1992

Uma reinvenção da ética socialista

por Nelson Levy

Resumo

Diante do desfalecimento do comunismo moderno, convém a seguinte pergunta: o fracasso comunista compromete qualquer outra afirmação da ética socialista ou foi a forma comunista com seu ethos moderno e seu totalitarismo intrínseco que inviabilizou a possibilidade de reinvenção da ética socialista?

O capitalismo é o comunismo, que têm como fundamento o desejo do Absoluto, não admitem a vida humana arquitetada por uma pluralidade ética. É nesse sentido, que ambas atentam, em diferentes graus, contra a liberdade.

A ética socialista tem como finalidade a comunidade humana arquitetada para o desejo de liberdade que só pode manifestar-se pelo respeito universal à pluralidade de valores.

O pluralismo socialista, construído sobre bases de liberdade, tolerância, oportunidades iguais  e autonomia, é também uma utopia inventada para um renascimento do indivíduo, no qual ele deve ter reconhecidos seus direitos fundamentais: o direito a vida biocultural igualitária e o direito à livre expressão da vida subjetivo-criativa.

Ao contrário do comunismo moderno, a intervenção do estado pluralista socialista nas relações econômico-sociais deve permitir a existência de várias forma de propriedade e de relações de produção, se essas relações se deixarem reger pelos seguintes princípios: fundação de direito de propriedade pelo trabalho, limitação anticoncentracionista de todo tipo de riqueza material, senso de justiça distributivista, orientação das relações de trabalho e de desenvolvimento técnico-científico sob as óticas da constituição do reino do Tempo Livre e da reconciliação humana com a natureza.

A utopia pluralista socialista pressupõe um pacto entre humanos trabalhadores para além de todo culto do Trabalho como meio (e fim) de uma vida inteiramente governada pelo valor absoluto de progresso.


Acertadamente, os grandes ideólogos do modo de vida burguês, ao se colocarem sob uma ótica antropocêntrica, puderam perceber os riscos de um páthos social contidos na prática espontânea de um individualismo determinado pelo desejo absolutizado de progresso e acumulação materiais. Por isso, sobretudo entre os modernos filósofos políticos, é comum encontrar a presença subliminar de uma perspectiva “socializante”, a partir da qual tenta‑se circunscrever a prática capitalista a uma legislação universal, que permita realizá-la nos marcos da sociedade humana.

Em Hobbes mesmo, já se pode antever um sentido do social criticando possíveis manifestações incivilizadas dos indivíduos que se movem fundamentalmente pelo “desejo de progresso constante”. Limitar o simples “direito natural” ao “conforto pessoal” — capaz de colocar em risco a vida de cada um — e discipliná-lo pelo poder de um Estado de Direito, livremente convencionado pelas partes envolvidas, é, seguramente, a intenção central da teoria civil hobbesiana. E, para Hobbes, essa questão inscreve‑se ainda num leque de alternativas sem termos médios — ou a civilização pelo governo do Estado (Direito), atuando como árbitro supremo no “choque inevitável dos átomos” (indivíduos), ou a barbárie típica do mero “estado de natureza”, onde tudo se perderia numa “guerra de todos contra todos”.

Quanto a Locke e a Rousseau, ambos chegam a comprometer momentos fundacionais de suas respectivas teorias políticas com ideias práticas de amplo alcance social. Locke, por exemplo, funda o direito de propriedade no trabalho socialmente reconhecido. O que permite, em última instância, concebê-lo como um direito exclusivo dos trabalhadores. Rousseau, por seu turno, estabelece como critério da legítima soberania política a sua inspiração por uma “vontade geral” — que se constituiria como resultante de uma autocrítica (autocontrole) da vontade particular por uma perspectiva universalista.

Sem dúvida, Hobbes e seus sucessores tinham razões de sobra para temerem pelo direito à vida na prevalência de um individualismo do Absoluto Progresso realizado à deriva de um pacto social. Aliás, não custa relembrar a ascendência sociocultural que as diversas expressões do pensamento universalista-burguês exerceram: e não só pela via da Filosofia Política como também pela via da Moral, da Economia Política Clássica, da Religião (seitas protestantes) e mesmo da Arte. Influência, sem dúvida, de intenções e consequências tão civilizadoras a ponto de nos permitir estabelecer, pelo exame de experiências contrastantes, que as sociedades onde a acumulação capitalista não absorveu esse “caldo de cultura” mantiveram-se sempre a um passo do “estado de natureza”.

O problema é que a inquietação expressa nas construções ideológicas desses “clássicos” encontra, no contexto atual da crise do comunismo moderno, motivos ainda mais graves para um ressurgimento. Em nome de que valores seria possível conter o apetite do individualismo burguês, nesse momento em que ele pode deixar-se iludir pela aparência de um triunfo definitivo sobre toda ética socialista?

Ainda que com essa indagação não se esteja a sugerir a proximidade de um apocalipse, parece-me fundamental assumi-la como símbolo da perplexidade da era recém-nascida com a rápida desestruturação das realidades comunistas. Crise que, ao liberar o espírito capitalista de toda alteridade, pode levá-lo a perder o senso autocrítico (de autorrelativização) e a aventurar‑se no sentido de uma “guerra de todos contra todos”.

Decididamente aponto apenas para uma nova latência de barbárie no quadro do atual reordenamento ontoético e de suas possíveis repercussões culturais. Mas, observe-se, isso não implica postular que o quadro anterior estivesse imune a qualquer ameaça de plena desintegração do “estado de civilização”. Por paradoxal que pareça, seria uma outra ilusão pensar o contrapeso comunista como suficiente para eliminar todo risco de barbárie intrínseco à afirmação humana pelo ethos do Absoluto Progresso. Sob esse prisma, há de se convir que a realização do comunismo produziu efeitos contrários. Por um lado, ela deteve a possibilidade de barbarização do mundo pelo espírito capitalista absoluto, mas, ao mesmo tempo, manteve a humanidade sob a permanente ameaça de destruição, na própria medida em que cada uma dessas modernas variantes socioculturais exige para a sua plena realização a total ausência da outra. Assim, a convivência entre ambas resultaria sempre precária, não podendo apoiar-se senão na “força das armas”.

A rigor, se a afirmação das realidades comunistas produziu efeitos contrários, sua decomposição haveria também de reproduzi-los, se bem que num sentido inverso. Com o desfalecimento comunista, a humanidade livra-se, por ora, da possibilidade de mais uma “guerra santa”. Mas se recoloca sob o risco de uma nova “guerra suja” (intracapitalista), já que o desfalque comunista põe a cultura (e a vida) humana inteiramente à mercê do absoluto capitalismo.

Todavia, há outra questão que emerge da crise em curso. É a de definir se o fracasso do comunismo moderno compromete imediatamente qualquer outra tentativa de afirmação da ética socialista, na medida em que o próprio comunismo seria sua forma mais elevada. Ou se, ao contrário, foi a forma comunista, por seu vínculo com o ethos moderno e por seu totalitarismo intrínseco, que inviabilizou toda possibilidade de realização da ética socialista, e se trataria agora de purificá-la desta (per)versão. Eis a questão que me ocupará inicialmente, pois, convenhamos, sem esclarecê-la não se poderia justificar a pertinência de qualquer tentativa de reinvenção da ética socialista.

O COMUNISMO MODERNO – NIILISMO DA IGUALDADE E DA LIBERDADE

A forma recente do comunismo resultou de uma projeção imaginária do ethos materialista da modernidade, construída a partir da ética socialista. E, seguramente, aí reside o núcleo central de todas as suas contradições imanentes, pois essa derivação ética pressupõe uma redução da humanidade ao desejo absoluto de progresso e acumulação material-intelectiva.[1] O comunismo moderno, veremos em seguida, é um socialismo imanentemente totalitário. E, sob esse prisma, ele também se distingue da forma capitalista.

O capitalismo — tal qual o comunismo — é uma variante do culto do Absoluto Progresso. Como monismo ético é imanentemente absolutista, mas não se pode dizer que seja necessariamente totalitário.

Ocorre que o capitalismo é uma ideologia individualista do Progresso. Por um lado, ele bloqueia a pluralidade imanente do indivíduo ao valorizá-lo exclusivamente por seu compromisso com o desejo de progresso. E assim obriga-o a determinar toda a sua vida em função da acumulação material-intelectiva. É sob esse prisma que se revela o seu absolutismo intrínseco. Pois, nesse caso, ele impõe uma indiferenciação universal pela redução dos indivíduos à condição de forças produtivas para o Progresso.

Mas, por outro lado, o individualismo e o seu consequente privatismo exigem que se valorize certa diferenciação das individualidades enquanto subjetividades produtivas. Mesmo porque esse é o critério fundamental da legitimação da acumulação privada e das próprias distinções de classe. A aceitação de certo tipo de diferenciação é que permite uma abertura relativa à pluralidade. Desde que pluralidade comprimida no interior de um monismo ético; portanto, pluralidade que deve se interromper ali onde vigora uma “necessária” identidade universal com culto do Progresso.

Assim, o capitalismo pode permitir-se aceitar a pluralidade em alguns domínios do cultural, sem ser em si mesmo um culto da vida plural. Com efeito, o modo de vida capitalista impõe apenas uma alienação quase total da subjetividade criativa a uma eterna repetição pelo desejo de Progresso. Mas, por isso mesmo, algo dessa subjetividade mantém-se preservado para uma restrita expressão da pluralidade.

No capitalismo, portanto, o totalitarismo aparece como uma possibilidade inerente ao seu absolutismo, mas, ao contrário do comunismo, ele pode evitá-lo. A forma comunista não; ela é geneticamente totalitária. Requer uma alienação completa do indivíduo pelo culto simultâneo do Absoluto Progresso e da Absoluta Sociedade (igualdade). Literalmente, a ideia comunista reduz o indivíduo à dupla condição de força produtiva para o progresso e “ser genérico”. De modo que não sobra espaço para qualquer dissonância subjetiva em nenhuma esfera da vida humano‑social: seja ela ética, moral, política ou cultural — toda diferença e toda pluralidade tornam-se imediatamente ilegítimas. Ninguém pode ser mais, por exemplo, materialista na atividade científica ou no domínio econômico e religioso na vida particular. Interditada a qualquer possibilidade de diferenciação, a subjetividade comunista deve deixar-se dirigir universalmente pelo culto materialista da Modernidade. E, tal qual o próprio progresso, deve aceitar seu inteiro governo por uma Razão técnico-científica. O comunismo manifesta-se assim, diria Weber, como um absoluto desencantamento do mundo humano.

