2002

Valores deslizantes: esboço de um ensaio sobre técnica e poder

por Luiz Alberto Oliveira

Resumo

A imagem do mundo da sociedade atual, que vive a chamada “crise da pós-modernidade”, se caracteriza pela aceleração e pela capacidade inédita de manipular quantidades enormes de informação. Com a Internet, o global passou a habitar cada local, o tempo perdeu sua consistência, sistemas tradicionais de valores foram postos à prova. E as perspectivas para os próximos 50 anos (com o aquecimento global e o aumento da população e das desigualdades) são preocupantes, sendo imprevisíveis os caminhos que a presente civilização humana poderá seguir. Paradoxalmente, sem as novas tecnologias não poderemos enfrentar a complexidade do mundo em que a ciência nos lançou, com as descobertas da micro e da macrofísica, com o aparecimento de máquinas “inteligentes” e um número cada vez maior de “infobjetos” no cotidiano. O mundo das nanotecnologias invade o domínio da vida (especialmente com o projeto Genoma) e o próprio trabalho humano tende a se tornar dispensável ou inconveniente. Diluída a individualidade na massa e internalizada a tecnologia em próteses de movimento e de cognição, cabe perguntar o que significará no futuro ser humano. Nessa perspectiva de desumanização da técnica, o maior adversário da democracia-liberdade é a desigualdade, a submissão da humanidade a um fascismo “cientificista” uniformizador. Assim, o grande desafio será encontrar sistemas de valores que não mais remetam à lógica de acumulação e de escassez do capital, mas a uma lógica da inclusão, da circulação e da abundância.


INTRODUÇÃO

Os mitólogos costumam chamar de imagens de mundo certas estruturas simbólicas pelas quais, em todas as épocas, as diferentes sociedades humanas fundamentaram, tanto coletiva quanto individualmente, a experiência do existir.[1] Ao longo da história essas constelações de ideias foram geradas quer pelas tradições étnicas, locais, de cada povo, quer pelos grandes sistemas religiosos. No Ocidente, contudo, desde os últimos três séculos uma outra prática de pensamento veio se acrescentar a estes modos tradicionais na função de elaborar as bases de nossas experiências concretas de vida: a ciência. Com efeito, a partir da revolução científica do Renascimento as ciências naturais passaram a contribuir de modo cada vez mais decisivo para a formulação das categorias que a cultura ocidental empregará para compreender a realidade e agir sobre ela.[2]

Mas os saberes científicos têm uma característica inescapável: os enunciados que produzem são necessariamente provisórios, estão sempre sujeitos à superação e à renovação. Outros exercícios do espírito humano, como a cogitação filosófica, a inspiração poética ou a exaltação mística poderão talvez aspirar a pronunciar verdades últimas, as ciências só podem pretender formular verdades transitórias, sempre inacabadas. Ernesto Sábato assinala com precisão que todas as vezes que se pretendeu elevar um enunciado científico à condição de dogma, de verdade final e cabal, um pouco mais à frente a própria continuidade da aplicação do método científico invariavelmente acabou por demonstrar que tal dogma não passava senão… de um equívoco.[3] Não há exemplo melhor deste tipo de superstição que o do estatuto da noção de raça no nazismo.

Costumamos pensar que a tragédia nazista foi como que um surto de bestialidade, de irracionalidade animalesca, que acometeu a cultura altamente evoluída que nos haviam legado Goethe e Beethoven. Bem menos tranquilizadora, contudo, é a constatação de que o nazismo não foi isento de nacionalidade — ainda que perversamente exercida. Encarado como um sistema de pensamento, o nazismo se fundava em um pressuposto espantoso: o de que a nação alemã tinha um corpo, um corpo físico, concreto, e esse corpo era o povo alemão. Um universal corporificado… A pertença ao povo-corpo germânico era determinada pelo conceito de raça, definido a partir de um certo conjunto de caracteres morfológicos (tez da pele, formação óssea etc.) e subjetivos (valor heróico, abnegação ao dever etc). Ora, a saúde de um corpo vivo requer cuidados: prevenções, prescrições, profilaxias. Um corpo deformado, por exemplo, é certamente um corpo enfraquecido; é necessário, por conseguinte, corrigir as causas de tal deformidade, seja ela de ordem física ou psíquica, e remover fatores que a estimulem. Promova-se então a esterilização compulsória dos chamados doentes mentais, pois que interiormente deformados,[4] e proíba-se a contemplação da arte moderna — ou seja, ponham-se para fora os “artistas do disforme”, Picasso, Braque, Dalí… A recém-descoberta coleção privada de pinturas de Hitler — que ele pessoalmente escolhia nas galerias — compõe-se em sua maior parte de obras retratando jovens campônios vigorosos e roliças donzelas louçãs, todas num estilo pseudo greco-romano, todas inacreditavelmente ruins.[5]

Do mesmo modo, um corpo vivo pode sofrer o ataque de germes ou parasitas, transmissores de moléstias debilitantes. Empreenda-se portanto um amplo programa de “saúde pública”, sistemático, abrangente, burocratizado, numa palavra, racionalmente organizado, para erradicar os potenciais agentes contaminadores — os membros de raças “degeneradas” ou “inferiores” (eslavos, judeus, ciganos, homossexuais, comunistas…) — que conspurcariam a higidez do corpo-povo ariano. Para tanto, adapte-se a tecnologia já bem testada de desratização dos celeiros por meio de gases venenosos, empregando-a em larga escala, sob a devida supervisão de médicos “sanitaristas” (45% dos médicos alemães nesse período eram membros do Partido Nazista),[6] para realizar a eliminação em massa de seres humanos.

A ironia, a colossal, dolorosa e absurda ironia, é que, a partir dos avanços da genética molecular, a noção de raça deixou de ter sentido para a biologia. Pois 98% do material genético humano é compartilhado por nossos primos chimpanzés; 90% pelos porcos, 50% pelas amebas… No nível molecular básico, as espécies vivas exibem tal unidade ou isonomia que as distinções raciais, meramente intra-específicas, se tornam muito pouco significativas. Ainda mais importante, as distinções genéticas entre dois indivíduos de uma mesma etnia (desde, é claro, que não se trate de gêmeos idênticos) são muito mais marcantes que as distinções entre indivíduos de etnias diferentes. Ou seja, no quadro da vida os traços “raciais” são irrelevantes… No entanto, o horror quase inconcebível do Holocausto — o extermínio organizado, racionalmente planejado, sistematicamente executado, de grandes massas de seres humanos — fez-se real quando o conceito de raça foi entronizado como dogma final e absoluto.

Os enunciados científicos são inexoravelmente voláteis. Bem ao contrário de uma deficiência, porém, essa impermanência inevitável, essa perpétua readaptação, é que assegura às ciências seu caráter evolutivo — e sua extraordinária capacidade de descrever e transformar a natureza. Em consequência, uma vez que a ciência veio a adquirir o papel de co-geradora das imagens de mundo que a sociedade atual opera, somos continuamente convidados — na verdade, impelidos, forçados — a reassentar em novas e novas bases nosso entendimento sobre os estados-de-coisas e, sobretudo, nossos sistemas de valores. Pois na contemporaneidade vivemos uma crise contínua, um espasmo interminável: em plena paradoxali-dade, portanto. Este não é, não pode ser, um acontecimento indolor, a mídia do recente final de milênio nomeou esta conjuntura de ruptura incessante de crise da pós-modernidade.[7]

CONTEMPORANEIDADE E CRISE

Nossa época seria marcada pela aceleração.[8] De fato, somos hoje capazes de movimentar corpos com maior rapidez, em maior quantidade e para mais lugares do que em qualquer outro período histórico. Contudo, distribuir um maior volume de bens (ou pessoas) requer apenas um incremento da energia gasta nos processos de transporte, não constitui uma transformação direta da natureza do espaço. Os antigos já detinham o poder de deslocar grandes massas, como é evidente em construções como a Muralha da China. Mas a capacidade, absolutamente sem precedentes, de manipular quantidades maciças de informação, conectando sem qualquer retardo apreciável regiões geograficamente distantes, representa uma mudança profunda na natureza do tempo: instala, em escala planetária., uma simultaneidade autenticamente — porque instantaneamente— global. Com efeito, a aceleração consiste, antes de mais nada, numa operação temporal: a intensificação de ritmos, culturais, individuais e mesmo orgânicos, encarnada na interposição de interfaces integradoras que produzem sem cessar novas relações e conexões e ultrapassam os limites que dantes demarcavam a interioridade e a exterioridade dos agentes sociais — cidadãos, comunidades, massas. O suporte empírico do fenômeno de integração desterritorializante que procuramos apreender sob o termo globalização, por exemplo, seria justamente o complexo planetário de redes telemáticas, operando em integral sincronia. A comunicação sem retardo torna contemporâneas todas as partes do mundo — o que (curiosamente) chamamos de tempo real.[9] A instauração desse domínio comum no tempo, correspondendo a um novo contexto de relações mundialmente compartilhado, tem como um dos sintomas mais nítidos uma complexa operação de reestruturação das noções recíprocas de todo e parte e de local e global. Simultaneidade torna-se equivalente a coincidência: somos, virtualmente, testemunhas de acontecimentos que sucedem em qualquer quadrante do globo; as distâncias geográficas são contraídas, as fronteiras políticas são ultrapassadas, as tradições étnicas e culturais se mesclam, a humanidade se vê e se comunica. Espacialmente colapsado, o global passa a habitar cada local; não há melhor exemplo de tal sincronicidade transregional que a amplificação exponencial — custo baixíssimo de produção e difusão de conhecimentos — da imprensa de Gutenberg: a Internet.

Esta ágora no agora teve origem nos avanços incessantes e cumulativos da tecnociência no último século — em particular a revolução digital, o surgimento e difusão de próteses de inteligência, artefatos dotados de larga capacidade de processamento de informação, que vieram suplementar as próteses de movimento e de sensibilidade geradas por eras tecnológicas anteriores.[10] Esses avanços multiplicaram, em quantidade e variedade, os fluxos de objetos técnicos que atravessam o corpo das sociedades atuais, e induziram a constituição de um inédito campo de mediação generalizada, em cujo centro está instalada a própria tecnologia.[11] A generalização da mediação técnica acarreta transformações profundas nos modos de operação da maior parte das práticas produtivas atuais, orientando os eixos da inovação econômica, a tecnociência regula a produção concreta de bens e artefatos através da contração dos ritmos dos sistemas de organização da produção. A educação, por exemplo, tornou-se o insumo decisivo para habilitar a participação dos indivíduos nos sistemas produtivos crescentemente tecnificados, que requerem o manejo de campos conceituais sofisticados, veiculados por uma variedade de linguagens técnicas e procedimentos especializados. “Automação” significa hoje não apenas a substituição de músculos por mecanismos como fonte das transformações materiais realizadas pelo trabalho, como também a manipulação de regras complexas envolvendo um vasto repertório simbólico.

Por outro lado, cada vez mais a infotecnificação está criando e reforçando marcas de distinção entre os participantes do jogo produtivo e social, incrementando a aparição de novas formas de exclusão. Ademais das formas “tradicionais” de alienação, as assimetrias de saber apontam para um novo problema da distribuição de poder: possuidores (de saber técnico) versus despossuídos tecnicamente, culturalmente e, portanto, materialmente. Contudo, a principal consequência desse processo de tecnificação cada vez mais abrangente é a de pôr à prova a solidez dos sistemas tradicionais de valores, obrigando-os a um regime de reajustes tão incessante quanto indeterminado.[12] Diluem-se progressivamente as antinomias e as fronteiras que balizavam a modernidade: entre natureza e cultura, ente e artefato, sujeito e objeto, humano e inumano. Já não se trata apenas da morte de Deus, defunto desde um século (ou não?), mas da morte do Homem — pelo menos, do Homo universalis parido pelo Iluminismo e hoje ainda instalado em instituições e constituições pelo mundo afora, mas modernas, demasiado modernas… “Estado”, “Nação”, “Cidadão”, são paradigmas perdidos que clamam por reformatação; privados de referentes estáveis, carecemos desesperadamente de novos meios de compreensão e de ação que nos permitam, se não fomentar a vida, pelo menos sustentá-la. O objetivo da presente contribuição é o de abordar sob uma perspectiva crítica, centrada na convergência cada vez mais acentuada entre Técnica e Poder, as implicações éticas de um tal deslizamento dos valores sobre a contemporaneidade.

