1992

Sobre tempo e história

por Adauto Novaes

O que é experiência do tempo? Pode uma cultura falar do tempo sem recorrer às diversas formas de elaborar suas tradições e de narrar a História? Como pensar a história a partir de uma tradição que trabalha com a ideia de tempo absoluto, sem conexão com as diferentes dimensões sociais, políticas e intelectuais, e que procura identificar a sociedade a uma única experiência temporal? Como pensar, enfim, a natureza do contemporâneo: tempo fragmentado, tempo deslocado, tempo modelado, tempo repetitivo-veloz-volátil, tempo sem memória?

As questões postas por 1922 (o que é modernidade), 1792 (o que é liberdade) e 1492 (o que é humano) jamais foram seriamente respondidas, o que nos leva hoje, em 1992, à pergunta: o que somos nós?, quinhentos anos depois do “descobrimento” da América. O livro Tempo e história, originalmente curso livre que integrou o projeto geral “Caminhos da memória, trilhas do futuro”, procura responder a estas indagações.

Por que memória e futuro? Nossa história foi construída no esquecimento daquilo que Paul Valéry chamou de as duas maiores invenções da humanidade, o passado e o futuro. Sem passado e sem futuro, esta história oficial esvazia não apenas nossos pensamentos mas principalmente a própria ideia de História. Narrar a história de um povo a partir apenas do tempo presente, tempo fragmentado, direcionado, “instante fugidio tido como único tempo real”,[1] é negar a articulação de épocas e situações diferentes, o simultâneo, o tempo da história pensamento do tempo. Ora, é essa articulação que permite diferenciar condutas múltiplas no tempo e reconhecer que práticas políticas e culturais, consideradas estranhas e indesejáveis em determinado momento, sejam vistas de maneira diferente em outro. Esquecer o passado é negar toda efetiva experiência de vida; negar o futuro é abolir a possibilidade do novo a cada instante. Mais ainda, as ideias de justiça, liberdade, alteridade, pensamento tornam-se abstrações, vazias no espaço e no tempo, a partir do momento em que qualquer ação já se sabe “eternamente feita e absolutamente irreparável”.[2] A nossa história vive, pois, o círculo do mesmo: 1922 repete 1792 que repete 1492, negação permanente da experiência, que é temporal mas que permanece oculta, tentando esquecer acontecimentos e desmentir o axioma de Descartes que dizia que nem o próprio Deus pode fazer com que o que aconteceu deixe de ser um acontecimento.

Uma história pensada a partir da ideia de promessa e um pensamento dominado pela técnica — como evidenciam alguns textos deste livro — têm em comum a ilusão de reduzir o futuro às ideias de espera e previsão. Vêem a história como realização dos desígnios da Providência ou como determinismo que garante que, de etapa em etapa, tempo e história correm em sentido determinado: é a visão do tempo como sequência linear. Negam à história o direito à incerteza e ao acaso. Técnica e religião pretendem libertar o homem da angústia da incerteza e, por isso, desejam tudo dominar, tudo prever. Mas tempo não se confunde com eternidade (da religião), e história põe em jogo “a totalidade do mundo e nenhuma técnica pode abarcar essa totalidade”.[3]

A técnica, como a religião, não dá conta do tempo interior e do tempo das coisas. Ele está em nós e fora de nós, na história do mundo, e, portanto, jamais pode ser objeto de manipulação absoluta.

Tempo e história procura, enfim, responder às questões: de onde nasce essa recusa do tempo que engendra uma visão ingênua e passional da História? Quais os mecanismos sutis que garantem a permanência, a repetição e a novidade em 1922, 1792, 1492?

Se as ideias comuns revelam alguma coisa, se o sentido das palavras tem algum valor, se atuam sobre nosso corpo e modelam nosso espírito, dando, portanto, ao pensamento a dignidade do sensível, somos levados a pensar sobre a origem e a natureza das palavras que nos cercam hoje, sobre o sentido de certas noções das quais historiadores e filósofos se servem com frequência. Não que a história possa julgar uma ideia; como afirma Merleau-Ponty, há historiadores que escrevem de tal maneira que as ideias parecem ser julgadas pelos fatos. Cita Husserl: a história que julga supõe valores, lança esses valores na esfera ideal, não nos fatos, encerra uma fenomenologia latente não expressa e provavelmente incorreta.