O totalitarismo inerente ao comunismo torna-o, ao mesmo tempo, a mais materialista e a mais idealista das ideologias do Progresso. Primeiro, porque reduz todos os domínios humanos a uma única determinação material. Segundo, e consequentemente, porque pretende abolir toda a pluralidade imanente à realidade humana.

Por esses motivos, entre outros, pode-se perceber que o eixo da crise atual não se encontra na ética socialista em si mesma, mas na sua “perversão” comunista.

A ética socialista tem como finalidade mais geral a constituição de uma comunidade humana arquitetada para o desejo de vida livre em igualdade. Mas ela não compromete a priori essa comunidade com o comunismo. Ao contrário, repetidas experiências têm demonstrado à exaustão que, sob a forma comunista moderna, a ideia socialista se converte num novo niilismo da igualdade e da liberdade. Pelo viés totalitário do comunismo, as aspirações universais do socialismo terminam sempre realizadas sob a face dos seus contrários. E isso se deve ao fato de que, na plena realização do Absoluto, todos os opostos se reduzem a uma Identidade final. O Tudo e o Nada, na prática, revelam-se idênticos.

Assim é que a aspiração por igualdade total concretiza-se pela indiferenciação universal; a democracia plena manifesta‑se pela ditadura do proletariado (completa ausência de pluralidade e, portanto, extinção de toda democracia e de toda política); a decomposição do Estado aparece sob a forma do Estado totalitário; a abolição das classes pela divisão em castas; a emancipação do trabalho pelo seu culto absoluto; o desaparecimento das religiões pela religião do Estado; a vida absolutamente livre como “reino final da liberdade”; e, por fim, a emancipação total da humanidade degenera na sua completa alienação a um Destino Absoluto.

A rigor, capitalismo e comunismo, por se fundarem num desejo de Absoluto (monismo ético), não podem admitir a vida humana arquitetada para uma pluralidade ética. É nesse sentido que ambos atentam, geneticamente, contra a liberdade, se bem que em graus distintos.

Eis então o entrelaçamento de questões que me ocupará nos tópicos subsequentes. Tentarei demonstrar que a aspiração socialista por liberdade só pode manifestar-se eficazmente (coerentemente) pelo respeito universal à pluralidade de valores. E que, por seu turno, o pluralismo universal daí decorrente deve realizar-se pela ideia socialista da igualdade de oportunidades (bioculturais). Noutros termos, postulo que o socialismo deve reconhecer a diferença como norma universal na “ordem dos fins (valores)” tanto quanto o pluralismo deve admitir a igualdade de oportunidades como norma universal na “ordem da necessidade”. De modo que a utopia para essa “ética da diferença na igualdade” pode ser dita, desde logo, pluralismo socialista. Dedicarei então o tópico final a uma exposição resumida sobre os possíveis paradigmas arquitetônicos dessa utopia.

PLURALIDADE ÉTICA E LIBERDADE

Pluralidade ética, convenhamos, é antes de tudo uma condição de possibilidade da faculdade humano-natural de desejar. Faculdade por meio da qual podemos viver para sentidos ou finalidades imaginárias (éticas), que aparecem a priori como um Bem para nós; e, portanto, como condição de uma Vida Boa.[2]

Assim, é porque podemos aspirar a uma Vida Boa — e não apenas à vida em si mesma —, exatamente por isso é que podemos postular a imanência da possibilidade da pluralidade no mundo humano.

Pluralidade ética, deduz-se então, é essa possibilidade intrínseca de viver para finalidades (valores, desejos) múltiplas, e portanto para vários sentidos de Vida Boa. Em outros termos, pluralidade é também a possibilidade da diferença entre as ordens de valores; entre as motivações subjetivo-imaginárias para a vida.

Mas, então, assumir a pluralidade na prática corresponde a admitir para si e para os outros um respeito universal pelas diferentes ordens de valores. E, desde que nos foi dada a faculdade de autodeterminação por nossos valores (autonomia), o pluralismo ético será sempre a norma mais adequada à expressão dessa faculdade da livre criação.

Pressente-se, desde logo, que a prática pluralista é também a mais adequada a um amplo exercício da liberdade. Se o ser livre se põe pela criação de valores, e se essa capacidade de criação é intrinsecamente múltipla — uma fonte ilimitada de diferenças —, então assumir o pluralismo como norma prática é o modo mais adequado de fundação de um agir humano sempre aberto à criatividade, à diferença, à transcendência, à história e, em suma, à liberdade.

Mas que não se confunda o pluralismo universal como princípio de fundação de um “reino da liberdade”. O pluralismo não é uma norma da liberdade realizada, do Fim da liberdade, mas o meio apropriado à sua contínua afirmação.

Deve-se, no entanto, esclarecer que o monismo é também uma possibilidade normativa intrínseca à faculdade de desejar. Certo que esta possibilidade simultânea de pluralismo e monismo parece paradoxal, mas ela se explica. Pois, enquanto a pluralidade decorre de uma livre e contínua manifestação da faculdade de desejar, a unicidade é a possibilidade de interrupção de toda liberdade criativa pela sacralização de um Valor Absoluto.

Por outro lado, apenas o pluralismo permite injetar maior transparência nas relações humanas. Sob a sua direção, cada um saberá que pode e deve assumir-se por seus próprios valores, tendo como garantia um critério universal de tolerância. Vê-se assim que um reino fundado sob uma normatividade pluralista estará sempre a requerer uma conduta universal fundada no princípio da tolerância. Enquanto o pluralismo reconhece cada humano como senhor do seu destino, o princípio da tolerância afirma na práxis humana em geral (moral e política) essa condição de cada agente como senhor.

Todavia, há de se convir também que o pluralismo e a tolerância que ele implica são os paradigmas éticos potencialmente mais capazes de assegurar uma convivência humana pacífica em bases sólidas. É por meio de ambos que se torna possível reconhecer os contrários sem julgá-los sob a ótica do antagonismo.

Ao contrário, as práticas monistas legitimam a falsidade, a hipocrisia, a corrupção e a ideologia, pois as máximas que as governam — impedidas de reconhecer a sua origem subjetiva — devem justificar-se como imposições da “força da necessidade”. Caracterizam-se sempre como práticas nas quais a face do agente desejante deve ocultar-se sob a máscara de um Terceiro, permitindo a cada indivíduo dizer-se ausente de seus próprios atos e isentar-se de qualquer responsabilidade. São, portanto, práticas nas quais a humanidade aparece por sua conduta mais infantil, imatura e irresponsável.

A ótica monista é, por outro lado, o paradigma ético de uma humanidade que pretende se realizar pervertidamente na condição de escrava de um Destino. Todo reino nele fundado será então, necessariamente, concebido e estruturado como um estado para a eternização de uma determinada ordem de valores, segundo a crença de si mesma como uma absoluta fatalidade; como uma absoluta incontornabilidade.

Eis por que, enquanto o pluralismo implica a tolerância, o monismo manifesta-se sempre pela intolerância e pelo ressentimento, e, por isso, estará sempre a um passo da violência. A rigor, o culto do Único não tolera valores opostos — quando muito aceita conviver com eles precariamente e sempre sob um estado permanente de “guerra fria”.

PLURALISMO E SOCIALISMO – CONDIÇÕES PARA SUA UNIFICAÇÃO

Aparentemente, o pluralismo induz a pensá-lo como uma norma de conduta pela qual se romperiam os elos sociais. Mas quem se deixa ficar nessa aparência é a ótica monista. No fundo, é o próprio monismo que, ao enxergar toda unidade (universalidade) sob o prisma do Uno enquanto Único, não lhe resta atribuir ao pluralismo senão uma “natureza” (a)social.

No entanto, a realização de um pluralismo universal não pode prescindir de um forte estreitamento dos laços humano‑sociais. Ocorre que a pluralidade em si mesma é inconcebível à margem do social. A pluralidade só pode se reconhecer em sociedade, pois fora dela a diferença entre os valores permanece invisível. Na multiplicidade da vida social é que o múltiplo axiológico se faz sentir.

Mas, vejamos: se, por um lado, o pluralismo universal requer uma elevação da sociabilidade, por outro lado, o ideal socialista define-se como uma forma elevada do desejo de vida humano-social em igualdade. Então o socialismo pode perfeitamente servir de meio mais adequado ao estreitamento dos laços sociais que o pluralismo universal requer. Não há qualquer impedimento ontoético que desclassifique a priori a possibilidade de combiná-los.

Todavia, resta dizer algo sobre essa exigência socialista do pluralismo universal. É impossível a realização deste último sem que cada membro da sociedade possa manifestar-se livremente e em igualdade de condições na qualidade de agente desejante. E para que essa manifestação seja realmente livre e universal torna-se imperativo que cada um — na condição de membro da sociedade — receba dela, desde o berço, oportunidades iguais às de todos no sentido da sua realização enquanto ser biocultural.

A ausência da norma igualitarista, como princípio fundacional da “ordem da necessidade”, faria inevitavelmente degenerar a realização do pluralismo universal. É que a condição de agente desejante será sempre tão mais livre quanto a condição de ser biocultural estiver mais satisfatoriamente realizada em cada um. Só assim é possível enriquecer o poder criativo da faculdade de imaginação e, ao mesmo tempo, liberá-lo significativamente das preocupações com as carências humano-animais.

Sem a norma igualitarista, configurar-se-ia uma discriminação entre os agentes desejantes — maior liberdade criativa de uns em relação à de outros — que propiciaria a instauração de um novo “reino monista”. Essa possibilidade se esclarece de modo luminoso pelo exame das relações pais-filhos. Enquanto estes últimos não puderem autogerir-se bioculturalmente, encontrar‑se-ão ainda, na maioria dos casos, atrelados aos valores do Pai. Valores esses que, por isso mesmo, funcionarão como uma ordem monista no interior das relações familiares. Só quando a prole alcança independência biocultural é que se eleva à condição de agente desejante autônomo diante do Pai, e, por extensão, diante da própria sociedade.