MEIA DÉCADA ALÉM

Principiemos por um exercício especulativo: o que se poderia dizer do futuro próximo? Isto é, qual seria um panorama provável do estado de coisas no planeta por volta de, digamos, 2050? Robert Kates, decano dos geógrafos norte-americanos, aponta quatro grandes tendências, para ele irreversíveis, que delinearão os próximos cinquenta anos.[13]

Aquecimento: a temperatura global do planeta (a média das temperaturas de todas as regiões) não cessou de subir nos últimos cento e cinquenta anos. São muitos os fatores naturais que influenciam esse índice: as turbulências do Sol, a salinidade e as correntes oceânicas, as erupções vulcânicas etc. Contudo, em 1998, a Conferência de Kyoto da ONU sobre o clima mundial declarou que na atualidade o principal agente de mudanças ambientais em grandes escalas é a atividade humana, tomada em conjunto. Somos os maiores modificadores da biosfera, da composição de gases da atmosfera, da taxa de refletividade das superfícies marinhas. O clima global deixou de ser apenas “natural”; tornou-se também, ao menos em parte, um artefato, um produto do engenho e arte (ou da estupidez e incúria) humanos. Dilui-se a distinção entre natureza e cultura: eis um dos principais signos do que se convencionou chamar de “pós-modernidade”.

O fato é que a temperatura global deve continuar subindo nos próximos cinquenta anos.[14] Os climatologistas antes divergiam sobre esta previsão, hoje, discordam apenas sobre a grandeza desse aumento. Os coeficientes citados oscilam entre meio grau (otimistas incuráveis) e três graus (pessimistas irrecuperáveis). A principal consequência do aquecimento é o derretimento dos gelos polares (no Ártico e, especialmente, na Antártida) e dos glaciares e a decorrente elevação do nível dos mares. Se valer a previsão otimista, a vida dos surfistas vai ficar mais interessante, se valer a pessimista, boa parte das principais cidades do mundo (quase todas costeiras) começarão a submergir sob marés cada vez mais invasivas.[15] Como o clima terrestre é um sistema complexo em que múltiplos componentes influenciam-se uns aos outros num permanente jogo de desequilíbrios e compensações, será igualmente alterado de modo profundo o regime de chuvas e ventos, com graves (às vezes excelentes, às vezes desastrosos) efeitos sobre a agricultura — e portanto sobre as condições de vida de grandes populações. Kates assinala que o importante a notar aqui não são apenas as possíveis catástrofes, mas sim o fato de que a rápida alteração do ambiente planetário é um efeito global, que afetará todas as regiões e locais, ignorando países, regimes e línguas, e sua administração — o controle de suas causas e a minimização de suas consequências — do mesmo modo deverá necessariamente ser um processo transnacional.

População: a população humana cresceu dramaticamente no último milhão de anos, desde que nossos ancestrais realizaram o feito notável de controlar o fogo. Em linhas gerais, esse incremento se deu em três estágios em que um crescimento abrupto é seguido por um platô de crescimento lento. O primeiro período abrange desde 1 milhão até 12 mil anos atrás, corresponde ao desenvolvimento de ferramentas e utensílios e a população cresceu por um fator 100, passando de 50 mil (estimativa) a cerca de 5 milhões. O segundo período, indo até trezentos anos atrás, está associado à chamada revolução neolítica — a domesticação de animais e plantas que permitiu que o trabalho de um único indivíduo produzisse alimento para muitos, com a população novamente aumentando por um fator 100: de 5 para 500 milhões. O terceiro período, do séc. XVIII até hoje, foi o palco da Revolução Industrial, e a população cresceu por um fator 10: de 500 milhões para os atuais 6 bilhões de almas.[16] Em uma projeção conservadora, Kates prevê que a população atual praticamente dobrará nos próximos cinquenta anos: em 2050, deveremos ser em torno de 10 bilhões de humanos.[17]

Coloca-se assim um problema inédito: o da sustentabilidade desse colossal contingente de pessoas. Deixando de lado os terríveis aspectos da perversa distribuição atual de bens e recursos, e apoiando-se na frieza das estatísticas, Kates sugere outra estimativa, desta vez bastante grosseira: para dobrar (x 2) o número de pessoas, deveríamos quadruplicar (x 4) a produção de alimentos, sextuplicar (x 6) o suprimento de energia, octuplicar (x 8) a oferta de bens econômicos em geral (serviços, empregos etc).[18] Esse cenário 2 x 4 x 6 x 8 é meramente sugestivo e provavelmente bem pouco realista, mas o que interessa é a dúvida que levanta: poderá tal número de indivíduos ser mantido? Até a Revolução Industrial do século XIX, os recursos naturais e ambientais eram abundantes e baratos: os estoques de água doce e terra arável das Américas, por exemplo, pareceram ilimitados aos primeiros exploradores europeus. Os bens artificiais, produto de manufaturas, eram em contrapartida escassos e caros, mesmo as peças de vestuário mais simples precisavam ser usadas até o limite. Com a mecanização da produção e, mais tarde, a linha de montagem industrial, essa relação se inverteu: os bens artificiais, fabricados em grandes quantidades, tornaram-se abundantes e seu custo baixou (basta ver a disseminação de utensílios de cozinha feitos de metal — na Idade Média, eram privilégio dos nobres mais ricos). Os bens naturais, por outro lado, são cada vez mais restritos e preciosos: a extração em larga escala, o desperdício descuidado e a colossal geração de resíduos e poluentes tornaram muitos tipos de recursos naturais — nascentes de água doce, matas intocadas, minas pouco profundas — cada vez mais difíceis de encontrar e explorar. Em conjunção com a previsão de intensas mudanças climáticas, a duplicação da população terrestre aponta para profundas mudanças dos presentes modos de organização das sociedades — ou…

Conectividade: a integração da produção econômica em escala transcontinental (a “globalização” da economia), a capacidade de comunicação praticamente instantânea entre quaisquer pontos do planeta e o desenvolvimento fulminante dos meios de transporte farão o mundo de 2050 exibir uma conectividade sem precedentes. A circulação de bens e pessoas deverá ser realizada com um ritmo e um alcance várias vezes superiores aos atuais. O consequente “encurtamento” das distâncias geográficas reforçará o compartilhamento do planeta por grandes contingentes de indivíduos de origens, tradições, crenças, etnias, línguas e costumes diferentes (como já sucede em muitas megalópoles). O fluxo contínuo de produtos, graças aos velozes meios de transporte de longo curso, será outro elemento original na composição do mundo globalizado.

Essa mobilidade física dos indivíduos não tem paralelo na história, e suas consequências sociais e culturais apenas começam a ser assimiladas pelas sociedades. Na Idade Média europeia, por exemplo, gerações inteiras visitaram apenas os arredores de suas aldeias, conheceram umas poucas dezenas de concidadãos (talvez centenas, nas feiras mensais) e as notícias de lugares distantes eram trazidas por saltimbancos e outros viajantes itinerantes, ao cabo de meses ou anos. Hoje encontramos quotidianamente pessoas de todas as origens e nacionalidades, num entrecruzar incessante de línguas e costumes, em nossa cidade ou em qualquer outra. Anualmente, 1,3 bilhão de passageiros são transportados em 18 milhões de rotas de vôo pelas companhias aéreas, em média, a qualquer hora do dia ou da noite, 150 mil pessoas estão no ar[19]. Ou seja, a cada hora, a população inteira de uma cidade de tamanho médio está mudando de lugar (a rigor, está em lugar nenhum). Segundo Kates, esses deslocamentos em massa criam uma aproximação inédita entre regiões, países, continentes, inaugurando uma nova geografia — a dos territórios aéreos, verticais — em que estão diluídas as fronteiras (no sentido tradicional) que recortam o mundo, e apontando para a possibilidade de vir a surgir uma cidadania de âmbito planetário.

Diversidade: apesar da hegemonia das lanchonetes fast-food, a globalização poderá não conduzir a uma homogeneização das culturas, mas ao contrário, produzir um mosaico de diversidades combinadas — integrações díspares, por assim dizer. Suponhamos que estatuetas esquimós estejam “na moda”, se os custos de produção forem menores na selva peruana, então a indústria será transferida para lá, embora os índios peruanos jamais tenham visto uma foca ou um urso polar — isto é globalização. Contudo, pela mesma razão, a mistura de bens oriundos das mais diversas culturas será comum, pelo menos nos grandes centros urbanos, e dessa mescla surgirão novos tipos de cidadãos inter- ou pós-nacionais, mais mestiçados, mais matizados, mais nuançados — isto também é globalização.[20] Por outro lado, fortes movimentos de reafirmação étnica, religiosa ou nacional, buscando enfatizar os traços distintivos próprios a cada grupo, devem igualmente esforçar-se (até mesmo lançando mão da violência, como temos visto) por manter um lugar ao sol — ou ocupar um pedaço da grande colcha de retalhos da cultura mundializada. Kates observa que, como em toda renovação, atritos de vários tipos entre antigas e novas posturas devem ser esperados, todavia, a aceleração causada pelo ritmo estonteante das inovações tecnológicas comprime extraordinariamente a duração das experiências individuais e coletivas — processos que demoravam gerações sucedem hoje em semanas ou dias. As instituições e costumes atuais dos povos terão de adaptar-se com presteza a essa nova realidade.

Kates arremata sua análise prospectiva propondo três questões decisivas e sugerindo ao mesmo tempo as respostas:

O mundo tal como o conhecemos persistirá? Para Kates, inequivocamente, não. O espectro de forças em ação no interior das tendências em larga escala por ele identificadas é demasiadamente amplo e seus efeitos sobre a sociedade e o meio ambiente são por demais profundos e disseminados para que o corrente status quo civilizacional tenha chances, ainda que mínimas, de se manter. Nossos filhos não serão os mesmos nem viverão como nossos pais.

A vida perseverará? Certamente, sim. A vida é um tipo peculiar de organização material que, uma vez inaugurado, possui um assombroso poder de perseverar. Os historiadores naturais têm colhido nos registros fósseis evidências de vários episódios de extinção (e também de geração) em massa de espécies vivas, alcançando até 95% do biota terrestre.[21] Apenas um cataclisma de dimensões verdadeiramente cósmicas (como a explosão de uma supernova nas proximidades do sistema solar[22]) poderia esterilizar a Terra de modo tão completo que toda a vida no planeta — do fundo dos mares ao topo das montanhas — desaparecesse de vez. Nós, os humanos, podemos degradar a vida e alterar seus caminhos, mas não aniquilá-la. Ou será que podemos?!

A humanidade prosperará? Não sabemos, diz Kates, e não há como saber. A razão é que sendo a atividade humana o mais importante motor das transformações que acometem o ambiente hoje, em todos os planos, os efeitos dessas ações inevitavelmente se rebaterão sobre as causas — ou seja, nossas próprias produções. Esta auto-afecção, típica dos sistemas complexos não lineares, torna imprevisíveis os caminhos de evolução que a presente civilização humana poderá seguir.[23] À medida que o diagnóstico se funde à prevenção, diz Paulo Vaz, a administração dos riscos inverte a causalidade ortodoxa: o porvir possível modifica o agir atual, a consequência antecipada torna-se condição da ação.[24] O futuro muda de natureza, o futuro não é mais como antigamente…

As grandes tendências para os próximos cinquenta anos acima esquematizadas por Kates exibem um aspecto em comum: o caráter decisivo dos avanços científicos e tecnológicos nas transformações econômicas, sociais e culturais da humanidade. Foram avanços técnicos do passado recente que induziram a instalação presentemente em curso deste novo estado de coisas, com seus ápices e impasses. Paradoxalmente, sem a continuidade do desenvolvimento, produção e aplicação de novas tecnologias não poderemos enfrentar os árduos desafios que nos são postos: atenuar os efeitos das mudanças climáticas, prover as necessidades de uma população crescente, implementar as conexões entre todos os recantos do globo, promover e combinar traços culturais múltiplos. Trata-se, portanto, de gerenciar os usos da tecnociência; o horizonte da sustentabilidade (dito de outro modo, a continuidade da civilização) obrigará que a economia (a regra sobre o-que-é-comum) convirja para a ecologia (o saber sobre o-que-é-comum). Para compreender a origem dos avanços extraordinários na descrição da natureza e da capacidade técnica sem paralelo que integram a tecnociência de nossos dias é necessário delinear um breve resumo da grandiosa Revolução Científica iniciada na alvorada do século XX.