Eis a dificuldade: da mesma maneira que, no mundo da produção, cria-se “não apenas um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”,[4] assim também nossos pensamentos mais profundos são dirigidos de fora e tornam-se cada vez mais indiferentes à nossa potência de pensar e agir, atraídos apenas pelo fútil, pela curiosidade ávida de sensacionalismo, pela excitação banal. Isto, em parte, é obra de certa história, e é nesse sentido que Valéry escreveu que História é o mais perigoso produto fabricado pela química do intelecto. Suas propriedades são conhecidas, escreve ele:

Fazem sonhar, embriagam os povos, engendram neles falsas lembranças, exageram seus reflexos, conservam suas velhas feridas, atormentam-nos no seu repouso, conduzem-nos ao delírio de grandezas ou ao de perseguição, tornam as nações amargas, soberbas, insuportáveis e vãs.[5]

Enfim, a história pode produzir acontecimentos ou ainda impedir que eles sejam produzidos; pensada assim, o que a história produz são certezas absolutas construídas fora do tempo que jamais dão respostas às questões do tempo; acontecimentos produzidos em oposição à atividade prática, que abolem a possibilidade da gênese do sentido ou de um vir-a-ser inteligível das ideias. No máximo, ela é a soma de acontecimentos, postos uns em seguida aos outros, sem sedimentação, aos quais geralmente somos submetidos sem que tenhamos deles nenhuma perspectiva. Mais ainda: porque este tipo de história objetiva elimina a ideia de sujeito, ficamos sem a mínima possibilidade de compreender o tempo (passado, presente e futuro) desfazendo a ligação interna que existe entre nós e o tempo (isto é, “ainda que consideremos nossa vida como ruptura com o passado ou como continuidade do passado, em todos os casos existe sempre uma relação interna entre o que foi, o que é e o que será”). A História não é, pois, a passagem de um amontoado de fatos desordenados a ideias abstratas atemporais. Como trabalho de pensamento, ela é “a retomada de operações culturais começadas antes de nós, seguidas de múltiplas maneiras, e que nós ‘reanimamos’ ou ‘reativamos’ a partir do nosso presente”.[6] Operações culturais capazes de “abalar a imaginação” para que possamos conceber, como escreve Merleau-Ponty, toda a sorte de possíveis dos quais não temos experiência.

Um dos caminhos possíveis está em penetrar no reino das palavras, uma vez que os acontecimentos que nos são dados nem sempre nos permitem interrogar nossa experiência. Não que as palavras nada devam aos acontecimentos, mas, pela frequência ou ausência de algumas delas no nosso vocabulário, podemos imaginar um tipo de história que domina nossa sensibilidade e nosso intelecto. Mais ainda: como nos relembra a filósofa Marilena Chaui em seu ensaio “Janela da alma, espelho do mundo”,[7] dos cinco sentidos, somente a audição (referida à linguagem) rivaliza com a visão no léxico do conhecimento. Retomar a consciência do “sujeito que fala” é, pois, a primeira tarefa do pensamento, “reencontrar um logos já incorporado à palavra” que permite explicitar a atividade do sujeito que fala, “reencontrar uma razão já incorporada em meios de expressão, essa linguagem que sei porque eu o sou”.[8]Para Husserl, em um dos muitos comentários de Merleau-Ponty dedicados à questão da linguagem, falar não é de maneira nenhuma traduzir um pensamento em palavras, e sim visar certo objeto pela palavra. A palavra é, portanto, um mundo de significações e de relações. Para que cada palavra possa ser pronunciada, ela tem por fundo a língua inteira como sistema de significação que reflete nossos valores, costumes, tudo o que constitui o mundo da nossa cultura. A intenção de significar, escreve Husserl,

não está fora das palavras ou ao lado delas, mas antes, ao falar, realizo constantemente uma fusão interior da intenção com as palavras. A intenção, por assim dizer, anima as palavras, e o resultado dessa animação é que as palavras e toda a palavra encarnam nelas uma intenção [Meinung] e, uma vez encarnada, a trazem nelas como seus sentidos.[9]