Temos, portanto, razões suficientes para decidir em prol de uma irmanação entre o pluralismo universal e o ideal socialista, tendo em vista a constituição de um reino aberto à ampla e contínua manifestação da liberdade. Acrescente-se apenas que, no pluralismo socialista, cabe ao primeiro a condição de fundamento ético, em torno do qual devem girar as regras socialistas.

Já se pode então perceber a enorme fronteira que estará a separar essa reinvenção do socialismo para uma ética pluralista daquela outra constituída para uma ética do Absoluto Progresso — expressa universalmente pela ideologia comunista.

No caso em questão, o socialismo já não poderá mais ser concebido pelo viés da “identidade realizada de essência e existência humanas” (comunismo). Aqui a ideia socialista aparece imediatamente como uma norma para o pluralismo ético, por isso mesmo não pode pretender realizar toda a Identidade humana.

Em outros termos, o igualitarismo que a ideia socialista implica deve aqui se relativizar para o pluralismo (e vice-versa). Não vale, portanto, como um Absoluto — dada sua condição ontoética de “igualitarismo da diferença”.

Mas onde enraizar a sociedade pluralista socialista, já que ela se pretende emancipada dos valores absolutos? Onde encontrar o elo da unidade social? De fato, toda sociedade pressupõe a sua fundação por princípios (uni)ficadores, porém o Uno não é necessariamente idêntico ao Único (Valor Absoluto). Por isso, a sociedade pluralista socialista pretende tornar-se Una pela unificação de duas ordens humanas inerentemente antinômicas, sem desrespeitar essa antinomia que as distingue — portanto, sem permitir a subsunção da ordem ética (dos fins) na “ordem da necessidade”, como pressupõem as sociedades estruturadas por um Valor Absoluto. Trata-se, pois, de uma arquitetura discursiva do social projetada sob uma perspectiva que contempla a (uni)dualidade (Morin) própria da espécie Homo — constituída, como se sabe, pela antinomia interativa da “ordem da necessidade” e da “ordem dos fins” (ética).

Quer dizer, pluralismo e socialismo estarão presentes em cada uma das ordens que compõem a (uni)dualidade de origem. E assim a “ordem da necessidade” será estruturada pelos princípios socialistas, precavendo-se de que eles não se fechem inteiramente à diferença. Enquanto a ordem ético-cultural estará a se orientar pela norma do pluralismo universal, evitando-se o relaxamento dos critérios socialistas. Teremos então que, sem perder de vista sua antinomia, as duas ordens encontrarão finalmente seu ponto de unidade pela mútua relativização dos princípios opostos escolhidos para regê-las: diferença na igualdade.

Creio que se pode antever outros pressupostos com os quais a ética socialista terá de operar para adaptar-se à ordem pluralista. Farei isso em seguida. Antes convém dizer que, por um lado, é possível pensar esses pressupostos como componentes de um projeto socialista. Ressalve-se, no entanto, que toda arquitetura da sociedade pluralista socialista deve limitar-se exclusivamente à composição específica de um plano de socialismo. Pois a ordem pluralista não se deixa definir por este ou por aquele fim, mas simplesmente pelo reconhecimento universal da pluralidade de valores. E isso significa que a ordem pluralista só se legitima tautologicamente pelo repetido respeito à pluralidade. Quer dizer, não lhe interessam os fins em si mesmos, apenas a garantia universal à sua realização. Então, se não há outra finalidade imanente ao pluralismo para além dessa garantia, também não há por que comprometê-lo com qualquer teleologia. Eis por que todo construtivismo (todo projeto) só se torna aqui admissível para a estruturação da “ordem da necessidade” pelo princípio do “igualitarismo da diferença”.

Em suma, mediante o pacto pluralista se institucionaliza uma permanente abertura da ordem ética (autonomia) pelo reconhecimento universal das mais diferentes ordens de valores. Mas imediatamente deve-se acrescentar que essa abertura encontra seu limite no fechamento relativo da “ordem da necessidade” pelo pacto socialista. Nota-se, assim, que o pacto pluralista deverá afirmar-se como um a priori de validade universal, mas na prática será experimentado sob formas ético-culturais diferenciadas e não definíveis a priori. Só o pacto socialista deverá ser vivenciado por meio de leis comuns (civis) estabelecidas a priori pela maioria. E justamente por serem leis comuns é que elas se tornam matéria legítima de um projeto comum, cuja composição deve permanecer sempre acessível às contribuições criativas de todos.

É sob essa perspectiva que me proponho a sugerir, em seguida, os possíveis supostos da constituição da forma socialista para o pluralismo ético.

PRESSUPOSTOS ARQUITETÔNICOS DA UTOPIA PLURALISTA SOCIALISTA: UMA CONTRIBUIÇÃO

O indivíduo reconhecido 
como fonte primordial da liberdade

O pluralismo socialista é também uma proposta de constituição de um novo modo humano de sentir e viver (ethos) segundo a crença de que a liberdade repousa na autonomia relativa do poder legislador da faculdade de desejar.

Essa autonomia é, sem dúvida, o momento crucial de nossa liberdade. Trata-se de uma propriedade humano-natural que garante a própria ideia de humanidade. Pois apenas por seu intermédio podemos nos sobrepor (transcender) à simples animalidade que nos determina do exterior. Se bem que a possibilidade da autonomia decorra não só da faculdade de desejar (imaginação), mas também do caráter relativamente moldável e indeterminado de nossa natureza composta. Caso contrário, não seria viável sobredeterminar nossa ordem biocultural para a realização das finalidades que nos seduzem.

A rigor, tudo o que é estritamente humano, tudo o que transcende a simples animalidade é regido pelas leis convencionais (nomos), que se criam e se impõem mediante o exercício da autonomia.

Mas convenhamos com os nominalistas; o Homo é uma unidade genética que só encontra assento concreto no e pelo indivíduo. De modo que a autonomia própria da humanidade realiza-se apenas pela expressão individual de si mesma. Eis por que o indivíduo — lugar concreto da autonomia — é a fonte primordial da liberdade. Cabe-nos assim aceitar o imperativo de sacralização do indivíduo em nome de uma afirmação universal da liberdade.

Logo, o pluralismo socialista é também uma utopia inventada para um novo e mais pleno renascimento do indivíduo (leia-se também autonomia e humanidade), pelo qual ele deve ser reinvestido no gozo irrestrito dos direitos inerentes à sua personalidade: o direito à vida biocultural igualitária e o direito à livre expressão da vida subjetivo-criativa. Esses direitos constituem assim os princípios concretos de unificação da ordem universal pluralista socialista.

Sem o reconhecimento desses direitos fundamentais do indivíduo, a pluralidade típica do mundo humano termina reprimida. Pois ela nasce justamente da livre expressão das subjetividades criativas. São elas que, carregando a possibilidade da diferença em si mesmas, põem essa diferença no mundo humano, marcando-o com o “estigma alvissareiro” da pluralidade. Mas não só. A elas também cabe a responsabilidade mais longínqua de toda transformação e de toda novidade, e é, portanto, por meio delas que a historicidade potencial do Homo se atualiza. Pois, a rigor, toda inovação histórica germina por meio de incontáveis manifestações criativas de singularidades desviantes até aparecer, de repente, sob a forma sintética de uma Nova Ideia (ethos).

Mas há também que considerar os limites da própria autonomia individual. Convenhamos, mesmo um indivíduo solitário experimenta esse isolamento porque a sociedade o garante (Marx). E, no limite, um indivíduo criado inteiramente à margem de uma sociedade qualquer jamais se constituiria como um espécime humano.

O indivíduo se define pela unidade de si mesmo como um ser bio(socio)cultural e subjetivo-criativo (ético). Logo, o indivíduo humano é uma unidade permanente de autonomia, na sua capacidade de autodeterminar-se por leis subjetivas, e de alienação, por sua sociabilidade imanente, que o obriga a deixar-se governar por leis universais (subjetivas). Não há, portanto, autonomia capaz de nos emancipar definitivamente da alienação, nem alienação (sociedade) capaz de liquidar de vez com a nossa autonomia.

Ao admitir como inextinguíveis os pares autonomia-alienação e indivíduo-sociedade, a utopia pluralista pretende apenas equacionar essas relações incontornáveis de modo a ampliar o espaço da autonomia-indivíduo, e, portanto, restringir a esfera da alienação, sem precisar, por isso, enfraquecer os laços sociais.

Princípios do pluralismo socialista 
para a estruturação da vida produtiva: 
pluralidade e tempo livre

Outra condição fundamental à constituição do pluralismo socialista — além do reconhecimento universal da possibilidade da diferença de valores — é a de que cada existência individual possa também se afirmar sob múltiplas dimensões. Portanto, esse deve ser o paradigma estruturante da vida produtiva.

Ora, para que cada indivíduo se exercite o mais livremente possível segundo o critério da vida plural — além da formação de cada um como ser biocultural —, é indispensável que o tempo gasto individualmente com a vida produtiva possa ser reduzido drasticamente. Caso contrário, não haverá tempo disponível para a experiência em outras dimensões (contemplação, jogos, festas, artesanato, arte, prazeres do corpo etc.). Daí se extrai que a vida produtiva sob o pluralismo socialista deve se estruturar segundo o princípio universal do Tempo Livre.

Assim, mesmo que a vida produtiva apareça como um dos centros do pacto socialista, ela não estará mais no centro da vida individual — porque não será mais um domínio do Absoluto. Ao contrário da modernidade, em que a Acumulação e o Trabalho determinam as condições do tempo livre, a utopia pluralista socialista imagina uma inversão pela qual o culto do Tempo Livre venha agora a determinar as condições do trabalho e da acumulação.

Verdade que o comunismo moderno aspira também a uma vida para o tempo livre. O próprio Marx, sabemos, é um dos seus cultores. Em O capital, chega a estabelecer a diminuição da jornada de trabalho como condição de modo socialista de existência. No entanto, a ótica comunista moderna deve sempre colocar o ideal do tempo livre sob o interesse primordial do Trabalho e do Progresso. E há de se convir que toda práxis comunista só tem feito revelar que os ditames da “acumulação comunista” acabam por prevalecer sobre os do tempo livre.