O MAIOR, O MÉDIO, O MENOR

Desde seu início, o século XX testemunhou a realização de uma série de experimentos decisivos e teorizações audaciosas que acabaram por demonstrar a inadequação da abordagem newtoniana ou clássica com respeito a fenômenos que ocorrem em escalas (de comprimentos, durações ou velocidades) inumanas, estranhas à nossa percepção habitual dos acontecimentos — como o comportamento dos componentes microscópicos da matéria (moléculas, átomos, partículas) ou a estrutura do universo astronômico (galáxias, grupos, aglomerados). Bilionésimos de segundo, quintilhões de quilômetros: o acesso a esses novos domínios de investigação terá uma implicação deveras notável — a natureza deixa de ser monótona. De fato, o que tais avanços irão demonstrar é uma diversificação dos modos de apresentação da natureza, ou seja, distintos modos de seremergirão de acordo com o fenômeno investigado. Dependendo da escala que se considera — a microscópica, a clássica (que estamos mami-feramente equipados a experimentar) ou a astronômica —, diferentes espécies de fenômenos, com suas relações típicas, seus caracteres próprios, serão manifestados.[25] Logo, o mundo natural deixa de ser unânime, não é mais o mesmo em todas as escalas. A Revolução Científica contemporânea — para usar a bem conhecida denominação de Thomas Kuhn[26] — motivou toda uma nova compreensão acerca da realidade física básica e acarretou a instalação, atualmente em curso, de uma imagem de mundo renovada, profundamente original: a imagem da complexidade.[27] Pois para que se pudesse descrever corretamente essas classes de fenômenos até então inacessíveis foi necessário proceder a uma revisão radical dos próprios princípios que fundamentavam o estimado paradigma mecani-cista e circunscrever seu domínio de validade observacional. Podemos tentar resumir as consequências deste conjunto de inovações radicais sobre o panorama epistemológico da atualidade associando-as à introdução de um novo tipo de objeto do conhecimento — o objeto complexo, por referência ao que seria o objeto simples, típico da forma de conhecimento clássica vigente até o século XIX. Evidentemente, a aparição do objeto complexo será correlata à constituição de uma nova noção de sujeito do conhecimento.[28]

O objeto complexo perpassa os vários domínios ou modos da natureza, do mais elementar ao mais abrangente — e cada um deles parece se esmerar em nos surpreender. Concepções veneravelmente bem estabelecidas, e plenamente efetivas na compreensão habitual que temos da natureza das coisas — espaço, tempo, substância, indivíduo, universo —, sofrem transmutações essenciais, e o próprio estatuto do ato de conhecer se altera irreversivelmente. Na escala microscópica, vigora uma matéria duplamente atomizada, composta por unidades elementares de substância (as partículas) e de atividade (os quanta de ação). A microfísica quântica configura assim uma realidade básica fundamentalmente incerta, elusiva, eivada de ambiguidades, em relação à qual o observador — o produtor de conhecimento — se torna um participador, e passa a co-produzir as características que serão manifestadas pelos acontecimentos. Depende da escolha do investigador, por exemplo, a emergência de aspectos típicos de um objeto localizado (um corpúsculo) ou de um objeto extenso (uma onda).[29] Os microobjetos não mais possuem formas adrede definidas, prêt-à-porter; as coisas não são feitas de coisas… A macrofísica relativística, na escala cosmológica, possibilitou a maior descoberta que o homem já fez sobre o mundo natural — a constatação de que habitamos e somos parte de um Todo dinâmico, evolutivo, inacabado, em suma, de uma totalidade aberta, histórica, que tem também uma pré-história, ou seja, um contexto.[30] Tal concepção de um cosmo histórico, coincidente com seu próprio contexto, leva-nos a identificar o Universo como o reino mesmo da complexidade.[31] A evolução do Todo torna-se assim o pano de fundo para o desdobramento das linhagens da matéria, para a irrupção das formas cambiantes da vida, e enfim para a aparição das virtualidades do pensamento. Ou ainda, no que podemos chamar de escala mesofísica, que experimentamos diretamente pelos sentidos, o estudo dos sistemas dinâmicos não lineares conduz à concepção de sistemas dissipativos habitando estados longe do equilíbrio, marcados pela imprevisibilidade, mas aptos a engendrar hierarquias sofisticadas de organização bem como comportamentos ricos em potenciais de evolução, forçando assim o pensamento a abdicar da pretensão mecanicista de lograr um controle absoluto, correlato de uma previsibilidade sem limites, sobre os processos do mundo natural.[32] Do reconhecimento da generalidade dos sistemas não lineares resulta uma complementaridade, uma compossibihdade, entre duas noções que tradicionalmente foram tratadas como contraditórias e mutuamente excludentes: ordem e desordem. Dos conceitos de ordem como um estoque primordial de organização (de que algum deus dotou o mundo para que o mundo viesse a ser) e de desordem (ou, se quisermos, caos) como o desvio, perversão, degradação ou ruína da ordem, passamos hoje ao estudo dos processos de auto-organização a partir do influxo caótico (“ruído”) de estímulos dos ambientes endógeno e exógeno do sistema em questão.[33]

A imagem mais apurada que hoje podemos traçar desse real complexificado é a de um labirinto — um domínio de ser que, ao par de hospedar a casualidade mais extremada e irredutível, expressando portanto um acaso imperador, simultaneamente se constitui no reino da mais rígida necessidade.[34] No âmbito da totalidade complexa, global e localmente evolutiva, cuja história é uma e várias histórias, as formas tornam-se transientes. Em vez de um repertório limitado de tipos de existência, encontramos campos de individuação em que a matéria, a vida e o pensamento podem acrescentar novos modos de existir aos de que já se dispõe.[35] Inventividade: característica que reaproxima o estudo da natureza dos afazeres da filosofia e da arte. A introdução da noção de objeto complexo no domínio das ciências naturais nos obriga a pensar que a cada escala ou dimensão fenomênica está associado um certo modo de realização característico, que necessariamente é permitido e fundamentado pelo nível precedente do “estrato” (senão simplesmente não ocorreria!) mas não é determinado por ele. A analogia apropriada aqui não é mais, evidentemente, com os mecanismos, e sim com a linguagem ou, como preferiria Borges, com a literatura.[36] Tomemos o alfabeto e os símbolos de pontuação: letras compõem fonemas, que formam palavras, que se encadeiam em frases, que se encaixam em parágrafos, que integram textos, que são parte de volumes, que se distribuem enfim pela vasta biblioteca que contem tudo o que é dizível. O aspecto significativo é que cada nível de integração possui a própria regra: as leis da sintaxe (que regem a articulação de palavras) são possibilitadas pelas leis da fonologia (que presidem a composição dos fonemas) mas não se reduzem a elas— senão haveria um único estilo de fala e escrita! O mundo natural, do mesmo modo, configura uma hierarquia complexa, uma pirâmide da complexidade (segundo a bela metáfora de Hubert Reeves[37]): das partículas elementares passamos aos núcleons, aos núcleos, aos átomos, às moléculas, às substâncias, às estrelas, às galáxias, aos aglomerados, ao cosmo…

As consequências decorrentes, no âmbito da técnica, da constituição dos campos ideativos associados ao objeto complexo, podem ser exploradas segundo dois eixos. O primeiro diz respeito à evolução histórica de nossa capacidade de agir sobre o meio, exemplificada pela transformação dos dispositivos motores, o segundo, à singularidade que o poder de intervenção nas relações constitutivas elementares, ou seja, microscópicas, dos corpos materiais inorgânicos e orgânicos conferiu às tecnologias mais recentes. Desde logo, é evidente a imbricação mútua dos dois planos de análise.

MOTORES DIGITAIS

É costume balizar as transformações dos modos de produção econômica vinculando-as às mudanças dos meios técnicos que lhes teriam dado origem. Há cerca de 1 milhão de anos, nossos ancestrais realizaram o feito extraordinário de dominar um processo, o fogo, e principiaram a utilizar instrumentos de pedra: a primeira revolução econômico-tecnológica, que facilitou a obtenção e o consumo de alimentos e, por conseguinte, a adaptação a habitats diversificados e o crescimento dos grupos proto-humanos. A segunda revolução se deu há 12 mil anos, quando povos que habitavam o atual Oriente Médio aprenderam a domesticar animais e plantas — ou seja, a controlar a reprodução e o comportamento de animais e vegetais potencialmente úteis, adaptando-os à proximidade das comunidades humanas. A oferta de alimentos multiplicou-se e a demanda por utensílios e ferramentas cresceu, induzindo a agregação de grande número de indivíduos e a integração de diferentes atividades que iriam dar lugar à notável invenção que é a cidade. A terceira grande revolução foi a industrial, sucedida inicialmente na Europa, em meados do século XVIII, quando a massificação do uso de máquinas — e a concomitante oferta crescente de fontes de energia, como o carvão e a eletricidade — permitiu enorme ampliação na produção de bens de consumo. Observe-se que os efeitos dessas revoluções são cumulativos, mas não excludentes: é como se cada transformação potencializasse e intensificasse certos aspectos da situação anterior. A quarta revolução está atualmente em curso: é a da informação, possibilitada pela capacidade de manipular instantaneamente quantidades maciças de dados, oferecida pelos meios eletrônicos de processamento e comunicações, e tem alcance planetário.

Michel Serres procura descrever os principais marcos do progresso técnico (e portanto das transformações econômicas a eles associadas) através da evolução dos dispositivos para gerar movimento: os motores.[38] Inicialmente, predominaram os motores vetoriais (ou de tração), em que um tipo de movimento é aproveitado para gerar outro: rodas d’água movendo moinhos, velas empurrando barcos, bois e cavalos tracionando carros, músculos justapondo pedras, pesos e molas acionando aparelhos mecânicos. Na Revolução Industrial, surge o motor de conversão, em que a energia contida num combustível é convertida em movimento: máquinas a vapor (usadas em trens, navios e maquinismos industriais), motores de combustão interna (como os que acionam os veículos de hoje). Os motores e geradores elétricos (e mesmo as usinas nucleares) também são dispositivos em que um dado tipo de energia é transformado em outra, e então em trabalho útil. Os motores de tração e de conversão permitiram a organização do espaço, ao facilitarem o deslocamento de cargas cada vez maiores ao longo de distâncias cada vez mais amplas. Mas recentemente foi desenvolvida a mais nova forma de motor, a informacional (ou comu-nicacional): tanto sua matéria-prima quanto seu produto são o mesmo, ou seja, informação. Num infomotor, a movimentação física de corpos é mínima (apenas o fluir de correntes por circuitos eletrônicos), mas o transporte de sinais (dados, imagens, palavras) é máximo. O motor informacio-nal opera aumentando o número de relações entre as fontes de informação e reduzindo a demora do contato, assim, seu efeito é o de amplificar e intensificar as trocas de informação.

Graças ao desenvolvimento dos infomotores e das tecnologias que lhe são associadas, estamos testemunhando hoje em dia uma revolução nas capacidades, coletivas e individuais, de processar informação. Trata-se da introdução, em variados tipos de dispositivos, de recursos de registro, estocagem e transporte de conteúdos significativos, configurando a aparição de “meios de pensamento artificiais” (em analogia com funções tradicionalmente conferidas a sistemas cognitivos superiores, como percepção, memória e associação). O ritmo com que têm se propagado essas próteses de pensamento — funções “inteligentes” que se instalam fora do corpo, como prolongamentos cognitivos do corpo — tem sido simplesmente vertiginoso.[39] A telemática seria exatamente a combinação de dispositivos informacionais e comunicacionais, envolvendo a integração progressiva dos dispositivos de processamento e transmissão de informação, bem como a ampliação de suas aplicações para mais e mais domínios dos afazeres humanos, em vista da variedade sempre crescente de objetos e procedimentos teleinformacionais de que mais e mais se ocupam as pessoas, nos mais diversos planos de atividade: sistemas bancários e burocráticos, eleitorais e documentais, culturais e afetivos. Incessante e crescentemente, a popularização dos artefatos teleinformáticos — os infobjetos— permite que mais pessoas passem a acionar dispositivos complexos de registro, estocagem, manipulação e intercomunicação de dados de toda a natureza, alterando de modo radical (e irreversível) o estar-no-mundo de boa parte da humanidade. Aparelhos inteligentes, veículos inteligentes, moradias inteligentes… Tudo fala com tudo: não apenas pessoas, mas também utensílios e ambientes, tornar-se-ão em breve capazes de dialogar entre si, a todo momento, através de quaisquer distâncias — eis o destino, consen-sualmente admitido pelos especialistas, dos atuais equipamentos domésticos, comerciais e gerenciais.