Intenção que traz em cada palavra não apenas a fala do sujeito, mas também o pensamento do interlocutor que, ao captar na palavra dita a possibilidade do todo da língua, pode responder a esse todo na forma de pensamento e diálogo. É esta a conclusão de Merleau-Ponty: “É preciso considerar o que designamos ideias trazidas à existência, trazidas ao mundo por seus instrumentos de expressão, os livros, os museus, as partituras, os escritos. Se se quer verdadeiramente compreender como é possível o fenômeno da existência ideal para uma pluralidade de sujeitos que não vivem no mesmo tempo para participar das mesmas ideias, a primeira coisa a fazer é compreender como se incorporam os pensamentos de um único sujeito nos instrumentos culturais que vão veiculá-los fora e os tornarão acessíveis a outros”.[10]

Que intenções encarnam e animam as palavras? Que objetos históricos, políticos e culturais são visados pela palavra? Como se perdem, a cada instante, miríades de fatos fora do pequeno número daqueles que as palavras habitam? O que dizer da degradação do sentido das palavras pelo seu uso de forma absoluta e abstrata (que sentido têm hoje, por exemplo, palavras como transparência, democracia, justiça, razão, liberdade, essas obras-primas da reflexão antiga que hoje tornaram-se “armas deploráveis” de uma guerra de interesses na maioria das vezes inconfessáveis e escusos)?[11]

Se interrogamos nossa experiência, podemos circunscrever, sem dificuldade, o universo das nossas palavras e concluir que vivemos hoje a lenta agonia ou a morte de muitas das que ajudaram a fundar a civilização. Uma palavra que perde seu vigor, “seu império, sua frequência e sua espontaneidade”, como escreveu Valéry a propósito da palavra virtude, e que

é venerada apenas por nós, no nosso reservadíssimo dicionário, por uma espécie de religiosa devoção, pela memória, cinzas de uma ideia que deixou de estar viva, esta palavra, por seu próprio declínio, ainda pode nos ensinar algo: o próprio desuso confere a um termo moribundo uma espécie de suprema significação.[12]

A morte ou a perda de sentido de algumas palavras leva-nos, pois, a pensar no desaparecimento de um tipo de civilização. É ainda Valéry, em sua Primeira Carta sobre a “Crise do espírito”, que nos lembra que as civilizações têm a mesma fragilidade que uma vida e que, portanto, elas também são mortais:

Tínhamos ouvido falar de mundos inteiramente desaparecidos, impérios idos a pique com todos os seus homens e todos os seus engenhos, descidos ao fundo inexplorável dos séculos com seus deuses e suas leis, suas academias e suas ciências puras e aplicadas, suas gramáticas, seus dicionários, seus clássicos, seus românticos e seus simbolistas, seus críticos e os críticos de seus críticos […] Percebíamos, através da espessura da história, os fantasmas de imensos navios carregados de riqueza e de espírito […] mas esses naufrágios não nos diziam respeito.[13]

Se separarmos da palavra civilização as noções de utilitarismo e progressismo dadas pelo senso comum e pelo pensamento conservador (“desenvolvimento da indústria e do comércio, aquisição de bens materiais e de luxo”) e restituirmos a ela o sentido original, “fineza dos costumes”, “educação dos espíritos”, “desenvolvimento da polidez”, “cultura das artes e das ciências”,[14] podemos dizer então que a civilização está a perigo. Ninguém de bom senso é capaz de negar que vivemos a era da força bruta — basta ver as guerras e os massacres cotidianos, a reedição hoje, 1992, dos campos de concentração na Europa, a violência nas grandes cidades e no campo, o assassinato de crianças e a prostituição de adolescentes; admiramos a velocidade (em que um centésimo de segundo põe em jogo prestígio, dinheiro, interesses — já não sabemos viver a vida lenta e inexata); vivemos a era dos ruídos e da fala ininterrupta da televisão e do rádio (começamos a esquecer como é fecundar o silêncio, entendendo silêncio não como ausência de palavra mas como condição de existência da própria palavra; o que existe é a constituição simultânea de ideias, silêncios e palavras; é o intervalo entre as palavras — o silêncio que dá sentido à linguagem; em síntese,
a palavra não é aquilo que existe para suprimir o silêncio, que existe apesar do silêncio, mas a palavra existe graças ao silêncio); vivemos ainda o excesso de imagens (a nova civilização cultiva o vazio-cheio e tem horror ao vazio sobre o qual “os espíritos de outrora sabiam pintar as imagens de seus ideais, suas Ideias, no sentido dado por Platão”;[15] o olhar vago não é exatamente aquele que dá a pensar, espaço aberto à imaginação criadora e momento de um vazio inexplicável que nada pode preencher, como diz Rousseau?); vivemos a era da dissipação, do consumo abusivo de Valiuns, da intoxicação com substâncias radiativas por meio do fumo contaminado de urânio, elemento químico que constitui matéria-prima de reatores nucleares e bombas atômicas (convivemos com milhões de Chernobis ambulantes); mas vivemos principalmente a perda do sentimento do tempo ao considerarmos que “as coisas rápidas são muito lentas e que as próprias mensagens elétricas fazem morrer de tédio”.[16] No plano político, no lugar da antiga ideia de Constituição e respeito à cidadania, o termo civilização passou a ser associado a performance, espetáculo, marketing, simulação e, principalmente, eficácia. O mais assustador de tudo isso é que estas ideias e práticas — isto é, as práticas grosseiras e ingênuas dessa forma de vida estão perdendo sua evidência. Os homens não percebem que perdem o vigor e a destreza.