O caráter relativo da crítica pluralista socialista 
à ordem ético-cultural moderna

A cultura moderna dotou a humanidade com um patrimônio cognitivo capaz de favorecer, sob vários prismas, a realização do pluralismo socialista. Mas isso depende de sua relativização para o novo ethos que se pretende afirmar.

Trabalhemos com o exemplo do moderno legado técnico‑científico. Inquestionavelmente, trata-se de uma herança constituída, no fundamental, para a potencialização humano-produtiva tendo em vista o ideal da absoluta acumulação material-intelectiva. Sabemos de antemão que esse ideal não se coloca limites — ao contrário, trata-se de um desejo de progresso infinito, e a qualquer preço — seja ele o da guerra e/ou o da destruição da Natureza (reduzida que foi à condição de matéria-prima).

Portanto, fomentado pelo desejo absoluto de progresso, esse patrimônio técnico-científico jamais poderá servir imediatamente a uma perspectiva universal da vida produtiva para o Tempo Livre. É preciso antes colocá-lo sub judice.

Entretanto, tudo indica que ele incorpora em si mesmo um avanço cognitivo capaz de ser reconvertido para uma drástica redução da jornada do trabalho.

Os comunistas modernos estão certos quando atribuem a esse desenvolvimento técnico-científico uma condição emancipadora da humanidade diante do trabalho. Pensam que, por intermédio da potencialização técnica do trabalho, o ideal “clássico” de tempo livre tornar-se-ia acessível já não só a um punhado de senhores, porém à humanidade como um todo. Mas enganam-se gravemente quando prognosticam que tal desenvolvimento propiciaria, por si só e a um só tempo, a emancipação humana do trabalho, da exploração de classe, bem como a emergência de um estado de perfeição moral.

Com efeito, sob a hegemonia do ethos para o qual foi imediatamente criada, a potencialização técnico-científica do trabalho escraviza muito mais do que emancipa porque se torna finalidade primeira e última da humanidade — seu moto-contínuo deve ser tão infinito quanto o do próprio progresso. Quer dizer, ao se afirmar para nós na condição de um Fim em si mesmo, decreta imediatamente o retorno da escravidão humana a ele mesmo como um Absoluto. Pior, põe a humanidade sob o domínio de um Absoluto que não encontra dentro de si mesmo qualquer tipo de limite autocrítico. Qual o limite ético-moral do Absoluto Progresso senão o da sua cega e infinita reprodução ampliada? Qual o limite do Absoluto desenvolvimento técnico‑científico, quando se sabe que é “próprio da ideologia tecnoburocrática pensar que a técnica pode resolver, ilimitadamente, todos os problemas que ela própria suscita” (Habermas)? Qual o limite da acumulação material sob o capitalismo e o comunismo? Quem pode saber? Ninguém. Pois o estabelecimento do limite (ético-moral e técnico) foi entregue por eles à natureza em si mesma — a Ela cabe agora dizer quando basta. Ocorre que todo limite na natureza em si mesma é estritamente Físico (jamais ético ou técnico). De modo que o esgotamento desse limite equivale à própria Morte. Assim, quando a natureza em si mesma anunciasse o esgotamento do seu limite, toda a Vida conhecida já estaria seriamente ameaçada. E então o Absoluto Progresso teria se realizado, simultaneamente, como um Tudo e um Nada de progresso — como fim da natureza em si mesma pela sua absoluta profanação técnico-científica.

Ao contrário, quando a utopia pluralista socialista estabelece o Tempo Livre como um princípio universal da vida produtiva, ela fixa um limite ético-moral tanto para a acumulação quanto para a potencialização técnico-científica do trabalho. Aliás, um limite que altera o próprio sentido arquitetônico da técnica anterior: não se trata mais de construí-la segundo o princípio da intensificação-exploração da força de trabalho, porém conforme o princípio de sua preservação física e mental.

Portanto, não cabe ao “desenvolvimento das forças produtivas” determinar o momento propício à afirmação humana pelo valor do Tempo Livre, como pensaram Marx e outros. Não. Cabe à própria comunidade constituída pela valorização do Tempo Livre relativizar para ele as condições e os limites do “desenvolvimento das forças produtivas” — pois este último não pode encontrar sozinho um limite para si. Decididamente, a vida produtiva determinada fundamentalmente pelo critério da ilimitada acumulação e do ilimitado “desenvolvimento das forças produtivas” é uma invenção da humanidade moderna, jamais uma fatalidade antropológica (ou uma lei universal do movimento histórico).

Mas vejamos uma outra fundamental contribuição que o moderno patrimônio técnico-científico pode oferecer à realização da utopia pluralista socialista.

Lembremo-nos que o pluralismo socialista pretende afirmar, na práxis social, o reconhecimento universal do direito de cada um se formar como um ser biocultural. Ora, esse direito não pode se realizar enquanto a maioria dos humanos continuar submetida à condição da fome e da incultura. Portanto, trata-se aqui de um problema incontornável, cuja resolução, admitamos, depende também de um reaproveitamento do atual legado técnico-científico. Eis por que, embora por motivos distintos, aqui também se faz sentir a exigência de um certo “desenvolvimento das forças produtivas”. E é assim — relativizada — que essa herança cultural da modernidade poderá estar positivamente representada nos tempos do pluralismo socialista.

 

O regime econômico-jurídico da propriedade 
e as relações de produção no pluralismo socialista

O que enuncia de modo mais universal a ética socialista, já vimos, é o desejo de vida livre em igualdade. É o culto desse valor, portanto, que define a práxis socialista, jamais o regime econômico-jurídico da propriedade.

A rigor, o estabelecimento de um tal regime depende de uma correlação da ideia socialista com outros valores no contexto de uma ordem universal. E, desde que essa ordem esteja regida por um monismo ético, todos os valores complementares, no seu interior, devem absolutizar-se. De modo que, ao se constituir para o desejo absolutizado de Progresso, não coube à ideia socialista senão afirmar-se mediante um regime único de propriedade — comunista — que pressupunha uma absoluta socialização dos meios de produção. E, como essa é também a única fronteira a separar eticamente o comunismo moderno do capitalismo, criou-se a ilusão (e uma tradição em torno dela) de que a ética socialista encontra-se a priori comprometida com um único regime de propriedade, e de que, no fundamental, ele próprio (socialismo) se define por esse regime.

No entanto, um socialismo para a pluralidade não pode comprometer-se com um regime único da propriedade e das relações de produção. É preciso fundá-lo também pelo múltiplo, de modo que a ideia socialista possa realizar-se sob várias formas, apenas impregnando-as com o princípio do “igualitarismo da diferença”. E essa abertura para a multiplicidade corresponderia também ao reconhecimento universal de uma dupla autonomia dos agentes econômico-sociais: a de criar formas de relações de produção e a de guiar-se moralmente nessas criações pelo princípio igualitarista.

Nesse caso, seria possível a convivência de vários regimes de propriedade e de relações de produção — desde os coletivistas até os individualistas. Sendo que naquelas atividades julgadas fundamentais à afirmação universal do igualitarismo poderia então predominar a forma da propriedade social dos meios de produção (estruturada à margem do poder de Estado, como veremos adiante).

Verdade que a partir daí surgiriam certas distinções econômico-sociais, bem como o próprio mercado. Mas ambos poderiam ser controlados, por um lado, pela conduta moralmente igualitarista dos agentes, e, por outro, por uma legislação civil segundo três critérios fundamentais.

Primeiro, que nenhuma forma de relação de produção possa violar o princípio universal do Tempo Livre e o direito de cada um se reproduzir em nível individual e familiar como um ser biocultural.

Segundo, que a única fonte legítima do direito de propriedade seja o trabalho socialmente reconhecido. De modo que todos os outros meios sejam considerados imorais e postos à margem da lei (inclusive o direito absoluto de herança).

Terceiro, que o direito ilimitado de propriedade e o desejo concentracionista que o impulsiona não encontrem mais qualquer amparo moral e legal para se expressarem.

O PLURALISMO SOCIALISTA E O PODER POLÍTICO

Antes mesmo de instituir qualquer Poder universal, uma determinada multidão de indivíduos se unifica, progressivamente, como uma comunidade axiológica, mediante identificação espontânea, e relativamente arbitrária, com certos princípios ético-morais. Princípios cuja realização universal passará a exigir, mais adiante, a constituição de um tipo específico de Poder. Pois, sem ele, seria impossível fundar uma sociedade para aquela comunidade de origem.

O que se pergunta agora é justamente sobre a forma, os limites e a estrutura que deveria assumir um Poder constituído para a realização da utopia pluralista socialista. Mas, antecipadamente, deve-se sublinhar que a abordagem dessa questão far-se-á nos limites de um exercício da imaginação, guiado por uma linha de coerência ético-prática com os princípios do pluralismo socialista. Portanto, qualquer resultado dessa abordagem já se reconhece a priori como simples produto imaginário destinado a adequar a arquitetura do Poder para aqueles princípios. Ou seja, cada resultado não se pretenderá mais do que uma forma imaginária sempre aberta a novas e mais adequadas invenções.

a forma estado: porquê

Comecemos pelas características da forma Estado. O Estado — uma forma específica do Poder — distingue-se como um corpo político destacado da sociedade (civil). Corpo em cujas mãos deve se concentrar todo exercício legítimo do poder político. Investido, assim, do monopólio da Lei e da Força, o Estado funciona como um corpo artificial (autônomo) que dirige universalmente o funcionamento do próprio corpo orgânico (social) pelo qual ele se constitui.

Admitamos então que o Estado só faria sentido se inventado para o melhor funcionamento de um corpo orgânico que, ao instituí-lo, aceita colocar-se sob o seu governo universal. Ora, dizer que o Estado só se justifica como um meio para o melhor funcionamento do corpo orgânico constituinte significa admiti‑lo, implicitamente, como uma forma política boa para a realização dos princípios ético-morais que regem aquele corpo enquanto uma comunidade axiológica originária.