Examinemos como isso se tornou possível: os primeiros meios de telecomunicação — o telégrafo, o telefone fixo — operavam no regime um a um: cada emissor se conecta a um receptor. Os meios de comunicação de massa — o rádio, a televisão, e também a imprensa e o cinema, num certo sentido — operavam no regime um a todos: uma fonte de informações distribuía conteúdos (“dados”) para uma “audiência”, uma multidão de “assistentes”. Mas as atuais redes telemáticas operam no regime todos a todos: qualquer ponto da rede pode ser tanto origem quanto destino da informação.[40] O resultado foi a implantação de um novo território global de relações — o espaço cibernético ou ciberespaço, domínio constituído por entidades e ações puramente informacionais, conceitualmente análogo a um espaço físico, onde a interconectividade total de seres humanos por computadores e telecomunicação, sem levar em conta a geografia física, pode se dar.[41]

Ciberespaço é o “lugar” onde uma conversação de telefone parece acontecer. Não dentro do seu telefone real, o aparelho de plástico em sua escrivaninha. Não dentro do telefone da outra pessoa, em alguma outra cidade. O lugar “entre” os telefones. O indefinido “lugar lá fora”, onde vocês dois, seres humanos, na verdade se encontram e comunicam.[42]

Consideremos um aspecto especialmente notável dos ciberespaços: a migração de atributos entre sujeito e objeto, entre pensamento e matéria. Os infobjetos (programas e aparelhos, softtware e hardware) são impregnados de caracteres cognitivos (dantes exclusivos do sujeito), uma vez que operam como próteses de pensamento e sensibilidade, administrando o processamento e intercâmbio de informações, ou seja, não se trata da ampliação de ações extensivas (espaço) mas da amplificação de processos intensivos (tempo). Não deslocar corpos, mas compactar relações, não aumentar movimentos, mas incrementar ritmos. No novo território da telemática, o que os motores informacionais transladam não são os corpos, mas os sentidos— o aparelho sensorial — das pessoas. Assim, os indivíduos não mais se confinam às fronteiras de seus próprios corpos, passam a ser capazes de agir bem para além do alcance de suas mãos e vozes.[43] Maquiavel, um dos máximos pensadores sobre a natureza do poder, chama essa potência de mudar o mundo de virtu. Daí nossa época intensa ser rica, como nenhuma outra, de virtualidades. [44]Frisemos bem.: a compactação de “futuros virtuais” é absolutamente concreta. A “realidade virtual” (ciberespaço) não é senão o contexto em que emerge a “virtualidade real” (cibertempo).[45] Encontramos uma série sem fim de usos para os infoequipamentos, correspondendo à criação de um novo espaço de atuação coletiva, cujos termos capitais são informação, interação, conexão. Sucede desse modo uma virtualização, no sentido de Maquiavel, de toda uma gama de funções sociais à medida que se instala a cibercultu-ra.[46] Novas questões, muitas delas originais, apresentam-se às sociedades: por que não uma nova democracia, mais participativa, mais plebiscitária (já dispomos de meios técnicos que podem permitir a implantação de uma democracia “direta”, individualizada)? Ou então: como evitar uma (previsível) elitização da posse de bens virtuais a grupos sofisticadamente educados, introduzindo-se um novo fator de discriminação (e. g., plugados versus não-plugados)?

Já no domínio das interações pessoais, muito poucos desenvolvimentos técnicos tiveram impacto comparável ao da telemática: vemos estabelecerem-se novas formas de convivialidade, do bate-papo na esquina passamos à telepresença via rede, à possibilidade de a qualquer instante conectarmo-nos a qualquer pessoa (ou reservatório de dados).[47] A multiplicidade de canais coexistentes de contato, característica das novas formas de coletividade presentemente em gestação, é particularmente encarnada por duas redes telemáticas originalmente distintas, que na atualidade encontram-se em processo acelerado de fusão: a rede mundial de computadores (a Internet) e a rede também mundial de dispositivos de comunicação, fixos e portáteis. De fato, o apelido de “celular” para os atuais telefones móveis sugere de imediato uma analogia. os celulares (e outros dispositivos móveis de acesso à Grande Rede) seriam os agentes básicos de um novo tecido tecnossocial, o da rede de indivíduos em (contínua) telecomunicação.[48] Tal como as células de um organismo intercambiam sem cessar sinais químicos, os indivíduos-célula deste tecido global integram-se (e desligam-se) a todo momento a este corpo eletromagneticamente ampliado. Recordemos que, em sua origem, os computadores eram nomeados “cérebros eletrônicos”, símiles eletromecânicos de um órgão biológico; hoje, descrevemos os cérebros como “computadores biológicos” — análogos “naturais” de artefatos informacionais. Caracteriza-se com clareza, aqui, uma outra diluição de fronteiras, entre objetos “espontaneamente” engendrados pela Natureza e objetos “intencionalmente” produzidos pelo engenho e arte da cultura humana. Não, não sabemos o que poderão os corpos…

MINIATURIZAÇÃO, PORTABILIDADE, MASSIFICAÇÃO

Um dos traços mais marcantes das tecnologias elaboradas ao longo do século xx são os avanços contínuos, e acelerados, no domínio da miniaturização, ou seja, a forte tendência à diminuição das dimensões dos artefatos e de seus componentes. Esta tendência se manifestou com particular ênfase no caso da microeletrônica, o saber técnico sobre a construção e operação de microcircuitos elétricos, área em que se realizou a compac-tação de dispositivos e equipamentos numa escala nunca vista.[49]

A principal consequência econômico-social da miniaturização foi tornar portáteis uma série de aparelhos, progressivamente mais complexos; com o barateamento dos custos de produção de componentes cada vez mais diminutos e numerosos, o uso desses aparelhos portáteis ou facilmente transportáveis se individualizou, massificando tanto sua produção quanto o seu consumo. A série miniaturização-barateamento-portabilidade-individualização do uso-massificação pode ser demonstrada por vários exemplos: os primeiros rádios (e eletrolas) operavam com válvulas e eram verdadeiros móveis (como uma poltrona ou uma mesa); o termo “rádio de mesa” não era incomum. A partir da invenção decisiva do transistor, ao final da década de 40, os rádios foram encolhendo e se multiplicando; hoje, são comuns os rádios de pulso e de ouvido. A primeira televisão fazia jus à expressão “quarto da televisão” que futuramente iria se popularizar, pois ocupava literalmente um cômodo inteiro! As televisões à válvula, grandes móveis maciços, com o advento do transistor passaram por processo análogo de diminuição e multiplicação; hoje são comuns os aparelhos de bolso e mesmo Tvs instaladas em visores e óculos. O ENIAC, o primeiro computador moderno, da década de 50, ocupava três andares, não funcionava mais que um ou dois minutos de cada vez, porque esquentava muito, e tinha menos poder de cálculo que uma atual máquina de calcular infantil. [50]

Antes da invenção do transistor, a administração das correntes num circuito era função das válvulas termiônicas, que embora operem satisfatoriamente não podem ter tamanho reduzido. Já os transistores, feitos de material semicondutor, podem ter dimensões verdadeiramente microscópicas, e assim podem ser acumulados aos milhares (hoje em dia, aos milhões!) numa minúscula superfície. Um processador de computador atual é fabricado com a chamada tecnologia micrométrica— ou seja, seus circuitos componentes, cada um contendo inúmeros subcircuitos, têm a espessura de uns poucos mícrons (plural de mícron, o milionésimo do metro). Lembremos que um fio de cabelo tem cerca de um décimo de milímetro de espessura; assim, os componentes dos microcircuitos de hoje são de dez a cem vezes mais finos que um fio de cabelo. Para poder distingui-los, só usando um microscópio!

Com peças tão pequenas assim, feitas com matéria-prima barata, não é de admirar que artefatos eletrônicos de todos os tipos tenham saltado, em poucas décadas, das bancadas dos laboratórios para ocuparem aos milhões as prateleiras dos mercados — e sejam parte quotidiana da vida de populações inteiras ao redor do globo. A pergunta que nos surge imediatamente é: até onde pode ir a miniaturização eletrônica? Haverá algum limite que seja, cedo ou tarde, alcançado?

Sabemos que todas as coisas são feitas de unidades básicas de matéria, os átomos. Chamamos de moléculas os conjuntos de átomos que formam uma estrutura; cada estrutura molecular possui propriedades químicas (ou biológicas) específicas. Todas as substâncias que encontramos em nosso mundo não são senão grandes multidões de moléculas. O limite, portanto, seriam circuitos feitos com a menor parte da matéria, que é o átomo; assim, circuitos em escala atômica seriam o máximo de miniaturização que se poderia obter. Quais seriam as dimensões envolvidas? Quer dizer, qual é o tamanho de um átomo? A unidade de medida do mundo atômico é o nanômetro, igual a um metro dividido em 1 bilhão de partes. [51] Se hoje já fabricamos microcircuitos da espessura de mícrons, o passo a seguir é o de obter componentes mil vezes menores, ou seja, passar da microeletrônica para a nanoeletrônica. Esses dispositivos teriam o tamanho aproximado de cem átomos enfileirados, ou cerca de dez nanômetros de comprimento; seriam 3 mil vezes menores que um grão de poeira. A nanoeletrônica é atualmente um dos ramos mais avançados daquela que é, para muitos, a mais promissora área de pesquisa tecnológica para o século XXI: a nanotecnologia.

AS TECNOLOGIAS DO INFINITESIMAL

A nanotecnologia foi concebida em 1959 por Richard Feynman (prêmio Nobel de Física de 1965)[52] e sistematizada teoricamente por Eric Drexler, do Foresight Institute de Palo Alto, Califórnia, que muitos consideram seu verdadeiro criador.[53] As ideias de Drexler vieram em grande parte da biologia molecular, na medida em que muitos dos seus modelos funcionam de modo análogo ao do “maquinário” de uma célula. Com efeito,observando o funcionamento das proteínas e outros componentes moleculares dos organismos vivos, e partindo do princípio de que as propriedades de um objeto são função dos arranjos de seus átomos e moléculas, Drexler chegou à conclusão de que, se fosse possível controlar esses arranjos, poder-se-ia planejar todos os atributos físicos dos objetos, e desenhar à vontade estruturas materiais de todos os tipos.

A proposta central da nanotecnologia é assim a de montar, a partir da manipulação individual de átomos e moléculas, dispositivos moleculares milhares de vezes menores que um fio de cabelo, capazes de construir outros dispositivos e máquinas, encaixando moléculas uma a uma, com uma precisão e eficiência impressionantes, e a um custo reduzido já que a matéria-prima — os átomos — afinal existe em abundância na natureza… Para Drexler, o objetivo principal da nanotecnologia é não apenas projetar estas máquinas moleculares, mas sim o de criar um verdadeiro sistema de produção, uma nova forma de tecnologia em escala molecular, cujas possibilidades parecem infinitas, pois são limitadas apenas pelas leis da física e da química. No sistema de produção tradicional — por exemplo, uma linha de montagem de automóveis — os componentes são moldados “por fora”: chapas de aço são cortadas e prensadas até adquirirem a forma desejada, bem como peças de plástico e vidro etc. Depois combinam-se os diferentes componentes fabricados e monta-se o produto. Já a produção nanotecnológica produziria formas a partir “de dentro”, ou seja, justapondo átomos e moléculas unidade por unidade, segundo um dado padrão, de modo a obter o formato final (e portanto a capacidade funcional) desejado. Em vez da moldagem, um imenso jogo de armar.[54]

Tudo isso seria somente uma bela especulação se não tivesse ocorrido uma invenção decisiva: em 1981, no laboratório IBM de Zurique, G. Binnig e H. Rohrer desenvolveram o chamado microscópio eletrônico de tunelamento, que permite diferenciar os átomos entre si, dando uma imagem de suas formas e das suas associações (e por isso receberam o prêmio Nobel de Física de 1986). Com o microscópio de tunelamento abre-se a possibilidade de se arrastar ou mover átomos sobre a superfície de um substrato, como se ele mesmo fosse uma espécie de “pinça atômica”, um instrumento de nanofabricação. O processo de nanofabricação pode ser acompanhado no curso mesmo da sua realização, já que o equipamento permite a obtenção de imagens da superfície do substrato antes e depois de ter sido modificado. Com isto, os objetos em nanoescala tornaram-se acessíveis à intervenção humana, e inúmeros avanços começaram a suceder. Por exemplo, a litografia por feixe de elétrons, capaz de produzir desenhos de dispositivos eletrônicos com precisão nanométrica.[55] Ou a fabricação de lasers semicondutores, que permitiriam a criação de chips de computadores ópticos, muito mais rápidos e potentes e bem menores do que os atuais, que eventualmente levariam ao abandono da arquitetura clássica dos circuitos integrados. Inúmeras pesquisas são desenvolvidas sobre possíveis aplicações destas tecnologias: sondas mecânicas menores do que uma célula mas com alta velocidade de resposta; sensores para medição de forças muito minúsculas, tais como as de pequenas moléculas, fundamentais para a biomedicina; dentre outras.[56]

Recapitulando: o objetivo da nanotecnologia é a produção de máquinas moleculares, aparelhos microscópicos que funcionam usando moléculas. A manipulação de átomos e moléculas permitiria a construção de moléculas específicas que vão ter propriedades e finalidades definidas a partir de um desenho, de uma intenção do programador. Juntando átomos, constroem-se moléculas; juntando moléculas, a partir de um desenho, forma-se uma nanomáquina, um sistema projetado para aproveitar as propriedades destas moléculas e realizar uma certa tarefa, tal como as máquinas a que estamos acostumados. A nanotecnologia molecular inauguraria um modo de produção revolucionário, que seria baseado num princípio radicalmente diferente: o da construção em blocos, sendo o primeiro bloco as próprias moléculas. Assim, interferindo nas ligações químicas entre as moléculas, seria possível dar novos usos ao repertório de estruturas já conhecidas, montando molécula por molécula, pedaço por pedaço, o produto que se quisesse.