Que dizer hoje, por exemplo, dessa definição dada por um humanista dos nossos dias? Para Alain, civilização é um conjunto de

leis, usos, opiniões, julgamentos que tornam impossíveis e quase inconcebíveis práticas antes admitidas sem exame e espanto. Exemplos: a escravidão, a castração das crianças, a tortura, o suplício dos feiticeiros. A civilização não implica que a moralidade média seja melhor, mas que apenas o costume tenha sido mudado pela ação enérgica de alguns moralistas. Eis por que espanta que nossa civilização ocidental não tenha aplacado a guerra, nem as paixões políticas, de maneira que o sofrimento seja tomado ainda como meio de persuasão.[17]

A prática do sofrimento invalida a própria ideia de civilização. Ou melhor, a sensibilidade enfraquece e exige paradoxalmente excitações cada vez mais fortes: esse enfraquecimento é proporcional ao crescimento generalizado da brutalidade. O elogio, e mesmo a injúria, escreve ainda Valéry, perdem o sentido; o espírito se perde na busca de novas maneiras de glorificar ou insultar as pessoas: “Vemos agora”, conclui ele, “que o abismo da história é muito grande para todo mundo”.[18]

Por que as cidades transformaram-se tão violentamente no espaço do temor, e da tristeza? Penso no esquecimento de outra palavra, a razão. Convivemos hoje com mais de 50 milhões de bruxos, os duendes abandonaram a condição de simples ornamentos de jardins e passaram a frequentar os programas de televisão e os quartos de dormir: conversam com seus donos; os adivinhos esqueceram a prudência discreta dos terreiros e traçam, em público, o destino dos políticos e da humanidade; a astrologia e o tarô formam uma nova religião que se dá ao luxo de até mesmo dispensar um deus, criando um misticismo intelectualmente elegante; proliferam as edições de livros esotéricos; novas seitas são criadas: mutilam-se e se matam crianças em rituais satânicos. Se uma época se define pelo que ela tolera, pode-se dizer que a nossa é a da desrazão. Enfim, séculos de trabalhos do pensamento e da razão, realizados lentamente, dolorosamente, são desacreditados à velocidade de um carro de corrida: renasce entre nós um movimento em favor do desumano e das superstições. Espírito de um mundo sem espírito, como escreveu Marx a propósito das religiões que servem de refúgio para um mundo dominado pelo materialismo vulgar, este novo irracionalismo tem origem na própria ideia de racionalismo. “Pequeno racionalismo, que procura explicar todos os fenômenos pela ciência, no qual se supõe a existência de uma imensa Ciência já feita nas coisas”, escreve Merleau-Ponty, não restando ao homem senão “tirar as consequências de um saber definitivo.”[19] Fóssil de um grande racionalismo, o do século XVIII “rico de uma ontologia viva”, o pequeno racionalismo, na sua fé inabalável na explicação científica do todo, torna-se uma teologia secularizada.

