentes e clientes) e dos animais que emprega para manutenção de suas propriedades. A principal característica do déspota encontra-se no fato de ser ele o autor único e exclusivo das normas e das regras que definem a vida familiar, isto é, o espaço privado. Seu poder, escreve Aristóteles, é arbitrário, pois decorre exclusivamente de sua vontade, de seu prazer e de suas necessidades. Os primeiros reis, lembra Aristóteles, porque eram simples chefes de clãs e tribos ou de conjuntos de famílias, eram déspotas, assim como são déspotas os governantes bárbaros do Oriente, mas onde houver cidade e política, portanto, onde houver leis e cidadãos livres não pode haver déspota. O déspota (o despotês; o pater familias) só domina os dependentes e não os livres. Em outras palavras, onde houver espaço público e vida pública, onde houver politeia, não pode haver despoteia, não se pode manter o princípio do poder despótico, que pertence ao espaço privado e à vida privada.

A autoridade despótica (a despoteia) define o governo doméstico (a oikonomia) e, segundo Aristóteles, crítico de Platão e de Xenofonte, é uma autoridade derivada ou logicamente posterior à politeia, ainda que no plano empírico dos fatos lhe seja cronologicamente anterior. Com efeito, escreve Aristóteles na Política, a cidade (pólis) é uma espécie de comunidade (koinonia) feita com uma finalidade precisa: permitir a vida boa ou justa ou feliz, que só é possível para os que são livres ou independentes. Ora, por natureza, os homens são seres livres e destinados à vida política “porque somente ele[s] tem o dom da palavra”, o logos, que lhes permite distinguir entre o bem e o mal, o justo e o injusto e todos os valores. A cidade é um todo e, logicamente, o todo é anterior às partes, sendo por isso anterior aos indivíduos e às instituições como a família. A anterioridade lógica da política em face da família faz com que esta dependa daquela, não podendo, portanto, ditar-lhe normas, regras e leis, mas, ao contrário, dela recebendo os valores. Nessa perspectiva, o déspota é rigorosamente um usurpador, uma vez que deseja fazer valer para o todo o que define uma parte e uma vez que deseja fazer a parte valer mais do que o todo. Donde a arbitrariedade que necessariamente caracteriza seu governo. Em outras palavras, o que é legítimo no espaço privado — a autoridade despótica — torna-se ilegítimo ao ser deslocado para o espaço público — a autoridade das leis livremente constituídas pelos cidadãos, a partir de sua natureza enquanto “animais políticos”.

Se Xenofonte, no Econômico, ainda procura na figura do despotês o exemplo para o governante e se Platão, no Político, ainda tem como referência o modelo do rei patriarcal, Aristóteles, ao contrário, é o primeiro pensador a afirmar a diferença de natureza entre a cidade, esfera pública, e a família, esfera privada, e o primeiro a diferenciar de modo rigoroso o poder despótico e o poder político, isto é, o poder patriarcal dos antigos chefes e reis e o poder dos cidadãos e dos governantes políticos, diferença que para ele passa pela autoridade que se exerce em vista dos interesses particulares de seu detentor e a autoridade que é exercida em vista do bem viver e do interesse da coletividade ou da comunidade. Em outras palavras, a diferença entre o poder exercido pela vontade arbitrária do senhor e o poder exercido em conformidade com a justiça e com as leis, exercício que exige, pressupõe e repõe a liberdade dos cidadãos.

Se, portanto, déspota, tirano e ditador são figuras políticas determinadas, cada qual dotada de contexto próprio e de história própria, de onde vem que em nosso vocabulário os três termos sejam empregados como sinônimos?

Pelo menos três motivos determinam essa indiferença vocabular de nossa linguagem política: em primeiro lugar, porque o próprio Aristóteles não recusa a existência de regimes de governo despótico, mesmo que diga que, a rigor, não são politeia: a monarquia absoluta, a tirania sem consentimento dos sujeitos e com leis arbitrárias, feitas para servir aos interesses pessoais do governante, constituem regimes despóticos, desvios ou degradações dos regimes políticos propriamente ditos; monarquia e despotismo são espécies de um mesmo gênero, o do governo de um só (sob leis, num caso; sem leis, no outro); em segundo lugar, porque as teorias clássicas e modernas da tirania e da ditadura tendem a considerar que o tirano usa a força e o ditador se conserva ilimitadamente no poder e que ambos se tornam déspotas, isto é, governam pela violência, pelo arbítrio de sua vontade, segundo seus interesses privados e sem o consentimento dos cidadãos e das leis; mas, em terceiro lugar, é Montesquieu, certamente, o maior responsável por essa identificação dos termos, na medida em que, no Espírito das leis, ao seguir a tradição de classificação dos regimes políticos, em lugar de reproduzir a classificação tradicional (monarquia, aristocracia e democracia e suas formas corrompidas, tirania, oligarquia e anarquia) apresenta outra: monarquia (constitucional e não absoluta), república (que pode ser aristocrática ou democrática) e despotismo (os regimes políticos do Oriente), qualificando este último como regime onde impera a vontade arbitrária do governante e cujo princípio é o medo dos súditos.

Montesquieu distingue os regimes políticos por sua natureza, seus princípios e suas leis. A monarquia tem por natureza que o príncipe possua o poder soberano, mas o exerça de acordo com as leis estabelecidas; a república tem por natureza que todo o povo ou algumas famílias tenham o poder soberano; e é da “natureza do governo despótico que um só governe, segundo suas vontades e caprichos”. O princípio da monarquia é a honra, isto é, um sistema objetivo de distinções, preferências, privilégios que deem nobreza, grandeza e glória às ações, tendo como máximas não dar importância à própria vida, mas à coragem para perdê-la, e jamais tolerar algo que nos inferiorize. O princípio da república é a virtude política como renúncia a si próprio pelo bem comum e que se exprime no amor pela pátria e pelas leis. O princípio do governo despótico é o medo, pois nele a virtude não é necessária (os cidadãos não existem) e a honra, perigosa (cria rivais). Aliás, o medo tem como função extirpar a virtude e a honra, criar “uma extrema obediência”, fazer do homem “uma criatura que obedece a outra criatura que manda” e afirmar que “o quinhão dos homens, tal como o dos animais, é o instinto, a obediência e o castigo”. A diferença fundamental entre Aristóteles e Montesquieu, portanto, reside no fato de que, para o primeiro, monarquia e despotismo são espécies de um mesmo gênero, enquanto para o segundo são dois regimes diferentes, na medida em que o governo de um só sob leis e divisão dos poderes é de natureza diversa à do governo de um só sem leis e divisão de poderes.

A descrição de Montesquieu foi tão poderosa que se consolidou na história do pensamento político. Para ele, como para Aristóteles, o despotismo é um fenômeno oriental. Essa ideia reaparece em Hegel, em Marx e em Weber.

A filosofia da história hegeliana, como se sabe, traça o movimento histórico num percurso que vai do Oriente para o Ocidente. O despotismo, julga Hegel, é a primeira forma da vida ético-política, algo instintivo para unificar o disperso sob uma única autoridade e, por isso mesmo, o governo despótico é oriental. Por outro lado, o movimento da história ético-política é também o caminho de efetuação da liberdade e por isso quando um só é livre, há despotismo (Oriente, Império romano, feudalismo); quando alguns são livres, há aristocracia (Grécia, República romana); quando todos são livres há regime misto sob a forma da monarquia constitucional (o vir-a-ser do mundo germânico). Descrevendo as formas pré-capitalistas, Marx usará a expressão “despotismo oriental” para referir-se àquelas formações socioeconômicas nas quais opera a forma da comunidade como uma entidade una e indivisa cuja unidade e indivisão decorrem de um conjunto de práticas, imagens e símbolos que produzem a identificação do social com a pessoa e o corpo do governante, o qual é o único proprietário de todos os bens, dos homens e dos funcionários que o servem. Por seu turno, Weber, no Economia e sociedade (sociologia da dominação), quando distingue os três tipos ideais da “dominação legítima”, os apresenta numa descrição que lembra Montesquieu:

A autoridade de um poder de mando pode exprimir-se num sistema de normas racionais estatuídas (pactadas ou outorgadas) que são obedecidas enquanto normas geralmente obrigatórias quando quem as invoca é quem pode fazê-lo em virtude dessas normas. […] Obedece-se às normas e não à pessoa. A obediência também pode ser baseada na autoridade pessoal. Esta pode ter seu fundamento na santidade da tradição e, portanto, do costume, daquilo que foi sempre de um modo determinado e que prescreve a obediência a certas pessoas. Finalmente, pode basear-se na consagração do extraordinário, na crença no carisma, isto é, na efetiva revelação ou graça concedida a certas pessoas enquanto redentoras, profetas, e heróis de todo tipo.

Weber chamará a dominação pela tradição ou tradicional de dominação patriarcal e dirá que: “o tipo mais puro de semelhante dominação é o domínio sultanesco. Todos os verdadeiros ‘despotismos’ tiveram esse caráter segundo o qual o domínio é tratado como um bem corrente da fortuna do senhor’’. Fiel ao tratamento filológico, mas partindo da palavra latina — pater familias —, Weber falará em patrimonialismo como desdobramento da dominação patriarcal e o despotismo só é possível sob o patriarcalismo e o patrimonialismo. Como diria La Boétie, ali onde “tudo é de um”.

A marca do despotismo — vontade arbitrária do governante, medo dos governados, apropriação privada do que é comum ou público — se expressa na linguagem antiga pelas imagens da desmedida do governante, movido por paixões e vícios e pela ausência de leis positivas ou objetivas que limitem o arbítrio de sua vontade. A avaliação antiga é, simultaneamente, política e ética — o déspota (enquanto figura da tirania) é vicioso e bestial. Na linguagem contemporânea, a imagem do déspota é articulada, por um lado, ao conceito de propriedade — isto é, o déspota se apresenta como proprietário privado daquilo que pertence aos fundos públicos — e, por outro lado, pela abolição das distinções entre o privado e o público, tanto pelo uso e exibição da vida privada para fins políticos quanto pela redução da ação política à esfera dos interesses de sua vida privada. Assim sendo, as exigências éticas da vida privada (as virtudes do indivíduo na intimidade) não são respeitadas por aquele que detém todo o poder sobre a sociedade, não prestando contas a ninguém; e, simultaneamente, as exigências da vida política (as virtudes cívicas) também não são respeitadas, uma vez que o espaço público se torna palco das exibições da pessoa do governante e não dos atributos de seu cargo. O governante despótico espera três sentimentos dos governados: amor, medo e reverência, isto é, não espera ações, conduzidas por normas objetivas, mas sentimentos que regem as relações intersubjetivas e interpessoais, naquilo que se costuma chamar de relações imediatas da vida privada ou o “cara a cara”, o “olho no olho”.

Sob essa perspectiva, o déspota de Montesquieu possui também os atributos que Weber colocara na dominação tradicional carismática e que fora distinguida por ele da dominação tradicional patriarcal. De fato, diz Montesquieu que o déspota corre o risco de ser contrariado pela religião, cujos preceitos são superiores à sua vontade. Por esse motivo, o déspota tenderá a cobrir-se da religião, de modo a garantir a inviolabilidade de seu poder. Ora, como escreve Weber, na dominação carismática, a autoridade se exerce “em decorrência da devoção afetiva à pessoa do senhor e aos seus dotes sobrenaturais (carisma), em particular: faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou oratório. O sempre novo, o extraordinário, o nunca visto e a entrega emocional que provocam constituem aqui a fonte da devoção pessoal”. Como o tirano antigo, o déspota precisa apresentar-se como além do humano, donde sua desmedida essencial. Assim, o deslizamento contínuo do privado para o público e do público para o privado é constitutivo da política despótica e da impossibilidade de traçar fronteiras entre a esfera ética das virtudes e a esfera política dos valores cívicos.

Sob um aspecto fundamental, porém, Montesquieu e Weber se distanciam de Aristóteles. Para este último, como observam Bovero e Bobbio, a diferença entre monarquia e tirania (ou despotismo) não provinha da existência, na primeira, e da inexistência, na segunda, de uma Constituição, mas das virtudes do rei e vícios do tirano (ou déspota). Para Montesquieu, como para Weber, isso seria apenas uma diferença acidental. A diferença essencial entre monarquia (constitucional) e despotismo, lemos no Espírito das leis, é a divisão de poderes que, na primeira, limita os poderes do rei, enquanto, no segundo, nada limita o poder do déspota que o exerce sozinho e sem intermediários. Numa palavra, para a modernidade, a diferença passa pela natureza das instituições e não pelas qualidades ou defeitos pessoais do governante. Nessa perspectiva, a avaliação política já não se deixa guiar, como em Aristóteles, por valores éticos e a separação entre público e privado tornou-se mais nítida e definitiva. Mas nem por isso deixou de ser uma distinção extremamente problemática, bastando aqui um exemplo.

