1996

Sobre a tecnofobia

por Gérard Lebrun

Resumo

Jean Pierre Séris, na apresentação de seu livro “La technique” combate os “tecnofóbos”, aqueles que alimentam o discurso que estigmatiza a irresponsabilidade do progresso técnico. Porém, Séris não toma partido ideológico na discussão. Ele simplesmente conclama à crítica da razão técnica. E criticar não é diabolizar mas, nesse caso, apontar os limites de validade de um discurso.

O filósofo Hans Jonas é um dos que argumentam a favor do controle indispensável do progresso técnico. De acordo com Jonas, o poderio tecnológico moderno suscita riscos inéditos. Contra o progresso, a restrição do crescimento. Opondo-se a Jonas, os adversários “utopistas” professam que as técnicas do futuro serão capazes de remediar os efeitos perversos do progresso.

A revolução biotecnológica nos anos 70 veio complicar ainda mais o cenário e a alimentar a discussão sobre o imperativo limitador da tecnologia. A Escola de Frankfurt não ficou de fora da discussão. Marcuse levou ao limite os a priori da tecnofobia e foi longe demais ao denunciar a própria razão instrumental e não apenas suas usurpações.

Porém , se seguirmos o conselho de Habermas e “restituir à técnica sua inocência de pura força produtiva” podemos ver que ela não é tão culpada como dizem.

Essa discussão é longa, complicada e antiga. Platão já atribuía um caráter subalterno às técnicas exercidas por especilalistas e colocava em colisão o saber prático e o saber técnico (grau menor do saber).

Resumindo: a verdadeira crítica da técnica ainda está para ser feita.

 


A Charles Bonnefond

Jean-Pierre Séris, ao apresentar seu livro intitulado La technique, reconhece que combate nessa obra aqueles que, de umas décadas para cá, submeteram a uma “estranha transformação” as memoráveis questões kantianas: “Que posso saber? Que devo fazer? O que me é permitido esperar?”. A julgar por alguns, nosso tempo se colocaria antes as questões inversas: “Que devo ignorar? Que devo me abster de fazer? De que devo ter medo?”. O que justificaria essa passagem ao temor e à desconfiança é o impacto, seguramente inédito na história, que a expansão das técnicas produz a uma velocidade crescente na existência humana, engendrando com isso inquietudes sem precedentes. Foi em 1970 que surgiu o termo bioética, “ciência 
da sobrevivência”, segundo seu inventor, o norte-americano Potter. E recentemente, em 1995, o Comitê Internacional de Bioética propôs declarar, para maior segurança, o genoma humano “patrimônio comum da humanidade”. Quem teria pensado, há apenas vinte anos, que semelhantes declarações de princípios se tornariam um dia urgentes? Eis aí, certamente, o que alimenta o discurso dos que estigmatizam a irresponsabilidade do “progresso técnico”. Eis aí razões sérias para fomentar o que chamaremos, com Séris, a tecnofobia.

Contra esta, o autor — e isto deve ser sublinhado — jamais toma partido ideologicamente. Longe de opor convicção a convicção, ele nos convida a um recuo em relação aos discursos passionais. Não adota uma postura sistematicamente contrária aos detratores da técnica — e inclusive algumas vezes concorda com eles em questões concretas. Como eles, por exemplo, pensa que o “gênio genético” deve ser cuidadosamente enquadrado por prescrições jurídicas, almejando além disso que estas sejam formuladas com o máximo de precisão… técnica. Tranquilizemo-nos: nada nesse livro minimiza os perigos que esta ou aquela intervenção tecnológica “arriscada” poderia trazer para a biosfera ou para a vida animal. Trata-se apenas de opor a necessidade de análises pelo menos um pouco precisas aos que se contentam com conceitos vagos na defesa de interdições frequentemente imprecisas, e mesmo perigosamente imprecisas.

É a uma crítica da razão técnica que o autor conclama. Mas ele observa também que os debates tumultuosos amplificados pelos meios de comunicação nada fazem além de retardar o advento dessa crítica informada. Criticar jamais foi sinônimo de diabolizar: ao usarem a palavra crítica, nem Marx nem Kant pregavam uma caça às bruxas. Para eles, criticar era apontar os limites de validade de um discurso que só tivera condições de se desenvolver na ignorância ingênua desses limites. Os anátemas proferidos pelos “tecnófobos” nos afastam de uma crítica empreendida nesse espírito de rigor.

Falávamos de “conceitos vagos”. Forneçamos alguns exemplos, muito simples. A começar por “a técnica”, da qual se fala como de uma pessoa moral — o que é cômodo para a polêmica.

Ela é sobretudo aquilo que não se reduz a nenhuma das artes, aquilo de que se fala e em que se pensa deixando sempre entre parênteses. Ninguém ousaria fazer, a propósito da cirurgia ou das telecomunicações, por exemplo, as afirmações que se fazem correntemente sobre a técnica, ou elas se mostrariam rapidamente insustentáveis e extravagantes.

Sintomático também é o uso do anglicismo tecnologia, que apaga a diferença entre a coisa e o discurso sobre a coisa: “[…] a criminologia nada tem a ver com a execução do crime”…[1] Ainda mais criticável é o neologismo tecnociência, empregado para designar, muito nebulosamente, uma simbiose entre a técnica e a ciência, cujas modalidades, na maioria das vezes, não se tem o cuidado de precisar.[2] Assinalemos, aliás, que o sucesso dessas palavras é revelador da situação cotidiana que é a nossa, presentemente, em relação aos objetos técnicos: estes são ao mesmo tempo tão sofisticados e tão fáceis de manejar que “reduzem a zero a competência exigida do usuário”.[3] O fato de “um capital colossal de saber técnico” estar a nosso serviço é inteiramente compatível, sem nenhum paradoxo, com este outro fato de que “somos, bem mais que nossos antepassados, dispensados de toda habilidade técnica”: para comunicar-me com o outro extremo do mundo, basta-me saber formar dez números num teclado… “O homem contemporâneo não tem mais necessidade de apelar a seus próprios recursos técnicos. Tudo se passa como se o mais econômico e o mais eficaz fosse relegar a ‘tecnologia’ aos técnicos ou tecnólogos. A tecnologia é problema do outro […]”.[4]

Ora, essa ignorância dos usuários, que cresce na mesma proporção que o engenho dos fabricantes, predispõe o público a acreditar mais facilmente numa malignidade intrínseca da “técnica”. É suficiente uma Chernobyl ou, sem ir tão longe, um blecaute de grandes proporções em Nova York, ou ainda um garoto astucioso que consegue, em seu computador, arrancar segredos do Pentágono, para que os objetos “maravilhosos” que utilizamos a todo momento (os thaumata, como diziam os gregos em referência às máquinas) voltem a ser, ao menos potencialmente, objetos maléficos. Do maravilhamento ao medo, a distância é curta. E é precisamente o medo o que quer nos inculcar, muito explicitamente, quem argumenta em favor de um controle indispensável do “progresso técnico”. Um dos mais conhecidos destes é o filósofo alemão Hans Jonas, que publicou em 1979 uma “ética para uma civilização tecnológica” sob o título O princípio Responsabilidade. A obra de Jonas é importante e teve grande repercussão. Para não fugir a meu propósito, permito-me aqui abordá-la muito elipticamente (mas muito respeitosamente), com a única finalidade de dar alguns exemplos daqueles argumentos tecnófobos que deixam J.-P. Séris insatisfeito. Acrescento que não teria me arriscado a falar de Jonas sem os comentários penetrantes que lhe dedica, em francês, Bernard Sève.[5]