Ilustremos a proposição acima com o exemplo do Estado moderno, fundado, como se sabe, no ethos do Absoluto Progresso. Um ethos cuja realização compromete o fundamental da existência individual e social com a vida produtiva, de tal modo que o tempo universal passa a girar em torno do tempo da Produção. Mas, se todos os membros da sociedade dedicassem integralmente seu tempo ativo ao processo diretamente produtivo, uma série de serviços fundamentais à vida social (educação, saúde e tantos outros) não poderia ser oferecida. E o mesmo ocorreria com a política, pois, se todos estivessem incorporados à produção direta, o exercício da Política não caberia a ninguém.[3]

Portanto, só há aqui duas alternativas. Ou a sociedade civil se aventura na senda suicida do “estado de natureza”, fundado no poder natural de cada indivíduo; ou então admite que a sua condição de existência, enquanto corpo dedicado à vida produtiva, depende rigorosamente da constituição de outro corpo de cidadãos destacado de si mesmo para a atribuição específica de atuar politicamente em seu nome.

Assim, o Estado revela-se, por um lado, a melhor forma política para a realização da vida para o Progresso, e, por outro, como viram genialmente os contratualistas, a própria condição de existência da sociedade moderna. Literalmente, sem a fundação do “Estado civil” essa sociedade degeneraria num “estado de natureza”.

No entanto, a despeito de toda abertura do espaço político — que a modernidade instaura —, o ato de fundação do Estado promove uma nova cisão da cidadania, pois os papéis do soberano e do súdito passam a ser representados por dois corpos distintos que se especializam ao estilo de uma rígida divisão técnica do trabalho. Criando-se, dessa maneira, uma nova forma da alienação política. Temos então que, por um lado, os momentos de fundação e reprodução do poder político são atos de soberania da sociedade civil, mas, por outro lado, o exercício desse poder constituído pela forma do Estado é inteiramente monopolizado por ele. Donde, a sua fundação equivale, simultaneamente, a uma afirmação e imediata alienação da soberania do corpo civil, pois a partir desse seu ato soberano o poder se transfere — pelo instituto da representação — para uma minoria de profissionais da política. Quer dizer, “o poder emana do povo, mas é exercido em seu nome”, como versam as modernas constituições.

À primeira vista pode parecer estranho reconhecer a correlação imanente entre a forma Estado do Poder e a identificação humana com o Absoluto Progresso, e, ao mesmo tempo, apresentar, ainda que de um modo geral, essa mesma forma como também adequada à realização política da vida para o Tempo Livre.

Ocorre que o Estado, ao absorver os encargos da administração universal da sociedade, permite à maioria liberar-se do tempo para a Política. Não importa se ele foi criado e legitimado sob a perspectiva de um desejo universal de emancipação do tempo para a Política, tendo em vista a possibilidade de plena dedicação à vida produtiva. O Estado pode, sem dúvida, economizar tempo para todos — o que a humanidade fará com essa conquista é um problema que só a ela compete. Pode gastá-lo como quiser.

Mas, afinal, não fica imediatamente claro por que uma sociedade já constituída pelo princípio universal do Tempo Livre precisa ainda liberar seus membros da Política. Todo o tempo reconquistado pela relativização da vida produtiva não seria suficiente para o desdobramento do cotidiano humano em várias atividades? Ora, e se parte desse tempo, por exemplo, fosse utilizada pelos indivíduos para a Política? Não resultaria daí uma sociedade inteiramente politizada, ao mesmo tempo habilitada a recuperar o poder outrora alienado ao Estado e a autogovernar-se pelo regime autonomista da democracia direta?

Há inúmeros problemas inerentes à realização dessa alternativa que justificam a sua completa rejeição. E a esses problemas se acrescentam outros de caráter contextual, principalmente aqueles que derivam da complexidade adquirida pelas sociedades humanas a partir da modernidade. Situações criadas pelo advento da “sociedade de massas” — como, por exemplo, a assustadora extensão da densidade demográfica — inviabilizariam qualquer possibilidade de implantação de uma forma de Poder, que, afinal, exige manter todo o povo em regime de assembleia permanente. Mesmo na hipótese de uma radical descentralização geopolítica, seria pouco provável um retorno generalizado ao microcosmo comunitário, que é o lugar apropriado à prática das democracias diretas. Outras dificuldades contextuais ainda poderiam ser alinhadas, mas voltemos à análise imanente dessa questão.

O que ocorreria com os cidadãos da sociedade para o Tempo Livre se esta não dispusesse de mecanismos de representação universal? Para aqueles com vocação para a Política tanto melhor, pois, sem a intermediação do Estado, recuperariam a condição de cidadãos integrais. No entanto, os demais estariam diante de uma alternativa perversa: ou o completo esquecimento da Política ou o seu exercício por força de uma imposição social.

No entanto, alguém poderia alegar que a paixão política é própria da humanidade, e que, emancipada de toda alienação e dominação, desabrocharia espontaneamente em cada um. Ocorre que mesmo a condição elevada da Política não é suficiente para despertar a paixão da maioria dos humanos. É uma ilusão fartamente registrada pela história pensar que a maioria não se vincula regularmente à atividade política apenas porque até hoje não se liberou da dominação de classe. Sem dúvida, uma grande ilusão, pois não existem paixões humano-universais — compartilhadas por todos ao mesmo tempo e para sempre. Além do que, se existisse algo no gênero, já não pertenceria mais ao domínio das paixões, seria uma reles compulsão biocultural, e, portanto, não precisaria da democracia direta para manifestar-se.

O fato é que, enquanto uns exigem uma participação política, outros não conseguem sequer se aproximar dela, preferindo elevar-se à condição humana por vias distintas. A rigor, a maioria enquanto tal só se manifesta politicamente em última instância; e não apenas porque estaria sob o jugo de uma tirania qualquer, mas sobretudo porque ou não se deixa seduzir por suas peculiaridades ou simplesmente não se inclina por transformá-la numa atividade regular. Situações como a da antiga democracia ateniense, em que, ao que tudo indica, apenas um décimo dos cidadãos participava regularmente das grandes assembleias, ou ainda outra como o progressivo esvaziamento dos sovietes no período pós-revolucionário, se não comprovam muita coisa, ao menos reclamam prudência. Decididamente, o regime autonomista só funciona plenamente, enquanto melhor forma da democracia, nas situações em que uma determinada maioria já esteja diretamente comprometida com um movimento coletivo qualquer — seja ele do porte de uma simples greve ou de um episódio como a Comuna de Paris. Mesmo assim, findo o movimento em si mesmo — independentemente do seu resultado —, a maioria reflui à vida privada. E, então, como ficamos?

Voltemos ao exemplo de um cidadão da nossa sociedade para o Tempo Livre. Continuemos a admitir que ele, como muitos outros, não descubra dentro de si uma vocação que justifique desviar parte do seu tempo livre para estabelecer um vínculo regular com a Política. Desde já pode-se prever o que aconteceria. Apenas os vocacionados para a atividade política teriam participação efetiva nas deliberações, enquanto o nosso ilustre cidadão permaneceria marginalizado, justamente por não encontrar a seu dispor um mecanismo de representação que lhe permitisse estar presente nas decisões, ainda que indiretamente. Esse é, enfim, o problema crucial do regime autonomista. Como não pode exigir a participação de todos os cidadãos, termina por marginalizar a maioria e criar, assim, uma situação em que uma elite de ativistas pode definir o destino político de toda a sociedade. Com efeito, trata-se de um regime que, embora abra universalmente o espaço da Política, fecha-o, em seguida, por não oferecer qualquer via indireta de acesso ao centro de decisões, do que pode resultar a sua completa degeneração numa aristocracia de ativistas políticos.

Certo que a própria forma Estado e o instituto da representação política, que lhe é inerente, não garantem, por si só, a preservação de um regime amplamente democrático. Além de implicar uma alienação dos poderes individuais, a representação, por isso mesmo, pode também corromper-se numa tirania qualquer. Todavia, além de garantir uma abertura universal do espaço político — não obstante por vias indiretas —, deixa-se ainda controlar tanto pela crítica em geral (que implica a cassação dos representantes) quanto pela instituição de “contrapoderes” (tais como o referendum popular, as consultas plebiscitárias, e outros mais), capazes de recolocar, parcialmente, a maioria no centro das decisões. De modo que seria possível aprimorar a democracia representativa impregnando-a com alguns elementos típicos do regime autonomista.

De volta ainda à nossa sociedade para o Tempo Livre, teríamos agora que os cidadãos com vocação política estariam mais disponíveis para exercê-la diretamente, ao passo que os demais poderiam utilizar seu tempo livre como bem entendessem, sem estarem, por isso, condenados à completa mudez política.

Em suma, examinado sob a perspectiva da realização universal do Tempo Livre, o Estado — projetado na forma de uma democracia representativa de novo tipo — revela-se, parece-me, adequado à estruturação do Poder pluralista socialista. Tanto por ser um instrumento eficaz de liberação do tempo de ocupação humana com a “ordem da necessidade”, como também por permitir um equacionamento mais democrático das relações políticas.

OS LIMITES DO ESTADO SOCIALISTA

Pelo estabelecimento dos limites do Estado pluralista socialista começaremos a perceber de modo mais nítido as profundas diferenças que o separam de todas as versões experimentadas sob o abrigo da forma moderna do Poder.

Vale lembrar que, quando o Poder — não importa a forma — se constitui para um Absoluto ético-cultural, ele já nasce investido do direito de legislar universalmente em quase todos os domínios da vida humana (quando não em todos: totalitarismo). Daí, o campo da abrangência das leis civis se amplia ao máximo (ou quase), com o que, automaticamente, amplia-se o próprio alcance do poder político.

Ao contrário, ao se fundar para o pluralismo socialista, o Estado já nascerá enquadrado num encurtamento do domínio político sobre as múltiplas atividades humanas. Vejamos por quê.

Sabemos que o pacto em questão situa o seu centro ontoético no desejo de vida humana sob um regime de pluralidade. Por outro lado, esse regime implica uma comunidade axiológica pluralista, ou seja, uma irmanação universal a despeito das diferenças ético-culturais.