Hegel, possivelmente um dos maiores defensores do Estado como esfera pública ético-política (tido por alguns como totalitário pela ênfase dada ao Estado em face da sociedade civil), recusa a origem contratualista do poder público. O contratualismo, diz ele, apoia-se numa concepção abstrata e confusa do direito privado e do direito público. O primeiro (cujas categorias são a propriedade — res —, a pessoa — personae — e o delito — actiones) toma o contrato como fundamento do Estado a partir de três pressupostos: 1) que o contrato procede do arbítrio dos contratantes; 2) que a vontade derivada do ato contratual é comum e por isso pode ser universalizada; 3) que o objetivo do contrato é uma coisa externa singular. Ora, se um dos contratantes quiser, o contrato pode ser rompido, mas um cidadão jamais pode interromper o vínculo ético-político; a vontade do Estado não é comum, mas universal, pois visa ao interesse geral e a ele pode e deve sacrificar os interesses individuais particulares ou privados; os objetos da vontade estatal são todas as coisas externas que caem sob seu poder, incluindo as vontades individuais, e o Estado pode exigir dos cidadãos sacrifícios que não podem ser objeto de nenhum contrato. O contratualismo engana-se na determinação da origem do espaço público por não compreender que o Estado é uma totalidade ético-política, é uma união e não uma associação, um organismo vivo e não um artefato (como imaginava Hobbes), uma totalidade e não um agregado, um todo anterior e superior às partes e à soma delas (como já dissera Aristóteles). O Estado é um ser ético-político porque é uma Constituição. Esta não se confunde com documentos nem com a lei maior de um país, mas é o conjunto dos costumes (mores) e das instituições (religião, arte, família, indústria, ciência) que constituem o ethos de um povo, seu espírito e sua vida. Sendo uma Constituição, o Estado não pode originar-se de um contrato que simplesmente transformaria o direito privado em direito público. Se não nasce do contrato, de onde nasce a esfera pública?

A resposta de Hegel é surpreendente: da força genial de um herói fundador, do grande homem que “possui dentro de si algo que leva os demais a chamá-lo de chefe, a obedecê-lo mesmo contra suas próprias vontades”. O Estado nasce da boa tirania. Fundador heroico, o bom tirano é aquele que faz vir para a comunidade, primeiro, o sentimento e, depois, a consciência da lei que, ao ser interiorizada como obediência voluntária, encontra a vontade universal e apaga a particularidade da vontade tirânica que, no início, a encarnava. Assim, longe da esfera pública originar-se à distância da esfera privada e por oposição a ela (Hegel diria que tal distância e oposição seriam abstrações fixistas do entendimento), efetua-se passando pelo interior do privado, transfigurando-o para torná-lo público e para apagar sua própria origem, negando-a no movimento de passagem da dispersão inorgânica dos indivíduos à unidade pública e orgânica dos cidadãos. A origem do público depende, portanto, das qualidades extraordinárias de um indivíduo, o fundador (tyrannikós, diriam rigorosamente os gregos).

Como diria o conselheiro Acácio, a questão é complicada.

Outro exemplo, muito diferente do anterior, pode assinalar a complicação.

Espinosa, tido como o filósofo intelectualista para o qual a liberdade é uma conquista do sábio solitário voltado para o recolhimento intelectual, longe do burburinho e das querelas da cidade, nega, como Hegel, que o Estado tenha nascido de um contrato social. Como Aristóteles, antes dele, define a vida política como “vida plenamente humana” e como Hegel, depois dele, não exclui a presença da força na origem do poder. Mas, justamente por isso, não exclui a presença da força depois de instituído o Estado. Por que o contrato não é a origem do poder público? Duas são as respostas espinosanas.

Em primeiro lugar, porque o contrato é apresentado pelos teóricos para explicar a passagem da força — o direito natural — ao direito positivo, que excluiria a força do campo político. Ora, diz Espinosa, o político não é o meramente jurídico, não abole o uso da força pelo direito e sim opera como lógica das forças em conflito. Em suma, o poder público não é passagem da força à lei, mas, entre outras coisas, é o exercício legal da força pelo mais forte (restando saber o que Espinosa entende por forte). Em segundo lugar, e sobretudo, porque o contrato é uma instituição que só pode operar depois de instituído o Estado, isto é, quando já há leis positivas que o regulamentem, não podendo estar na origem daquilo que é sua própria condição de existência. Em outras palavras (e anacronicamente, em nossa linguagem), o direito privado depende do direito público.

Se o Estado não nasce do contrato entre particulares que alienam a um terceiro (pessoal ou impessoal) o direito ao uso da força e o exercício do poder, de onde nasce? Da passagem da multitudo ao corpo político. Um corpo qualquer, demonstra Espinosa na Ética, só se constitui como corpo individual quando todos os seus elementos deixam de ser meras partes associadas e justapostas e operam em conjunto com uma causa comum para produzir um efeito determinado. Somente tornando-se agente ou causa ativa de uma ação, um corpo se constitui como tal. Assim também a multitudo, agregado de partes externas umas às outras, torna-se um corpo político quando seus componentes se transformam em constituintes, isto é, em sujeitos ativos de uma ação comum que opera como causa de um efeito determinado. Ora, por natureza, os homens desejam governar e não desejam ser governados. Como poderiam formar uma multitudo e instituir-se como corpo político? Realizando o desejo natural de não submissão a outrem. Por isso, a primeira e mais natural das formas políticas ou do espaço público é a democracia, único regime capaz de concretizar o desejo de cada um e da multitudo, único regime que pode receber o nome de poder absoluto, isto é, público, impessoal, comum e universal. É ela o mais forte dos regimes políticos, porque nascida do desejo de liberdade e porque organizada de modo a mantê-lo, criando instituições que impeçam que qualquer particular (indivíduos ou grupos de indivíduos) tome o poder e se identifique com ele. O despotismo, consequentemente, é a forma política mais fraca, o grau zero da política ou sua anulação. A posição de Espinosa possui uma fundamentação metafísica. Abandonando a tradição que julga a relação de causa e efeito uma relação transitiva e extrínseca, na qual cada um dos termos é uma positividade independente da outra, Espinosa trabalha com o conceito de causa imanente, na qual o efeito exprime internamente a causa, sem dela se separar. O efeito é a própria causa manifestando-se de modo determinado. Assim sendo, a natureza da causa determina a do efeito. Se a esfera pública nascer da tirania, isto é, se a tirania for a causa de um corpo político, este, como efeito imanente, jamais poderá tornar-se não tirânico. Do herói fundador só se pode esperar tirania. E do “bom” déspota, despotismo. Um Estado nascido da ação de um déspota será despótico para sempre porque não fará outra coisa senão desdobrar no tempo os efeitos da causa originária. Eis por que, diz Espinosa, sempre foi fácil derrubar os tiranos e tão difícil destruir a causa da tirania.

Exemplificada grosseiramente a dificuldade para a nítida separação entre o público e o privado, regressemos a Hegel, não para examinar sua teoria do espaço público, mas para acompanhar a exposição acurada que faz de dois despotismos que estarão na preocupação de todos os pensadores políticos da modernidade: o Império romano e o feudalismo. Além de Hegel, mencionaremos, quando for o caso, outros estudiosos que nos auxiliem a ampliar a exposição hegeliana.

O despotismo, em geral, resulta de uma cisão profunda entre a universalidade política (perdida) e os particularismos (presentes). O poder se concentra nas mãos de um só e à maioria dos indivíduos resta apenas o direito à propriedade privada, mas mesmo esse direito provém de um favor do detentor do poder. É o que se passa no Império romano.

Antes de prosseguirmos na exposição hegeliana, vejamos brevemente como surge o direito privado, direito romano por excelência. Vários estudiosos têm mostrado que, na origem, o jus era uma fórmula (uma palavra ritualizada e regulamentada) usada para a resolução de um conflito entre partes em litígio e para o estabelecimento de relações regradas entre indivíduos numa instituição ou numa hierarquia. Era proferida pelo judex e as partes faziam o jusjurandum. Com o advento do Império, muda a natureza do jus. O imperador é posto como senhor do Império — dominus — e o Império, posto como propriedade do imperador — dominium. Tornando-se proprietário privado do território, das coisas e das pessoas, da res publica ou dos fundos públicos, o imperador pode ceder a posse e, depois, a propriedade para alguns de seus súditos, mediante um contrato. O jus, forma e objeto desse contrato, se distribui nas três grandes categorias que apontamos acima (res, personae, actiones). A res publica deixa de ser propriedade do populus romanus para tornar-se patrimônio do imperador que, doravante, disporá, segundo seu arbítrio e sua vontade, dos bens públicos. A distinção inicial que a República conhecera entre direito privado e público era puramente formal, sem nada dizer sobre conteúdos e coisas. O direito público era o jus quando publicado, afetando todos os cidadãos envolvidos pela publicação; o direito privado era o jus cujo conhecimento ficava limitado às pessoas que intervinham num determinado negócio. Quando a res publica se torna propriedade do imperador e quando o jus se torna monopólio da autoridade a quem se deve responder, o direito privado se torna público e o público deixa de ser público por sua própria força (sua fórmula ritual) e passa a ser público pela autoridade do imperador enquanto dominus ou senhor. Direito privado e direito público já não se distinguem, estando referidos ao ordenamento dos interesses privados do imperador e dos indivíduos que com ele contratam. O cidadão volta a ser apenas uma pessoa privada (o sujeito de direitos ou capaz de atos jurídicos de delimitação recíproca do arbítrio pelas pessoas jurídicas envolvidas) em face de outras pessoas privadas e, delas separada, encontra-se a pessoa do imperador, “senhor do mundo”. O chamado “Estado de Direito” é essa cisão entre o senhor e o súdito, e entre os súditos, e a redução da esfera pública ao conjunto privado das esferas privadas. Despotismo político e formalismo jurídico (a igualdade formal ou abstrata das pessoas privadas, sujeitos de direitos) caminham juntos porque os insociáveis (os indivíduos privados) só podem ser reunidos por um poder despótico que os unifique externamente. Ao mesmo tempo, opera-se a separação entre despotismo e privacidade, isto é, entre o domínio de um só (senhor absoluto) e a igualdade formal e abstrata de todos os outros que estão apenas diante dele, pois sua liberdade só pode ser negativa (liberdade do indivíduo fora e contra o Estado).

Quais dos traços que desenham a figura despótica do imperador, agora que já conhecemos sua origem? Paul Veyne assim os apresenta:

  1. o imperador é soberano por direito subjetivo, isto é, porque sua vontade assim o determina, uma vez que não foi posto no cargo pelo povo nem pelas leis; não é um mandatário nem um representante do povo, mas seu senhor. Sendo portador de seu próprio direito, é maior do que a sociedade e por isso não pode ser julgado por ela; é absolutus, isto é, encontra-se fora e acima das leis; é a nemine judicatur; isto é, não pode ser julgado por ninguém e, portanto, como a fonte de seu poder não é o povo, não pode ser deposto por ninguém. O imperador é senhor/despotês/dominum de seu domínio;
  2. o imperador é um bom senhor, e por isso infalível, não podendo ter conselheiros (câmaras, senados, assembleias), pois não tem como dividir o poder; se possuir conselheiros e estes lhe disserem o que lhe desagrada ouvir, poderá expulsá-los, prendê-los e matá-los. Por isso, não pode estar cercado por conselheiros, mas por aduladores que o deixarão na ignorância do que se passa e na cegueira com relação ao Império, vivendo numa “ilha da fantasia”. É déspota porque governa sozinho (já que não possui conselheiros e sim aduladores que lhe dizem o que quer ouvir); porque governa segundo seu arbítrio e capricho, já que somente sua vontade é a lei; porque governa pela violência, já que governa segundo suas paixões e interesses particulares, sem considerar direitos, interesses e paixões dos súditos, mas apenas os de sua corte, que é um prolongamento de seu corpo (o corpo político é o corpo físico do déspota multiplicado pela aquisição dos órgãos dos cortesãos); e, finalmente, porque governa na humilhação, já que não possui segurança quanto ao poder e recebe de volta o medo que impõe aos governados;
  3. personalização do poder: na medida em que o poder do imperador é de direito subjetivo, ele não pode ser visto como símbolo ou emblema do poder, nem como representante do poder, mas como encarnação do poder, e sua pessoa é o Estado; não há como distinguir o homem e o cargo, a pessoa e as instituições políticas. A identificação entre o cargo e seu ocupante produz dois efeitos principais. Em primeiro lugar, como não foi a sociedade que criou o poder nem o seu detentor, a imagem social produzida é a de que o imperador cria a própria sociedade, em vez de simplesmente governá-la; são suas ações, seus gestos, suas vontades, suas atitudes boas ou malévolas que fazem existir a sociedade. Ele adquire, assim, a figura do genitor, do pai cuja bondade o faz amado pelos súditos e mesmo adorado por eles. Em segundo lugar, a identificação entre o governante e o governo, entre o cargo e seu ocupante, faz com que sua vida privada, nos mínimos detalhes, ganhe dimensão e interesse políticos (a vinda de um filho, um casamento, os aniversários, seus gostos à mesa e na cama, seu vestuário, seus hábitos cotidianos passam a fazer parte do poder, vistos, admirados, aclamados, imitados). Escreve Paul Veyne:

Quando o imperador Cômodo se exibia no anfiteatro como gladiador, não pretendia acrescentar à coroa os louros de campeão e o público não o admirava como uma estrela da gladiatura esquecendo-se de que era príncipe: os espectadores admiravam que seu soberano tivesse todos os dons e realizasse todas as virtualidades humanas; amavam também que o senhor fizesse ver à plebe que compartilhava com ela os gostos esportivos e não desprezava a cultura do povo. Cômodo tornava-se popular enquanto soberano.