De acordo com Jonas, o poderio tecnológico moderno suscita riscos inteiramente inéditos. Devido ao impulso que o anima, está fadado a uma progressão (ou a uma fuga para a frente) ilimitada, quando não pela capacidade que só ele possui de reparar, mediante inovações, os danos que produz. Esse poder que cresce com seu simples exercício, Jonas denomina-o “poder de segundo grau”, distinguindo-o do poder (“de primeiro grau”) que o homem exerce sobre a natureza graças à técnica, ou seja, da imagem que se fez tradicionalmente do homo faber e de seu poder de intervenção, em princípio sempre controlável, posto que articulado por uma instância consciente que age voluntariamente. Foi Bacon quem criou uma fórmula para esse “poder de primeiro grau”: “Saber é poder”; um princípio bem concebido é imediatamente traduzível em uma regra para minha prática pessoal. Sendo assim, por que pensaríamos em nos proteger contra os efeitos de uma técnica que é apenas a aplicação da ciência? Mas Bacon não previa que esse “poder” “se tornaria mestre de si mesmo”.[6] A partir do momento em que o progresso técnico se tornou o equivalente de uma força natural, é urgente criar um “poder de terceiro grau” que restitua ao aprendiz de feiticeiro o controle da força que ele desencadeou: “O que é necessário agora”, escreve Jonas, “a menos que a sentença seja ditada pela própria catástrofe, é um poder sobre o poder”. Que outra solução poderia propor o pensador “realista”? O fracasso do ideal baconiano é patente, uma vez que sua aplicação nos conduziu a um ponto em que a sujeição da natureza transformou-se, absurdamente, em destruição da natureza, em que a prepotência exercida pela espécie humana acabou por colocar em perigo a própria existência desta. Para certificar-se desse fracasso, basta prestar atenção ao crescimento demográfico exponencial (em grande parte devido aos progressos da higiene) e olhar de frente a situação apocalíptica que se esboça, a saber, “a iminência de uma catástrofe universal, caso deixemos as coisas seguirem seu curso atual”.[7] É verdade que essa tomada de consciência é tanto mais difícil porque, no Ocidente, os espíritos foram formados pelo modo de pensar que Jonas chama “utópico”, contra o qual ele trava um de seus principais combates (talvez o mais digno de interesse). A “utopia” a que ele se refere não deve ser entendida no sentido etimológico: é a forma de pensamento que propõe um modelo de comunidade em si mesmo realizável (como a República de Platão) e digno de orientar a ação política. As utopias são mitos que sempre estiveram ligados à ideia de “progresso”. Jonas reconhece que às vezes elas foram “indispensáveis” para orientar a ação das grandes massas. Mas, ainda que prometam a grupos humanos (e até mesmo à população de todo o globo) a prosperidade ou o aumento da prosperidade, elas são por excelência as Sereias que nos desviam da tarefa hoje primordial: restringir o crescimento (e essencialmente o dos países desenvolvidos e “dilapidadores”, que a simples equidade obrigaria a “pagar a conta”). As linhas seguintes exprimem bastante bem a ideia desse sombrio oráculo:

In summa: a restrição, e não mais o crescimento, deverá se tornar a palavra de ordem, e esta será ainda mais problemática aos pregadores da utopia que aos pragmáticos não vinculados a uma ideologia […] Donde este cálculo purame  nte pragmático: renunciar a um acalentado sonho de adolescente — e é isso o que é a utopia para a humanidade — torna-se um mandamento da idade adulta.[8]

E o que poderia ser essa “idade adulta”? Para compreendê-la, é preciso ao menos conceber “um novo tipo de agir”, próprio a uma humanidade que estaria antes de tudo preocupada com sua sobrevivência enquanto espécie, e que se empenharia em não fazer absolutamente nada que pudesse causar o menor prejuízo à existência das gerações futuras. Essa humanidade se submeteria a um imperativo categórico do qual Jonas apresenta quatro formulações logo no início de seu livro. Eis uma delas: “Aja de modo que os efeitos de sua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra”.[9] Jonas assinala em seguida o que distingue esse imperativo do de Kant: não apenas “ele se orienta muito mais para a política pública que para a conduta privada”, mas sobretudo o ser racional e social que o infringe não cai em nenhuma contradição. Não há contradição na ideia de uma humanidade absolutamente despreocupada com a sorte de seus descendentes (“Depois de nós, o dilúvio!”)… Assim Jonas reconhece de saída que é extremamente difícil “legitimar teoricamente” o que constitui a pedra angular dessa ética, a saber, a obrigação de evitar um mal que não diz respeito à nossa geração, e de jamais escolher “o não-ser das gerações futuras por causa do ser da geração atual”. Pode acontecer, diz ele, que essa legitimação seja “impossível sem que se recorra à religião […]”. Outra dificuldade suscitada pelo imperativo limitador da tecnologia: de que modo os humanos poderiam se engajar efetivamente nesse “novo tipo de agir”? Como poderiam, concretamente, sentir o imperativo como imperativo? A resposta de Jonas é essencial para a nossa discussão: somente experimentando o sentimento da ameaça que a “tecnologia” faz pairar sobre a humanidade é que seremos capazes de entrever a imagem do homem que devemos preservar a qualquer preço, e consequentemente de determinar quais são as intervenções técnicas a proscrever. É o medo, e somente ele, que pode tornar efetivo o “novo tipo de agir”. Medo ao mesmo tempo “instrutivo e mobilizador”, acrescenta Sève, cuja análise capta muito bem essa ideia essencial ao argumento de Jonas:

Os males reais com que nossa tecnologia ameaça o futuro da humanidade, ninguém os conhece; devemos portanto imaginá-los, essa é a primeira obrigação da ética da responsabilidade. Devemos nos causar medo, não como fazem os garotos com as histórias de fantasmas, mas mediante inquietantes futuros possíveis. O medo é o verdadeiro sentimento moral (ele desempenha em Jonas o papel do respeito em Kant) — mas trata-se de um medo deliberado.[10]

Em vez de ridicularizar essa pedagogia fóbica, tentemos fazer justiça a Jonas — opondo-o, nesse ponto, a seu adversário “utopista”. O “utopista” professa que as técnicas do futuro seguramente serão capazes de remediar todos os efeitos perversos do “progresso”. Portanto, ele não se inquieta demais com os danos que este provoca, na certeza de que serão neutralizados por inovações técnicas por vir. Impossível não ser assim, caso se admita que o progresso, em princípio ilimitado, só pode se tornar (provisoriamente) nefasto em razão de bloqueios causados por este ou aquele sistema de 
coerções sociais, e que, uma vez livre desses entraves, ele realizará todas as suas façanhas. Por que os adubos artificiais não permitiriam à terra “produzir mil vezes mais frutos”? Por que nossa química orgânica não geraria matérias-primas de maneira mais rentável do que foi capaz, durante milênios, uma physis parcimoniosa e pobre? Essas ideias, de resto, não são de modo algum absurdas.[11] O que é contestável na posição do “utopista” é que ele confia abstratamente em eventuais performances técnicas e se julga assim autorizado a negligenciar problemas graves cuja solução não é sequer esboçada… Poderíamos citar outros exemplos dessa “irresponsabilidade” criticada por Jonas. É lamentável que filósofos que meditam hoje sobre “a História” (ou o “fim da História”) não se interessem mais pelo fenômeno da explosão demográfica, quando as projeções para o início do século XXI fornecem seguramente água ao moinho das Cassandras. Se uma massa humana cujo crescimento permaneceu por longo tempo restrito coloca hoje em perigo o equilíbrio ecológico, o que será do planeta quando essa pilhagem irrefletida for multiplicada por uma população ainda maior que lutará por sua sobrevivência? Seria leviano confiar, como Panurgo [personagem do Pantagruel de Rabelais. Seu nome significa “industrioso”, “capaz de qualquer coisa”. É lascivo, cínico, poltrão, mas de muito engenho (N.T)] no otimismo de princípio da “técnica” para conjurar essa ameaça.

Só podemos portanto concordar com Jonas quando ele estigmatiza uma confiança nos progressos da “técnica” que seria tão cega que nos dispensaria de levar a sério os perigos bem reais que ameaçam a sobrevivência da espécie. Mas o que significa, praticamente, o remédio por ele preconizado, a saber, a autolimitação imperativa do poderio técnico? A julgar por suas palavras, a única esperança é que a humanidade (entenda-se: os governos, as instâncias internacionais) consiga retomar o controle da força demoníaca que já escapou amplamente a seus usuários. Essa receita, note-se, é de espírito platônico: caberia aos usuários (no caso os representantes autorizados da espécie humana) fixar os limites da intervenção técnica — e fixá-los com o maior rigor. “É a simples possibilidade de a essência ou a existência humana ser ameaçada por uma ação que deve proibir absolutamente essa ação.”[12] Assim, não tenho em absoluto o direito de cometer um ato que, quaisquer que forem seus motivos, poderia (e toda a força do imperativo está nessa palavra poderia) causar o menor dano à sobrevivência da espécie, e à sua sobrevivência no estado em que presentemente se encontra. O problema é que o usuário não é aqui detentor de nenhum saber, diferentemente do usuário platônico: quando muito tem pressentimentos quanto à nocividade possível de determinada intervenção técnica. O que é muito pouco para conferir-lhe um poder de censura de tamanha importância. O próprio Jonas, diz Bernard Sève, indica que “não se pode jamais saber se a longo prazo determinada inovação tecnológica ou medicamentosa irá ter efeitos altamente indesejáveis sobre nossos descendentes”. O “medo” indefinido não irá então nos inclinar contra a inovação, em favor da abstenção? Levar em consideração o imperativo não arriscaria paralisar qualquer iniciativa? Sabe-se o quanto o imperativo kantiano é limitador do agir. Mas pelo menos ele inclui um teste, o da universalização em ideia da norma pessoal que estaria ao alcance de cada um realizar, permitindo reconhecer se a norma da ação é ou não “moral”. Nada disso acontece com o presente imperativo: nossa simples ignorância do futuro nos impede de decidir se determinada ação submete-se ou não à interdição. É portanto a decisão de afastar o risco possível que deveria, praticamente sempre, prevalecer. Risco em relação à sobrevivência e à integridade da espécie, mas também em relação à sobrevivência e à integridade da natureza, que igualmente tem direito, precisa Jonas, “à proteção para seu próprio bem” (mesmo excluindo o interesse da espécie humana).[13]

O interesse, nesse ponto, do pensamento de Jonas (que não pensamos de modo algum em representar como “obscurantista” ou em caricaturar de alguma maneira) é enunciar com firmeza e coerência a tese de uma submissão de princípio da atividade técnica a uma instância detentora do saber do Bem. Com Jonas, a ética readquire sua força, preenchendo as expectativas daqueles que, nos dias de hoje, celebram seu “retorno”. É que esse “retorno”, segundo ele, é o único meio de pôr fim (se já não for demasiado tarde) a uma crise cultural e filosófica sem precedente, “que mesmo um Aristóteles não podia ainda pressentir”.