Esqueçamos, por enquanto, que a dita comunidade pretende constituir-se, mais adiante, numa sociedade. Vamos examiná‑la abstratamente.

Perguntemos antes em que condição estará presente cada indivíduo na dinâmica específica dessa comunidade organicamente diferenciada (pluralista)? Ora, como membro dessa ordem cada um deve se reconhecer previamente na condição de um soberano entre iguais. De modo que cada um se obriga a respeitar a todos pelo predicado de soberano que ele mesmo se atribui. Temos então que, no interior dessa ordem, deve prevalecer um regime de autonomia (ético-cultural, não política) pelo qual cada um autogoverna-se por suas leis subjetivas, ao mesmo tempo que atribui a todos esse mesmo direito. Percebe-se assim que a comunidade pluralista funda-se num direito universal e inalienável do indivíduo em poder se expressar livremente como um ser subjetivo-criativo. Direito esse que os indivíduos, como legisladores universais, se atribuem a si próprios, e que se esgota em si mesmo. Ou seja, não requer outra lei para além daquela que obriga todos a respeitá-lo sem a necessidade da ação de qualquer poder coativo exterior. E, nesse caso, nenhuma outra lei poderá mais encontrar assento na comunidade pluralista para além daquela que a institui universalmente como uma ordem da soberania (autonomia) individual.

Ora, se o direito à livre expressão ético-cultural funda a comunidade pluralista, deve também presidir sua conversão em sociedade civil e a própria fundação do Estado. Então recapitulemos: dado que os indivíduos pluralistas caracterizam-se pela pretensão de manter-se sob o regime de autonomia na esfera ético-cultural, no momento em que pretendam também unificar-se por intermédio de um “contrato social”, deverão — por dever moral — estatuir como princípio (e limite) geral da sociedade civil e do Estado a permanente preservação de uma ordem da soberania (autonomia) individual. Ordem que, por se pretender a priori inalienável, funda, com o Contrato, as formas sociais consideradas, universalmente, como as mais adequadas à sua própria realização. Mas imediatamente situa essas formas num corpo nitidamente demarcado de si mesma, de modo a não permitir qualquer subsunção da ordem da autonomia na ordem sociopolítica. Assim, nenhuma das instituições nascidas desse Contrato poderá, por direito, impor qualquer ordem ético-cultural. Pois, na ordem da autonomia, todos os valores devem ser igualmente válidos, ainda que, como veremos, haja limites humano-universais para eles. Mas, ressalte-se também, válidos não porque valerão para todos, e sim porque serão reconhecidos como valores em si mesmos desejáveis a despeito de qualquer discordância. Em outros termos, não há, para além do pluralismo, outros valores universais, no interior da ordem da autonomia. Aqui, cada um respeitará, por si só, a convenção pluralista, conduzindo-se segundo o dever moral de garantir a convivência harmônica entre todas as diferenças ético-culturais que se lhe apresentem — sejam elas de modos inteiros de vida, de simples costumes, de crenças e cultos religiosos, de preferências de todo tipo: sexuais, artísticas etc.

Ao se delimitar o campo da autonomia, que o pluralismo quer para si, constitui-se, simultaneamente, um limite para a abrangência das leis universais (civis). De modo que o Estado nascido do pacto pluralista deve surgir com um poder político relativizado pelo pacto que o gerou. Mas este último também se relativizará pela fundação do Estado. Senão vejamos.

Por um lado, o pacto pluralista funda o Poder pelo direito de livre expressão ético-cultural. Portanto, uma das finalidades da soberania de Estado será, inevitavelmente, a de oferecer garantias ao exercício daquele direito. E isso significa uma relativização da ordem da autonomia porque a torna permeável à ação do Estado, mesmo que apenas para preservá-la. De modo que toda vez que o pacto pluralista for rompido, o direito ao pluralismo possa ser reposto pelo poder coativo da Lei (civil) ou, em última instância, pelo poder da Espada.

Resta definir em que condições estará caracterizada uma violação da ordem da autonomia a ponto de exigir a sua reposição pelo concurso do poder de Estado. Primeiramente, é claro, sempre que o direito de livre expressão subjetivo-criativo esteja sofrendo um constrangimento qualquer. Mas também sempre que qualquer prática fundada num desejo de Morte atentar contra a integridade física de um único indivíduo ou contra a integridade geral da ordem pluralista e do seu Estado.

Ocorre que o Estado em questão estará fundado num pacto pluralista que, como vimos, requer a constituição da sociedade civil pela ideia socialista, por reconhecer nesta última o melhor meio para a sua realização. Sabemos também que o pacto socialista deve, nesse caso, fundar-se no reconhecimento universal do direito de cada indivíduo receber da sociedade oportunidades iguais para a sua formação como ser biocultural. Assim revela-se a segunda finalidade da soberania de Estado: regulamentar a ordem social (da necessidade) conforme o direito de igualdade de oportunidades. E é exatamente pela realização dessa finalidade que a conduta individual tornar-se-á matéria inteiramente sujeita à legislação civil.

Em suma, pelo pacto pluralista, o Estado funciona estritamente como um árbitro detentor do monopólio da Força. Pelo pacto socialista, que é um princípio da arquitetura social, o Estado deve, portanto, estar universalmente investido das funções (e dos poderes) legislativa, executiva e judiciária.

CRITÉRIOS DA POLÍTICA SOB O PLURALISMO SOCIALISTA

Concepção geral da política

Do exposto no tópico anterior infere-se que na ordem da autonomia reinará o pluralismo, enquanto na ordem da necessidade deve reinar um valor comum (universal) — a ideia socialista.

Mas não seria essa adesão universal ao socialismo a prova de um retorno ao Absoluto? Certamente que não. Apesar de universal, a ética socialista jamais poderia adquirir aqui a dimensão absolutista de um Valor Uno e Único, capaz de por si só definir a inteira humanidade. Ao contrário, a humanidade define-se aqui pela identificação universal com o ethos pluralista socialista — onde o primeiro termo estabelece a finalidade universal da unificação humana, e o segundo a forma social mais adequada à sua realização. Se, a partir de um pacto social, todos devem, por um lado, identificar-se com o ideal socialista de igualdade, por outro lado, todos poderão diferenciar-se por valores múltiplos. Mas não só. A própria acepção do valor da igualdade encontra-se relativizada, na medida em que não implica uma absoluta identidade ética, nem moral, nem intelectual, nem econômica, e muito menos física. Tudo o que se pede é uma valorização universal da igualdade de oportunidades para a livre e universal expressão da pluralidade (liberdade) humana. De modo que só rejeitariam o pacto socialista justamente aqueles que preferissem viver apenas para um Valor Absoluto (seja ele capitalista ou comunista).

A política do Estado pluralista define-se então como o instrumento universal da normalização das atividades que compõem a ordem da necessidade, segundo o critério do “igualitarismo da diferença”. Portanto, afastada da ordem ético-cultural, a política de Estado, com a exceção do pacto socialista, já não poderá pontificar quais os melhores valores para a vida prática de cada um. Quando muito lhe caberá, nesse caso, definir certas normas de civilidade para a conduta individual nos espaços e atividades públicos.

O princípio da vontade geral

Se a diferença deve encontrar-se na “ordem da necessidade”, então ela também estará presente na atividade política. Assim, esta última jamais estará emancipada dos conflitos de interesse e de opinião. Conflitos por diferenças que se expressarão na própria composição orgânica de todo poder legislativo. Não se estranhe, portanto, se, em cada representante, a ótica do legislador universal encontrar-se perpassada pela ótica do particular. Mesmo porque os interesses particulares, desde que criticados pelo sentido igualitarista, podem flexibilizar-se de modo a permitir o entendimento com base num interesse comum.

Como enfrentar, pela ótica pluralista socialista, essas relações ontoéticas entre igualdade e diferença, universal e singular, interesse comum e interesse particular, sempre presentes em todos os domínios da atividade humana? A resposta parece-me já ter sido dada pelo precioso instituto rousseauniano da vontade geral. Veremos que ela se encaixa perfeitamente como critério fundamental da política pluralista socialista, no seu momento mais decisivo — o ato legislativo. Conforme a define Rousseau, “quando se retiram […] dessas mesmas vontades (particulares), os a-mais e os a-menos que nela se destroem mutuamente, resta como soma das diferenças a vontade geral” (Do contrato social, Livro II, cap. III).

A vontade geral implica um consenso obtido pelo entendimento entre as vontades particulares, em que cada qual, sem deixar de pensar em si mesmo (e nos seus), pensa também nos outros, até que seja possível atingir um interesse comum e legislar a partir dele.

Porém, note-se, o consenso, a que deve chegar o entendimento em nome da vontade geral, é um sentido ou interesse comum; não é um interesse de todos (soma), não é o de uns quantos nem de ninguém. Já não há mais quem se possa reconhecer plenamente nele senão uma determinada comunidade.

Todavia, é preciso ressalvar que o consenso obtido por entendimento não equivale, necessariamente, à unanimidade no momento das decisões. Muitas vezes, o consenso universal só será obtido junto a uma maioria. De modo que o dissenso persistirá, quase sempre, como um consenso de uma ou várias minorias, que não se sentirão contempladas pelo sentido da maioria. Então o que fazer, se a unanimidade em torno de um único consenso não puder ser alcançada? Ora, estabelecido um prazo para o entendimento, não haverá outra alternativa senão decidir pelo voto da maioria. Pois o tempo da Política é preciso, rígido, impositivo, fugaz, periodizado; enquanto o tempo da unanimidade é ilimitável a priori. Impossível fixar um tempo para o advento da unanimidade, quando se espera que ela resulte da discussão democrática. Portanto, há que decidir entre a unanimidade e a Política.