Para o Senado romano, por sua vez, conhecer os hábitos e a vida privada do imperador tornou-se indispensável, pois da dignidade dessa vida dependia que se pudesse perceber que não massacraria os senadores, nem escarneceria de suas virtudes;

  1. moralização do poder: o imperador só pode ser descrito em termos éticos, segundo virtudes e vícios dos quais ou é modelo exemplar ou é monstro execrado. Não por acaso, a tradição política de crítica à tirania e ao despotismo legou-nos um retrato moral do tirano ou do déspota, cujos traços mais marcantes são: desrespeito pelos deuses ou impiedade; desrespeito pela sua família e pelos amigos (matricida, parricida, fratricida, adúltero, incestuoso); crueldade arbitrária ou homem sanguinário; lubricidade depravada; corrupção financeira (uso dos fundos públicos para si, distribuição de bens públicos aos próximos, furto dos bens deixados em testamento por algum súdito); ébrio sem compostura ou drogado permanentemente pelos vapores do vinho; desmedida em tudo quanto deseja e faz, tanto nos vícios como nas obras; medroso e covarde, temendo a rua e o palácio, sempre à espreita das emboscadas. Embora esse retrato seja um estereótipo (mesmo porque traçado pelos adversários políticos), o que nele interessa é o fato de ser traçado sob perspectiva ética e não política, pois, como escreve Veyne:

O imperador não pode ser dito hábil ou inteligente, como não se diz isso dos deuses. Sua individualidade é exclusivamente ética, serão cantadas suas virtudes, mas será falta de respeito falar de suas qualidades políticas; não pode tê-las nem elas lhe podem faltar porque ele se confunde com sua função e essa função é imóvel e providencial. É um soberano virtuoso, mas nunca um “chefe genial”, noção muito moderna, própria de sociedades com opinião pública em que o chefe é levado ao poder não por um direito que teria, mas pelo fato objetivo de que é julgado o melhor de todos, o que lhe vale uma delegação popular.

Observemos (observação que Veyne não faz) que é espantoso, aqui, o fato de que, no instante mesmo em que o poder se torna absoluto, em que não há distância entre ele e seu ocupante, entre este e a sociedade, em que o poder do soberano é visto como engendrando a própria sociedade e a vida dos sujeitos, nesse exato instante não há como julgar politicamente o poder, que passa a ser avaliado pelos critérios da ética;

  1. busca da popularidade, do amor, da reverência e da admiração: o imperador, como todo déspota, não deseja ser apenas temido; deseja algo mais. Deseja mais do que não ser odiado: deseja ser amado e venerado. Para que esse amor e essa veneração se manifestem, espera-se que realize atos de bondade para com o povo e dê provas de sua magnificência. Para isso, faz uso de uma antiga instituição (sem relação direta com o despotismo): o evergetismo, isto é, a colocação da fortuna pessoal para demonstrar liberalidade e magnificência, mediante a construção de obras gigantescas, o assistencialismo aos pobres e as festas, o pão e o circo.

O imperador, dissera Hegel, é um autocrata, e os súditos, pessoas abstratas “que se acham apenas numa relação jurídica”, também abstrata. A autocracia e o formalismo jurídico definem, assim, o despotismo romano.

O despotismo feudal, ao contrário do romano, nascido da cisão no interior da República, nasce da cisão no interior do Império carolíngio e da predominância da forma da “comunidade bárbara”, onde as relações sociais não adquirem o caráter de normas gerais nem de leis, mas se estilhaçam em particularismos locais de direitos e obrigações pessoais ou privados. O frágil direito público criado pelo Império de Carlos Magno é privatizado, pois o Estado, nascido para proteger os súditos por meio da lei, e o governante, encarregado por dever de oferecer essa proteção, desaparecem num sistema de proteção que depende exclusivamente da pessoa e da personalidade (moral) poderosa. O direito público se privatiza numa rede de proteção (relação privada do protetor com o súdito) e de vassalagem (relação privada de obrigações do súdito para com o protetor), ambas expostas ao arbítrio, à violência e à contingência.

É preciso, aqui, avançar um pouco mais e acompanhar os estudos dos historiadores medievalistas. Dentre os aspectos enfatizados por tais estudos, interessa-nos aqui a emergência da teoria jurídica do poder como favor, decorrente da teologia cristã de cunho agostiniano. Pelo pecado, diz santo Agostinho, o homem se torna um ser vicioso por natureza e, como tal, despojado de direitos e poderes. Estes permanecem concentrados exclusivamente na pessoa de Deus e se direito houver e se poder houver, somente duas serão suas fontes: a do direito ilusório e do poder injusto, cuja fonte é o demônio; a do direito e do poder justos, cuja fonte é a graça divina. Quando as Sagradas Escrituras declaram que “todo poder vem do alto, por mim reinam os reis e governam os príncipes”, a declaração deve ser tomada literalmente: vicioso, o homem não possui qualquer direito ao poder e não possui qualquer força (moral) que lhe permita investir outro no poder; o detentor do poder o detém por um especial favor divino e o governante é rex Dei gratia. O papa é imperador pela graça de Deus e, por meio da investidura, da unção e da coroação, estende ao rei o favor divino; o rei, pelo sistema da vassalagem, distribui aos barões uma parte desse favor que, a seguir, numa rede intrincada de obrigações do inferior para com o superior, é espalhado pelo interior da comunidade. A origem do bom poder é um ato misterioso e inteiramente pessoal (ou privado) realizado por Deus. A política feudal se efetua, portanto, como rede interpessoal de favores recíprocos e assimétricos, tendo em seu topo a majestade divina. Visto não ter sido o rei investido no poder por seus pares nem pelo povo, é a nemine judicatur. Visto ter recebido o poder por uma graça especial, pela qual a vontade divina vem depositar-se na vontade régia, o rei é legibus solutus e tem a lei “inscrita em seu peito”, motivo pelo qual “o que apraz ao rei tem força de lei”.

À teologia política do favor vem, pouco a pouco, acrescentar-se a teoria cristocêntrica do poder e a construção da figura do governante como rei litúrgico e jurídico. Essa elaboração, que Kantorowicz denominou de “os dois corpos do rei”, é essencial na fundamentação do despotismo feudal.

O imperium, isto é, o poder, traz, desde os romanos, quatro determinações fundamentais: perpetuidade, ubiquidade, invisibilidade e, como consequência, a extranaturalidade. A Pessoa Imperial — o Estado — não pode, portanto, ser confundida com a pessoa física do imperador, pois não sendo physica ou naturalis, é persona ficta, pessoa artificial. A teologia-política cristã irá mais longe: a persona ficta é persona mystica. O problema a ser resolvido resume-se em saber como dar ao corpo físico natural, visível, finito e mortal do rei as marcas do imperium. A resposta será a construção do corpo político do rei.

Na perspectiva cristocêntrica, o rei é persona geminata ou mixta que imita a natureza dupla de Cristo, homem e Deus. Christomimétes, o rei, por seu corpo físico, imita a humanidade de Cristo, e, pela graça, seu corpo místico-político imita a divindade do Senhor. Pela unção, consagração e coroação, a liturgia transmuta o corpo físico em corpo político invisível, perpétuo, contínuo, que desconhece doença, senilidade e morte, ubíquo e indestrutível. Rex Dei gratia, o rei litúrgico, humano por natureza e divino pela graça, realiza a mimesis que não é apenas a da cópia, mas também a da encarnação ou incorporação, pois é Imago Christi. Duplo, o rei litúrgico é maior et minor se ipso, maior do que seu corpo físico e menor do que seu corpo deificado. Enquanto maior, cria a lei; enquanto menor, submete-se a ela. Eternizado pela graça, tudo que é do rei é eternizado com ele e sua figura tanto quanto seus regalia serão iconograficamente representados com o “halo da perpetuidade”.

A unção e a consagração de Carlos Magno como Rector Europae e como Imperator iniciam a transferência jurídica do rei cristocêntrico para o rei teocêntrico. Agora o rei não é mais Christomimétes, mas Imago Dei, e não é rei apenas por graça divina, mas por direito divino. De rei litúrgico torna-se rei jurídico.

A fundamentação jurídica ganha solidez com a passagem do rei para imago aequitatis, imagem da justiça, e seu corpo é agora duplicado em pessoa privada e pessoa pública, sua vontade sendo a res publica. Por sua vontade, o rei é legibus solutus, ou maior do que a lei, pois é a imagem da justiça, mas, simultaneamente, sua vontade é serva aequitatis, ou menor do que a justiça. Essa peculiar relação do major e do minor faz do rei pai e filho da justiça, e desta, mãe e filha do rei. Como pai, sua vontade subordina a lei; como filho subordina-se à justiça. É porque depende inteiramente de sua vontade submeter-se ou não à lei, que o príncipe precisa ser instruído para que sua vontade seja submetida à razão que não é dele, mas razão pública (ratio leges et patria). Como “lei viva” (lex animata), o rei é órgão, criador e instrumento da lei, e esta é o “príncipe inanimado”. Donde, invertendo a afirmação de Aristóteles, o adágio: “é melhor ser governado por um bom rei do que por uma boa lei”.

Se o problema inicial da construção do corpo do rei atendia à necessidade de conciliar natureza e divindade, à medida que essa elaboração se consolida, um novo problema precisa ser resolvido. Enquanto o rei é feudal, o tempo régio se mede por sua vida e pela de seu patrimônio, porém tornando-se rei nacional e rei fiscal, seu tempo já não poderá ser confundido com o da vida de seu corpo físico e com a duração de seu patrimônio. Passando do dominium para o imperium, a continuidade ou o “halo da perpetuidade” encontrarão, agora, um recurso jurídico ímpar.

Aristóteles dissera que a justiça é “um hábito que nunca morre”. Interpretada platonicamente, essa afirmação se transforma em “a Justiça nunca morre”. Sendo imagem da justiça, o rei se torna, por incorporação mimética, imortal. O halo da perpetuidade que o recobre recobrirá também tudo o que é seu: coroa, bens patrimoniais (que se tornam públicos, inalienáveis e imprescritíveis), fisco (sanctissimus et sacratissimus, Christus fiscus), pátria (o território nacional), dignidade (o ofício), majestade (imperium) e dinastia. Cada um desses elementos é definido como persona ficta e, nessa qualidade, “nunca morre”. A relação do rei com os regalia ou personae fictae é a do matrimonium morale et politicus (o que é simbolizado pela entrega do anel durante a cerimônia da coroação), ou seja, o rei é esposo da coroa, dos bens públicos, do fisco, da pátria, da dignidade, da majestade e da dinastia, com os quais forma o corpo político e místico do reino do qual é a cabeça e cujos membros são o povo. Esposo da pátria e do povo, pai e filho da justiça, o rei está em toda parte, pois as principais características das personae fictae são a ubiquidade e a imortalidade. O fisco está em toda parte, como o povo, e ambos “nunca morrem”. Simultaneamente, há uma santificação do rei e de seus regalia, e como rei “nobílimo e santíssimo”, protetor do povo e da Igreja, manifesta sua santidade operando milagres e expulsando demônios: torna-se taumaturgo.

Dois símbolos cristalizam a imortalidade e ubiquidade do corpo do rei: a imagem da Fênix (o rei será dito Fênix; seu primogênito, “petit Phénix”) e a cerimônia fúnebre. Presente em todas as efígies e moedas (na França), a Fênix possui duas características principais: a imortalidade num tempo contínuo e a absoluta singularidade, pois só há uma Fênix de cada vez. É um indivíduo que contém o gênero, porque, sendo hermafrodita e gemina vita, é herdeira de si mesma e nela nascimento e morte coincidem. Eis porque, ao lamento “Le roi est mort”, segue-se o grito triunfal “Vive le Roi”. Filosoficamente interpretada, a Fênix significa que a forma do gerado é a mesma que a do gerador e, juridicamente, garante a dinastia. Não sendo apenas o rei, mas todo o seu corpo político, a Fênix incorpora o povo, a prática e seus símbolos: a bandeira, a flor de lis, a âmbula e a auriflama, que, como ela, “nunca morrem”. O funeral, por seu turno, celebra a vitória do corpo do rei sobre a morte. O corpo físico do rei, paramentado com os regalia, é posto para veneração pública durante dez dias, sendo, em seguida desnudado, posto num caixão e guardado fora da vista de todos, enquanto os regalia são transferidos para sua imagem em efígie e cerimônias sucessivas (missas, bênçãos, ceias, discursos) são realizadas em sua homenagem, comemorando sua eternidade. A bandeira, que “nunca morre”, é hasteada tão logo a morte seja anunciada; o herdeiro não deve vestir luto nem participar das cerimônias e do cortejo, pois como rei “nunca morre”, o novo rei nada tem a chorar. Os magistrados, em contraponto ao clero enlutado que lamenta a morte do corpo natural, vestem-se de púrpura e dourado, porque, como partes do corpo político, “nunca morrem”. O cortejo fúnebre escondendo o corpo físico do rei, normalmente visível, sobrepõe ao caixão a efígie paramentada, seu corpo político normalmente invisível, para que o povo saiba que o rei “nunca morre”. Enterrado o corpo físico, a efígie permanece visível, deixada sobre o túmulo, para que “do leito do rei erga-se o leito da justiça”.