O intelecto prático emancipado que produziu a “ciência”, uma herança do intelecto teórico de Aristóteles, não opõe apenas seu pensamento à natureza, mas também seu agir, e de uma maneira não muito compatível com o funcionamento inconsciente do conjunto: no homem, a própria natureza foi perturbada, e é apenas em sua faculdade moral […] que ela deixou aberta uma saída incerta à segurança abalada da auto-regulação.[14]

Essas palavras, bastante impressionantes, indicam por si mesmas que Jonas fala como filósofo, e não como “bem-pensante”. “No homem, a própria physis perturbou-se […]”, e as ideologias “utopistas”, desde Bacon, normalizaram essa “perturbação”. A essa situação patológica, somente o “retorno da ética” é capaz de pôr fim, estabelecendo normas para conter um poder de agir marcado pela hybris que se subtrai a toda regulação. Tarefa, aliás, ingrata, já que a mentalidade “tecnicista” relativizou normas e valores, exatamente quando Prometeu, liberto, tornava mais do que nunca indispensável a autoridade dessas normas e valores. Assim é ainda mais urgente a edificação de um poder normativo superior capaz de domesticar  “uma técnica que de certa maneira se tornou selvagem”.[15] Esse poder, não podemos deixar de aproximá-lo da política tal como a entendia Aristóteles, quando a definia como uma arte arquitetônica “que estabelece que tipo de ciências cada classe de cidadãos deve aprender e até que ponto seu estudo será desenvolvido”.[16] Ora, uma questão então se coloca — e com muito mais urgência do que no século IV a. C.: que grau de competência na disciplina em questão deverá ser exigido do “comitê de sábios” que será o porta-voz da comunidade ética? O que poderia autorizar “especialistas em ética” a exercer uma censura sobre pesquisas que, tecnicamente falando, não são de sua alçada? Um simples imperativo categórico será de pouca valia para decidir sobre a urgência em proteger o ozônio atmosférico, e para estipular quais produtos industriais “destruidores do ozônio” convém proscrever. É evidente que o guardião de valores morais assim qualificado logo cairá em discussões casuísticas nas quais se perderá. Pois a dificuldade é determinar os casos em que o imperativo deve entrar em vigor. Será fácil, pergunta Bernard Sève, “definir o limite” no qual deve se deter a intervenção do gênio genético?[17] Jonas sustenta que este não deve eliminar o acaso (na determinação, por exemplo, do sexo do embrião). Todavia, seria razoável deixar agir o acaso mesmo na circunstância em que uma intervenção “permitira impedir a transmissão hereditária de uma grave doença”? Nada mais árduo do que encontrar os critérios de uma aplicação judiciosa do imperativo. Tomaremos por princípio, nos debates ecológicos, restringir ao máximo a parte do artifício para deixar funcionar a “natureza”? Resolução louvável. Mas o fato, como observa Séris, é que a ciência e as técnicas são com frequência os melhores instrumentos de proteção do meio ambiente: “Toda uma vertente da atividade técnica de nosso tempo, e da atividade mais inventiva, dedica-se a encontrar soluções aos problemas colocados pela técnica”.[18] E será a técnicos que nos dirigiremos para reciclar resíduos, criar motores não poluentes, energias “alternativas”. “A natureza tem ainda necessidade da arte”, tem necessidade dela mais do que nunca, para reparar os danos que o homem lhe inflige (e que lhe infligiu, seja dito de passagem, bem antes da Revolução Industrial). Em suma, não é difícil fazer surgir aporias lá onde os tecnófobos só apresentam boas intenções. É uma boa intenção que leva os tecnófobos a lutar contra os fatores de risco (transporte de hidrocarbonetos, o nuclear), mas é uma falta de prudência que os faz negligenciar os efeitos possíveis da eliminação brutal destes últimos (para a produção de eletricidade, para a indústria farmacêutica, os fertilizantes…). É forçoso reconhecer que um pensamento como o de Jonas nos deixa sem fio de Ariadne nesse labirinto.

Uma outra objeção de Jean-Pierre Séris, que vai na mesma direção, me parece merecer uma particular atenção. Seria a hora de recolocar em questão a imagem convencional do técnico obtuso necessariamente indiferente aos problemas do bom uso das técnicas, “do ativista prático, necessariamente irresponsável, que se colocaria apenas questões técnicas”.[19] Não é antes o tecnófobo que, arrebatado por sua paixão, forja esse híbrido de m. Homais [personagem de Flaubert (Madame Bovary), caracterizado comoum tolo com pretensões literárias e científicas.(N.T)] e de dr. Fantástico? A ética dos filósofos não tem o monopólio das precauções contra os perigos do “progresso”: são os biólogos, afinal de contas, que chamam a atenção para novíssimos problemas e dilemas éticos (e que devem, eles, enfrentá-los em sua prática profissional). Vale a pena 
examinar sob esse ângulo a recente revolução biotecnológica, exemplo desse imbricamento entre ciência e ética. Foi nos anos 70 que se descobriu (contrariando, aliás, os prognósticos mais autorizados) a possibilidade de agir sobre o genoma e de retocar, por meio das “enzimas de restrição”, o programa genético — e até mesmo de fabricar, por “adições genéticas”, plantas resistentes aos parasitas, espécies animais melhoradas…[20] Paroxismo da “utopia” tecnológica: a antiga physis (tanto a de Aristóteles como a da terceira Crítica) se via espetacularmente transformada num novo domínio da poiesis. “O patrimônio genético não é mais apenas uma questão de fato, ou uma herança, mas um termo entre outros da atividade produtora humana. O ser vivo torna-se um produto, objeto de uma patente, reconhecimento oficial de seu inventor e produtor”.[21] Ora, basta ler certas declarações eugenistas que se seguiram a essa revolução para estarmos perto de ceder ao “medo” que nos recomenda Jonas. Por que dissimulá-lo?

O que acontece, porém, quando passamos ao exame de casos específicos? Séris, expondo alguns deles, não mostra nenhuma parcialidade “tecnófila” em favor do “gênio genético”. Contenta-se em manter a cabeça fria: quando suas análises o conduzem a posições próximas das de Jonas, não é certamente sob o efeito do “medo”. Em primeiro lugar, a terapia genética é um fato que doravante devemos levar em conta: é possível assinalar os riscos de doenças de origem genética e de preveni-las pela implantação de “genes corretores”, de sorte que a prevenção da hemofilia, da miopatia etc. está agora ao alcance da medicina. “A biotécnica faz nascer uma esperança médica razoável, mesmo que a erradicação das doenças hereditárias permaneça um objetivo inacessível […] Quem assumiria a responsabilidade de recusar um instrumento técnico de tal importância?”[22] Em segundo lugar, enquanto uma intervenção nas células somáticas não produz efeitos sobre a descendência, “uma manipulação nas células germinais elimina do patrimônio genético a mutação que ela retifica”.[23] Com isso, passamos a lidar, epistemologicamente, com uma outra situação: não se trataria mais de corrigir uma malformação em escala individual, mas de eliminar da espécie uma mutação que o “engenheiro” julga nefasta relativamente ao protótipo de “homem normal” que concebeu. Ora, como ele pode decidir previamente acerca do valor de uma mutação? Não é impossível que aquilo que parece ser defeito ou desvantagem em nossa situação presente se converta, noutras circunstâncias, em trunfo. “Não está excluída” a possibilidade de a não-coagulação do sangue ser uma vantagem para o hemofílico em séculos de “viagens interplanetárias rotineiras”.[24] Como, a fortiori, esboçar o perfil do “homem normal” do futuro? Somente seria capaz disso quem previsse as performances de nosso longínquo “sobrinho” e as circunstâncias nas quais elas irão se realizar.