Relembre-se que a eficácia da vontade geral depende fundamentalmente da conduta de cada legislador — pois quanto mais ela se abra ao entendimento, e, portanto, ao outro, tanto mais próxima da universalidade estará o sentido comum e a lei pela qual ele vier a se expressar. No entanto, dada essa dependência da vontade geral aos critérios subjetivos de cada legislador, seria prudente cercar, concretamente, todo poder legislativo com algumas garantias a mais, que a protejam contra possíveis desvirtuamentos particularistas. Uma garantia eficaz, entre outras, talvez fosse dada pelo estabelecimento de uma dualidade de critérios para a escolha dos membros dos corpos legislativos. Dentro de um sistema unicameral, esses corpos poderiam ser preenchidos por duas categorias de representantes eleitos sob óticas distintas. A primeira dessas categorias — a parte majoritária — seria formada por indivíduos que, segundo a ótica de cada eleitor, pudessem representar melhor seus interesses e opiniões específicas. E a outra — minoritária — escolhida entre cidadãos insignes, de espírito universalista, que, pelo seu maior afastamento dos conflitos entre particulares, pudessem atuar mais firmemente pelo sentido universal do entendimento

Representação política, indivíduo e partido

A concepção de política já exposta permite-nos deduzir os paradigmas gerais da representação política. Resumidamente, o pacto de representação deve se firmar segundo uma hierarquia normativa fundada em dois critérios complementares: a coerência de cada um com seus interesses políticos aliada à disposição efetiva de conduzir-se pelo sentido da vontade geral.

Porém, é preciso que o critério de coerência prático-política no respeito à vontade geral não se confunda com o chamado mandato imperativo. É que essa forma de mandato padece de uma unilateralidade quase tacanha. Por um lado ele consegue uma garantia a priori, obrigando o mandatário a manter-se formalmente aprisionado às posições e interesses que referenciaram sua escolha. Mas, por outro lado, esse aprisionamento retira dele toda a flexibilidade (tolerância) necessária à afirmação do método do entendimento na atividade legislativa. Trata-se, portanto, de uma forma de mandato que normaliza a coerência prático-política do representante em detrimento do devido respeito à vontade geral, pois, pela voz de “representante” por mandato imperativo, só a particularidade pode se expressar.

Portanto, o mandato universal é também para o pluralismo socialista a melhor forma da representação política. No entanto, não se pode negar, a transferência de poder implícita no mandato universal é de extrema gravidade, pois permite ao representante romper com os princípios de suas próprias bases políticas. O que recomenda, como vimos, aprimorá-lo com medidas corretivas o mais eficientes possível.

Agora, resta esclarecer algo de fundamental sobre a relação do indivíduo enquanto cidadão e a Política. Relembre-se, de início, que a sociedade e o Estado, no caso em questão, devem nascer de um pacto assumido entre indivíduos pluralistas socialistas. Pois bem, essa associação de indivíduos livres — assumida enquanto tal — deve ser mantida para além do ato fundador, pois tudo o que surge a partir daí — sociedade, política, Estado — são projeções do pacto originário constituído por aqueles indivíduos. E isso significa que, implícito no “contrato social”, encontra-se o reconhecimento de uma soberania individual que afirma cada um, imediatamente, como um legislador universal. De modo que esse reconhecimento deve ser mantido também como um princípio universal da Política sob o pluralismo socialista, caso contrário o próprio Contrato se romperia. E, por aí, podem-se inferir duas consequências de considerável importância. Primeiramente, que o reconhecimento da soberania individual revela um traço de expressiva demarcação com a forma moderna da democracia representativa, em que o indivíduo só encontra acesso à Política pela via de instâncias mediadoras como os partidos. Mas, por outro lado, revela um traço de significativa proximidade com a forma da democracia direta (autonomista), que também se funda no reconhecimento universal da soberania individual como modo de acesso à atividade política institucional.

Enfim, no momento em que a Política deve reconhecer cada cidadão como um aspirante legítimo à condição de legislador universal, o partido não pode mais se estabelecer institucionalmente como um tertius entre a sociedade civil e o Estado. Embora, com isso, não se queira dizer que toda a organização partidária deva ser posta, a priori, à margem da lei, nem mesmo que não possam, de repente, surgir partidos de novo tipo. O que se afirma, precisamente, é que, sob o pluralismo socialista, os partidos modernos já estariam previamente destituídos de uma de suas funções primordiais.

Por outro lado, também não se quer postular com as proposições acima que, aos interesses e opiniões particulares, esteja interditada qualquer forma coletiva de expressão. A rigor, tanto a identidade de interesses particulares no interior de certas categorias econômico-sociais quanto interesses regionais e municipais tenderão a unificar os indivíduos para a melhor defesa de suas perspectivas e escolha de seus representantes. E essa unificação pode tomar formas as mais variadas, tais como: associações corporativas e territoriais, simples assembleias de indivíduos, e tantas outras a serem criadas pela imaginação coletiva.

O estado e a vida produtiva

Ao contrário do comunismo moderno, a intervenção do Estado pluralista socialista nas relações econômico-sociais deve permitir, como já vimos, a existência de várias formas de propriedade e de relações de produção. Isso, na condição de essas formas se deixarem reger pelos princípios gerais que recapitularei: o da fundação do direito de propriedade pelo trabalho; o da limitação anticoncentracionista de todo tipo de riqueza material, e do correlato senso de justiça distributivista; o da orientação das relações de trabalho e de desenvolvimento técnico-científico sob as óticas da constituição do reino do Tempo Livre e da reconciliação humana com a natureza circundante. De modo que agora pode-se acrescentar que esses são também os princípios mais objetivos de orientação da vontade geral na esfera da vida produtiva.

Seria um despropósito qualquer tentativa de esmiuçar o modo pelo qual os princípios acima se aplicariam, na forma da lei, aos diversos momentos da atividade econômico-social. No entanto, é preciso adiantar algo sobre o necessário destacamento do Estado diante dessas atividades, tendo em vista governá-las do exterior como um Corpo que deve concentrar estritamente os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Quero dizer com isso que, nas mãos do Estado, não deve concentrar-se qualquer poder econômico para além daquele de matéria estritamente legislativa. Ou seja, ao Estado confere-se o direito de legislar universalmente sobre as relações econômico-sociais, sem que, por isso, esteja autorizado a transformar-se, ele próprio, num agente econômico.

Temos então que o direito de propriedade dos meios de produção deve encontrar-se interditado ao Estado. Nem sequer na hipótese da constituição de empreendimentos fundados na propriedade social lhe caberá uma função de associado. Com efeito, empreendimentos desse tipo — em áreas consideradas vitais à preservação do igualitarismo universal —, desde que apoiados no desejo da maioria, podem constituir-se a partir de impostos especiais. Seriam, assim, empreendimentos públicos sem serem estatais. Empresas comunitárias independentes do Estado, e dirigidas por um conselho deliberativo e um corpo administrativo eleitos pelos que nelas trabalharem, mas sempre sujeitos a uma Auditoria nomeada pelos cidadãos associados. De modo que, ao Estado, nesse caso, caberia recolher inicialmente os fundos (impostos) necessários a esses empreendimentos e administrá-los até o início das suas atividades.

Portanto, nem a terra deve encontrar-se sob o regime de propriedade estatal, se bem que, de acordo com a quantidade de terras devolutas disponíveis, possa ser distribuída progressivamente aos cidadãos em função de planos de desenvolvimento, ou do crescimento demográfico, ou ainda pelas exigências de uma reforma agrária.

Enfim, serão dados à propriedade estatal apenas os bens necessários ao seu próprio funcionamento, e os espaços do território nacional estabelecidos como de utilidade pública ou de preservação ecológica. De modo que, se a fundação do pluralismo socialista tiver de recorrer a decretos de pulverização da propriedade (anticoncentracionistas), caberá também ao Estado devolver, imediatamente, todos os empreendimentos por ele controlados, colocando-os sob o regime social da propriedade ou canalizando-os para sociedades cooperativas de trabalhadores.

O estado e a educação

Certos domínios fundamentais como os da Saúde, Habitação e Transporte podem ainda ser estruturados segundo um regime de cooperação entre a iniciativa privada e a pública, sob estrito controle desta última.

No entanto, a Educação deve ser inteiramente assumida pelo poder público, não se admitindo nessa área qualquer participação da iniciativa privada, já que essa não poderia conduzi-la sob um rígido critério de igualdade de oportunidades.

Cabe ainda ao poder público manter a Educação, em todos os níveis, sob o regime de gratuidade e de acesso livre e universal. Pois é sobretudo pelo acesso à Educação que cada indivíduo terá garantido o direito à sua formação como ser biocultural.

A Educação, mais do que todas as atividades, será aquela em que cada um dos termos do binômio igualdade-diferença estará presente de modo o menos relativo possível: igualdade plena pelo acesso universal às instituições de ensino; e diferença plena pelo direito de expressão das múltiplas correntes culturais. Educação pelo espírito universalista-pluralista, de maneira que cada instituição de ensino possa se realizar como escola de vida pluralista pela convivência harmônica de todas as correntes culturais; escola em que os mestres possam irmanar-se sem renunciar às suas concepções, e as novas gerações aprendam a conviver e a respeitar a pluralidade e a igualdade; escola enfim para a formação de uma humanidade plural, criativa e fraterna.

Mas exatamente porque o poder público deve ser o guardião universal do pluralismo não lhe cabe orientar a Educação em qualquer sentido para além de um conjunto de diretrizes básicas formuladas mediante procedimentos democráticos por consultas universais aos corpos docente e discente. E, pelos mesmos motivos, não lhe caberá também administrar qualquer unidade de ensino, ao contrário, todas elas deverão manter-se sob regime de autonomia administrativa. De modo que ao poder público caberá apenas o controle da utilização das verbas, da qualidade de ensino e do respeito às normas do igualitarismo pluralista.

Quadro sinótico da estrutura 
do estado pluralista socialista

A soberania de Estado deriva de uma relativa alienação da soberania popular, que o nomeia e o constitui seu órgão político supremo, investindo-o assim, simultaneamente, do direito de legislar e de obrigar todos ao cumprimento de suas leis. Mas essa alienação da soberania popular ao Estado relativiza-se pelo próprio limite da Constituição; pelo direito universal de crítica; pelo controle popular dos seus atos; pela exigência, em certos casos, de referendum popular ou de consultas plebiscitárias, e ainda outros que possam vir a ser criados.