Personalidade e imagem, o corpo político do rei é um corpo total: é o corpo do poder, da comunidade, do saber e da lei. Sua pessoa privada, transfigurada, torna-se pessoa pública e o espaço público, privatizado, comporta duas e apenas duas formas de relação: a do favor (expressa no sistema de proteção e vassalagem) e a da imitação. Representante de Deus na terra, o governante encarna a comunidade e oferece-se a ela como espelho. Ser governado significa imitar as qualidades pessoais do governante.

A imitação recoloca, no interior da política, a moral, uma vez que a qualidade da comunidade — boa ou má, feliz ou infeliz, justa ou injusta — depende do modelo régio a ser imitado. Como impedir o surgimento do mau governante? Como impedir que o vício defina a forma das relações sociais?

Para responder a essas questões, desenvolve-se, primeiro em Bizâncio e depois na Europa, um gênero literário, que perdurará até o século XVIII, e um conceito, que perdurará até o século XIX: o gênero literário chama-se Espelho dos Príncipes — trata-se da educação moral do príncipe para que seja um bom governante ou um governante virtuoso; o conceito chama-se Bom Conselho — trata-se do modelo ético-político do governo guiado pela Prudência contra a Fortuna (a adversidade). A construção teológico-política do governante como pessoa privada com encargos e deveres públicos coloca a ética como responsável pela qualidade do regime político, na medida em que tal qualidade depende das virtudes ou dos vícios do governante. Não há valores políticos e critérios políticos para a política, mas critérios teológicos e valores morais.

O bom príncipe possui as quatro virtudes cardeais (sabedoria, justiça, coragem e temperança) e as qualidades morais principescas: a honra (disposição para manter seus princípios e sua palavra, sejam quais forem as circunstâncias); a magnanimidade ou clemência; e a liberalidade ou magnificência. O bom governante deve aspirar à fama e à glória por meio de seus feitos, mas para isso deve ser virtuoso e a virtude está na capacidade (definida por Cícero) de não ser astuto como a raposa nem violento como o leão, isto é, jamais cair na animalidade e na bestialidade. As qualidades do reino e dos súditos dependem inteiramente das do príncipe e por isso uma comunidade ou um reino entram em corrupção e em decadência quando o governante for vicioso, pois seus vícios se transmitem ao corpo político como doença incurável.

Um parêntese.

Grande é a tentação de passar à análise do totalitarismo como forma contemporânea do despotismo. Não encontramos nas formações totalitárias a retomada da ideia e do sentimento da comunidade, corporificada no chefe? O “culto à personalidade” não é a forma contemporânea da antiga imitatio? O totalitarismo não é a retomada plena da imagem do corpo político, agora também corpo social sem fissuras e transparente, e da corporificação em alguém da totalidade do poder, do saber e da lei?

No entanto, a passagem não é possível, ainda que as analogias sejam fortes. O totalitarismo é o oposto do despotismo: neste, não há esfera pública; naquele, não há esfera privada. O déspota impede o surgimento do campo político; o chefe totalitário, do campo social. No despotismo, há privatização do público; no totalitarismo, publicização do privado, incorporação da vida privada à vida estatal e desaparecimento da primeira na segunda.

Fechemos o parêntese.

Mesmo o republicanismo da Renascença italiana mantém o ideal do príncipe virtuoso, espelho para a sociedade. Embora afirme a liberdade republicana (o direito da cidade de dar a si mesma suas leis, independentemente do Papado e do Império germano-romano), que a fonte da lei é o povo (o populus e não a plebs, isto é, o patriciado e não a plebe) e que este elege o governante, a eleição deve recair sobre o homem dotado de virtù. O príncipe virtuoso possui, além das virtudes cristãs, aquelas que Cícero, no De officiis, e Sêneca, no De clementia, atribuíram ao governante: honra (manter seus princípios em todas as circunstâncias e manter a palavra dada), clemência (capacidade para perdoar e educar), liberalidade ou magnificência (saber gastar sua própria fortuna para o bem da cidade), glória (grandeza ilustre de seu nome por seus feitos militares), piedade (respeito pela religião dos antepassados) e veracidade (jamais mentir).

A partir desse momento, porém, duas tradições do pensamento político irão surgir e, embora possuindo um fundo comum, serão opostas. A primeira delas nasce com Maquiavel, com a separação entre ética e política, de sorte que o despotismo será uma instituição política e não um defeito de caráter do governante. A segunda nasce com Pascal, que mantém o vínculo entre ética e política, porém não mais a partir da figura do governante virtuoso e sim da natureza viciosa do homem. Reaparece o pessimismo agostiniano. A teologia cristã, segundo Pascal, nos ensina que há dois reis: o verdadeiro, Rei da Caridade, que é Deus, e o usurpador, Rei da Concupiscência, isto é, o governante humano.

O fundo comum a essas duas tradições é a negação de uma origem transcendente do poder: nem Deus, nem a Natureza, nem a Razão criam o poder e lhe conferem bondade, legitimidade e racionalidade. A origem do poder é arbitrária: é a força, mas não como violência nua e bruta e sim como ilusão (no caso de Pascal) ou como lógica da divisão originária do desejo dos Grandes e do Povo (em Maquiavel). Para ambos, a lei pertence a uma ordem diferente daquela que ela está encarregada de fundar, isto é, o poder como força. A lei transfere para o campo simbólico aquilo que, no início, não é um valor, mas um fato, não é símbolo, mas algo físico. O simbólico deve ocultar a origem do poder para que este possa ser aceito e exercido, cabendo à imaginação realizar essa passagem do fato ao valor, da força ao poder, da violência ao legal e legítimo, pois é próprio da imaginação esconder a origem das coisas. O governante não despótico é aquele que governa pela imaginação para não ter que reinar pela força; o governante despótico é aquele que não consegue fazer a passagem do arbitrário para o necessário e que deixa à mostra a origem violenta do poder.

Numa passagem célebre dos Pensamentos, o “Discurso sobre os Grandes”, Pascal narra uma fábula para expor a origem acidental e arbitrária do poder (o rei legítimo desapareceu; um naufrágio traz à praia um desconhecido que é, fisicamente, o sósia do rei desaparecido; feliz, o povo o reconduz ao palácio onde, no início, com estranhamento e dificuldade e, depois, com naturalidade, o estrangeiro ocupa o lugar vazio e passa a governar). O governante é, literalmente, persona (isto é, Ninguém) e persona ficta (isto é, uma construção imaginária). Não governa por natureza, nem por mérito, nem por direito divino. É um usurpador, pois, na origem, todo poder é astúcia e usurpação. É um ser-emrepresentação e um signo, uma função, uma imagem e uma personagem. Tendo tomado o poder pela força (astúcia e mentira), nele se mantém pelo ocultamento de sua origem, pois a imaginação social e os símbolos do poder devem ocultar-lhe a origem e conservá-lo mediante a lei. Esta deve ser obedecida simplesmente por ser a lei, isto é, costume consolidado, e não porque possua qualquer sacralidade ou qualquer valor ético. Justamente por serem ocultamento da origem real do poder, os símbolos e a lei não devem jamais ser contestados, pois sua contestação teria como resultado atualizar a origem e fazer proliferar o número de usurpadores, trazendo anarquia e caos a um mundo já vicioso e viciado.

Como distinguir o governante do déspota ou tirano?

Déspota é aquele que julga possuir direito ao poder por méritos pessoais (físicos e éticos) e por qualidades naturais; que julga as leis, procura mudá-las e se apresenta como reformador. O revolucionário, o reformador, o contestador são tiranos e déspotas por dois motivos: em primeiro lugar, porque procuram lembrar ao povo a origem acidental e arbitrária do poder e das leis; em segundo lugar, porque sonham com direitos naturais, justiça originária, abolição da força e da concupiscência. Déspota — rei ou reformador-contestador — é aquele que questiona a simbologia do poder, a origem dos costumes e a justiça das leis estabelecidas. Por que déspota? Porque, em nome de sua vontade particular ou da vontade particular de um grupo, contesta a ordem estabelecida e pretende reduzir a imagem e os símbolos do poder a fatos empíricos.

Ora, que surpresa nos aguarda quando descobrimos que nem mesmo o ilustrado Kant escapa ileso dessa tradição. Como todo ilustrado, Kant não espera da ética régia o apoio para a racionalidade e legitimidade do governo. Distingue o monarca do tirano e do déspota invocando a potência legislativa do primeiro contra a arbitrariedade da vontade dos segundos. A potência da lei contra o arbítrio da vontade guiada pelas paixões e pelos interesses separa política e despotismo. No entanto, pronunciando-se sobre a Revolução francesa, Kant afirma que esta poderia ter sido uma “conspiração heroica e patriótica”, mas, ainda assim, conspiração e crime, cujos “autores sonham menos em servir à pátria do que em submetê-la, menos em livrá-la dos tiranos do que em tornar-se tais”. Essas conspirações se fazem com desordens e perturbações e com o derramamento de sangue, “e o sangue de um só homem tem mais preço do que toda a liberdade do gênero humano”. Em lugar de sucumbir à violência do crime de conspiração que é a revolução, cabe ao governante realizar reformas, portadoras de mais liberdade e mais paz às sociedades e aos estados. Na Doutrina do direito, Kant escreve:

 

A origem do poder supremo é para o povo, que a ele está submetido, insondável do ponto de vista prático, isto é, o súdito não deve discutir ativamente essa origem como um direito contestável relativamente à obediência que ele lhe deve. […] Uma lei é tão sagrada (inviolável) que, do ponto de vista prático, pô-la em dúvida, portanto suspender por um momento o seu efeito, já é um crime; uma lei que é tão sagrada só pode ser representada como tendo sua fonte não em algum homem, mas num legislador supremo e infalível e tal é o sentido da afirmação toda autoridade vem de Deus, que não exprime um fundamento histórico da constituição civil, mas uma ideia como princípio prático da razão: deve-se obedecer ao poder legislativo atualmente existente, seja qual for a origem que tenha tido.

Se, para Pascal, existe apenas a origem empírica e arbitrária do poder, nascido do uso da força e da usurpação, e se, para Kant, estão contrapostas a origem empírica (que pode ser arbitrária e violenta) e a origem transcendental do poder como lei sagrada e inviolável da Razão, para ambos, o fundamental na definição da tirania e do despotismo encontra-se na tentativa perversa de desocultar a origem da política, em fazer o simbólico cair para o plano factual. E é isso que realiza toda revolução, na medida em que dessacraliza e desnaturaliza o poder e toma a divisão social entre um Baixo e um Alto como inaceitável e devendo ser desfeita.

Assim, o percurso aberto pela tradição pascaliana, isto é, pelo pensamento político conservador, produz um deslocamento da figura do déspota. Este, que surgira inicialmente como aquele que se apropria privadamente do espaço público — portanto, como figura do governante passional e violento —, vem terminar na figura daquele que contesta a sacralidade e naturalidade do poder e das leis enquanto costume e tradição invioláveis — portanto, na figura do revolucionário. Era déspota aquele que produzia, por suas paixões, o encolhimento do espaço público, submetido à sua vontade privada. Torna-se déspota aquele que, agora, alarga o espaço público pela ação de uma vontade coletiva. E, tanto num caso como noutro, essa tradição julga-o eticamente: o déspota é perverso e agente da corrupção política.

A tradição inaugurada por Maquiavel (e, não por acaso, retomada pelo revolucionário Gramsci) segue outro rumo, ainda que, como a anterior, se ocupe com a separação entre ética e política e com a recusa do caráter transcendente do poder. Entre outras diferenças face a Pascal, Maquiavel não deixa qualquer brecha por onde possa regressar a transcendência de Deus ou da Razão para avaliar a política. Porque Deus, absoluto escondido, permaneceu como referência avaliadora para Pascal, Ele pode reaparecer na figura do insondável kantiano e referido à razão prática transcendental. Com Maquiavel, a lógica política possui seus próprios critérios de compreensão e avaliação à distância da ética e da teologia, da razão prática e da razão teórica. Justamente por isso, os críticos (de ontem e de hoje) criaram o mito do maquiavelismo e do governante maquiavélico, isto é, a imagem da satanização da política.