Na origem do eugenismo, como na de muitos outros fantasmas — menos especificamente tecnológicos, note-se bem, do que voluntaristas ou construtivistas —, há, por mais extravagante que isto pareça, o desconhecimento de nosso estado de ignorância mais ou menos total em relação à “História” por vir. Desconhecimento, ou amathia, como diziam os gregos para designar o fato de ignorar… que se ignora. Irreflexão muito semelhante, por exemplo, à dos utilitaristas quando definiam o valor moral de um ato pelo saldo de prazer e de sofrimento que ele causaria, como se um agente pudesse ser capaz de conhecer as consequências totais de cada um de seus atos. Hayek surpreende-se com o fato de pensadores respeitáveis terem assim “deixado de considerar atentamente este fato crucial que é nossa ignorância inelutável da maior parte dos fatos concretos, e proposto uma teoria que postula um conhecimento dos efeitos reais de nossas ações individuais”.[25] A mesma observação vale para os eugenistas quando pretendem trabalhar para o melhoramento da espécie: o simples uso da palavra melhorar  implica (ou deveria implicar) que já se possuem os dados relativos a todos os problemas, tanto biológicos como técnicos, que nossos descendentes irão enfrentar…

Mas deixemos de lado essas fanfarronadas futurológicas implícitas. E perguntemo-nos, ainda com Séris, o que significa esta outra pretensão de fixar “normas do valor vital, assim como do valor humano”.[26] Essa ambição só seria legítima se a norma biológica fosse assimilável à norma técnica, isto é, ao modelo ao qual se conforma um fabricante para obter produtos uniformes neste ou naquele aspecto: 1,44 m é a distância normal entre os trilhos de uma via férrea.[27] Ora, é no mínimo muito contestável aproximar a priori toda norma da “norma” entendida nesse sentido. É uma confusão que a mentalidade burocrática faz com frequência, ela que, em matéria de normas, só conhece as da normalização, não achando de modo algum absurdo que todos os tipos de performances (tanto os diplomas concedidos pelas universidades “europeias” como o número de decibéis emitidos pelas máquinas de cortar grama do mesmo continente) sejam identificados a estas. A determinação normalizadora do tamanho, da cor dos cabelos e dos olhos etc., em função do arquétipo do “ariano louro”, não é afinal senão uma forma-limite dessa confusão — e o delírio racista apenas leva à caricatura uma ilusão mais insidiosa e menos “politicamente incorreta”. Para dissipar essa confusão, Séris opõe firmemente, na esteira de Georges Canguilhem, a normalização técnica à normatividade própria ao ser vivo. Esta última noção é decisiva no que concerne ao exame das pretensões eugenistas, pois ela permite compreender em que medida todo recorte entre o normal em si e o patológico em si é arbitrário, e não apenas perigoso. Um mutante, escreve Canguilhem, merece ser considerado como “normal” se, em certas condições de existência, aparece como normativo, isto é, caso “desclassifique todas as formas passadas, ultrapassadas e talvez trespassadas”.[28] O normal não é senão o “temporariamente viável” num ambiente determinado, e esse rótulo de normalidade só é concedido a um ser ou a uma espécie em razão da normatividade que eles mani festam, entendendo-se por essa palavra “a independência em relação às 
coerções impostas pelo meio, e a capacidade de superar os obstáculos 
imprevistos encontrados nesse meio”. É essa diferença de natureza entre as duas noções de “norma” que nos assegura que o biólogo enquanto tal (não enquanto eventualmente ideologizado) não pode sequer pensar em planificar a evolução da espécie: ele é consciente da “ignorância inelutável” que torna insana a ideia mesmo de valorizar em relação ao futuro. É consciente também de que aqueles que sonham com um controle da vida só poderiam trabalhar, na verdade, para seu empobrecimento. Pois o ideal da normalização seria o de uma repetição do idêntico, indo assim na contracorrente da vida, cuja “sabedoria” se assemelha àquela celebrada por Leibniz no fascinante parágrafo 124 da Teodiceia:

A virtude é a mais nobre qualidade das coisas criadas, mas não é a única qualidade boa das criaturas; há uma infinidade de outras que atraem a inclinação de Deus: de todas essas inclinações resulta o maior bem possível: e o fato é que, se houvesse apenas virtude, se houvesse apenas criaturas racionais, haveria menos bem. Midas viu-se menos rico quando teve apenas ouro.[29]

Essa necessária profusão de diferenças inclui certamente “malogros” e monstruosidades. Mas não é preferível, levando em conta nossa ignorância, tolerar as malformações extirpá-las às cegas? Fazer cortes nessa variedade seria com certeza devastar. “A sociedade humana se desenvolve com base na diversidade dos talentos e das capacidades de seus membros; mesmo se tivéssemos a possibilidade de dirigir a evolução, não teríamos nenhuma ideia da variedade particular de talentos que nos seriam necessários”.[30] Essas linhas de um historiador da biologia relegam às ilusões “utópicas” toda pretensão de fixar o devir biológico, mas nem por isso sugerem que haja necessidade de lançar mão do imperativo ético de Jonas.

Pois é um dos argumentos de Jonas que encontramos aqui, ou melhor, com o qual cruzamos: quando ele analisa, para justificar a “proibição absoluta” de toda operação de risco, a diferença entre o modo de operar da physis e o da técnica. Se deve ser proscrito todo risco que esta poderia causar à sobrevivência da espécie, é sobretudo porque ela não opera na mesma temporalidade que a evolução biológica, a qual possui, por esse motivo, os meios de corrigir os acasos infelizes. Numa página notável, Jonas opõe assim o trabalho paciente e tateante da natureza ao de nossa técnica, que procede “a passos colossais” e a uma velocidade completamente diferente. “É com pequenos detalhes que a evolução trabalha, jamais arriscando tudo de uma vez, e por isso pode permitir-se inumeráveis erros de detalhe, dentre os quais seu procedimento lento e paciente seleciona os raros impactos, igualmente pequenos”.[31]

Ora, ao substituir esse tateamento da natureza por um controle racional, o planificador eugenista que pretendesse eliminar as malformações do acaso anularia, isto sim — e de maneira bem mais certa —, as chances de correção automática dos “erros”, até tornar alguns deles irremediáveis. A ideia é próxima da crítica que Hayek dirige aos que não reconhecem que as regras sociais úteis, longe de poderem ter sido editadas por um legislador que buscaria a realização de um objetivo, só puderam ser selecionadas naturalmente no curso de uma lenta evolução que procedeu por tentativas e erros. E Hayek se pergunta: por que julgar inaceitável essa origem das regras? Porque não se diferencia uma ordem social espontânea, na qual as regras são independentes por princípio de toda busca de um objetivo, de uma organização (como um governo, uma administração, uma firma comercial), na qual as regras só têm sentido em relação à execução de tarefas determinadas.[32] A oposição entre physis e techne, em suma, é da mesma ordem aqui e lá. Mas Hayek nos permite também entrever o interesse de uma delimitação crítica que determinasse com conhecimento de causa o limite para além do qual uma intervenção técnica seria acima de tudo incongruente — e por isso potencialmente perigosa. É para essa “crítica da razão técnica” que nos orienta explicitamente o livro de Séris. Mas convém precisar que, como toda “crítica” no sentido kantiano, esta só poderá ser uma autolimitação, ope rada principalmente pelo técnico que reflete sobre sua prática (como é o caso da biotecnologia). Essa crítica não mais conceberia portanto “a técnica” como um monstro a domesticar, custe o que custar. Ela estipularia — como o fez a crítica kantiana em relação à razão teórica — a limitação de direito que se impõe à atividade do técnico em vez de erguer diante desta uma barreira que seria fixada apenas em função do “medo” e dos fantasmas que ele alimenta — vale dizer, de maneira necessariamente arbitrária. Já havíamos sugerido: as polêmicas conduzidas pelos tecnófobos apenas retardam o advento dessa crítica. Por que, exatamente? Talvez porque o simples “medo”, mais uma vez mau conselheiro, não lhes permite designar convenientemente seu adversário. Essa sugestão pode parecer enigmática. Tentaremos precisá-la voltando nossa atenção para a Escola de Frankfurt.