Segundo o cenário idealizado por Drexler, podemos imaginar micro-máquinas (com o tamanho de células) que por sua vez produziriam máquinas ainda menores (com o tamanho de vírus) que enfim fabricariam nano-máquinas autênticas (com o tamanho de moléculas); em cada passo ocorreria uma redução de escalas por um fator dez ou cem. Estas nanomá-quinas poderiam ser programadas para produzir, bloco a bloco, literalmente qualquer coisa, desde remédios até naves espaciais, a partir de qualquer: matéria-prima. Assim, uma área em que a nanotecnologia poderá ter grande utilidade é a de programas de despoluição e reciclagem de resíduos, que a cada dia se tornam mais e mais necessários. Já se projetam meios de conversão de rejeitos em matérias-primas; por exemplo, de poluentes plásticos ou resíduos de combustível em substâncias nutritivas, que poderão então ser usadas na produção de alimentos. No futuro, imagina Drexler, nanodispositivos poderão entrar no corpo humano, indo até às próprias células para combater agentes infecciosos, destruir tecidos cancerosos, reparar artérias danificadas etc. Os tabagistas, por exemplo, poderiam fumar sem culpa…

Mas, num certo sentido bem preciso, estas máquinas moleculares já existem há muito tempo. No organismo dos seres vivos, as reações bioquímicas que sustentam a vida se passam em escala molecular. São dispositivos baseados em arranjos moleculares que garantem às diversas espécies vivas suas capacidades mais importantes: a replica ção e a diferenciação de formas. A história da evolução biológica é o resultado da atuação destes dois operadores, o primeiro permitindo a um ser vivo fazer cópias de si mesmo, o segundo a acumulação de pequenas variações nos descendentes de uma espécie que eventualmente poderão levar à aparição de uma espécie distinta. A diferença decisiva é que em vez de serem programadas pela evolução natural, como os organismos, as nanomáquinas serão desenhadas pelo homem — em muitos casos, a partir de modelos oferecidos pela natureza. Seguindo Drexler, podemos imaginar nanorrobôs capazes de se replicar e de competir por recursos, como os próprios organismos vivos — de fato, com os próprios organismos vivos.

Pois esta é a questão crucial: ao propor-se a operar em escala molecular, a nanotecnologia acabará por diluir definitivamente a antiga fronteira entre o natural e o artificial. Um nanorrobô e um vírus habitariam o mesmo ambiente, e compartilhariam, talvez, uma série de propriedades e funções, poderá então vir a acontecer que seja impossível — ou inútil — tentar distingui-los. Portanto, as potencialidades da nanotecnologia são ao mesmo tempo entusiasmantes e amedrontadoras. Por um lado, o desenvolvimento de supercomputadores, de novos medicamentos, de novos materiais para uso na astronáutica, na reciclagem, num sem-número de indústrias inéditas. Por outro, a construção de armas apavorantes — diminutos invasores invisíveis, do tamanho de uma bactéria ou mesmo de um vírus, programados por alguma potência inimiga ou por um demente, poderiam penetrar numa dada região transportados por uma rajada de vento e transformar os ossos da população inteira numa pasta pegajosa… É importante recordar que toda tecnologia poderosa encerra em si, inevitavelmente, o dilema quanto aos benefícios e malefícios que decorrerão de sua aplicação. De fato, as três grandes promessas de inovação tecnológica para o século xxi, a saber, a robótica (a produção de sistemas capazes de comportamento autônomo), a biotecnologia (a manipulação dos componentes dos seres vivos, inclusive seu código genético) e a nanotecnologia (a fabricação de dispositivos moleculares) têm em comum — ademais de seu fundamento microscópico — a possibilidade de engendrar novos tipos de “vida”, quer dizer, de sistemas capazes de replicar-se e evoluir. Esta virtualidade, desnecessário dizer, é inteiramente singular na história da cultura humana.

Do ponto de vista da teoria dos sistemas complexos, a vida é uma matéria organizada que, aprendendo a modificar sua própria estrutura para responder a alterações do meio, passou a conectar os tempos bilionesimais das moléculas aos milhares de anos das transformações ambientais, aos milhões de anos das transformações geológicas, às centenas de milhões das transformações astrofísicas.[57] A aceleração técnica vigente na contemporaneidade superpôs um novo modo temporal a esta conexão entre os ritmos materiais e biológicos. o prestissimo das produções culturais. Freeman Dyson compara os andamentos típicos da natureza à marcha estugada da civilização: os continentes movimentam-se centímetros por ano (a África e a América do Sul levaram 150 milhões de anos para atingir a separação atual), uma especiação (a separação entre espécies distintas a partir de um ancestral comum) requer em média 1 milhão de anos, o clima global varia ao longo de centenas de milhares de anos, já o desenvolvimento de artefatos culturais como a metalurgia ou a cidade precisou de dezenas de milhares de anos, entidades como as línguas e as religiões têm milhares de anos de longevidade, instituições como as nações duram séculos, os indivíduos têm expectativa de vida da ordem de várias décadas, mas no sistema acadêmico hiperdesenvolvido de hoje as ideias surgem e fenecem em anos, e as inovações técnicas são lançadas e obsoletam em meses.[58] O aspecto crítico aqui, assinala Dyson, é a condensação dos ritmos naturais em ritmos tecnológicos, transformação que corresponde à instalação de um novo patamar de ordenação do sistema ‘complexo Terra e que justamente por este motivo instaura uma imprevisibilidade radical: doravante o passado não nos servirá como guia, pois a história — quer da natureza, quer da cultura — não pode mais ser rebatida sobre o futuro.

Pois o que se engendra em nossa pós-modernidade impelida pela aceleração tecnológica é a hibridação: estamos devindo, estamos passando a ser, centauros. A nuvem que no,s4íáre é a artificialização generalizada, que ao diluir as fronteiras tradicionais entre natureza e cultura, sujeito e objeto, interioridade e exterioridade, começa a nos converter em híbridos de humano e inumano.[59] A exemplo da nanotecnologia, as demais novíssimas tecnologias que deverão entrar em cena nas primeiras décadas do novo milênio — a robótica e as biotécnicas — têm como fundamento a crescente capacidade de manipular objetos infinitesimais, contudo seu campo de aplicações inclui, decididamente, desde a partida, nossos próprios corpos e espíritos. Estamos a caminho de poder redesenhar a forma humana. Um rápido panorama das expectativas que cercam os desenvolvimentos naquelas áreas proverá os elementos necessários para a discussão que nos interessa.[60]

HIBRIDAÇÕES

Nossa espécie sempre foi hábil em produzir próteses de movimento, extensões das capacidades físicas não muito notáveis de nosso corpo que ampliam em muito seu alcance de ação — tacapes, rodas, foguetes. A seguir, produzimos um extraordinário conjunto de próteses sensórias — como os instrumentos de medida — que estenderam nossos sentidos até a atual onipresença telemática. Mas ainda mais recentes — e espantosas — são as próteses de cognição, os recursos para controlar informação que principiamos a infundir em um sem-número de objetos.[61] Com efeito, a capacidade de antecipar os desenvolvimentos futuros dos acontecimentos e de escolher diretrizes de ação com base nessas antecipações seria a característica principal da faculdade que denominamos inteligência. Durante muito tempo, pensou-se que a posse do domínio simbólico necessário para exercer essa faculdade era exclusiva dos seres humanos (ou, pelo menos, que neles se manifestava de modo qualitativamente diferente dos demais animais superiores). Hoje, reconhecemos que o fator essencial das operações inteligentes é a habilidade de processar grandes quantidades de informação, e principiamos a elaborar dispositivos que incorporam funções de processamento altamente sofisticadas. Estima-se que, em vinte anos, os chips de computadores serão 1 milhão de vezes mais poderosos que os atuais, tornando-se comparáveis em eficiência a setores do córtex humano. Assim, delineia-se no horizonte a produção de artefatos dotados de autêntica inteligência artificial, fato que está confrontando os pesquisadores atuais com uma série de indagações sumamente intrigantes — acerca da natureza do pensamento, do grau de inteligência de outros seres vivos, e de nossas próprias capacidades cognitivas. A pergunta nuclear é: o que é esta matéria (este corpo biológico, este dispositivo artgicial) que pensa?

Dois horizontes prospectivos se abrem aqui. Ao confluir com a I.A., a robótica mudaria de enfoque, da automação para a autonomia. A simples automatização mecânica derivaria rumo à elaboração de sistemas industriais cada vez mais independentes e auto-suficientes, abrangendo desde a aquisição de insumos até a distribuição dos produtos acabados. Robofábricas deste tipo poderão se revelar indispensáveis, por exemplo, no desbravamento de outros planetas. É difícil imaginar o grau de eficiência que tal entidade — autoprovedora, auto-reparadora e mesmo auto-reprodutora — poderia alcançar, mas parece certo que nenhuma indústria calcada nos “velhos” moldes poderia competir com um sistema assim. No limite, o próprio trabalho humano se tornaria dispensável (ou inconveniente). Enfim, realizar-se-ia o sonho utópico da libertação do fardo do trabalho, mas com uma peculiaridade: a transferência da espécie portadora da força produtiva dos organismos humanos para os robossistemas. O impacto deste asteróide econômico nos converteria em dinossauros mamíferos, irremediavelmente obsoletos, aguardando a extinção autoproduzida. Seria esse o triunfo supremo do capital?