Recusando o ideal da cidade ética dos antigos e do príncipe medieval virtuoso, Maquiavel, dizem os críticos, teria feito surgir a figura do Estado como obra maléfica do engano, da astúcia, da violência e da força. O príncipe seria a imagem de um poder sem rosto e sem lugar, de um mal que se abateria sobre a comunidade para fazê-la realizar atos que a conduzam à sua própria ruína. Agente diabólico, violento e astuto, senhor do engano e da ilusão, agente secreto da destruição, o governante maquiaveliano seria a encarnação de todos os vícios e figura exemplar do Mal que corrompe e degrada a boa sociedade una e indivisa, justa e bela, livre e independente. É o déspota.

Qual a origem dessas imagens de cunho ético que serviram para a construção do mito do maquiavelismo e para a representação do governante maquiavélico? A própria obra de Maquiavel, na medida em que é a primeira a mostrar que a política não é um fato que encontre seu fundamento na Natureza, em Deus ou na Razão, mas precisa encontrá-lo nela mesma enquanto resposta a uma questão social precisa: não há comunidade social, mas sociedade, isto é, divisão originária entre o desejo dos Grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. A cidade não é comunidade, não é “boa sociedade” una, mas é perpassada pela divisão social e do social; a política é o trabalho que a sociedade realiza sobre si mesma para criar um polo separado — o poder político — pelo qual, dividida, ganhe unidade e identidade. A política surge como diabólica porque deixa de ser obra de Deus, da Natureza e da Razão para tornar-se obra social e trabalho histórico dos próprios homens.

O “bom governo” do príncipe virtuoso, diz Maquiavel, é uma máscara que encobre a impossibilidade da verdadeira política. Não há modelo ético para guiar as ações do governante porque não há o “bom príncipe” contraposto ao “mau príncipe” tirânico e despótico, e sim a lógica própria da ação política. Maquiavel realiza uma verdadeira desincorporação do poder, pois a qualidade virtuosa deixa de ser um atributo da pessoa privada do governante para tornar-se a qualidade da ação política como tal. Mesmo que a ação política receba qualificativos morais, sua lógica não é a da moralidade privada do príncipe e dos sujeitos sociais. A lógica do poder é diferente da lógica da ética individual, é diferente da lógica da força e é diferente da lógica mística; essa lógica transparece nas qualidades próprias do governante enquanto governante, isto é, na qualidade das ações políticas como resposta às lutas sociais. Assim, contra a tradição, Maquiavel dirá que o governante deve possuir a astúcia da raposa e a força do leão, desde que não faça da primeira mentira política, nem da segunda, uso puro e contínuo da violência, mas saiba quando é preciso dissimular e quando é preciso usar a força. Grande dissimulador e paciente ouvinte do verdadeiro, o governante não é um teórico nem um intelectual, mas não pode ser ignorante dos negócios públicos, das lutas sociais, dos conflitos de interesses entre grupos, dos efeitos das ações que realiza. O governante maquiaveliano é o homem da virtù vencedora da Fortuna, pois é capaz de conhecer os tempos e os lugares, as circunstâncias de sua ação, de calcular e fazer alianças.

Com Maquiavel, surge a ideia moderna de que a qualidade das ações políticas revela-se na capacidade para alimentar e ampliar a liberdade republicana (autonomia legal da república; expressão e solução dos conflitos internos). A liberdade política se contrapõe ao despotismo porque se manifesta na criação das instituições políticas capazes de conservá-la e de impedir que um só homem ou um punhado deles tome o poder e o utilize em seu próprio benefício. A finalidade da política não é a felicidade nem o bem comum, pois estes são seus efeitos e não seus fundamentos. A finalidade da política é a liberdade cívica, a segurança dos cidadãos e a paz externa entre as cidades. Tais finalidades não dependem das qualidades pessoais do governante, mas das instituições republicanas e, portanto, do espaço público.

A liberdade cívica ou pública é o que define a verdadeira república e se, no início, depende da virtù do príncipe que vence a caprichosa Fortuna, só poderá ser conservada se a virtù e o desejo de liberdade penetrar no espírito dos cidadãos, pois embora um só tenha condição de organizar um governo, nenhum governo poderá ter esperança de ser duradouro “se repousar nos ombros de um só”. Como lembra Skinner, a salvação de uma república não é tanto “ter um príncipe que governe prudentemente ao longo de sua vida, mas ter um príncipe que a organize de tal modo que, posteriormente, a virtù não venha a depender dele próprio, mas da virtù do povo”.

Atento ao risco permanente da corrupção política que destruirá a república, Maquiavel se volta para as ordini nuovi, isto é, as novas instituições, capazes de impedir a corrupção (sempre entendida como a ação de um particular ou de um grupo de particulares, saídos do seio dos Grandes, que usam a república para seus próprios interesses privados). Um dos nomes da corrupção, portanto, é o despotismo e a resposta política contra ele não se encontrará na substituição de um governante por outro, mas na qualidade das instituições que o impeçam.

Seguindo essa tradição, Espinosa desenvolve, no Tratado político, uma linha de argumentação na qual a desmontagem do moralismo político é condição para a vida propriamente política, por intermédio das instituições. Como Maquiavel, Espinosa afirma que a origem do poder político não se encontra em Deus ou na Natureza, mas na natureza humana passional e, portanto, na força — o que ele chama de direito natural como desejo de autopreservação e de governar e não ser governado. A importância das instituições públicas como garantia única para a preservação da república passa pela recusa de que a política seja um ramo da ética e uma “ciência aplicada”. Em outras palavras, que seja normativa, no sentido tradicional da moral como dever de submeter-se a fins postos como bons e justos em si. Escreve Espinosa:

Os filósofos concebem os afetos que se combatem entre si, em nós, como vícios em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituaram a ridicularizá-los, deplorálos, reprová-los ou, quando querem parecer mais morais, detestá-los. Julgam assim agir divinamente e elevar-se ao cume da sabedoria, prodigalizando toda espécie de louvores a uma natureza humana que em parte alguma existe, e atacando através dos seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem. Daí, por consequência, que quase todos, em vez de uma ética, hajam escrito uma sátira, e não tinham sobre política vistas que possam ser postas em prática, devendo a política, tal como a concebem, ser tomada por quimera, ou como respeitando ao domínio da utopia, daquela idade de ouro, isto é, a um tempo em que nenhuma instituição era necessária. Portanto, entre todas as ciências que têm uma aplicação, é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos próprios para governar o Estado do que os teóricos, quer dizer, os filósofos. Os políticos, em contrapartida, crê-se que estão mais ocupados em preparar armadilhas aos homens do que em dirigi-los pelo melhor, e pensa-se serem mais hábeis do que sábios. A experiência ensinou-lhes, efetivamente, que haverá sempre vícios enquanto houver homens; preocupam-se, portanto, em evitar a maldade humana e isto através de meios cuja longa experiência demonstrou a eficácia, e que homens mais movidos pelo medo que guiados pela Razão têm o costume de utilizar. E agindo, em tudo isto, de uma forma que parece contrária à religião, principalmente aos teólogos: segundo estes últimos, o soberano deveria conduzir os negócios públicos consoante as regras morais que o particular deve observar. Não há dúvida, todavia, de que os políticos tratam, nos seus escritos, da política com mais êxito do que os filósofos: tendo tido a experiência por mestra, nada ensinaram, na realidade, que fosse inaplicável.

A tradição do moralismo político sempre julgou que a razão é uma força imperial que pode e deve dominar as paixões (os vícios do governante). Ora, diz Espinosa, somente uma paixão mais forte domina outra mais fraca, e somente uma ação domina uma paixão. Se, na ética, trata-se de passar da passividade para a atividade, na política, a tarefa é outra, pois

um Estado cuja salvação depende da lealdade de algumas pessoas e cujos negócios, para serem bem dirigidos, exijam que aqueles que os conduzem queiram agir lealmente, não terá qualquer estabilidade. Para poder subsistir, será necessário arranjar as coisas de tal modo que os que administram o Estado, quer sejam guiados pela Razão ou movidos por uma paixão, não possam ser levados a agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral. E pouco importa à segurança do Estado que motivo interior têm os homens para bem administrar os negócios, se de fato os administrarem bem. Com efeito, a liberdade da alma, quer dizer, a força d’alma é virtude privada; a virtude necessária ao Estado é a segurança.

Para o que aqui nos interessa, o texto espinosano, ao desvincular a política da ética normativa e colocar as instituições como centro da política, repõe o direito das paixões no campo público, mas de maneira singular: trata-se de aceitar a naturalidade das paixões e dos interesses e de operar com eles, de sorte a fazê-los simultaneamente propulsores, guardiães e perigos para a república. Propulsores, porque as paixões e os interesses visam à autoperseverança na existência; guardiães, porque atentos ao que pode impedir o desejo de autopreservação; e perigos, porque são ilimitados e podem gerar a tirania ou o despotismo.

Espinosa é, provavelmente, o pensador que melhor formula uma ideia que terá um longo futuro pela frente. O princípio capaz de resguardar a república contra o despotismo é simples: o governante nunca deve estar só, mas deve governar num sistema institucional constituído por redes de assembleias eletivas com mandato determinado e onde cada assembleia é controlada e fiscalizada e controla e fiscaliza as demais e os atos do dirigente. Essa ideia culminará na teoria de Montesquieu da divisão dos poderes e da relativa autonomia entre eles. Essa mesma ideia regerá a política liberal norte-americana como sistema de checks and balances e a afirmação da soberania popular e do Estado. Numa palavra, o governante não pode identificar-se com o cargo nem com o poder. Este deve sempre aparecer como vago, de direito, e, de direito, ser preenchido periodicamente por sufrágio popular. Assim, o espaço público se constrói desfazendo a imagem do corpo político enquanto corpo místico-político do governante, criando instituições públicas que impeçam a corporificação do poder político e a identificação da sociedade com o dirigente. Há um processo de despersonalização e desincorporação do poder que permite o surgimento das virtudes cívicas como virtudes públicas dos cidadãos, à distância das virtudes éticas, próprias da vida privada. Nem por isso, porém, desaparece o problema da relação entre o público — político — e o privado — ético. As paixões retornam à cena da discussão política.

Por suas origens no interior da ética protestante, o liberalismo terá que elaborar uma concepção da política e do poder que resultará nas distinções acima mencionadas. Mas, para aí chegar, o pensamento liberal precisou oferecer expressão política para questões que eram puramente éticas, particularmente uma: a da tirania ou despotismo das paixões, concepção herdada da ética cristã e estoica que define a paixão como vício e fonte da discórdia no interior do indivíduo e na comunidade. A paixão exprime interesses particulares e, como tal, é contrária à vida comunitária como vida justa e de equidade. A paixão é a concupiscência e o egoísmo. É sediciosa (nos divide interiormente) e facciosa (divide a comunidade).

Como, porém, poderia o capitalismo manter essa ética? Como poderia propor a antiga política do bem comum, fundada numa ordem cósmica e hierárquica desejada por Deus (onde cada qual tem seu lugar predefinido e preordenado) se opera com a noção moderna de indivíduo? Como poderia propor uma política da ética comunitária e do interesse geral, se é fundado na competição, na propriedade privada dos meios de produção, na divisão social das classes, na exploração econômica, no lucro, na desigualdade social? Como poderia manter a ética da frugalidade e do ascetismo numa lógica de mercado fundada na acumulação do capital? Como poderia, em termos hegelianos e marxistas, criar uma política do espaço público, se seus pressupostos são o direito privado, a vontade privada, a ética individual e individualista? Entre as várias respostas dadas a essas dificuldades, uma nos interessa aqui porque atua diretamente com a relação entre a ética e a política. Trata-se da formulação de Madison, no capítulo X do Federalista e que o historiador Pocock designa como “o fim da política clássica”, isto é, a formulação que inaugura a política liberal.

Apenas dois aspectos da formulação de Madison nos interessam aqui: um deles se refere ao despotismo e o outro, à superioridade da república representativa sobre a democracia. Ambos se baseiam na concepção madisoniana das paixões e da ética.