O interesse que o tema da civilização “tecnológica” despertou na Escola de Frankfurt estava ligado à necessidade, cedo percebida, de atualizar para o século XX uma crítica social de inspiração marxista. Tomemos um exemplo. Uma mutação ocorreu desde o final do século XIX na questão da “legitimação da dominação”, isto é, no conjunto de crenças e de valorizações que assegura a lealdade dos governados para com o poder. Na época da economia liberal, fazia-se apelo essencialmente ao imperativo da estabilidade da propriedade (das relações de produção, em termos marxistas) para que os “cidadãos ativos” aceitassem os dissabores da dominação. A implantação do sufrágio universal tornava, por si só, esse modo de justificação insuficiente: o Estado não deve mais apenas garantir a liberdade do mercado, mas também zelar pela integração dos cidadãos na sociedade, sua segurança econômica mínima, e mesmo suas oportunidades de promoção social. Estes vão ser os títulos principais de “credibilidade”, portanto de legitimidade do poder: a tarefa propriamente política muda assim de natureza: ela não consiste mais em fixar e realizar fins, mas em prevenir as disfunções que ameaçam a estabilidade de um sistema social. E serão os especialistas (administradores, economistas) os mais capacitados a levar a cabo essa profilaxia, sem a qual a legitimidade do poder se desagregaria. Este se tornará portanto cada vez mais dependente das informações e dos prognósticos daqueles, na medida em que a política passa a se conceber essencialmente como uma busca de soluções para as questões de ordem técnica.[33]

Desse modo o Príncipe acaba ou acabará por ceder seu lugar ao “conselheiro do Príncipe”, e a dominação política tradicional se apaga diante de uma administração preocupada em manter a sobrevivência do corpo social. Dessa mudança de essência da política, Hobbes havia sido o anunciador: a arte política não está mais ligada, como para Aristóteles, ao “viver bem” da sociedade, mas simplesmente à sua sobrevivência. Ou ainda, diz Habermas, a política não depende mais da atividade prática, mas da atividade instrumental, que “exerce uma regulação permanente do processo econômico” e, com isso, racionaliza todos os aspectos da vida em comum.

Aqui se impõe a referência ao processo de racionalização que acompanhou, segundo Max Weber, o desenvolvimento do capitalismo. É a propósito de uma reflexão sobre Max Weber que Marcuse oferece uma de suas primeiras análises dessa tecnicização integral da vida social mediante a edificação de grandes aparelhos de regulação (administração, direito, gestão das empresas…). Ao apoderar-se assim do conjunto de nossas práticas, a racionalidade instrumental (Zweckrationalität) substitui a racionalidade normativa (Wertrationalität) até deixar esta, por assim dizer, sem outra função a não ser a de alimentar retóricas pontificantes. A deriva burocrática das sociedades “desenvolvidas” não passa de um aspecto dessa usurpação levada a termo aos poucos pela razão instrumental — aquela que só funciona segundo imperativos hipotéticos (seentão…). Como é compreensível, historicamente, que essa “razão” tenha tido suficiente audácia e força para se lançar em tal empreendimento? A resposta a essa questão deve ser buscada junto à simbiose entre ciência e técnica. As análises de Marcuse a respeito da “técnica” têm por objetivo tornar inteligíveis as condições de possibilidade e as consequências dessa conjunção, característica dos tempos modernos.

É visando tal efeito que ele forja seu conceito de tecnologia. A palavra, para ele, designa um “processo social”, ou ainda uma “forma de organização e de perpetuação (ou transformação) das relações sociais”, da qual a aparelhagem técnica existente “representa apenas um fator entre outros”.[34] Entendida desse modo, a “tecnologia” marca uma nova etapa nas relações das técnicas com a ciência. Na etapa anterior, as ciências exatas — e em particular a química — impulsionaram uma dominação técnica sem precedente sobre a natureza. Essa etapa, aliás, ocorreu bem mais tardiamente do que o supõem certas leituras forçadas dos clássicos (“mestres e possuidores da natureza” etc.): os mais ilustres pioneiros (Huyghens, Newton) não podiam “agir eles próprios sobre a natureza ou mesmo imaginar tal ação em grande escala”.[35] É importante situar exatamente essa época em que a técnica emerge como força produtiva, a fim de distingui-la da etapa seguinte, durante a qual a “tecnociência”, que já tornou consideravelmente maior nossa dominação da natureza, aparece como um processo coletivo organizado, subversivo das relações sociais e institucionais.

Uma das características dessa nova etapa é que os “cientistas” (em francês, “scientifiques”, neologismo muito sintomático da mutação mental) deixam de ser considerados teóricos: eles constituem uma mão-de-obra, e pode-se falar do “conhecimento” como do produto da “indústria da descoberta” à qual estão integrados.[36] A invenção é então um ramo da produção, e não mais o apanágio de alguns gênios solitários. E considera-se como um material disponível a “capacidade cerebral” existente nos institutos de pesquisa e nos laboratórios. Essa subversão cultural, analisada especialmente por Serge Moscovici, é bem mais que o efeito de um simples crescimento das forças produtivas — e um dos méritos de Marcuse foi ter sublinhado a originalidade do fenômeno para o público filosófico. O filósofo, se não estiver atento a isso, se satisfará facilmente com uma conceitualização que não mais se aplica à atualidade. Um único exemplo da profundidade dessa mutação, que tomo de Moscovici: podemos ainda usar as palavras savoir-faire e habilidade como nos tempos em que essas atividades só diziam respeito ao cérebro, aos músculos ou ao aparelho sensorial humanos? Com a autonomia adquirida pelos objetos técnicos, o savoir-faire não mais se limita ao indivíduo biológico; a habilidade, portanto, não deve mais ser compreendida como um conjunto de regras capazes de se inscreverem no comportamento de um indivíduo de modo a qualificá-lo para uma tarefa específica. “A noção de habilidade deve ceder lugar à de informação: o que se assimila e transmite é um certo volume de informações operatórias”, que não são mais “a propriedade daquele que está associado a elas”.[37] Marcuse, indo na mesma direção, observa que o avanço da “tecnologia” permite a “intercambialidade das funções”. “A base sobre a qual repousava a distinção tradicional entre o saber especializado (técnico) e o saber universal parece restringir-se.”[38] Esse é um exemplo, entre outros, da verdadeira mutação que sofre o indivíduo, uma vez transformado num componente da “tecnologia”.

Essa mutação é necessariamente maléfica? Seria imprudente decidir com base em simples impressões e sem diferenciar suficientemente as etapas sucessivas da técnica — como aqueles que, abstratamente, fazem pesar sobre a informática os mesmos agravos que o século XIX em relação às suas máquinas. Em vez de deplorar por princípio uma nova forma de “alienação”, convém observar que o trabalho, no tempo dos computadores, reduziu-se menos que nunca a um funcionamento maquinal… Eis a ocasião em que este perigoso singular transistórico, “a técnica”, merece toda a nossa desconfiança. Além disso, não percamos de vista o papel liberador (relativamente às operações mecanizadas) desempenhado não tanto pelas máquinas propriamente, mas pelos automatismos. Liberação do cérebro para outras tarefas, liberação do artesão em relação à especialização que o subjugava e, com isso, tem-se um indivíduo cada vez mais apto à polivalência. E Séris irá convidar os detratores da “técnica” a meditar sobre estas linhas um tanto provocadoras de Leroi-Gourhan:[39]

Falar de nossa superação pelas técnicas é um falso problema: as técnicas têm normalmente a capacidade de superar, e o problema angustiante provavelmente não é esse… O homem não seria humano se as técnicas não lhe tivessem escapado desde a origem, se elas não tivessem deixado os campos cerebrais futuros ao que seguiria”.

Esse comentário serve como contrapeso a Marcuse e para indicar certas ressalvas em relação a um autor que se contentou às vezes com fórmulas demasiado abstratas (a começar por “tecnologia”). Mas seria ainda mais injusto considerá-lo um guru iluminado e rejeitar sem exame a ideia que ele desenvolve de um progresso técnico movido por seu próprio impulso e agora tão independente dos atores que se submete apenas às normas de eficiência que engendra. Penso até que certas análises sociológicas de Marcuse seriam ainda mais “atuais” nestes últimos anos do século do que nos anos 60: é manifesto que em muitos ramos do saber institucionalizado (universidade, institutos de pesquisa, medicina hospitalar…) a burocracia, à medida que cresce sua zona de intervenção e de decisão, acaba por recolocar em questão os critérios de apreciação da competência, e mesmo a finalidade da instituição. O problema é saber, em todo caso, se esses fatos constituem realmente acusações contra “a técnica” e os técnicos: também aqui tropeçamos na imprecisão das fórmulas… Mais vale portanto escolher um terreno no qual a crítica do frenesi “tecnológico” esteja escorada num estudo antropológico: para esse efeito, seguiremos a indicação de Habermas, quando assinala a afinidade entre Marcuse e Arnold Gehlen.