A segunda linha de exploração diz respeito às enormes massas de dados em circulação pela rede planetária. Podemos conceber o ciberespaço como um oceano digital em que fluem correntes de informação; as unidades elementares de que se compõe esse ciberfluido são os bits —”átomos” de diferença. Mas um bit é um fragmento excessivamente diminuto de informação, muito aquém de nosso limiar cognitivo. Hoje, os internautas padecem de um mal original — o acesso à informação conduz ao excesso de informação.[62] Ao adentrarmos a rede, deparamo-nos com uma vastidão desanimadora e desorientadora, como o deserto-labirinto de Borges.[63] O ciberespaço constituiu-se num apeiron efetivo, um novo ilimitado. Só é navegável com precisão através da mediação de camadas interfaciais (que tornam inteligíveis os blocos de bits digitais) e pelo uso de “agentes inteligentes”, programas que percorrem incessantemente os inumeráveis bancos de dados que integram as profundezas da rede garimpando endereços e conteúdos solicitados pelos usuários. Sem estes suplementos cognitivos de navegação o ciberoceano torna-se análogo ao universo de Carroll: por mais que o viajante corra, fica no mesmo lugar.[64]

À medida que a hilosfera (o plano das substâncias) é progressivamente englobada pela infosfera (o plano dos fluxos digitais), a tendência claramente identificável é a de uma integração crescente entre sensores e processadores de origem biológica e de origem microeletrônica. A demanda contínua por portabilidade já configura computadores usáveis — que se pode vestir, por exemplo. Outro fator a destacar é o previsível crescimento da amabilidade das unidades infotécnicas: da digitação (herança “primitiva” da datilografia) para a conversa (programas de reconhecimento da voz) e, breve, para o contato direto, através de interfaces anexadas ao próprio sistema nervoso.[65] O resultado, que anuncia o fim da dicotomia cartesiana entre res cogítans e res extensa, será a progressiva mescla entre interioridade e exterioridade: os limites da individualidade, dantes definidos pelos contornos do corpo, pelo alcance de seus movimentos e pela acuidade dos sentidos, serão diluídos tanto pela expansão proporcionada pela interposição de mais e mais “membranas” mediadoras quanto pela intrusão das próteses no âmago dos organismos.[66] Os ambientes “atentos” ou “responsivos” (viabilizados pela dispersão de processadores em um sem-número de utensílios), os sistemas de diagnóstico por imagem (que tornaram transparentes os corpos, cujo interior até então era opaco), os sistemas de “realidade virtual” prenunciam a fusão do orgânico e do inorgânico, a hibridização do carbono e do silício. Dyson espera que, graças aos conhecimentos obtidos pelos sistemas de escaneamento cerebral e aos avanços dos dispositivos telemáticos, em cerca de cem anos (!) estarão disponíveis interfaces “diretas” cérebro-chip, possibilitando o surgimento de mentes “compartilhadas” ou “comunitárias” (exponenciação da própria noção de rede), bem como a experiência extrema de transpessoalidade que é o download das memórias e sensações íntimas de outrem.[67] Em uma das mais importantes obras do século XX, Elias Canetti demonstrou que os seres humanos estão permanentemente sujeitos a experimentar um processo coletivo de desindividualização que leva ao aparecimento da massa, entidade com regras, características e comportamentos radicalmente distintos daqueles dos indivíduos que tomaram parte em sua constituição.[68] Mas nem mesmo a virtualidade sempre presente que é a massa se compara à unificação de psiquismos e sensibilidades antevista por Dyson; trata-se, em suma, da artificialização do inconsciente.[69]

Nos anos 50, a partir da nova compreensão sobre as interações microscópicas obtida pela revolução da física quântica nas décadas anteriores, foi realizada a identificação dos tipos (quatro bases químicas) com os quais a evolução escreveu, ao longo das eras, as séries de instruções que presidem a constituição dos biontes, os seres vivos desenhados pela seleção natural. Concluiu-se, logo a seguir, que essas especificações estavam codificadas em unidades chamadas genes, análogos dos capítulos de uma obra, que se acham reunidos em tornos denominados cromossomos. Ou seja, determinou-se o suporte bioquímico do “manual de operações” — o genoma — que todo ser vivo portaria no interior de suas células e que contém os organogramas e fluxogramas que gerenciam o desenvolvimento dos organismos de cada espécie.[70] Do ponto de vista do genoma, esses organismos seriam tão-somente o “parque industrial” indispensável para a (re)produção… do próprio manual de operações.[71] Esta descoberta extraordinária assinala o fim da tradição vitalista, que propunha uma distinção de natureza entre a matéria “inanimada” e os corpos vivos, e que teve enorme relevância no Ocidente desde os tempos de Aristóteles.[72] No âmbito da ciência contemporânea, como vimos, os seres vivos são agora entendidos como sistemas adaptativos processadores de informação.[73] Sendo o genoma o “código-base” em que se assenta o “programa” de desenvolvimento de cada bionte, sua descrição precisa permitiria determinar todos os elementos — os “blocos de bits” — e por consequência todas as etapas que comparecem na elaboração de um sistema vivo. A biologia teria assim, como substrato, a ciência do material genético dos organismos ou genômica.

Iniciou-se, em meados dos anos 80, um projeto de pesquisa cujo porte, escopo, objetivo e características o tornaram verdadeiramente singular: o Projeto Genoma Humano, um empreendimento mundial, envolvendo inúmeras agências financiadoras e laboratórios de uma dúzia de países, com o fito de catalogar todo o genoma de uma particular espécie: a humana. Isso significou a incrível tarefa de deslindar os bilhões de instruções bioquímicas contidas no núcleo das células humanas, reconvertendo-as numa outra mídia — um gigantesco arquivo contendo infindáveis expressões alfanuméricas que exprimem o que somos. Em fins da última década, a tarefa foi cumprida: as 4 bilhões de bases que compõem a dupla hélice do DNA humano foram mapeadas e identificados os cerca de 70 mil genes envolvidos na geração dos indivíduos de nossa espécie — feito científico e técnico que ultrapassa até mesmo a chegada do homem à Lua. O passo seguinte, recém-iniciado, consiste em deslindar os efeitos induzidos pela ativação dos genes, individualmente ou em associação com outros, particularmente no que diz respeito à produção dos tijolos básicos para a construção dos tecidos vivos, as proteínas. Este é o chamado Projeto Proteoma, cuja complexidade verdadeiramente assombrosa deverá exigir várias décadas de esforços contínuos até ser completado.

Como é característico da tecnociência atual, esses avanços no conhecimento sobre as fundações da genômica foram de imediato acompanhados pela geração de aplicações práticas — as biotécnicas. Assim, rapidamente, a tessitura fundamental da própria vida tornou-se suscetível a intervenções técnicas. Considere-se a seguinte sequência: nos anos 60, surgiram as primeiras associações entre genes particulares e características morfológicas (ou comportamentais), nos 70, deu-se o começo da capacidade de intervenção programada em processos genéticos, nos 80, tornaram-se corriqueiros a inclusão, exclusão e substituição de genes precisos, bem como a mescla interespécies, nos 90, é produzido o primeiro bióide (ser vivo com desenho artificial) mamífero: Dolly. Hoje, os biotécnicos já podem realçar esta ou aquela propriedade de um dado espécime a partir da introdução de genes específicos e, principalmente, isto pode ser feito com genes oriundos de uma espécie completamente distinta. Não se trata mais de “aperfeiçoar” o dote genético que a evolução natural legou a uma espécie (selecionando as espigas de trigo com grãos maiores, ou as linhagens de vacas mais produtivas), mas de produzir artificialmente seres com um design antrópico, e mesmo puramente utilitário. A perspectiva que se abre é a da hibridação radical: em cinquenta anos, estima Dyson, teremos quer a fusão interespécies, quer a gênese de espécies inteiramente novas.[74]

Decisiva, nos próximos anos, deverá ser a passagem do conhecimento básico acumulado pelos diferentes projetos genoma atualmente em andamento para o terreno das aplicações. Uma vez que a matéria-prima dos produtos é o suporte essencial da própria vida, questões éticas de magnitude ainda maior que as (imensas) dificuldades práticas deverão se apresentar — e, na sua maior parte, inteiramente insuspeitas (ou tomadas como especulação desenfreada) para nós, nos dias de hoje. Uma breve excursão especulativa será suficiente para ilustrar este ponto. A biotecnologia já exibe a capacidade em rápida ampliação de intervenção nos dispositivos básicos de funcionamento dos biontes, antecipando a possibilidade — simultaneamente fascinante e aterradora — de se viabilizar a produção antrópica, administrada, de células, tecidos, órgãos e mesmo indivíduos vivos completos. O mapeamento do genoma, por exemplo, deverá esclarecer os mecanismos de regulação dos relógios celulares, que regulam o ritmo do metabolismo — e a taxa de obsolescência — de nossas células. Com o controle, igualmente esperado, de diversas moléstias de cunho genético, e também o concurso de outros avanços médicos, a longevidade de (alguns) indivíduos poderá simplesmente desconhecer limites. Não a atual expectativa de vida (nos países ditos desenvolvidos) de oitenta anos, nem mesmo a previsão de longevidades mais que centenárias para as crianças nascidas (nestes mesmos países) na presente década, mas durações de vida de mil, 2 mil, quem sabe 10 mil anos….[75]

Delineia-se um horizonte de valores fundado na longevidade tecnicamente prolongada e administrada, calcada em estimativas de riscos genéticos e ambientais, voltada para um “mercado” restrito de candidatos à perenidade, e cuja medida será a mais preciosa das substâncias: o tempo. De acordo com o grau de acesso aos recursos médicos (e à nutrição básica!), uma situação sem precedentes se apresentaria: as populações seriam divididas numa legião de “efêmeros”, uma minoria de “duráveis”, e uma elite de “perpétuos”. Jamais qualquer sociedade humana experimentou tal separação em castas de durabilidade.

O FUTURO PRECISA DE NÓS?

Ernesto Sábato dizia que a grandeza de um pensador podia ser medida pela dificuldade que suas ideias impunham à aparição de novas ideias, ou seja, pelo caráter de obstáculo que suas doutrinas passam a oferecer, e recorda os quase vinte séculos de sujeição do Ocidente a Aristóteles.[76] Ao longo de todo o século XX, as ciências da natureza bateram-se contra um gigante do mesmo porte: Descartes. O resultado desse combate foi a elaboração de uma concepção de physis renovada, radicalmente distinta do mecanicismo vigente desde o Iluminismo, e associada a um deslocamento do fundamento básico da existência material — da noção de substância para a de processo.[77] A principal característica desse novo diagrama do pensamento é a reformulação da relação clássica entre sistema, estrutura e elemento ou, se quisermos, entre todo, meio e parte. Abolindo o eixo único que, segundo o mecanicismo cartesiano, ligaria a simplicidade dos elementos à complicação dos sistemas, os paradigmas da Complexidade reconhecem uma gama de polaridades simples/complexo meramente relativas, correspondentes a uma hierarquia de níveis de organização — constituídos a partir da reiteração e acumulação de operações de síntese e disjunção — que media a conexão entre o todo e suas partes. Esta mediação, ao conferir caráter não linear à integração do local ao global, permite a ocorrência de comportamentos de auto-infecção, em que a evolução do sistema acaba por modificar a estrutura do próprio sistema.[78] O determinismo estrito da cosmovisão clássica é revertido em favor de seu antípoda, a indeterminação inerente aos fenômenos de auto-organização.[79] O que significa essa indeterminação? Equivale, de fato, à transferência do conceito-base para a descrição dos seres do mundo, do indivíduo para a operação de individuação; em outros termos, derivamos da figura planar de um real finalizado, isto é, reificado, para a espessura de um real virtual, processual, composto por fluxos de informação em sucessivas e infindáveis formatações.[80] O substrato não importa: inorgânico (cristais, flocos de neve), orgânico (DNA, células), digital (chips, rede).[81]

Essas transformações de grande porte não foram — nem são — apenas epistemológicas ou abstratas. Conferiram à nossa época um poder dantes inimaginado de modificar o mundo natural, e uma realidade inteiramente nova vai resultar desse poder. Bill Joy um dos principais tecnologistas que participou da consolidação da presente InfoEra, faz uma observação inquietante: vivemos, desde a Segunda Grande Guerra, sob a sombra aterrorizante do cataclisma apocalíptico que resultaria de uma conflagração nuclear em larga escala. Mas os artefatos nucleares requerem a obtenção e refino de materiais raros, facilmente controláveis, e foram desenvolvidos sob estrito sigilo em centros especializados de umas poucas nações, invariavelmente submetidos à estreita supervisão de agências governamentais — aspectos que impediram, felizmente, sua proliferação desenfreada. As novíssimas tecnologias que moldarão o século XXI, ao contrário, têm valor primordialmente comercial, antes que militar; sua geração se baseia no conhecimento técnico, livremente difundido, e não em matérias-primas especiais; e seu desenvolvimento é descentralizado, ou melhor, pluricentralizado — os avanços ocorrem em instituições de pesquisa públicas e privadas, em universidades e laboratórios de empresas, em inúmeros países.[82] Em breve, adverte Joy em alguma destas instituições poderão ser criados seres capazes de se auto-replicar e evoluir (como entidades robóticas de alta inteligência e capacidade de assimilar recursos, dispositivos nanoscópicos construídos átomo a átomo que poderiam consumir qualquer fonte de energia — inclusive o bioma terrestre — ou, fundindo-se o orgânico e o inorgânico, híbridos de carbono e de silício). Mas sistemas complexos não lineares são, por natureza, impossíveis de controlar.[83] Os efeitos do impacto de uma bomba atômica são relativamente localizados (ainda que a contaminação resultante possa se espalhar e seja muito durável), todavia — como a própria vida terrestre exemplifica — não há limites para a auto-replicação evolutiva. Comparando: antes a tecnologia era uma ferramenta para o espírito agir sobre a natureza (alheia, externa). Hoje, internalizada, a tecnologia rebate-se sobre a matéria, a vida, o pensamento: o espírito se auto-afeta! É previsível que essa capacidade seja aplicada a toda matéria-prima, inclusive a biológica, inclusive, a nós mesmos. Se as próteses de movimento, percepção e pensamento que nos fizeram a espécie dominante no planeta migrarem para o interior de nossos próprios corpos, fundindo-se com nossas próprias células, o que significará ser humano? O futuro, pergunta Joy ainda precisará de nós? Ou ao homem restará ser alterado, ou superado, ou dispensável?