A natureza humana é movida por paixões e interesses e, por isso mesmo, sua tendência é ser sediciosa ou facciosa, pois toda paixão — affectus e affectio — é factio, facção, divisão interna a cada homem e divisão entre os homens. A paixão não possui medida nem freio e por isso cresce sem limite. Seu crescimento desordenado gera as facções e estas, dando autoridade aos mais fortes, geram a tirania e o despotismo, uma vez que a paixão é interesse e o despotismo é o governo dos interesses de um só ou de uns poucos, segundo o arbítrio de suas vontades. Escreve Madison:

Entendo por facção uma reunião de cidadãos, quer formem a maioria ou a minoria do todo, uma vez que sejam unidos e dirigidos pelo impulso de uma paixão ou interesse contrário aos direitos dos outros cidadãos, ou ao interesse constante e geral da sociedade. Há dois métodos de evitar as desgraças da facção: ou prevenir-lhe as causas, ou corrigir-lhe os efeitos. Os métodos de prevenir as causas das facções são igualmente dois: o primeiro, destruir a liberdade essencial à sua existência; o segundo, dar a todos os cidadãos as mesmas opiniões, as mesmas paixões e os mesmos interesses. O primeiro remédio é pior que o mal. É certo que a liberdade é para a facção o mesmo que o ar é para o fogo — um alimento, sem o qual ela expiraria no mesmo momento; mas seria coisa tão insensata destruir a liberdade que é essencial à vida política, só porque ela é o alimento das facções, como desejar a privação do ar, só porque ele conserva ao fogo a sua força destrutiva. O segundo meio teria tanto de impraticável como o primeiro de insensato. Enquanto a razão do homem não for infalível e ele tiver a faculdade de exercitá-la, há de haver diversidade de opiniões; e enquanto existirem relações entre a sua razão e o seu amor-próprio, as suas opiniões e as suas paixões hão de ter umas sobre as outras uma influência recíproca. A diversidade de faculdades nos homens, que é a origem dos direitos de propriedade, é um obstáculo igualmente invencível à uniformidade dos interesses. A proteção destas faculdades é o primeiro fim do governo. Da proteção das faculdades desiguais, de que resulta a aquisição, resulta imediatamente a desigualdade na extensão e na natureza da propriedade; da sua influência sobre os sentimentos e sobre as opiniões dos proprietários resulta a divisão da sociedade em diferentes interesses e em diferentes partidos.

Todavia, Madison é um moderno. As paixões e os interesses são naturais e não há equívoco maior do que tentar extingui-los. Por isso, trata-se de saber usá-los e de fazê-los bons instrumentos da política. Se a marca das paixões é estar sempre em expansão, é preciso criar instituições políticas que canalizem para o bem comum esse crescimento e essa expansão do interesse privado. Em lugar de opor o público ao privado, façamos deste o instrumento daquele, com um arranjo institucional astucioso que estabeleça a adequação da ética privada para fins públicos. Nessa perspectiva, sua tarefa é definir o regime político e as instituições públicas que possam conciliar as paixões e interesses privados expansionistas e a estabilidade, a ordem e a paz sociais.

A democracia, dirá ele contra Benjamin Franklin e Jefferson, não responde a essa necessidade. A opção deve ser pela república representativa, pois

uma pura democracia, composta de um pequeno número de cidadãos, que se reúnem todos e governam por si mesmos, não admite remédio contra as desgraças da facção. A maioria terá, em quase todos os casos, paixões e interesses comuns: as formas do governo trarão necessariamente consigo comunicação e concerto e nada poderá reprimir o desejo de sacrificar o partido mais fraco, ou o indivíduo que não se puder defender. […] Os políticos especulativos, que têm sustentado esta espécie de governo, têm discorrido sobre o princípio falsíssimo de que a perfeita igualdade de direitos políticos pode trazer consigo igualdade de propriedades, de opiniões e de paixões. Uma república, quero dizer, um governo representativo, oferece um ponto de vista diferente e promete o remédio que se deseja. […] A república aparta-se da democracia em dois pontos essenciais; não só a primeira é mais vasta e muito maior o número de cidadãos, mas os poderes são nela delegados a um pequeno número de indivíduos que o povo escolhe. O efeito desta segunda diferença é de depurar e de aumentar o espírito público, fazendo-o passar para um corpo escolhido de cidadãos, cuja prudência saberá distinguir o verdadeiro interesse da sua pátria e que, pelo seu patriotismo e amor da justiça, estarão mais longe de o sacrificar a considerações momentâneas ou parciais. Num tal governo é mais possível que a vontade pública, expressa pelos representantes do povo, esteja em harmonia com o interesse público do que no caso de ser ela expressa pelo povo mesmo, reunido para este fim.

Como observa Pocock, no pensamento de Madison duas consequências são tiradas. Em primeiro lugar, o equilíbrio e a separação dos poderes a serem construídos na estrutura federal asseguram que o interesse não corrompe e que a retórica do equilíbrio e da estabilidade pode ser invocada em favor de um edifício não mais fundado na virtude. Em segundo lugar, a estrutura federada surge como altamente capaz de absorver e conciliar os interesses conflitantes, ilimitadamente. Não há um único interesse que não possa ser representado e ter um lugar na distribuição do poder e poderia crescer e mudar com o crescimento e a mudança do povo que gera novos interesses. A república federal sempre pode crescer e mudar para acomodá-los. O “fim da política clássica” encontra-se nesse primeiro deslizamento do republicanismo para o liberalismo, isto é, da teoria clássica do indivíduo como um ser ativo e cívico, diretamente participante da res publica de acordo com sua medida, para uma teoria na qual ele aparece principalmente como consciente de seu interesse e toma parte no governo a fim de pressionar a realização desse interesse, dando apenas uma contribuição indireta para aquela atividade mediadora pela qual o governo consegue a reconciliação dos conflitos e faz disso o único bem comum existente. Surge a república dos interesses representados como sociedade política em expansão. E a expansão federalista se tornará, pouco a pouco, expansão imperialista, pois o liberalismo e o capitalismo, propondo a teoria da fronteira em expansão, operam no espaço público por meio de uma ideologia geopolítica. As ideias de Madison, por seu turno, explicitam os princípios do Estado Moderno que levarão Hegel a afirmar que o Estado ainda não existe em sua plenitude pública.

Em linhas muito gerais, esse foi o quadro de pensamento elaborado pela modernidade e que, hoje, parece estar em crise, a “crise” dos valores não sendo apenas moral, mas também política.

Se quiséssemos resumir conceitos e procedimentos teóricos desenvolvidos pela modernidade (após o fim do Antigo Regime) para cercar e combater o despotismo, poderíamos, tentativamente, assinalar os seguintes:

  1. ruptura com a ideia de comunidade (una, indivisa, corporificada no dirigente) e passagem à ideia de sociedade (originariamente dividida em interesses conflitantes, em classes antagônicas, em grupos diversificados), desprovida de centro e de identidade, mas constituindo a esfera privada (como sociedade civil, como sociedade burguesa, como sociedade de mercado) com aspiração à esfera pública (do poder e dos direitos sociais, cívicos e políticos);
  2. ruptura com a ideia e a prática teológico-política do poder político enquanto poder encarnado na pessoa do dirigente e passagem à ideia da dominação impessoal (Marx) ou da dominação racional (Weber) e das instituições públicas como conjunto regulador, controlador e fiscalizador da ação política, isto é, nascimento da ideia moderna de Estado;
  3. distinção entre a esfera privada dos interesses, das paixões, vícios e virtudes e a esfera pública impessoal das leis como campo simbólico da vontade geral e dos direitos;
  4. passagem da ideia medieval e romântica da Constituição como caráter e espírito de um povo ou de uma nação à ideia da Constituição como lei maior que regula o espaço público;
  5. percurso feito da ideia e da instituição da república representativa à ideia e à instituição da democracia representativa (ou democracia formal, como dizia Marx), isto é, da república oligárquica censitária à democracia baseada no sufrágio e no igual direito de todos os cidadãos de ocupar os cargos públicos de direção;
  6. surgimento da ideia de opinião pública como reflexão que um indivíduo ou um grupo de indivíduos realiza a propósito de seus interesses e direitos e a expõe livremente em público quando os sente lesados ou prejudicados pelo poder público ou por outros grupos sociais.

Ora, cada um desses traços tem sido contestado ao longo dos últimos 150 anos e, hoje, mais do que nunca. No caso específico do despotismo, as críticas puseram em dúvida a eficácia dos traços acima resumidos para impedir regimes despóticos. A absorção da esfera pública (o Estado) pela sociedade civil foi apontada por Marx na análise do particularismo estatal como domínio de classe. A absorção da esfera privada pelo Estado foi criticada com o advento do totalitarismo. O formalismo democrático foi contestado não só pelos socialistas e marxistas, como ainda pelos movimentos sociais dos anos 1960 e 1970. Mas, também, a “invasão” do espaço público pelas diferenças do espaço privado, com o feminismo e a luta dos homossexuais, entre outras, levaram à crítica da privatização do público. O surgimento dos mass media destrói a ideia moderna de opinião pública, ao mesmo tempo que se apresenta como defesa da liberdade de pensamento e de opinião. Enfim, se o totalitarismo é a publicização desenfreada do privado, o neoliberalismo é a privatização ilimitada do público.

Com isso, somos levados de volta à questão do pós-modernismo, com a qual pretendemos encerrar nossas considerações.

À guisa de conclusão

O percurso que fizemos até aqui, passando pela sobreposição progressiva do conceito de tirania ao de despotismo e vice-versa, permite perceber que o déspota (enquanto tirano) não aparece sempre da mesma maneira.

Assim, o tirano socrático-platônico (que não é identificado ao déspota, pois o rei platônico é pensado a partir da figura paterna) lega para a tradição política a imagem do governante desmedido porque irracional, dominado por uma única paixão e desprovido da virtude da temperança e da justiça; o tirano aristotélico lega para a imagem do despotismo a figura daquele que pretende elevar-se acima do humano e que, não podendo ser um deus, decai aquém da humanidade; o déspota medieval é legitimado como figura do bom governante, contraposto ao tirano, o mau governante que se apresenta como governante contra-Deus e contra-Natureza, mas que não pode ser deposto nem resistido porque “todo poder vem do alto” e o tirano é um flagelo enviado e desejado por Deus para punir os pecados do homem (ideia que reaparece na afirmação corrente, encontrada em nossos dias, de que “todo povo tem o governo que merece”); o déspota de La Boétie é aquele que se apropria da totalidade da vida pública e privada e impõe à sociedade uma relação narcísica com o poder; o de Maquiavel é a imagem do governante que age sem virtù e se apoia nas armas da Fortuna inconstante, aliando-se ao desejo dos Grandes e temendo ser por eles derrubado; o déspota de Montesquieu é o que governa sem leis, na indivisão dos poderes; o déspota hegeliano aparece na figura daquele que privatiza o espaço público, dispersa os súditos como pessoas privadas abstratas e os unifica pelo exterior; o tirano, segundo Nietzsche, é aquele que se apropria da totalidade do campo político e impede a continuação do jogo agonístico das forças; o déspota pascaliano e kantiano é aquele que desoculta a origem empírica e violenta do poder ao contestar as leis e os símbolos que apagaram a origem na legitimidade imaginária.

Um fundo comum, porém, perpassa todas essas concepções: o déspota só é capaz de um tipo de relação social e política, a do senhor e o servo. Ele não é tanto a vontade arbitrária e sem lei, mas a presença de um regime — o despotismo — que, mesmo com leis, concretiza uma única forma de relação social e política, cuja marca é a realização da liberdade (de um só) pela servidão (de todos os outros) e é por isso (e pelas instituições que o déspota mobiliza, sobretudo as forças militares e o imaginário religioso) que sua vontade surge como ilimitada. Mais do que tudo, o traço preponderante do despotismo está em que, mesmo existindo leis, os governados as obedecem não por elas mesmas, mas pelo amor e fascínio que sentem pela pessoa do governante, ou pelo medo e ódio que por ela experimentam. O despotismo dispensa instituições mediadoras nas relações políticas. A personalização do poder acaba pondo em evidência paixões, vícios e virtudes porque restam somente critérios morais para se avaliar a ação e a reação das forças políticas. Assim, no caso do Brasil, o despotismo se manifesta menos em períodos de ditadura (quando o reino da força é visível) e muito mais em períodos de populismo (quando a violência está dissimulada pelos sentimentos de veneração ou ódio à pessoa do governante que pretende governar numa relação direta e imediata com o “povo”, seja na qualidade de pai, seja na de “doutor”).

Procuramos, também, em nosso percurso, assinalar as perplexidades contemporâneas quanto à relação entre a ética e a política, perplexidades que se exprimem no sentimento da “crise dos valores”. Fomos observando os esforços para a ampliação do espaço público e para uma presença cada vez menor da ética no campo da política, em decorrência da separação gradual entre esfera privada e esfera pública. Foi nesse percurso que mencionamos a paradoxal transformação da figura do déspota no pensamento conservador (de tirano perverso a revolucionário corruptor) e no pensamento liberal (de tirano passional a democrata faccioso). Finalizamos com a menção de alguns fatos da política dos últimos oitenta anos que poderiam ser assim resumidos: como explicar que a criação da esfera pública pelo pensamento desembocou na privatização administrativa (o surgimento das grandes burocracias estatais) e na privatização política trazida pelo neoliberalismo? Como explicar que o alargamento do espaço público, proposto pelas revoluções socialistas, desembocou na publicização totalitária e autocrática (que procurou absorver e destruir o espaço privado)? Como explicar que, nos dois casos, a política deixou de ser encarada como práxis (imanência entre meios e fins) e passou a ser praticada como técnica (exterioridade entre meios e fins)? Como explicar que a normatividade ética e o moralismo tenham se tornado os critérios para avaliar políticas? Evidentemente, não possuímos respostas para essas questões. Tentativamente, escolhemos um fio condutor para examinar apenas um aspecto das perplexidades atuais, aquele sugerido pela presença do neoliberalismo e do pós-modernismo e a maneira como aparecem no Brasil.