Afinidade certamente estranha à primeira vista, pois a obra de Gehlen está muito afastada, ideologicamente, de Marcuse. Mas Habermas revela um a priori que eles compartilham, a saber, que existe uma evolução autônoma das técnicas. Relativamente a esta, pensa Gehlen, todas as revoluções (Idade do Bronze, “Revolução Industrial”…) foram apenas efeitos de superfície. O fato originalmente decisivo é que o homem, em vez de satisfazer-se com sua mão como instrumento, produziu ferramentas e criou assim artefatos aos quais confiou progressivamente a execução das funções práticas do organismo: as do aparelho de locomoção (a mão e o pé), depois a do aparelho sensorial (ouvido e visão), finalmente a da instância de comando: o cérebro. Doravante, com o surgimento das máquinas capazes de aprendizagem, “nossos meios técnicos imitam em seu conjunto o processo da ação instrumental”.[40] Liberar a humanidade da execução da atividade instrumental, tal foi em suma o sentido do formidável aperfeiçoamento dos artefatos ao longo da história. Tal é a “evolução interna” da qual Gehlen, reconhece Habermas, foi o primeiro a enunciar a “lei”.

Essa lei tem pelo menos dois corolários. Em primeiro lugar, sua enunciação nos proporciona um alívio (bastante relativo), ao nos assegurar que o homem não irá além da etapa da automatização, “pois não se podem indicar outros domínios de habilidades humanas capazes de serem objetivadas”[41] — tendo sido alcançado um limite que Séris chama com elegância “a vertigem à beira da falésia”. Em segundo lugar (e este ponto é menos tranquilizador), essa lei tendencial de substituição completa do homem pela máquina reconhece como sendo de pleno direito a preponderância máxima da atividade instrumental — e é aqui, precisamente, que se esboça uma convergência objetiva entre Gehlen e Marcuse, por mais diametralmente oposta que seja a apreciação que fazem de uma sociedade dominada pela raciona lidade tecnológica. Aquém dessa diferença de avaliação, há esta certeza comum: que fazia parte da vocação da técnica, ao se desenvolver, arrastar a espécie num processo “meta-humano”, e não é mais possível pensar em infletir ou em controlar esse processo através dos meios da política — pelo menos, acrescenta Marcuse, enquanto continuarmos cativos dessa civilização em crise.

Se aderirmos a essa tese, como não nos inclinarmos em favor da reação de Marcuse? Parece inegável que assistimos a um declínio do ser humano enquanto centro de decisão e à sua integração bastante rápida num sistema que o tratará cada vez mais como um objeto manipulável. Situação para a qual Habermas encontra uma fórmula impressionante: é como se o homo faber, arrebatado por seu impulso, se tornasse homo fabricatus. É como se a humanidade houvesse montado uma armadilha que hoje se fecha sobre ela… A espécie humana foi aquela que conseguiu “adaptar culturalmente o meio às suas necessidades”, ao invés de adaptar-se à natureza como as outras espécies animais.[42] Mas essa performance parece voltar-se contra ela: o comportamento humano torna-se mais e mais controlável, a própria natureza humana está a caminho de ser modificável — como se Prometeu tivesse trabalhado para Frankenstein. Aos que se irritariam com esse diagnóstico, Marcuse responderia que eles ainda não se deram conta do acontecimento que, em realidade, fez descarrilar nossa História, a saber: a tomada do poder absoluto pela razão instrumental. Tornada soberana, esta submete cada um de nós a um implacável adestramento “realista”. Ela nos proíbe de dissociar os fins e os meios e, por conseguinte, de apreciar os meios em função dos fins. Ela faz pesar sobre nós, para citar um outro autor, “esta lei verdadeira da civilização industrial, a saber: que são os meios que determinam os fins, ou melhor, que as possibilidades técnicas impõem a utilização que delas se faz”.[43] Sistema supremamente integrador, portanto; ou melhor, supremamente perverso, já que apaga dos espíritos todo referencial que permitiria julgá-lo de fora. O ideal desse adestramento é, muito exatamente, aquele que Pierre Boulle ilustrou no personagem do coronel em A ponte do rio Kwai.

Quase trinta anos após 1968, esse pensamento trágico, é preciso admitir, ainda é convincente. Não esqueçamos porém que já de início, como nos adverte Habermas, ele confiou, talvez exageradamente, nas análises propostas pelo “pensamento tecnocrático”. Não é conceder demais ao adversário sustentar de saída, como um fato consumado, a situação tal como ele a descreve? O certo é que a tecnofobia encontra facilmente um alimento em análises como as de Gehlen: a ideia de uma abdicação progressiva do ser humano 
apresentada como um “festim tecnológico”[44] tanto pode fazer do leitor um insurreto como pode incliná-lo a resignar-se diante do irremediável. E a própria revolta se arriscará a não ser mais que a imagem invertida dessa re signação: não haverá portanto interrogação sobre o fundamento da tese de Gehlen em si mesma, nem da filosofia da história que ela pressupõe… É desse ponto que parte Habermas para marcar (amigavelmente) a divergência existente entre Marcuse e ele. Há “complementaridade”, aponta, entre Marcuse e “a ideologia que substitui a dominação política pela administração comandada pela ciência”. De fato, a reação de Marcuse consiste em estigmatizar uma deriva da civilização à qual se acomodam os que ele critica, mas que ele próprio, igualmente, pensa ser um fenômeno irreversível: o que foi chamado, às vezes irrefletidamente, seu utopismo é antes de tudo a resultante dessa conjunção incômoda que torna “ambígua”, diz Habermas, sua concepção da “sociedade tecnicizada”. E a ambiguidade, tal como a formula Habermas, é pesada: Marcuse deve condenar um sistema de dominação social e político que se deixou tragar pelo “progresso técnico” (como se a técnica fosse uma “força produtiva”) e ao mesmo tempo deve caracterizar nossa modernidade pelo fato de a técnica exercer doravante, por si mesma e sem intermediário, a função de opressor (como se ela tivesse se tornado uma “relação de produção”). Quando Marcuse põe fim a essa ambiguidade, é para se engajar na segunda direção. Ele rejeita a ideia de que a “tecnologia” teria tido a má sorte de ser utilizada absurdamente pelo sistema de dominação que favoreceu sua expansão: hoje, é a própria técnica como instância de Bildung que devemos combater — renunciando, sobretudo, à ideia antiquada de sua “neutralidade”.

Os objetivos e os interesses do sistema de dominação não são outorgados à técnica posteriormente e do exterior, eles já fazem parte do aparelho técnico no momento de sua construção […] É preciso rejeitar a noção de neutralidade da técnica, segundo a qual a técnica está além do bem e do mal, é a objetividade mesma, suscetível de ser utilizada socialmente sob todas as suas formas […][45]

Claro que uma máquina é neutra. Mas o que não o é, prossegue Marcuse, é a “tecnicidade”, “o modo de ser do homem e da natureza” do qual depende essa máquina. Enquanto não tivermos rompido com esse “modo de ser” que nos sujeitou ao controle dos especialistas e dos administradores, nada terá sido feito para a libertação do homem. Tenhamos a coragem de denunciar na técnica a forma adotada pela dominação política, e também de reconhecer “que é impossível suprimir [a dominação] caso não se suprima a própria técnica. O sucesso de uma revolução dos sistemas sociais evoluídos, tanto a leste como a oeste, é impossível caso não se desenvolva uma nova técnica”.[46]

Uma “nova técnica” e — por que não? — uma “nova ciência”: a primeira qualidade de um filósofo, dizia Kant, é ser coerente. A essas linhas de Marcuse por ele citadas, Habermas replica facilmente que não se percebe muito bem como poderia se modificar “a estrutura do poder de manipulação técnica […] enquanto a espécie humana for organicamente o que ela é”. É verdade que a desalienação que Marcuse tem em vista exigiria, muito literalmente, a vinda do super-homem. Parece claro que esse irrealismo é a sanção de sua radicalidade. Tal é a lição que o leitor extrai desses textos críticos de Habermas: Marcuse foi longe demais ao denunciar a própria razão instrumental, e não apenas suas usurpações. E esse exagero deve-se ao fato de ele retomar sub-repticiamente “os pressupostos da consciência tecnocrática”.

Por pertinente que seja essa análise, será ela suficiente para esgotar o sentido dessa última etapa do pensamento de Marcuse? Marcuse, parece-nos, oferece um outro interesse: o de levar ao limite os a priori da tecnofobia — e, aliás, com tanta força que contribui, nolens volens, para recolocá-los em questão. Ele dá a maior amplitude à seguinte ideia: a técnica, tendo manifestado a vontade de potência que a anima, procura varrer toda instância capaz de refrear seu desenvolvimento. Ou ainda: a razão instrumental, tão logo é forte o bastante para se emancipar, tende a se autonomizar em detrimento e à revelia tanto de seus usuários como daqueles que a gerem; ela só pode tender a despojar o ser humano do domínio do qual sua criatividade técnica, precisamente, fora por muito tempo o emblema — mas o emblema passageiro. Pois essa criação estava destinada a revelar a miséria, e não a glória, do criador. Hannah Arendt, como o lembra Séris, soube exprimir de forma vigorosa essa ideia assustadora.