Nosso problema: passamos a produzir (e não mais a encontrar) a alteridade. [84] Numa página memorável, Freud afirma que a religião é uma ilusão (as religiões instituídas são, psicologicamente, operadoras de ilusões), e que a ciência é a alternativa lúcida (a compreensão científica é sentimentalmente menos compensatória mas concretamente mais autêntica, e a longo prazo mais valiosa).[85] Se tomado num sentido excludente (a ciência nada teria de religião) o anúncio desta distinção seria evidentemente incorreto. A intuição de Freud, neste ponto, permanece válida: a ciência tem uma função mítica. Pois tanto produz “valores” quanto veicula “promessas”. De fato, desde sua fundação moderna, há três séculos, a ciência progressivamente adquiriu o papel epôtlimo, fundador, de dizer o que as coisas são, e assim, do ponto de vista que Freud denomina “popular”, testemunha-se uma perfeita homologia entre religião e (tecno) ciência: ambas engendrando a promessa de um porvir providencial, ambas produzindo “ilusões de um futuro”, seja num outro mundo, seja neste aqui mesmo. Consideremos, por exemplo, o mito moderno por excelência, o do progresso, pelo qual a modernidade nos acenava com o desembarque em uma nova Canaã de abundância materializada.[86] O que vemos? Das 6 bilhões de almas com que entramos no novo milênio, 80% não dispõem de habitação e saneamento adequados, 70% são analfabetas, 50% (3 bilhões de pessoas!) são malnutridas.[87] Quais são as instituições que estão gerindo a gravidez de nosso futuro? No topo da cadeia alimentar do mercado globalizado está o capital financeiro transnacional, que opera pela acumulação exponencial de si mesmo e açambarca centripetamente os fluxos produtivos de todas as partes. José Saramago adverte: 300 empresas (não 300 mil, não 30 mil, não 3 mil, 300) controlam 60% da riqueza do planeta, os três indivíduos mais ricos na lista da revista Forbes detêm mais recursos que os 49 países mais pobres juntos. Em nossa cidade, em nosso país, neste continente, pelos continentes afora, encontramos exclusão— e a voz dos sacerdotes do privilégio culpando os próprios excluídos: não consomem, são preguiçosos, são incultos e dados ao crime, são negros e mestiços, são — supremo anátema! — ineficientes… Para essa imensa legião, o “Progresso” não passou de uma promessa não cumprida, de uma mistificação, de um futuro ilusório. Imaginaria Freud as possibilidades de pesadelo de que esta atualidade está prenhe? Sejamos claros: é impossível a extensão do consumismo predatório das elites para as grandes massas. “Igualdade”, então, só para os “de fora”, os despossuídos, que de tão numerosos logo se tornam inúteis, e depois incômodos, em seguida prejudiciais, e por fim elimináveis. Líderes “esclarecidos” encontram então a solução final para o indispensável downsizing dessa gente excedente: não o Holocausto nazista, burocrático, oneroso, e demasiado visível, mas mil pequenos holocaustos, descentralizados, silenciosos, eficazes e muito, muito fáceis de fazer. Basta deixar as coisas no rumo em que estão.[88]

Nietzsche sentenciou, com palavras de fogo, que o homem não é princípio nem fim, mas meio — quer para levar a vida às estrelas, quer para tragar a si mesmo no abismo. Neste ponto de nosso périplo, a inumanização presentemente em curso parece convergir para uma pura e simples desumanização. As bases da vida, da organização do mundo, de nossos próprios corpos, serão doravante matéria-prima para nosso engenho e arte. Teremos a sabedoria para operar tamanho poder? Não estamos ainda, como afirma Freud, demasiado embebidos num infantilismo? Não estamos ainda capturados, sem poder prescindir da ignorância e da superstição? Alcançaremos a adolescência de nossa espécie, nossa aventura, como formas de matéria-pensante, terá forças para prosseguir?

A LIBERDADE

Para Espinosa, a liberdade não é um dom inato, mas uma prática que deve ser aprendida e exercitada. Ora, quanto menos constrangimentos houver para a expressão e composição das potências singulares dos indivíduos, mais o aprendizado da liberdade será facilitado. Assim, a cidade democrática, espaço coletivo em que mais expansivamente se expressa a potência da multidão de cidadãos, seria ao mesmo tempo a forma mais natural e mais avançada de organização política, “onde hã ao mesmo tempo direito e apropriação, repartição igual das riquezas e participação igual na produção”.[89] O principal adversário da democracia-liberdade, obviamente, é a desigualdade, matriz primeira do constrangimento: as exclusões impedem a expressão organizativa da potência de largas parcelas da população, enfraquecendo a realização do exercício democrático. Contrastes excessivos até mesmo romperiam suas condições de afirmação! Se, mais uma vez com Espinosa, entendemos por Ética a determinação de estratégias de ação (e não a escolha de tábuas de julgamento), nossa época de hipertecnificação defronta-se com dilemas éticos ingentes. A imensa abertura de mundo propiciada pela aceleração técnica aponta para uma variedade de caminhos: será a humanidade subjugada por uma tecnoplutocracia dos detentores de saber/poder, um fascismo “cientificista” uniformizador que eliminará tanto a diversidade cultural quanto a biológica? Ultrapassando o cansaço da representação, poderão ser experimentadas formas mais amplas e diretas de democracia, revificando a utopia grega sob a forma de uma neopolis aberta e universal? A reconstrução da democracia no espaço escorregadio do deslizamento de valores; selecionar valores que favoreçam a vida — eis o desafio que nos cabe enfrentar.

Pois que não haja enganos aqui: as questões mais ingentes que pesam sobre a atualidade — tecnificação avassaladora, descrédito da política, exacerbação do individualismo, desvario consumista, exponenciação da exclusão, submissão ao niilismo — demandam primeiramente um diagnóstico agudo, cortante, das aporias correntes do pensamento e dos descaminhos civilizacionais determinados pelo império incontrastado do capital, solvente de todos os valores; e, em seguida, o encadeamento de proposições originais, renovadoras, visando à constituição de uma ética conforme a estes tempos ásperos e, no entanto, também promissores.[90] Diante da falência dos fundamentos e das metas do período moderno — representação, verdade, utopia, determinismo, linearidade — deve-se empreender a investigação de sistemas de valores que remetam não mais à lógica da acumulação e da escassez que norteou os agentes produtivos desde a Revolução Industrial, mas a uma lógica da circulação e da abundância da qual, graças às novas ciências e tecnologias, a era das redes presentemente em instalação poderia estar prenhe. Uma ética da inclusão, da co-participação, da generosidade: pensar como indivíduo, como coletividade, como espécie.[91]

Pois Espinosa e Freud nos mostraram: o pensamento, e não a ignorância e a superstição, é que pode permitir nossa perseverança e crescimento, revelando-nos quem somos, quem estamos passando a ser, para que façamos as escolhas éticas decisivas que nos conduzirão à maturidade ou à desaparição. Henry Miller dizia que a arte é uma lente em polimento, em que um dia veremos refletida nossa própria face. Somos Mozart e o babuíno, somos Altamira e Matrix, somos a ponte de Zaratustra, jovens Michelangelos, ainda temos de quebrar, com nossas mãos, os mármores que contêm o mistério.

*Palestra apresentada no ciclo “A Invenção da Liberdade”, Artepensamento/Museu Nacional de Belas-Artes, Rio de Janeiro, 2000. O autor agradece a Adauto Novaes e à equipe da Artepensamento pela oportunidade de participar deste evento tão significativo. Embora sejam inteiramente inocentes do que vai se seguir, agradecimentos são devidos também aos filósofos Paulo Vaz e Maurício Rocha, sem cuja amizade generosa esta contribuição (e a palestra que lhe deu origem) não teria sido realizada. Resta ainda dedicar este trabalho à lembrança e à presença de Cláudio Ulpiano e Fayga Ostrower.

 

[1] Joseph Campbell, A extensão interior do espaço interior. Rio de Janeiro: Campus, 1994.

[2] Werner Heisenberg, A imagem da natureza na ffsica moderna. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.

[3] Ernesto Sábato, “Dogmatismo”, em Nós e o universo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.

[4] Incrivelmente, esta prática continuou a ser constitucionalmente exercida em alguns países nórdicos em 1960!

[5] Vide o extraordinário documentário A arquitetura da destruição, de Peter Cohen (Suécia, 1992).

[6] Idem.

[7] Zigmut Bauman. O mal estar da pós-modernidade.Introdução. Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1998.

[8] James Gleick, Acelerado. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

[9] Luiz Alberto Oliveira, “Imagens do tempo”, em Márcio Doctors (org.), O Tempo dos Tempos. Rio de Janeiro: Fundação Eva Klabin Rapaport, em publicação.

[10] Steven Johnson, Cultura da interface. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001

[11] Márcio Tavares D’Amaral, O homem sem fundamentos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/UFRJ, 1995.

[12] Cf. Laymert Garcia dos Santos, “Tecnologia, natureza e a ‘redescoberta’ do Brasil”, em Hermetes Reis de Araújo (org.), Tecnociência e cultura. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

[13] Scientific American, outubro de 1994.

[14] Contudo, quando indagado sobre qual seria a mais importante descoberta recente que passou despercebida, o neurobiólogo William Calvin, advertindo que a regra para o clima global é a da alternância entre eras glaciais e temperadas, citou sem hesitação as evidências colhidas no registro fóssil do clima que apontam para a irrupção, num prazo de apenas uma ou duas décadas, de períodos glaciais prolongados, surgidos exatamente após um. período de aquecimento rápido no curso de uma era temperada como a atual. O principal fator para a transição abrupta entre estes regimes seria o desvio da corrente do Golfo causado pelo degelo excessivo das geleiras do Ártico… Vide www.edge.org/3rd_culture/story/contributions.html.

[15] Dados atualizados podem ser encontrados em whyfiles.org/080global_warm/in-dex.html.

[16] É fácil constatar a espantosa aceleração desse crescimento: 1.000.000 anos para multiplicar por 100, -10.000 anos para multiplicar por 100, -300 anos para multiplicar por 10.

[17] Vide os dados do U. S. Census Bureau em www.2think.org/tpe.shtml.

[18] Na biologia, o fenômeno da alometria — o crescimento desproporcional entre as partes de um sistema, por exemplo, a massa corpórea e o consumo de energia num ser vivo — é bem conhecido. Kates baseia-se num modelo alométrico para fundamentar sua nova estimativa.

[19] Sem contar os pequenos aviões Particulares dados da revista Veja (8/99).

[20] Milton Santos, Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2000.

[21] Stephen Jay Gould, Vida maravilhosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

[22] Cf. os comentários de Tim Holt sobre o Argumento do fim dos tempos” proposto por Brandon Carter em 1983, em www.linguafranca.com/9710/holt.html.

[23] John Holland, Hidden Order. Massachusetts: Addison-Wesley 1996.

[24] Paulo Vaz, “Globalização e experiência de tempo”, em P Menezes (org.), Signos plurais— mídia, arte e cotidiano na globalização. São Paulo, 1997.

[25] Luiz Alberto Oliveira, “Caos, acaso, tempo”, em Adauto Novaes (org.), A crise da razão São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

[26] Thomas S. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.

[27] Edgar Morin, O método, vol. 1. Lisboa:Publicações Europa-América, 1987.

[28] Luiz Alberto Oliveira, “Por um novo materialismo?”, em Márcio Tavares D’Amaral (org.), Contemporaneidade e novas tecnologias. Rio de Janeiro: Eco-UFRJ/Sette Letras, 1996.

[29] John Gribbin, À procura do gato de Schrõdinger Lisboa: Presença, s/d.

[30] Mário Novello, Cosmos e contexto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

[31] Hubert Reeves, A hora do deslumbramento. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

[32] Ian Stewart, Será que Deus joga dados? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

[33] Henri Atlan, Entre o cristal e a fumaça. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

[34] Luiz Alberto Oliveira, “A travessia da membrana”, em Mauro Sá Rego Costa (org.), Pontos de fuga. Rio de Janeiro: Universidade Livre do Rio de Janeiro/Ed. Taurus, 1996.