Via de regra, a discussão pós-moderna enfatiza a perda de força explicativa dos “paradigmas” modernos, isto é, de modelos teóricos e sobretudo de categorias como os pares ou as dicotomias sujeito/objeto, natureza/cultura, signo/significação, totalidade/individualidade, público/privado, burguesia/proletariado, reforma/revolução, sociedade civil/Estado. Em resumo, todos os termos que empregamos até aqui perderam capacidade explicativa. Alguns consideram suficiente realizar a “desconstrução” dos conceitos. Outros estão à procura de novos “paradigmas”. Antes, porém, de prosseguirmos nas mazelas do pós-modernismo, vale a pena retomar algumas distinções que foram apenas sugeridas ao longo deste texto, sem que tivessem sido melhor explicitadas.

Até aqui, falamos em modernidade e modernismo como se se tratasse do mesmo fenômeno. Convém, agora, procurar distingui-los, no que for possível, uma vez que consideraremos o modernismo uma figura da modernidade (como, aliás, cremos ser o caso do pós-modernismo). Simplificando extremamente o que em si é de extrema complexidade, diremos que a modernidade é um projeto que se desenvolve durante o processo de desenvolvimento e queda do Antigo Regime ou das monarquias absolutas (cuja cronologia é diversa para os vários países europeus), enquanto o modernismo poderia ser datado a partir da revolução e da reação conservadora de 1848 e, finalmente, o pós-modernismo estaria datado a partir dos anos 1970, sob os efeitos das mudanças do modo de produção capitalista (a chamada sociedade pós-industrial), do esgotamento da principal manifestação política do século (as revoluções comunistas) e do enfraquecimento de um novo sujeito político que entrou em cena nos anos 1960 (a contracultura dos movimentos sociais).[1]

Ainda de modo bastante simplificador diremos que o liberalismo é o pensamento predominante da modernidade; o marxismo, do modernismo; e o neoliberalismo, do pós-modernismo (sendo sugestivo que o pensamento político se tome por uma espécie de revival — é “neo” — enquanto as artes, a cultura, as teorias e práticas sociais se tomem por uma superação — são “pós”).[2]

Diremos, por fim, que os modernos e modernistas estão convencidos de que é possível colocar o particular e o contingente sob as determinações do universal e do necessário, sem que isso os destrua em sua particularidade e contingência, mas fazendo-os ganhar sentido mediante a passagem pela universalidade e pela necessidade. Em contrapartida, os pós-modernos afirmarão a irredutibilidade do particular e do contingente e o caráter ilusório (mistificador e destrutivo) do universal e do necessário. Se obedecermos aos critérios dos “paradigmas”, diremos que o liberalismo opera com a lógica da identidade, o marxismo, com a contradição dialética, enquanto o pós-modernismo neoliberal invoca a lógica das diferenças para desfazer a antiga ideia da razão. Isso não significa que o liberalismo não tenha lidado com contradições e diferenças, mas sim que tratou as primeiras como conflito e as segundas como diversidade; nem que o marxismo não tivesse operado com identidades e diferenças, mas sim que considerou as primeiras como aparência e as segundas como momentos da contradição; nem, afinal, que o neoliberalismo não lide com identidades e contradições, mas sim que procura reduzir as primeiras e as segundas a ilusões racionalistas, isto é, as racionalizações da diferença. Em outras palavras, modernos e modernistas, na tensão entre essencial/acidental, efêmero/eterno, teriam feito a opção pela Essência contra a Aparência, enquanto os pós-modernos teriam feito a opção inversa, deslocando o lugar anteriormente atribuído à Ilusão. O liberalismo acusou o marxismo de haver promovido a síntese totalitária dos termos; o marxismo, por seu turno, demonstrou que o liberalismo forjou uma síntese fetichizada e alienante dos termos. O pós-modernismo critica ambos pela ideia mesma de síntese, tida como suprema violência desejosa de destruir a indeterminação do real.

Para nosso tema, interessa observar por onde passa o corte que separa liberalismo (moderno) e marxismo (modernista), de um lado, e neoliberalismo (pós-modernista), de outro. Esse corte passa pela intenção dos dois primeiros de fazer surgir e consolidar um espaço público e pelo abandono dessa intenção por parte do último. Alargamento do espaço público e encolhimento do espaço público distinguem modernidade e pós-modernidade. Evidentemente, como já observamos, a intenção liberal e ilustrada não pode cumprir-se porque a ética da utilidade e do interesse (a presença do mercado capitalista fundado na propriedade privada dos meios de produção), a fragilidade da teoria contratual do Estado (a substituição da liberdade pelas liberdades ou franquias), a crescente presença do Estado na sociedade civil (pela intervenção direta sobre a economia e pelo desenvolvimento de uma burocracia poderosa baseada na hierarquia e no segredo) e a submissão da opinião pública aos imperativos da sociedade administrada e da indústria cultural puseram em xeque os princípios ético-políticos do liberalismo (o Estado do bem-estar e a intervenção estatal na economia foram os sinais do fracasso liberal).

Por seu turno, o marxismo viu sua utopia emancipatória desmanchar-se sob os efeitos da burocratização e do totalitarismo. Se o liberalismo não pode evitar a crescente privatização do público (as liberdades, em lugar da liberdade; os contratos fundados no direito privado, em lugar do predomínio do direito público), o marxismo foi forçado a assistir a destruição da esfera privada pela invasão total do Partido e do Estado para produzir uma sociedade organicamente cimentada por um sistema de funções e controles, supostamente sem rachaduras, sem conflitos e sem diferenças internas. A sociedade unidimensional e administrada sob o tacão do Plano e dos serviços secretos de informação, a transformação dos indivíduos em Trabalhador Coletivo e militantes de células partidárias verticalizadas e ligadas a um centro onde o social, o político, a lei e o saber se tornaram idênticos, eis como a experiência totalitária destruiu tanto o espaço público quanto o privado.

O pós-modernismo neoliberal pretende dar as costas a esses dois fracassos da modernidade. Seu debate principal tem como alvo o modernismo e, portanto, do lado liberal, a crítica se dirige ao modelo administrativo (empresarial e estatal) trazido pelo fordismo e, do lado totalitário, ao modelo burocrático-administrativo trazido pela ideia de Plano e de necessidade histórica. A isso acrescente-se também a crítica ao marxismo, encarado como “metateoria” repressiva e mistificadora, particularmente no que se refere aos conceitos de alienação (pois este pressupõe a existência de um sujeito, de uma consciência centrada e significativa que se aliena) e de fetichismo da mercadoria (pois este pressupõe que as relações sociais entre pessoas tornaram-se relações sociais entre coisas).

Alguns exemplos podem ajudar-nos a acompanhar a ruptura pós-moderna em face do marxismo. Assim, a pergunta sobre o fetichismo poderia ser formulada da seguinte maneira: como passamos a depender objetivamente, em todos os detalhes de nossas vidas (sentimentos, trabalho, cotidiano, artes, ciência), de outras vidas inteiramente desconhecidas e opacas, totalmente escondidas e mediadas por relações impessoais? A resposta marxista foi a teoria do fetichismo da mercadoria para arrancar o véu da superfície social. Os pós-modernos consideram que não há máscara alguma e que a valorização da intimidade pode corrigir a opacidade trazida pela sociedade de massa. O marxismo procurava compreender como o dinheiro se torna mercadoria que representa todas as mercadorias, um meio que se torna o fim de todos os desejos. Os pós-modernos consideram o dinheiro um significante e não significado (força de trabalho, trabalho social), uma ficção e não uma função (representar), um signo e não um valor (ético, estético). O marxismo mostrava que a conversão do trabalhador em força de trabalho assalariada e alienada o transforma numa alteridade (o Outro do Capital, a mercadoria como seu outro). Os pós-modernos fazem da fragmentação social e da alteridade econômica entes dotados de peso ontológico: o Outro é um ser.

Ao vincularmos pós-modernismo e neoliberalismo quisemos sugerir que o primeiro não surge no vácuo e sem bases materiais. Nascido do rescaldo das lutas dos anos 1960 — a contracultura em oposição à racionalidade tecnológica e burocrática e a todas as formas de autoritarismo; o cosmopolitismo em oposição aos particularismos localistas; a resistência à hegemonia da alta cultura modernista e ao high-tech —, o pós-modernismo se constrói exprimindo a grande mudança do modo de produção capitalista que alguns designam com a expressão “acumulação flexível do capital”, em oposição ao keynesianismo e à organização industrial fordista.

Em linhas muito gerais, a economia neoliberal caracteriza-se pelo abandono de um princípio keynesiano (intervenção do Estado na economia e endividamento estatal para distribuição da renda e promoção do bem-estar social, diminuindo o excesso das desigualdades) e um princípio fordista (planejamento, funcionalidade, organização do trabalho industrial sob a forma do planejamento de longo prazo, centralização e verticalização das plantas industriais, grandes linhas de montagem concentradas em um único espaço, formação de grandes estoques, ideia de racionalidade e durabilidade dos produtos, política salarial de promoção do trabalhador e ampliação de sua capacidade de consumo). Privatização, de um lado, desregulação do mercado, de outro, rompem com o princípio keynesiano. Desintegração vertical da produção, tecnologias eletrônicas, diminuição dos estoques, velocidade na qualificação, desqualificação e requalificação da mão de obra, aceleração do turnover da produção, do comércio e do consumo pelo desenvolvimento das técnicas de informação e distribuição, proliferação do setor de serviços (ênfase em pequenas empresas de subcontratos de serviços e com alta competitividade, crescimento da economia informal e paralela) e novos meios para prover serviços financeiros (a desregulação econômica, isto é, os grandes conglomerados financeiros, e novos instrumentos para o mercado financeiro, formam um único mercado mundial com poder de coordenação financeira) rompem com o princípio fordista. Cresceu o consumo de serviços e diminuiu o consumo de bens, e no consumo surgiu inconteste o mercado da moda, veloz, efêmero e descartável.

As mudanças do modo de pensar, sentir e agir formam um mundo pós-moderno onde prevalece, no dizer de Harvey, a “compressão espaço-temporal” (o conto, em vez do romance; o paper, em vez do livro; o videoclipe, em vez do documentário; o localismo, em vez do cosmopolitismo; mercado da “tradição” e mercado da imagem). Para o que nos interessa aqui, o fenômeno mais importante é a passagem do espaço público à condição de marketing, merchandising e midiazação e a do espaço privado à condição de privacidade intimista, mas sobretudo a perda de fronteiras entre ambos, abrindo comportas para formas inéditas de despotismo.

A peculiaridade pós-moderna — o gosto pelas imagens — se estabelece com a transformação das imagens em mercadorias, isto é, em lugar de colocar um produto no mercado, coloca-se uma imagem com a finalidade de manipular o gosto e a opinião. A publicidade não opera para informar e promover um produto, mas para criar desejos sem qualquer relação imediata com o produto (a imagem vende sexo, dinheiro e poder). A própria imagem precisa ser vendida, donde a competição enlouquecida das agências de publicidade que sabem que uma imagem é efêmera e que seu poder de manipulação é muito limitado no tempo, sendo imprescindível seu descarte e troca veloz. Na política, as imagens tornam-se muito sofisticadas e complexas porque precisam garantir, simultaneamente, estabilidade e permanência ao poder e sua adaptabilidade, flexibilidade e dinamismo para responder às conjunturas. A competição pública não se faz entre partidos, ideologias ou candidatos, mas entre imagens que disputam valores como “credibilidade”, “confiabilidade”, “respeitabilidade”, “inovação”, “prestígio”. Essas são as novas virtudes do novo bom governante. As eleições presidenciais de 1989, no Brasil, são o melhor exemplo do pós-modernismo no espaço público.

Ora, havíamos visto que a marca do despotismo encontrava-se na moralização do poder (as virtudes da corporificação e personalização do poder identificado com a figura do governante). É exatamente isso que procura o neoliberalismo pós-moderno: à veloz dispersão e fragmentação da esfera privada do mercado e à veloz desintegração do espaço público sob os imperativos da dispersão econômica, a política procura contrapor o centro identificador perdido e o localiza na pessoa-em-imagem do governante — no ser-em-representação, de que falava Pascal. Parte integrante do universo da midia — imagem e moda, publicidade e manipulação do desejo —, a política se privatiza: a vida privada do governante ocupa toda a cena pública e, como o antigo imperador romano, seus gostos e preferências à mesa, na cama, na praça desportiva, em sua biblioteca, com seus animais de estimação e sua família são cotidianamente exibidos para o julgamento fascinado dos cidadãos. Qual imenso Narciso, como o tirano de La Boétie, o governante identifica-se com o poder, torna-se centro do saber, da lei e da direção social. Por isso a privatização do público se realiza pela perda de sentido e de poder de todas as instituições políticas capazes de servir como mediação entre o poder executivo e a sociedade. Privatização significa desinstitucionalização do espaço público e corresponde ao fortalecimento dos centros privados onde se dá a decisão econômica e ao enfraquecimento dos Estados nacionais.