É possível que nós, criaturas terrestres que começamos a agir como habitantes do universo, não sejamos mais capazes de compreender, ou seja, de pensar e de exprimir as coisas que, no entanto, somos capazes de fazer. Nesse caso, tudo se passaria como se nosso cérebro, que constitui a condição material, física de nossos pensamentos, não pudesse mais acompanhar o que fazemos, de modo que doravante teríamos realmente necessidade de máquinas para pensar e para falar em nosso lugar”.[47]

Frase terrível: é agora que temos “realmente necessidade” de máquinas, mas como muletas, a tal ponto o uso desses aparentes gadgets que não tínhamos vocação de dominar nos aleijou. Pior ainda: habituados a serem superados pelas maravilhas crescentes da técnica, no sentido em que se é “superado pelos acontecimentos”, os humanos quase perderam a ideia de que valeria a pena dominar esse progresso e, junto com ela, o sentimento de que lhes cabe um “direito de senhor”. Em contrapartida, o mérito tanto de Marcuse como de Habermas (e ao mesmo tempo o traço que distingue Marcuse dos tecnófobos) é deixar-nos entrever a fragilidade e mesmo a vaidade dessa reivindicação. Eis aqui um exemplo, tirado do artigo em que Haber mas confronta sua posição à de Marcuse: “Consequências práticas do progresso científico e técnico” (1968).[48]

O autor começa por distinguir dois tipos de adaptação: 1) “a adaptação ativa às condições exteriores de existência”, que caracteriza o poder técnico desde a origem dos tempos; 2) a adaptação, que sempre foi passiva e caótica, do sistema de dominação (ou “quadro institucional”) à evolução dos “sistemas que progridem com a técnica”. Essa distinção permite caracterizar uma crítica social como a de Marx pela vontade de pôr fim à disparidade entre esses dois registros de adaptação: o objetivo de Marx era tornar a segunda adaptação igualmente ativa, ou seja, “conquistar igualmente o controle da evolução estrutural da sociedade”. Tal intenção de “controlar as consequências socioculturais do progresso”, acrescenta Habermas, é hoje retomada, mas de maneira caricatural, “tanto a leste como a oeste”, pelo pensamento tecnocrático “que vê nesse problema apenas uma tarefa de ordem técnica”. É verdade que se pode perguntar, de passagem, se a tarefa de “controle”, já no tempo de Marx (e de Saint-Simon), podia ser outra que não técnica… Mas o importante é que Habermas orienta nossa atenção para uma forma de vontade de potência que seria impróprio chamar “técnica”, sendo talvez preferível chamá-la construtivista. Entenda-se por essa palavra a crença de que toda obra produzida deliberadamente por um agente voluntário é a priori melhor que uma obra da physis ou do acaso, e que portanto uma planificação deve contar com um juízo antecipado favorável a uma ordem espontânea. O espírito das análises de “Frankfurt” permite, pelo menos ao leitor atento, discernir essa forma de ilusão, mesmo quando a denúncia desta se confunde com as acusações dirigidas contra a técnica ou a “tecnologia”. Esse engano, que julgaríamos dever-se à associação tecnocracia/técnica, certamente não poupou os pensadores de Frankfurt. No entanto eles conseguem, por momentos, nos fazer detectar essa confusão e nos colocar na pista da ilusão verdadeira. Assim, por vezes Marcuse, através dos exageros de sua ultratecnofobia, designa mais ou menos com clareza os responsáveis por nossa “pós-modernidade”: os soldadosdo construtivismo.

A totalidade dos objetos do pensamento e da prática é agora concebida, projetada como organização: para além de toda certeza sensível, sua verdade é uma questão de convenção, de eficácia, de coerência interna; e a experiência de base não é mais a experiência concreta, a prática social em seu conjunto, mas a prática administrativa, organizada pela tecnologia”.[49]

Essas linhas são de 1964. Relidas hoje, e considerado o domínio crescente do “administrativo” sobre a vida cotidiana, elas se afiguram premonitórias. Mas é preciso ter cuidado para não se enganar de adversário e designar a informática como bode expiatório, quando o que está em questão é apenas uma vontade exacerbada de controle social. Lendo certas páginas de Marcuse, somos tentados a tomar como uma sugestão a expressão de Habermas: restituir à técnica “sua inocência de pura força produtiva”. Ou pelo menos a aconselhar o livro de Séris como contraponto útil a textos que às vezes mais difamam a técnica do que a criticam.

Sim, a técnica deve ser mais inocente do que dizem. Quem sabe? Mais inocente ainda do que julgam aqueles filósofos que, sem chegar a lançar o opróbrio sobre ela, vêem no entanto — para eles é uma questão menor — a razão instrumental como a prima pobre de uma razão prática da qual se consideram de bom grado os procuradores. Para eles, é de pleno direito que a primeira deve “manter seu lugar” de simples executante, sob a tutela da segunda: a determinação dos fins da ação é algo demasiado sério para ser confiada a uma faculdade míope e servil. Ora, talvez esteja na hora de reexaminar essa hierarquia “de bom senso” na qual sobrevivem, mal camuflados, preconceitos vetustos (como a subordinação das artes mecânicas às artes liberais), hierarquia que poderia muito bem ser obsoleta numa época em que a figura do “cientista” substituiu a do técnico, no sentido estrito de “possuidor de um know-how”. Após tão profundas mutações — que em particular tornam difícil traçar uma demarcação entre técnica e ciência —, o que autoriza, hoje, associar a atividade técnica às ideias de sujeição e de alienação? Não sugerimos que a essa questão deva ser respondido: “Absolutamente nada!”, mas simplesmente que seria importante formular essa questão a partir de investigações sobre nossas técnicas, sem recorrer às velhas maldições. Caso contrário, ao vituperar “a Técnica” transistórica, como ter certeza de que nossas acusações não estão superadas? De acordo com as últimas notícias, os operários não quebram mais como outrora suas máquinas: coisas que às vezes convém lembrar aos “intelectuais”.

Voltemos, para terminar — e para terminar brevemente —, à questão de saber se é de fato à razão instrumental que se deve a confusão do político e do administrativo que caracteriza o espírito tecnocrático. Não é antes uma outra forma da “razão” que deveria ser incriminada? A filosofia grega clássica poderia nos fornecer, sobre esse ponto, ao menos uma indicação.

Se Platão atribui um estatuto subalterno às técnicas exercidas por especialistas, é em razão de sua neutralidade.[50] Marquemos a diferença, diz ele, entre duas atividades: produzir uma coisa e utilizar corretamente essa coisa. O técnico tem receitas para a produção, mas não para a utilização correta. Não é a arte médica, produtora da saúde, que pode decidir se é útil para o doente ser curado: é uma arte superior (e onisciente) que deveria indicar ao médico, caso por caso, como utilizar melhor seu saber — por exemplo, que futuro homem de bem vale a pena curar, que futuro patife é preferível abandonar à sua sorte. Assim se instala a oposição entre o saber técnico (que me torna detentor de uma competência bem localizada) e um saber prático, um saber do Bem, certamente inacessível de fato, que seria o único capaz de permitir uma utilização sempre judiciosa da arte.

Um saber prático assim compreendido seria um saber cujas diretrizes jamais dariam ensejo à deliberação: seu detentor não poderia fazer outra coisa senão segui-las. O saber técnico não tem essa perfeição: está à disposição daquele que o possui, dando-lhe uma competência de especialista capaz de intervir mais ou menos eficazmente segundo as circunstâncias. Essa competência constitui um grau menor de saber. Daquele que possui a virtude da justiça, não se diria que tem a competência para agir justamente: ele agiria necessariamente de maneira justa… Um segundo traço reforça esse caráter imperfeito do saber técnico: é sua ambivalência. O piloto do navio tanto pode ser útil como prejudicar o passageiro que ele conduz a bordo: como o saberia, não sendo adivinho? Pior ainda: o médico, por causa de sua competência, tanto pode devolver a saúde ao paciente como assassiná-lo deliberadamente. Em suma, o saber instrumental é de tal natureza que sua aplicação é sempre passível de um coeficiente de incerteza — e é isso que torna imperfeita a competência do especialista.