[35] Gilbert Simondon, L’individu et sa gènese physico-biologique. Grenoble: Millon, 1995.

[36] Jorge Luís Borges. “A Biblioteca de Babel”, em Ficções. São Paulo: Global, 1997.

[37] Reeves, op. cit.

[38] Michel Serres, “Espaces et Temps”, em Le passage du nord-ouest. Paris: Minuit,1980.

[39] Considere-se o resumo histórico a seguir. 1920: finalização da teoria quântica (fundamento abstrato da microeletrônica); 1939: invenção do transistor (inovação-chave da miniaturização); 1960: rádio portátil (individualização do uso); 1970: televisão em rede e sistemas de satélite (“aldeia global”); 1980: computadores pessoais e telefones celulares (popularização); 1990: as redes e a Rede (globalização); 2000: fusão dos componentes informáticos e de telecomunicações…

[40] Pierre Lévy, As tecnologias da inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

[41] O termo teria sido criado pelo autor de ficção científica William Gibson para descrever a gama inteira de recursos de informação disponível por redes de computador em seu romance de sci-fi. Neuromancer São Paulo: Aleph, 1991. Ver landow.stg.brown.edu/cpa-ce/cyborg/cyborgov.html.

[42] Bruce Sterling, The hacker crackdown. New York: Bantam, 1993.

[43] Jacques Attali, em Dicionário do século XXI Rio de Janeiro: Record, 2001 afirma que ciberespaço é “uma palavra antiga para designar hipermundo”.

[44] Intensificação: concentração de acontecimentos em frações cada vez mais diminutas de tempo, de modo a permitir a condensação (incremento da densidade) de relações na passagem de um momento a outro, aumentando assim o número e a qualidade de conexões estruturais num dado sistema. Virtualidade: a multiplicação destas potencialidades de relação entre acontecimentos. Ou seja, quanto maior a potência de interconexão, mais caminhos viáveis se apresentam para o desenrolar de uma série processual, em consequência, mais numerosos e diversificados se tornam os futuros possíveis à disposição de um dado sistema ou empreendimento. Cf Alberto Lef, sugestão de argumento para o programa Globo Ciência, não publicado.

[45] O termo “realidade virtual”, devido a Jaron Lanier, é por ele comentado em wwwwholeearth.com/ArticleBin/268.html.

[46] Ver por exemplo o sítio do Núcleo de Pesquisas sobre Ciberculturas da Escola de Comunicação da UFRJ em gweco.ufrj.br/ciberidea/index.html.

[47] A atual difusão de equipamentos de operar informação — bem como a incorporação, ao repertório dos educadores, dos saberes e procedimentos técnicos necessários a tal operação — pode ser comparada à introdução, na Idade Média tardia, do hábito da leitura silenciosa, individual, possibilitada pela inovação trazida pela imprensa. Em duas gerações, acumularam-se mais edições de obras de todo tipo — enciclopédias e atlas, traduções e registros, lendas e poesia — e estas alcançaram um número maior de leitores que os havidos em todas as bibliotecas medievais (nas quais, em vistas da escassez dos volumes penosamente copiados, praticava-se a leitura coletiva, em voz declamada). Desde então, as palavras lidas passaram a falar para dentro de nós, intimamente (e Borges então pergunta: como não seríamos românticos?), e seu singular objeto de suporte — o livro impresso — passou a servir de imagem, até mesmo, para o Universo. Vide “O livro”, em Borges oral. Lisboa: Vega, s/d.

[48] Em 1665, graças ao uso do microscópio então recentemente inventado, o inglês Robert Hooke (rival de Newton na Royal Society) publicou seu Micrographia, no qual relatava uma descoberta fundamental: examinando a cortiça, verificou que era composta por um padrão de pequenas cavidades retangulares e ocas, que batizou de células (“pequenas celas”, análogas às de um monastério ou prisão). Na verdade, só estavam vazias porque a cortiça era um tecido morto, nos tecidos vivos, estão cheias de fluido (e o nome, portanto, seria inadequado). A importância da descoberta de Hooke só seria reconhecida bem mais tarde (em 1836, por Schleiden e Schwann): as células são as unidades estruturais básicas dos seres vivos.

[49] Um circuito elétrico tem analogia exata na rede de abastecimento de água de uma região ou cidade. O reservatório (a bateria ou usina geradora) fornece o fluxo (a corrente elétrica) que é canalizado (os fios de transmissão) até os pontos de consumo (aparelhos). Um microcircuito é, prosseguindo na analogia, a rede de abastecimento em que as canalizações são muuuuito estreitas, tal como se fossem capilares. Ora, as operações mais importantes numa rede de abastecimento são direcionar e regular o fluxo, isto é, fazê-lo chegar onde é necessário, na quantidade adequada. Nas redes hidráulicas essas funções são realizadas por válvulas e comportas reguláveis. Imaginemos agora um sistema tão engenhoso em que o fluxo de pequeno calibre operasse a comporta do fluxo de grande calibre, abrindo-a ou fechando-a conforme conviesse. No caso de um circuito eletrônico, isto significa que uma corrente elétrica estaria controlando a outra, o dispositivo que realiza essa tarefa essencial é o transistor. O transistor, portanto, é tão-somente uma válvula, controlada por uma corrente, que controla outra corrente. Quanto mais transistores houver num circuito, mais complexas poderão ser as tarefas de manejo de correntes (endereçamento, reendereçamento, repartição etc.) que este circuito será capaz de desempenhar.

[50] Outro índice da massificação acelerada dos objetos eletrônicos miniaturizados é seu ritmo crescente de difusão: o rádio demorou cerca de trinta anos para tornar-se disponível para cerca de 50 milhões de pessoas, a televisão, vinte; o computador pessoal, dez; o celular e a Internet, cinco…

[51] Como se pode imaginar um bilionésimo de um metro?! Vamos seguir uma escala que vai do visível para o invisível. A menor medida no nosso cotidiano é o milímetro, o milésimo de um metro, que equivale a mil mícrons. Um fio de cabelo, por exemplo, que está no limiar do que conseguimos ver sem ajuda de microscópios, mede um décimo de milímetro, ou cem mícrons. Já um grão de poeira escapa à capacidade do olho humano de enxergar sem ajuda, pois tipicamente mede trinta mícrons. Comparando: se o grão de poeira tivesse o tamanho de uma bola de pingue-pongue, a mesa teria que ter dez quilômetros. Um mícron vale mil nanômetros. Um átomo ocupa aproximadamente um décimo de nanômetro, ou ângstrom. Se uma bola de futebol fosse ampliada até o tamanho do planeta Terra, um átomo da bola teria o tamanho de uma uva. Um ângstrom está para o metro como um caroço de uva está para a Terra.

[52] O anúncio de Feynman foi: “Há muito espaço lá dentro” [das escalas atômicas]. Na década de 80, Feynman foi escolhido “o homem mais sabido [smartest] do mundo” numa votação realizada pela revista Omni.

[53] Ver www.foresight.org.

[54] Ed Regis, Nano. Rio de Janeiro: Rocco,1996.

[55] Esta técnica de impressão é a mesma usada na fabricação dos circuitos integrados eletrônicos, mas atua em tamanhos mil vezes menores. Um exemplo é a criação da menor guitarra do mundo, que tem dez milésimos de milímetro — o tamanho aproximado de uma célula sanguínea humana. Foram utilizados feixes de elétrons para gravar um molde numa película ultrafina de silício, obtendo-se o desenho final através de uma reação química. A dimensão minúscula da guitarra não a impediu de ser fotografada, recorrendo-se a um microscópio eletrônico de varredura.

[56] Como exemplo de um dispositivo que se aproxima de uma nanomáquina, a microtransmissão construída por pesquisadores dos Laboratórios Nacionais Sandia, no Novo México (EUA): um sistema de engrenagens com espessura menor que a de um grão de poeira, que pode multiplicar em até 3 milhões de vezes a potência de um micromotor. Teoricamente esta microtransmissão poderia ser usada para deslocar um objeto de cerca de 450 g, segundo a revista Popular Science. As pesquisas relacionadas com a nova tecnologia em nanoescala tiveram recentemente o reconhecimento maior que um trabalho científico pode alcançar: o prêmio Nobel de Física de 1997 foi concedido a uma equipe de três cientistas, S. Chu, W. Phillips e C. Cohen-Tannoudji, que desenvolveram métodos de resfriamento e aprisionamento de átomos com laser.

[57] Martin Rees, “A evolução do universe”, em Andrew C. Fabian (org.), A evolução. Lisboa: Terramar, 2000.

[58] Freeman Dyson, Mundos imaginados. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

  1. [59] Luiz Alberto Oliveira, “Ética para centauros”, em Marcos Baptista (org.), Desafios da pós-modernidade: diversidades e perspectivas, Anais do 3′ Seminário Internacional sobre as Toxicomanias (em publicação).

[60] Ressalte-se que não se pretende aqui proferir profecias louvando ou maldizendo o “progresso” ou anunciar as alvíssaras de uma nova utopia futurista, mas tão-somente realizar um exercício de avaliação das virtualidades de avanços que se encontram concretamente em gestação nas bancadas de laboratórios hoje.

[61] Donald Norman, “Próteses cognitivas”, em Sian Griffiths (org.), Previsões. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[62] A pesquisa sobre o termo “bit” num dos principais sítios de busca da Web forneceu 18.800.000 resultados… Vide Paulo Vaz, “Esperança e excesso”, em Anais do 9o Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação Social. Porto Alegre:Famecos/PucRs, 2000.

[63] Jorge Luís Borges, “Os dois reis e os dois labirintos”, em O Aleph. São Paulo: Globo, 1997.

[64] Dyson, op. cit.

[65] Vejam-se a respeito as recentes notícias sobre um robô cujo processador é um cérebro de lampreia, em www.digito.pt/tecnologia/noticias/tec3245.html.

[66] As inquietantes produções de “arte ingerida” do artista Stelarc são comentadas em Fernanda Bruno, “Membranas da Interface”, em N. Villaça, E N. Góes e E. Kosovski (orgs.), Que corpo é esse? Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

[67] Dyson, op. cit.

[68] Elias Canetti, Massa e poder São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[69] Kevin Warrick, “Máquinas mentais”, em Griffiths (org.), op. cit.

[70] Paul Davies, O quinto milagre. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

[71] Richard Dawkins, 0 gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp, 1989.

[72] François Jacob, The logic of life. New York: Pantheon, 1982.

[73] Eric Schneider e James Kay, “Ordem a partir da desordem: a termodinâmica da complexidade biológica”, em Michael Murphy e Luke O’Neill (orgs.), “O que é a Vida?” 50 anos depois. São Paulo: Unesp, 1997.

[74] Dyson, op. cit

[75] Em diversos países africanos, em contrapartida, as expectativas de vida recuaram para menos de cinquenta anos.

[76] Sábato, op. cit.

[77] Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, A nova aliança. Lisboa: Gradiva, 1986.

[78] Stewart, op. cit.

[79] Humberto Maturana e Francisco Varela, De máquinas e seres vivos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

[80] Gilbert Simondon, L’individuation psychiche et collective. Paris: Aubier, 1989.

[81] Cf. A discussão sobre a natureza “analógica” ou “digital” da vida, coordenada por Dyson, em www. edge. org/documents/archive/edge82. html.

[82] Bill Joy Why the future doesn’t need us, em wwwwired.com/wired/archive/ 8.04/joy.html.

[83] Como Steven Spielberg demonstrou em O Parque dos dinossauros. Ver James Gleick, Caos. Rio de Janeiro: Campus, 1990.

[84] Paulo Vaz, “A história: da experiência de determinação à abertura tecnológica”, em D’Amaral (org.), op. cit.

[85] Sigmund Freud, Ofuturo de uma ilusão. Edição Standard Brasileira, vol. xxi. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

[86] Não abordaremos aqui, por pudor, a presente proliferação de obras (?!) de “auto-ajuda quântica” (!!!), que têm um exato correlato na mercantilização descarada das doutrinas religiosas.

[87] Dados da ONU, publicados na revista Veja (4/1).

[88] Cf a resenha de Laymert Garcia dos Santos (Folha de S. Paulo, Mais!, 24/9/2000) sobre o livro de Susan George, The Lugano report. Londres: Pluto, 2000.

[89] Antonio Negri, Le pouvoir constituant. Paris: PuF, 1997.

[90] Michael Hardt e Antonio Negri, Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[91] Anelise Pacheco, Das estrelas móveis do pensamento. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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