No Brasil, o pós-modernismo cai como luva. De fato, a política neoliberal é conservadora, contrária aos direitos sociais e civis, contrária aos movimentos sociais e à divisão dos poderes. Se cai como luva num país como o nosso é porque a sociedade brasileira sequer chegou aos princípios liberais da igualdade formal e das liberdades e muito menos aos ideais socialistas da igualdade econômica e social e da liberdade política e de pensamento. Sociedade sem cidadania, profundamente autoritária, onde as relações sociais são marcadas com o selo da hierarquia entre superiores e inferiores, mandantes e mandados, onde prevalecem relações de favor e de clientela, onde inexiste a prática política da representação e da participação, a sociedade brasileira sempre teve fascínio pelo populismo como forma da esfera pública da política. O populismo, como se sabe, opera pela relação direta e imediata entre o governante e o “povo”, à distância das mediações institucionais, alimentando o imaginário messiânico da salvação e o imaginário feudal da proteção. Assim, no ponto mais alto da contemporaneidade — o pós-modernismo —, encontramos uma formulação do público que veste perfeitamente a mais velha e anacrônica tradição política brasileira. O chefe populista tem uma relação despótica com a sociedade (pai, “coronel”, “doutor” competente, messias dos pobres e descamisados) e pode, agora, ir recoberto com os paramentos do que há de mais moderno — aliás, pós-moderno — quando fabrica sua imagem e seu poder com os recursos da publicidade pós-moderna.

Que se passa na esfera privada? Os movimentos sociais tornam-se cada vez mais “específicos” (cada vez mais “diferentes”) e cada vez mais localistas. A intimidade torna-se um valor como resposta ao anonimato de massa e à insegurança gerada pela flutuação incessante do sistema ocupacional e do mercado de mão de obra. A busca da satisfação imediata dos desejos, num universo de compressão temporal e de velocidade do mercado da moda, fortalece a competição e o narcisismo. Insegurança quanto ao presente e ao futuro, competição, infantilização pela propaganda, perda dos referenciais socioeconômicos que ofereciam identidade de classe ou de grupo, tudo contribui para a desaparição (lá onde havia) e para a não aparição (lá onde não havia) de formas de sociabilidade mais amplas e generosas. Os movimentos sociais duram o tempo em que dura a demanda que, uma vez satisfeita, dispersa os que estavam unidos numa ação.

Quatro traços parecem marcar a esfera privada pós-moderna: a insegurança, que leva a aplicar recursos no mercado de futuros e de seguros; a dispersão, que leva a procurar uma autoridade política forte, com perfil despótico; o medo, que leva ao reforço de antigas instituições, sobretudo a família e a pequena comunidade da “minha rua” e o retorno a formas místicas e autoritárias de religiosidade; o sentimento do efêmero e a destruição da memória objetiva dos espaços, que levam ao reforço dos suportes subjetivos da memória (diários, fotografias, objetos), fazendo, como disse um autor, com que a casa se torne uma espécie de pequeno museu privado. No caso do Brasil, além dos traços anteriores, reforça-se a ética da desigualdade: são meus iguais, minha família, meus parentes e meu pequeno círculo de amigos, enquanto os demais são o “outro” ameaçador ou estranho. Se a “lei de Gerson” pode funcionar é porque, malgrado os pruridos morais de seus praticantes, ela exprime a solidão e o medo diante de uma sociedade sentida como perigosa e hostil.

É interessante observar a maneira como a pós-modernidade acaba determinando o próprio esforço e pensamento dos que ainda desejam ser modernistas e modernos.

Arendt (do lado liberal), Adorno e Horkheimer (do lado marxista), por vias diferentes, haviam concluído que a utopia do espaço público, desejado pela emancipação marxista, seria impossível em decorrência do princípio mesmo que orientava a sociedade futura: o Trabalho Social. Seja, como dizia Arendt, porque o marxismo não teria como acender ao espaço público da práxis (a política) por ficar preso ao labor (esforço biológico de sobrevivência e reprodução da espécie) e ao trabalho (esforço heterônomo da técnica); seja, como diziam Adorno e Horkheimer, porque o marxismo (entenda-se leninismo taylorista e stalinismo stakanovista) prendeu-se a uma categoria inseparável da razão instrumental, da dialética do iluminismo e da sociedade planejada e administrada. Ora, quando lemos os textos mais recentes de economistas de origem marxista, percebemos dois vetores principais de análise para livrar-se do Trabalho como categoria central: contra a razão instrumental-administrativa, encarnada na ideia de Plano, erguem a ideia de um mercado socialista (socializado) como esfera pública (e não privada, como no mercado capitalista, nem estatal, como no totalitarismo); contra a ideia do trabalho como centro regulador da nova sociedade, oferece-se a ideia de direitos do consumidor, isto é, o centro não é a produção (como queria Marx), mas o consumo (como quer o neoliberalismo). Assim, o momento da escolha e da troca seria o regenerador do socialismo, no plano econômico.

Quando examinamos os textos mais recentes de Habermas, crítico ferrenho do pós-modernismo como irracionalidade e defensor da continuidade do “projeto da modernidade”, observamos que, ao contrário do que aparecia em suas antigas obras, agora também foi abandonado o “paradigma” do trabalho pelo da linguagem, em cujo centro encontra-se o ideal da comunicação ativa e veraz, utopia de um novo espaço público do qual a ética não estaria ausente, uma vez que a decisão de atividade e veracidade dos argumentos entre os interlocutores seria uma decisão ética anterior à entrada no espaço público.

Notamos, assim, que dois temas privilegiados pelo pós-modernismo — o consumo e os jogos de linguagem —, isto é, dois temas do campo da circulação — mercadorias e palavras — rondam os que ainda desejam manter o projeto modernista e acabam determinando a maneira mesma como se debatem numa problemática cujos termos, afinal, foram postos pelo pós-modernismo.

Do modo de produção a formas ético-políticas de interação social, tal poderia ser o resumo do percurso de uma marxista, seguidora de Habermas, como Agnes Heller. Em The postmodern political condition, Heller procura um espaço público onde operam as virtudes cívicas e os princípios políticos da democracia. Como ficar satisfeito numa sociedade de insatisfação? indaga ela (a própria pergunta é sugestiva, ao fazer da satisfação o motto democrático). A resposta é uma ética (de estilo kantiano) e uma política (de estilo socialista) que possam equilibrar a “lógica da demanda” (o querer de cada um) e a “lógica do necessário” (a busca da autodeterminação, da autonomia e da liberdade). O equilíbrio, que somente a democracia será capaz de trazer, dependeria da exposição em público, da discussão em público, da deliberação em público e do reconhecimento público dos conflitos entre as duas lógicas. A isegoria seria restaurada e não estaria descartada a utopia da bela cidade ética. No caso de Heller, como dos marxistas que buscam um mercado socialista baseado no direito do consumidor, a preocupação está voltada para os indivíduos (não para classes sociais) e seus desejos, carências e direitos. Admite-se o conflito, mas aposta-se na chegada progressiva ao consenso, tema preferencial da política neoliberal.

Lógica da circulação em lugar da produção; lógica da comunicação, em lugar do trabalho; lógica da satisfação-insatisfeita dos indivíduos, em lugar da luta de classes — eis alguns exemplos de como a ideologia pós-moderna passou a determinar o pensamento dos “últimos modernos”.

Estamos confrontados com o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado que, do ponto de vista da economia, tornou-se espaço mundial (os grandes conglomerados transnacionais, os centros planetários de decisão financeira, a compressão temporal, trazida pelos satélites, e a geopolítica renascida com a compressão do espaço).

Quando se inicia o filme O declínio do Império americano, uma das personagens (a historiadora que escrevera um livro com esse mesmo título), assumindo um tom que lembra Tácito, Hegel e Gibbons, afirma que dispomos sempre de um sinal para avaliar a queda ou o começo do fim de um poder político enquanto político. Este sinal, diz ela, foi percebido no crepúsculo da democracia grega, no final do Império romano e na longa agonia do Antigo Regime. Pode ser percebido agora, no “declínio do Império americano”: trata-se do momento em que a sociedade e seus pensadores voltam-se primordialmente para as relações pessoais, para os indivíduos e suas paixões, carências, demandas e interesses, para a vida privada, desinteressando-se das preocupações cívicas e políticas. Família, religião da salvação, amor, juventude, felicidade, moral tornam-se assuntos preferidos. Olha-se com profunda desconfiança para a política, vista como ilusão, mistificação e corruptora dos costumes; critica-se a sociedade por seu egoísmo, por ser repressora dos sentimentos e da espontaneidade, dotada de mecanismos invisíveis para a obtenção da obediência; fala-se na cisão benfazeja entre o indivíduo e a comunidade mais ampla, defende-se o direito à vida feliz, em geral identificada com o “retorno à Natureza”.

Microfísica dos poderes e dos discursos, “ecologia mística”, obsessão narcísica pelo corpo sadio, belo e jovem, elogio da família e das religiões de possessão extática: eis alguns dos temas preferenciais do nosso tempo. Mas, teremos de escolher entre a idealização da bela cidade ética perdida e a volatização do espaço público sob o manto protetor da intimidade… exibicionista? Que sentido teria a palavra “declínio”? Parece-nos que o risco que corremos neste final de milênio perplexo encontra-se noutro lugar: no rearranjo, em escala mundial, das forças conservadoras que poderão capturar “mal-estar na cultura” para convertê-lo em amortecedor benévolo do conformismo e da resignação sem esperança.

Notas

[1] Essa “periodização” é bastante contestável e não pretendemos tomá-la como rigorosa e fundamentada. Está sendo proposta apenas para facilitar a análise. Assim, por exemplo, um autor como Perry Anderson considera as monarquias absolutas não como modernas e sim como última expressão do feudalismo. O historiador Arno Mayer julga que o Antigo Regime termina apenas com a guerra de 1914-1918. Um conservador como François Furet nega que tenha havido a Revolução Francesa (senão como insurgência popular de superfície), pois a burguesia já criara a modernidade no interior do Antigo Regime. O debate é longo e sugerimos ao leitor a consulta de Perry Anderson, Linhagens do Estado absolutista (São Paulo, Brasiliense, 1985); Colin Mooers, The making of bourgeois Europe (Londres, Verso, 1991); François Furet, Pensando a Revolução francesa (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989); Eric Hobsbawm, Echoes of the Marseillaise (Londres, Verso, 1990); George Cominel, Rethinking the French Revolution (Londres, Verso, 1987); Olivier Betouné e Aglaia Hartig, Penser l’histoire de la Révolution (Paris, La Découverte, 1989); Arno Mayer, A força da tradição: persistência do Antigo Regime (São Paulo, Companhia das Letras, 1987). Também a data proposta para o modernismo não é tranquila, uma vez que, como dissemos, há autores que não poderiam admitir 1848 como referência e deslocariam a data para a Primeira Guerra Mundial. Sobre o problema, sugerimos ao leitor que consulte, além de Marx evidentemente, Walter Benjamin, Illuminations (Nova York, 1969); T. Adorno e M. Horkheimer, Dialética do Esclarecimento (São Paulo, Brasiliense, 1986); Marshall Berman, Tudo o que é sólido desmancha no ar (São Paulo, Companhia das Letras, 1986). Finalmente, o pós-modernismo poderia ter sua data recuada para o final dos anos 1960, em lugar de ser datado nos meados dos anos 1970, uma vez que crítica dos “paradigmas”, da razão e do centro ordenador, do Estado como determinante do poder, assim como a defesa das descontinuidades, rupturas, diferenças e alteridades já aparecem nos anos 1960. Sugerimos ao leitor a consulta de David Harvey, The condition of postmodernity (Cambridge, Basil Blackwell, 1989); J. Arac, Postmodernism and politics (Manchester, 1986); J. Baudrillard, L’Amerique (Paris, 1986); W. Halal, The new capitalism (Nova York, 1986); F. Jameson, “Postmodernism or the cultural logic of late capitalism”, New Left Review 146 (1984); P. Burger, “O declínio da Era Moderna”, Novos Estudos Cebrap 14 (1986); F. Lyotard, O pós-moderno (Rio de Janeiro, José Olympio, 1986); Vários Autores, Pós-modernidade (Campinas, Unicamp, 1987); A. Heller, The postmodern political condition (Cambridge, Basil Blackwell, 1988).

[2] Novamente é bom observar a fragilidade da “tipificação” que estamos oferecendo. Bastaria a cronologia bruta para contestá-la empiricamente: Weber teria ficado fora do modernismo, assim como Freud, para mencionar apenas dois nomes entre muitos outros. A “classificação” apresentada visa apenas a sugerir qual o pensamento político que organiza para os demais a adesão, a crítica ou a recusa, servindo de referencial predominante para as interpretações das práticas sociais, econômicas, políticas e culturais.

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