Em face desses textos, é notável observar como Aristóteles reavalia a ambivalência do ato técnico, quando analisa a noção de potência entendida como “princípio de mudança”: “Todas as artes são potências, pois são princípios de mudança num outro ser, ou no próprio artista enquanto outro”.[51] Há dois tipos dessas “potências”: a potência “acompanhada de razão” (metalogou), da qual a arte é um exemplo, e a “potência desprovida de razão”(alogos). Esta última, quando é ativa — o Fogo, o Frio etc. —, não possui ambivalência: “O Fogo não pode ao mesmo tempo aquecer e não aquecer”. Mas será isso uma perfeição? “O que é quente produz apenas o calor, o que é frio produz apenas o frio, enquanto aquele que sabe (ho epistemon) produz ambos”. E reencontramos aqui o médico capaz tanto de curar como de envenenar: “O quente só é potência do aquecimento, enquanto a medicina é potência ao mesmo tempo da doença e da saúde”. Mas a ambivalência, nesse caso, não mais caracteriza um saber menor; ela indica que o técnico possui o logos da coisa, “e que é o mesmo logos que revela a coisa e sua privação”. Esse logos (ou “razão”) só pode portanto ser neutro axiologicamente, já que está à disposição de um ser racional, que dele poderá fazer um uso terapêutico ou criminoso conforme seu desejo o conduzir numa direção ou noutra. Pois é sempre um desejo que “imprime movimento à alma” e fixa um objetivo à ação — dado que “o pensamento por si mesmo não imprime movimento”, ou ainda, se preferirem, dado que não há razão pura prática (e este último ponto, aqui, é capital). Se admitirmos essa análise, por que haveríamos de considerar menores os saberes poiéticos (as técnicas)? Sua neutralidade não possui, em si mesma, nada de inquietante. Sua ambivalência é a que corresponde a todo saber como tal. E se esses saberes podem vir a ter efeitos nefastos, cabe à cidade precaver-se dando a seus técnicos uma educação que lhes torne impossível um uso irresponsável ou perverso de sua competência. Enfim, não se compreende, seguindo essa linha de pensamento, por que as técnicas mereceriam ser rebaixadas pelo fato de não nos ensinarem nada acerca do bom uso do que elas produzem, e por não serem capazes de impedir nosso mau uso delas. Essa neutralidade que lhes é constitutiva de maneira nenhuma impede que um técnico possa mostrar mais prudência relativamente a esse bom uso do que o profano dominado pelo “medo”. Eis um ponto que corre o risco de passar despercebido ao leitor de Platão.

Os textos de Aristóteles aos quais me refiro muito brevemente têm sobretudo o interesse de esclarecer a atividade técnica fazendo-nos não esperar dela (ou fingir esperar dela) resultados tais como o saber do bom uso, apenas exigíveis de um saber absoluto. Eis uma precaução útil para não enveredarmos pela “tecnofobia”. Esta começa quando se atribuem à “Técnica” responsabilidades indevidas, que ela evidentemente não possui. Então é muito fácil que disso resulte o tema de um Grande Medo — o do ano 2000, por exemplo. Em suma, Aristóteles nos convida a não fantasiar sobre o caso do médico envenenador, a não culpabilizar o irresponsável… Por que a atividade técnica teria em si mesma uma vocação hegemônica? Por que o técnico como tal aspiraria a exercer aquele “poder imenso e tutelar” de que falava Tocqueville? Esse perigo existe, seguramente, mas está ligado à convicção de que as relações sociais seriam organizáveis em função da ideia do Bem, cujo único detentor é o ideocrata. É esse sonho que alimenta as tecnocracias, mas ele não é engendrado nem pelo poder técnico nem por seus avanços — até prova em contrário… E não cremos que os tecnófobos, até agora, tenham conseguido prová-lo.

Tradução de Paulo Neves

Notas

[1] Jean-Pierre Séris, La technique, Paris, puf, pp. 203, 7.

[2] Sobre o uso abusivo do termo tecnologia, cf. Séris, op. cit., pp. 2-8.

[3] Idem, ibidem, p. 5.

[4] Idem, ibidem, pp. 5-6.

[5] Utilizo abundantemente dois artigos de Bernard Sève: “Hans Jonas et l’éthique de la responsabilité”, Esprit, out. 1990, e “La peur comme procédé heuristique”, in Aux fondements d’une éthique contemporaine, Vrin, 1993.

[6] Hans Jonas, Le principe Responsabilité; trad. francesa Jean Greisch, Cerf, 1990 (1979), p. 193.

[7] Idem, ibidem, p. 191.

[8] Idem, ibidem, p. 218.

[9] Idem, ibidem, pp. 30-2. Cf. Sève, “Hans Jonas et l’éthique de la responsabilité”, 
pp. 73-5.

[10] Sève, op. cit., p. 77.

[11] “Os alimentos mais ‘naturais’ ou ‘balanceados’ (supondo que as duas exigências não sejam simplesmente contraditórias) […] não são menos industrialmente elaborados, fabricados e conservados que os outros. São dosados em proteínas, vitaminas, calorias, entidades naturais, certamente, mas que a natureza não dosa desse modo […] Uma vez mais, não se pode voltar à natureza a não ser complicando o artifício, e portanto apelando à competência dos especialistas desse artifício” (Séris, op. cit., p. 326).

[12] Sève, “La peur comme procédé heuristique”, pp. 118-9.

[13] Hans Jonas, op. cit., p. 187.

[14] Idem, ibidem, p. 189.

[15] Idem, ibidem, p. 224. Cf. Sève, “Hans Jonas et l’éthique de la responsabilité”, p. 73.

[16] Aristóteles, Ética a Nicômaco, I, 1, 1094 b 1.

[17] Sève, op. cit., p. 86.

[18] Séris, op. cit., p. 360.

[19] Idem, ibidem, p. 353.

[20] Idem, ibidem, pp. 357-8.

[21] Idem, ibidem, pp. 358-9.

[22] Idem, ibidem, pp. 370, 362.

[23] Idem, ibidem, p. 363.

[24] Sobre o caráter incognoscível e não avaliável da utilidade de uma mutação, cf. Séris, p. 63, e a citação de F. Dagonet: “O hemofílico morrerá em consequência desse defeito; mas um déficit não existe em si, somente em relação a um meio ou a um tipo de existência. Em caso de viagens interplanetárias rotineiras, não está excluída a possibilidade de esse desfavorecido se beneficiar com a não-coagulação do sangue, enquanto os terrestres normais poderiam sofrer em consequência de uma fisiologia ajustada à gravidade” (Le vivant, p. 184).

[25] Hayek, Droit, législation et liberté; trad. francesa Audoin, puf, 1981, t. II, p. 23.

[26] Séris, op. cit., p. 371.

[27] Cf. G. Canguilhem, Le normal et le pathologique, puf, 1966, p. 176.

[28] Idem, ibidem, p. 197.

[29] Leibniz, Ensaios de teodiceia, § 124; cf. santo Tomás, Contra gentiles, t. 2, p. 157.

[30] E. Mayr, Histoire de la biologie. Diversité, évolution, hérédité, p. 576. Citado por Séris, op. cit., p. 364.

[31] Hans Jonas, op. cit., pp. 54-5. Cf. Sève, op. cit., p. 85.

[32] Hayek, op. cit., t. 1, pp. 57-8.

[33] Habermas, Technique et science comme idéologie; pref. e trad. francesa Ladmiral, Gallimard, 1973, pp. 40-1.

[34] Marcuse, citado por Gérard Raulet, Herbert Marcuse, philosophe de l’émancipation, puf, 1992, p. 122.

[35] Séris, op. cit., p. 211-2. Cf. Habermas, op. cit., pp. 34-5.

[36] Cf. Serge Moscovici, Essai sur l’histoire humaine de la nature, Flammarion, 1968, pp. 442-5.

[37] Idem, ibidem, pp. 449-50.

[38] Marcuse, citado por Gérard Raulet, op. cit., p. 129.

[39] Leroi-Gourhan, Le fil du temps, pp. 87, 91. Citado por Séris, op. cit., p. 196.

[40] Habermas, Théorie et pratique; trad. francesa Gérard Raulet, Payot, 1975, t. II, p. 116-7. Cf. Séris, op. cit., pp. 170-2, 193.

[41] Séris, op. cit., p. 196.

[42] Habermas, Technique et science comme idéologie, p. 62.

[43] H. Schelsky, Der Mensch in der wissenschaftlichen Zivilisation. Citado por Habermas, Théorie et pratique, t. II, p. 123.

[44] Para uma crítica de Gehlen, cf. Séris, op. cit., p. 99.

[45] In Gérard Raulet, op. cit., pp. 123, 125.

[46] In Habermas, op. cit., t. II, p. 126.

[47] Hannah Arendt, Condition de l’homme moderne, p. 36. Citado por Séris, op. cit., 
p. 243 (grifo nosso).

[48] In Habermas, Théorie et pratique, t. II, pp. 128-32.

[49] Marcuse, De l’ontologie à la technologie. Citado por Gérard Raulet, op. cit., p. 133.

[50] Inspiramo-nos aqui em análises de Wolfgang Wieland, Platon und die Formen des Wissens, pp. 176-9, 261-75.

[51] Textos de Aristóteles: Metafísica, livro ix, capítulo 2, 1046a36 ss.; De interpretatio, capítulo 13, 22b34, 23a6; Ética a Nicômaco, 1048a10, 1139a35.

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