Este “pequeno racionalismo” está ligado também à prática cotidiana do more mathematic,[20] à irresistível mania de tudo quantificar. Em todos os domínios — na política, na sexualidade, nos esportes, nas ações culturais etc. — tudo é quantificado, tendendo a excluir a qualidade e mesmo transformar a qualidade em determinações mensuráveis. O real é submetido a todo momento às noções rígidas, exatas, dos números. Empreendimento paradoxal, comenta Alexandre Koyré, porque a realidade cotidiana na qual vivemos e existimos não é matemática, nem mesmo matematizável: “Ela é o domínio do movediço, do impreciso, do ‘mais ou menos’ e do ‘cerca de’.

É evidente que vivemos um momento prodigioso da técnica, com transformações profundas das noções de espaço e tempo; mas a política do espírito não acompanha esse alargamento do mundo: pelo contrário, vemos dominar no homem o encolhimento das fronteiras éticas e o esquecimento de algumas ideias essenciais que fundam o humanismo. Nada vemos de semelhante ao que aconteceu, no plano das ideias, em outro momento de grandes transformações da técnica e também de grandes descobertas — o século XVI —, com o Renascimento de um mundo esquecido e das doutrinas dos velhos filósofos da Grécia e do Oriente, e, com elas, principalmente a crítica e a dissolução de antigas crenças que davam ao homem “a certeza do saber e a segurança da ação”.[21] Século que, no plano das ideias e da política, abalou tudo, destruiu tudo, como assinala Koyré:

Unidade política, religiosa, espiritual da Europa; da certeza da ciência e da fé; a autoridade da Bíblia e de Aristóteles; o prestígio da Igreja e do Estado. Um acúmulo de riquezas e de escombros […] Privado de suas normas tradicionais de julgamento e de escolha, o homem se sente perdido em um mundo tornado incerto. Mundo onde nada é seguro. E onde tudo é possível.[22]

O mundo, portanto, do erro e das incertezas. Ainda que afirme que o homem não pode renunciar definitivamente à certeza e que precisa dela para viver, ouviremos também de Descartes a pergunta: se às vezes me engano, por que não sempre? Se eu me engano, não poderia também ser enganado? Koyré relembra ainda a dúvida de Montaigne: o homem nada sabe porque o homem não é nada.

Explica-se: em épocas “críticas”, épocas de crise — escreve Koyré — o Ser, o
Mundo, o Cosmo tornam-se incertos e nestes momentos a filosofia volta-se para o homem; ela começa então por “o que sou?”, interroga aquele que põe as questões. Ainda que Descartes tenha transformado a dúvida em método, este método torna-se poderoso instrumento de crítica, um meio de discernir o verdadeiro do falso.

Na época dos descobrimentos, dos Renascimentos, das incertezas, o espaço tornou-se uma pluralidade de espaços; o tempo, uma pluralidade de tempos. Hoje, quando predominam as estatísticas como definidoras e reguladoras da vida social e política, as verdades matemáticas são inquestionáveis, até mesmo nos sonhos. Espaço e tempo tornam-se unidades sistematizadas. Portanto, esta concepção engendra e é, ao mesmo tempo, engendrada pela ideia de sistema, que é a plena realização da racionalidade contemporânea. Como observa Gerd Bornheim, a imperiosidade do sistema conseguiu invadir,

sem esquecer a sua soberania em ciências puramente formais, largos setores do mundo contemporâneo, a ponto de se poder dizer que mais do que nunca no passado, o homem atual vive dentro do sistema, já nem se alcança imaginar o mundo sem essa incoercível tendência a tudo sistematizar […]. O sistema confirma-se naquilo que sempre foi: uma racionalidade que tende a realizar a sua própria perfeição. Se o tráfego não funciona, é porque o seu sistema não foi bem elaborado. E tudo vai tão longe que cabe até afirmar que a citada frase de Hegel — que todo racional é real e todo real é racional — em ampla medida tornou-se efetiva. Tanto que ela já pode dispensar a filosofia: agora, “o sistema caminha apoiado em suas próprias pernas […] o homem quer o sistema e denuncia a imperfeição assistemática”.[23]

O sistema apresenta-se, portanto, como a síntese acabada da realização da história mediante a crença absoluta na técnica. A tecnologia passou a dominar não apenas o comércio, as cidades, a vida cotidiana e a intimidade do homem, mas foi mais além: transformou-se na linguagem do mundo contemporâneo, nossa mediação universal. Como sistema universal, a História — da mesma maneira que as ciências, as artes e a política é vista da mesma perspectiva, isto é, por meio de um conjunto de regras de conhecimento, geralmente quantificados, que valem de forma indiferenciada para todas as dimensões do real. Isto é a constituição do mundo sem perspectivas.