A soberania de Estado, em todas as instâncias, deve concentrar-se no Poder Legislativo. De modo que o Executivo constituir-se-á como simples prolongamento do corpo legislativo. Por isso, deve o Executivo atuar descentralizadamente, por meio de câmaras setoriais, que receberão do Legislativo as dotações necessárias ao cumprimento de sua missão, e de acordo com projetos de desenvolvimento estruturais ou conjunturais.

Também as Forças Armadas estarão sob o controle direto do Legislativo. Controle esse que, em caso de decisões vitais para a segurança nacional, deve ser complementado pelo instituto do referendum popular. Por outro lado, a direção das Forças Armadas deve orientar-se fundamentalmente pelo princípio da legítima defesa diante de agressões violentas contra as instituições estabelecidas e contra a soberania nacional. Em suma, as Forças Armadas deverão manter-se como uma força para a Paz universal, e sempre comprometidas com o respeito incondicional ao direito de autodeterminação dos povos.

A rigor, apenas o Poder Judiciário deve constituir-se independentemente de todos os outros poderes do Estado. De modo que os juízes do Ministério Público serão escolhidos por concurso público, sob o controle direto do próprio Judiciário, e efetivados por referendum popular.

Acrescente-se que o Estado pluralista socialista, em nível nacional, estruturar-se-á como uma Federação de Províncias. Donde, no Poder Legislativo, estarão representadas todas as unidades federadas, segundo determinados critérios de proporcionalidade. A Federação será regida pelo princípio da unidade nacional, ressalvadas determinadas esferas de autonomia dos seus membros, inclusive, em casos previstos pela Constituição, o próprio direito de secessão.

Finalmente, cada Província será igualmente uma Federação de Municípios, aplicando-se aqui também o princípio da unidade provincial, respeitada uma determinada esfera de autonomia municipal.

Conclusão

Mas, afinal, a quem pode interessar a afirmação universal de uma utopia pluralista socialista? Seria ela ao menos realizável?

A composição de utopias coloca-se sempre diante de tais dilemas. Melhor ainda, incertezas. Esse é o preço a pagar pela liberdade da construção utópica assumida enquanto tal. Não há qualquer argumento de autoridade capaz de sustentá-la: nenhum fundamento “absolutamente” científico e nenhuma “revelação” dos desígnios divinos (teofania). Portanto, é impossível garanti‑la, metafisicamente, como um produto previsível do “desenvolvimento das forças produtivas” ou da “Lógica do Espírito”.

A utopia assumida não pode oferecer maiores garantias do que a própria habilidade discursiva em arquitetar o mundo humano para um determinado ideal ético. A utopia, ao se oferecer à aceitação coletiva, como simples imagem de um mundo novo e bom, não pode fazer-se acompanhar de qualquer garantia quanto à sua realização. Por isso, também não pode definir seus possíveis adeptos como missionários de um Destino predeterminado.

Mesmo assim, no discurso utópico, a imaginação não opera tão livremente quanto num romance. Ela é uma visão construída para um futuro humano que se pretende realizável. Não é um simples conto de uma aventura humana qualquer, cuja realidade seja indiferente ao seu autor.

Por outro lado, a utopia é uma construção imaginária que estabelece os delineamentos de um mundo ainda ideal — situado para além da realidade dada — por meio de uma retórica em que a eloquência verbal se exerce mediante um confronto entre valores por seus efeitos prováveis sobre a existência humana em geral. A retórica, como um modo do discurso utópico, pressupõe, assim, uma avaliação pela negação de alguns valores e afirmação de outros.

Porém, acrescente-se, a avaliação que orienta essa retórica já se encontra para além da simples espontaneidade valorativa — na qual a imaginação transita cegamente entre valores. A avaliação já atua aqui orientada por uma sabedoria prática que, por seu turno, incorpora elementos dos saberes empírico e científico. Embora os incorpore não para utilizá-los como princípios fundacionais, mas tão somente como critérios da prudência.

Pois bem, a utopia pluralista socialista nasce, a rigor, de uma avaliação dos efeitos perversos que as modernas alternativas socioculturais — tanto a capitalista quanto a comunista — produzem sobre a condição e a vida humanas. E aí reside a sua atualidade — estritamente no seu ponto de partida. É atual apenas por sua inserção crítica na realidade humana imediatamente dada. Seu tempo não é um “a priori da História” (ou da “Evolução”). De modo que ela não se pretende representação fundada numa “descoberta” dos “novos tempos”, mas simples proposta criativa de um devir humano desejável e realizável pela ação coletiva. É assim uma visão de futuro irredutível ao presente histórico, portanto uma representação imaginária da vida humana tão “u-tópica” quanto “a-temporal”. Formada simplesmente por um amálgama em que recriações de valores cultivados em outros ou em todos os tempos se combinam com novas criações. Amálgama, como disse, dirigido pela sabedoria prática no sentido de uma síntese imaginária na qual estão presentes contribuições das ciências humanas (antropológicas, históricas, psicológicas etc.), bem como da filosofia prática em geral (ética-moral-política) e da simples experiência acumulada.

Por tudo isso, a utopia pluralista socialista não requer nem a Classe nem o Herói como “sujeitos” de sua realização prática. Ela não pretende ser, nem poderia, “consciência de um sujeito histórica e socialmente determinável”, mas simples sugestão ideal ao agente desejante que existe em cada indivíduo contemporâneo.

Enfim, a utopia pluralista socialista, não obstante sua atualidade (resposta crítico-criativa aos tempos atuais), não permite sua justificação mediante uma ideologia do “tempo necessário”. E, como acabamos de ver, é também irredutível a qualquer ideologia de Classe.

A utopia pluralista socialista não busca, pois, adesões a partir de um posicionamento de classe. Ao contrário, estabelece, na ruptura com os condicionamentos atuais de classe, um dos pré-requisitos de sua aceitação. O pluralismo socialista pretende encontrar justamente no indivíduo desviante e criativo o seu organismo vivo, porque o situa como fonte primeira da liberdade, das transcendências ontoéticas, e, portanto, das transformações históricas.

Assim, pretende-se que o “reino pluralista socialista” só pode ser posto por uma comunidade ativa dos indivíduos que o aceitem como uma forma desejável de Vida Boa, em contraposição a outras formas atuais ou passadas.

Decididamente, a classe não pode ser um trampolim para a transcendência axiológica e histórica porque ela própria encontra-se condicionada pelos valores do seu tempo. Dominante ou oprimida, é sempre uma expressão econômico-social da alienação humana a uma determinada ordem hierárquica de valores. A classe é sempre uma categoria imanente às estruturas montadas para a realização de um determinado modo de sentir e viver (ethos).

A rigor, a burguesia e a classe operária moderna se constituem pela progressiva adesão humana ao desejo absolutizado de progresso e acumulação material-intelectiva. São classes ao mesmo tempo opostas e complementares. Opostas por interesses econômico-sociais específicos, mas complementares por seu interesse comum em realizar a vida humana pelo culto do Absoluto Progresso. Portanto, descendem de um fundamento ético comum, são filhas do “espírito materialista da modernidade”, mediante o qual a humanidade deve reduzir-se à sua realização pelo binômio acumulação-vida produtiva.

O fato de a oposição operário-burguesa permitir uma bifurcação ético-cultural criou a ilusão de que o trabalhador moderno enquanto tal podia ser portador de um futuro de novo tipo. No entanto, as ideologias capitalista e comunista refletem a mesma irmanação ética que une burgueses e operários. Assim, enquanto toda perspectiva de futuro estiver girando em torno de uma afirmação universal da condição burguesa ou da condição operária — o futuro, ele mesmo, se perderá no circuito fechado do “eterno retorno”. Rigorosamente, só se pode encontrar uma alternativa realmente inovadora para além da representação humana pelo tipo burguês ou pelo tipo operário, pois, enquanto ambos dominarem a cena humana, o cenário da modernidade continuará montado. Literalmente, sob a ótica do trabalhador moderno não é possível alcançar a utopia pluralista socialista como um futuro desejável.

No entanto, não se encontra aqui implícita qualquer incompatibilidade imanente dessa utopia com a condição trabalhadora da humanidade assumida universalmente a partir da época moderna. Sem dúvida, pelo trabalho afirma-se também a condição humana, pois não há outro meio moral de garantir a sobrevivência pessoal.

Vista sob esse prisma, a utopia pluralista socialista pressupõe, visceralmente, um pacto entre humanos trabalhadores, só que um pacto para além de todo culto do Trabalho como meio (e fim) de uma vida inteiramente governada pelo Valor Absoluto do Progresso.

Assim, a utopia pluralista socialista, sem se pretender uma nova ideologia dos trabalhadores modernos, é, em si mesma, um projeto de futuro seguramente desejável por todos os trabalhadores, desde que dispostos a se unificarem para uma vida em que o Trabalho terá de se relativizar para o Tempo Livre.

Mas mesmo esse possível pacto “Antitrabalho” e entre trabalhadores não esgota todos os domínios contidos no projeto pluralista socialista. Pois se trata de um projeto irredutível à simples expressão laborativa dos humanos. O que se decidirá a partir dela é uma transformação ético-cultural da humanidade como um todo. De modo que, pelo pacto do Tempo Livre, apenas se criarão as condições de realização humano-universal segundo o desejo de associação para uma vida plural sob o signo da liberdade, da igualdade de oportunidades e da fraternidade.

[1] Num ensaio anterior postulei que o progresso material implica o intelectivo. Embora se trate aqui de uma redução do conhecimento em geral à condição fundamental de meio de aprimoramento individual e social para a acumulação material. Tanto a imaginação quanto o conhecimento encontram‑se basicamente condicionados para a ideologia do Progresso. Ver N. Levy, “A trama ideológica do desejo de absoluto e os imaginários ocidentais do fim da história”, Revista Teoria & Política, no 15, São Paulo, Ed. Brasil-Debates, 1990.

[2] Uso a expressão Vida Boa para expressar um critério de adesão subjetiva de um agente qualquer a uma determinada ordem hierárquica de valores e, por conseguinte, a um determinado modo humano de vida. Ver N. Levy, Desejo… O lugar da liberdade (Um ensaio ético-político), São Paulo, Ed. Brasil-Debates, 1991.

[3] G. Lebrun examina essa questão acertadamente no seu O que é o poder, São Paulo, Brasiliense, 1981.

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