É impossível despojar o mundo das suas ambiguidades, paradoxos e enigmas, e dominá-lo plenamente por meio da racionalidade técnica e de forma sistemática. No lugar de habitar o mundo, acolhê-lo, viver no meio dos acontecimentos, o homem moderno tem a pretensão de dominá-lo pela técnica. Mas ele não se dá conta de que essa pretensão é o que o transforma no escravo moderno: dominado por causas exteriores, o homem perde a prudência, e age como qualquer ser passional, isto é, tudo o que ele faz só o faz porque é levado pelos acontecimentos.

Ora, sabemos que essa visão conclusiva do mundo é impossível, pela própria natureza das perspectivas de se realizarem plenamente, porque é a própria ideia de perspectiva que funda a história: cada uma delas “reenvia indefinidamente por seus horizontes a outras perspectivas”.[24]

Um mundo sem perspectivas é um mundo que medita apenas sobre a morte do tempo, sobre o já pensado, porque cada ação humana é motivada pelo momento que precedeu esta ação; isto é, tudo foi determinado anteriormente, em outro tempo, o que, é evidente, exclui a possibilidade da intervenção humana no momento em que a ação se dá. Há uma causa anterior, um determinismo, que acredita que nada pode existir sem uma previsão: ela tem o mesmo valor do destino, essa ficção que conhece o futuro; em outras palavras, é uma maneira de dizer que não podemos mudar o presente e o futuro. Ficção teológica que resulta da onipresença e da onipotência de um sistema “perfeito” que nada ignora. Tudo é previsível. Mais ainda, tudo é sucessão temporal e espacial, há um determinismo da continuidade, uma sequência de causa em causa até o infinito, no qual “o movimento novo nasce sempre de um mais antigo, seguindo a ordem inflexível”.[25]

Ora, nenhuma crítica foi mais profunda à ideia de causalidade sucessiva do que a feita por Epicuro e Lucrécio. Desnecessário falar sobre a atualidade de Epicuro, pensamento analisado por Marx numa tese e vários estudos: “Não teria o epicurismo uma essência de tal maneira original, profunda, eterna que o próprio mundo moderno deveria conceder-lhe sem reserva o direito intelectual de cidade?”. [26]

À ideia de Demócrito que diz que

as causas dos acontecimentos presentes não tem nenhum começo, e que absolutamente todas as coisas que foram, são e serão, foram completamente determinadas por uma necessidade antecedente desde um tempo infinito do passado,[27]

Epicuro responde com a noção de começos absolutos, causas primeiras e livres, “causas que não são”, no comentário de Marcel Conche, “como elos numa corrente, mas como elos no fim de uma corrente”.[28] Este princípio é descrito por meio do fenômeno do clinamen: todos os corpos, apesar das diferenças de peso, caem à mesma velocidade no vazio, razão pela qual os mais pesados jamais cairão sobre os mais leves para provocar os choques mediante os quais a Natureza gera um conjunto de coisas; ora, os átomos, na sua queda em linha reta no vazio, em movimento espontâneo, desviam-se da vertical de maneira quase imperceptível, o mínimo necessário, “em um momento indeterminado” (incerto tempore, escreve Lucrécio) provocando a colisão. Esta espontaneidade desviante do átomo é comparada à liberdade. Diz Lucrécio:

Enfim, se todos os movimentos são sempre solidários, se um movimento novo nasce sempre de um antigo segundo uma ordem inflexível, se por sua declinação os átomos não tomam a iniciativa de um movimento que rompa as leis do destino para impedir a sucessão indefinida das coisas, de onde vem a liberdade?[29]

A ação humana não está sujeita, portanto, ao determinismo causal, nem apenas à necessidade: o acaso é parte da história. Mais ainda: o acaso é o ponto de partida da própria história. Como escreve Conche em seu comentário às máximas de Epicuro, o acaso não é uma deusa, Tychê (Fortuna), nem mesmo uma causa “ineficiente”: “Ele fornece ao homem não os bens e os males, mas os ‘começos’ de grandes bens e de grandes males, porque devemos a ele a matéria a partir da qual vamos esculpir nossa vida”. [30]

Devemos nos postar diante da Tychê, como sugere Guyau, como combatentes. É certo que o acaso nos fez sermos “descobertos” há quinhentos anos; é certo também que, a partir desse “começo absoluto”, esculpimos nossas vidas sem saber responder às três perguntas postas por este livro: o que é modernidade, o que é liberdade, o que é humano. É que nem sempre fomos combatentes.

Notas

[1] Marilena Chaui, “500 anos. Caminhos da memória, trilhas do futuro”, texto de apresentação do programa da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo sobre os quinhentos anos do descobrimento da América, 1992.

[2] Alain, “Système des beaux-arts”, in Les arts et les dieux, Paris, Bibliothèque de la Pleiade, Gallimard, 1958.

[3] Maurice Merleau-Ponty, “Matériaux pour une théorie de l’histoire”, in Résumés de cours (College de France, 1952-1960), Paris, Tel-Gallimard, 1968.

[4] Karl Marx, Introduction à la critique de l’économie politique, Paris, Editions Sociales, 1957.

[5] Paul Valéry, “De l’histoire”, in Regards sur le monde actuel, Oeuvres II, Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1960, p. 935.

[6] Maurice Merleau-Ponty, Les sciences de l’homme et la phénoménologie, Les cours de la Sorbonne, texto reproduzido do Centre de Documentation Universitaire, Paris V.

[7] Marilena Chaui, “Janela da alma, espelho do mundo”, in Adauto Novaes (org.), O olhar, São Paulo, Companhia das Letras, 1988, pp. 31-65.

[8] Maurice Merleau-Ponty, Les sciences de l’homme et la phénoménologie, op. cit.

[9] Idem, ibidem.

[10] Idem, ibidem.

[11] Paul Valéry, “Rapport sur les prix de la vertu”, in Etudes philosophiques, Oeuvre I, Paris, Bibliothèque de la Pléiade.

[12] Idem, ibidem, p. 941.

[13] Paul Valéry, “La crise de l’esprit”, in Essais quasi politiques, Oeuvres I, Bibliothèque de la Pléiade, p. 988.

[14] Jean Starobinski, Le remède dans le mal, Gallimard, p. 15.

[15] Paul Valéry, “La crise de l’esprit”, in Essais quasi politiques, Oeuvres I, Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1957.

[16] Paul Valéry, “Le bilan de l’inteligence”, in Essais quasi politiques, Oeuvres I, Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1957, p. 1058.

[17] Alain, “Définitions”, in Les arts et les dieux, Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1957, p. 1042.

[18] Paul Valéry, Essais quasi politiques, Oeuvres I, Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1957.

[19] Maurice Merleau-Ponty, “Partout et nulle part”, in Signes, Gallimard, p. 185.

[20] Alexandre Koyré, “Du monde de 1″à-peu-près’ à l’univers de la précision”, in Etudes d’histoire de la pensée philosophique, Tel-Gallimard, p. 342.

[21] Idem, ibidem

[22] A. Koyré, “Le monde incertain”, in Introduction à la lecture de Platon, suivi de Entretiens sur Descartes, Paris, Gallimard, 1962.

[23] Gerd Bornheim, “Racionalidade e acaso”, in Adauto Novaes (org.), Rede imaginária — Televisão e democracia, São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

[24] Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, Paris, Tel-Gallimard, 1945.

[25] Marcel Conche, “Introduction”, in M. Conche, Epicure — Lettres e Maximes, Épiméthée, Paris, Presses Universitaires de France, 1987.

[26] Karl Marx, Sur la difference de la philosophie naturelle chez Democrite et chez Epicure, in Oeuvres III — Philosophic., Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1987, p. 20.

[27] Marcel Conche, Epicure — Lettres e Maximes, Épimétbée, op. cit., p. 83.

[28] Idem, ibidem.

[29] Karl Marx, Sur la difference de la philosophie naturelle chez Democrite et chez Epicure, op. cit.

[30] Marcel Conche, Epicure — Lettres e Maximes, Épiméthée, op. cit.